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Prévia do material em texto

Hans Robert Jauss
Wolfgang Iser
Karlheinz 5tierle
Hans Ulrich Gumbrecht
Harald Weinrich
SEGUNDA EDiÇÃO
REVISTA E AMPLIADA
~
PAZ E TERRA
,Seleção, coordenação e tradução de
LUIZ COSTA LIMA
TEXTOS DE ESTéTICA DA IECEPçAo
A LITERATURA
EOLEITOR
801,93
~776
led.""U0411 t
CllH
Tombo: b'1f
111111111111111111111111111
ISBN 978-8S-77~
Jjljlllll~~l~IJ~~
A presente coletânea de trab:
analistas mais expressivos da esté··
Jauss, K. Stierle, W. lser, H. U.
Weinrich constitui o primeiro
gação, realizado no Brasil, do penl
rente". Oriunda da Alemanha o,
recendo, desde o fim dos anos
contribuições para um redimension:
gações historiográfica e crítica do
o que poderá ser alcançado a partir
com o círculo ideologicamente sa'
com as limitações da cl1ariladaaid
Nota à Segunda edição:
A nova edição, revista e ampliada, substitui o texto Interação do texto com o
leitor, de Wolfgang Iser por O jogo do texto, do mesmo autor, e conta com o
acréscimo de um novo capítulo, Estruturas narrativas na escrita da História,
de Harald Weinrich.
"
HANs ROBERT JAUSS
WOLFGANG ISER
KARLHEINZ STIERLE
HANs ULRICH GUMBRECHT
HARALD WEINRICH
A LITERATURA E O LEITOR
TEXTOS DE ESTÉTICA DA RECEPÇÃO
2ª edição revista e ampliada
Seleção, Coordenação e Tradução:
Luiz Costa Lima
ffi
PAZ E TERRA
Copyright © by Luiz Costa Lima, 1979
Capa: Isabel Carballo
2" edição,
1"Reimpressão
CIP - Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, Rjo
L755
A Literatura e o leitor: textos de estética da recepção
Hans Roberr Jaussoo.et al.; coordenação e tradução de Luiz Costa Lima. ­
Rio de Janeiro: paz e Terra, 1979.
Bibliografia
I. Literatura - Estética r. Jauss, Hans Roberr
lI. Lima, Luiz Costa
m. Título: Textos de estética da recepção IV Série
suMÁRIo
AGRADECIMENTOS
Lwz COSTA LIMA o o o o o o 7
PREFÁCIO À 2ª EDIÇÃO:
Lwz COSTA LIMA . o o o o . . . . . . . . . . . . . .. 9
PREFÁCIO À 1ª EDIÇÃO: O LEITOR DEMANDA (D)A LITERATURA
Lwz COSTA LIMA o .. o . o 37
79-0344 CDD-801.93
CDU - 82.01
I. A ESTÉTICA DA RECEPÇÃO: COLOCAÇÓES GERAIS
HANS ROBERT JAUSS o ... o ... o ..... o ... o o .. o o o ... o o ... o. 67
EDITORA PAZ E TERRA LTDA
Rua do Triunfo, 177
Sama.Ifigênia, São Paulo, SP - CEP 01212-010
TeL: (011) 3337-8399
E-mail: vendas@pazeterra.com.br
Home Page: www.pazeterra.com.br
2011
Impresso no Brasil!Printed in Brazil
11. O PRAZER ESTÉTICO E AS EXPERItNClAS FUNDAMENTAIS
DA POIESIS, AISTHESIS E KATHARSIS
HANS ROBERT JAUSS .. o o o o .. o o o . . . . . .. 85
m. O ]OGO DO TEXTO
WOLFGANG ISER o ••••••••• 105
IV QUE SIGNIFICA A RECEPÇÃO DOS TEXTOS FICCIONAIS
KARLHEINZ STlERLE o o o o . . . 119
V. SOBRE OS INTERESSES COGNITIVOS, TERMINOLOGIA
BAsICA E MÉTODOS DE UMA CItNCIA DA LITERATURA
FUNDADA NA TEORIA DA AçÃo
llANSULRTCHGUMBRECHT 173
VI. ESTRUTURAS NARRATIVAS NA ESCRITA DA HISTÓRIA
llARALD WEINRTCH 197
TfTULOS E FONTES DOS ORIGINAIS 203
AGRADECIMENTOS
Esta edição não teria sido possível sem a colaboração dos autores aqui
selecionados, bem como de seus respectivos editores, que, de boa vontade, ce­
deram os direitos de tradução para a língua portuguesa. Foi ela, ademais, fa­
vorecida pela bolsa que me concede a Alexander von Humboldt-Stiftung,
permitindo-me terminar aqui o trabalho em grande parte feito no Rio de Ja­
neiro. Minhas dificuldades com a língua alemã teriam sido insuperáveis sem
a colaboração de Heidrun Krieger, Peter Naumann e Uwe Schmelter.
Reservo um agradecimento especial a Wolf-Dieter Stempel e Peter Nau­
mann. Devo à generosidade do primeiro ter sido informado, s6 em 1974, da
existência da estética da recepção e de, a partir de então, ser apresentado aos
textos desta escola e a alguns de seus representantes, entre os quais hoje reco­
nheço velhos amigos. A Peter Naumann devo o atendimento constante, não
só material quanto intelectual, que me acompanhou quer na preparação final
destes originais, quer na feitura da introdução.
Se as palavras pudessem dizer mais do que dizem ... mas como não podem,
que digam ao menos: sem todas estas ajudas, eu não teria sido capaz de abrir pa­
ra mim, e espero que também para outros, o horizonte que hoje encontro.
Luiz Costa Lima
Bochum, 8 defevereiro, 1979
AGRADECIMENTOS À 2a EDIÇÃO
Aos autores que renovaram sua autorização para a tradução de seus textos.
À viúva do professor Hans Robert Jauss, por haver mantido a autorização de seu
finado esposo. A Wolfgang!ser, pela mudança de seu texto e a Harald Weinrich,
pela introdução do seu. A Johannes Kretschmer, pela revisão da tradução do tex­
to de H. Weinrich. E a todos aqueles que se interessaram por esta reedição.
Rio de janeiro, outubro, 2001
PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO
LUIZ COSTA LIMA
1. Nota prévia
Data de 1979 a primeira edição de A Literatura e o leitor. Constava de um
prefácio meu e de cinco textos - dois de Hans Robert Jauss, um de Wolfgang
!ser, um de Karlheinz Stierle e um de Hans Ulrich Gumbrecht. Na presente edi­
ção, o texto de Iser foi retirado, pois entrementes se traduzira o livro a que per­
tencia (O Ato da leitura. Uma teoria do efeitv estético, dois volumes, trad. de Jo­
hannes Kretschmer, Editora 34, São Paulo, 1996 e 1999), e substinúdo por "O
Jogo do texto" (original de 1989). Os outros textos foram mantidos, a eles se
acrescentando o "Estruturas narrativas na escrita da histórià', do lingüista Harald
Weinrich (original de 1973). A modificação mais drástica afetaria a Introdução.
Ao surgir a possibilidade de uma segunda edição, pensei que poucos
ajustes seriam suficientes. Não considerava que houvesse mudado tanto.
Diante do que compusera em fevereiro de 1979, a sensação foi simplesmen­
te de pasmo. A decepção se concentrava na centralidade de dois argumentos:
(a) sendo a experiência estética incapaz de tornar-se guiada por conceitos, ha­
veria de ser um corpus difuso e impreciso. Portanto, sem outro fundamento,
o conhecimento da arte e da literatura estaria fadado a não avançar. Em su­
ma, a estética da recepção me interessava antes pelo que trazia nas entrelinhas
do que por seus achados; (b) seria uma vantagem para o Brasil que, aqui, os
estudos de estética - por que não dizia de filosofia? - não tivessem se de­
senvolvido. Assim, o que seria impossível na Europa, estaria aqui fàcilitado: a
adoção de formas analíticas bem fundadas!
9
Embora preferisse esquecer que um dia assim pensara, convém tentar
explicá-lo. O primeiro argumento prova que um pensamento brilhante não
está isento de dar um resultado torpe. É verossímil que ele derivasse, embo­
ra não conscientemente, da cuidadosa leitura que fizera da antropologia de
Lévi-Strauss. Apostava em que, a partir de seu exemplo, algo semelhante se
desse na análise da literatura. É provável que essa inferência, que hoje reco­
nheço descabida, se respaldasse em um estrato menos visível: o positivismo
entranhado no pensamento brasileiro. Assim, diante da novidade da Estéti­
ca da recepção, malgrado a proximidade espacial em que me encontrava de
seus mentores, era em mim despertado, ao lado de um agudo interesse, um
simultâneo mecanismo reativo. Quanto ao segundo argumento, os motivos
seriam mais imediatos. O principal se prende à repulsa ao golpe militar sob
o qual vivíamos. Numa ingenuidade que a idade não mais explicava, acredi­
tava que a mediocridade intelectual que percebia em volta era a contraface
do terror cotidiano. A agilidade mental de muitos dos jovens com que con­
vivia me convenciam de que, tão logo cessassem as condições adversas - a
profunda insegurança, o culto tecnocrata dos dirigentes, a impossibilidade
de discussão -, estaríamos preparados para um salto, para um enorme sal­
to. A vida cinza sob o despotismo e o terror inculcava uma paixão fantasmal.
E, como sabia que minha permanência em Bochum era provisória e que se­
ria dificil voltar - já para conseguir a saída do país havia sido necessário re­
correr a ligações de família -, quis concentrar nas páginas introdutórias a
formulação extrema de uma desvairadado espírito que sem­
pre soava como má literatura apenas. Daí a importância, mesmo o impac­
to, que receberia a lição inaugural de H. R. Jauss, na Universidade de
38
Konstanz, em 1967. Não pretendo recordar suas teses, pois não cogito de
fazer uma história da estética da recepção! e porque o próprio autor as re­
tomará. Lembro apenas duas de suas "provocações":
"O meu programapara superara distânciaentre literaturae hist6­
ria,entreconhecimentohist6ricoe estético,aproveita-sedosresultadosfi­
naisde ambasas escolas(o formalismoe o marxismo).Os seusmétodos
vêem ofato literário dentro de um círculofechadode estéticada produ­
ção e da representação.Prescindemde uma dimensãoda literatura,fun­
damental,dadoso seu caráterestéticoe a sua funçãosocial:a dimensão
da sua recepçãoe os efeitosque elaocasiona'.Qauss,H. R, 1967, 37)
"Uma renovaçãoda historiografiada literatura deve destruir os
preconceitosdo objetivismohistóricoe dar à estéticatradicionalda pro­
dução e da representaçãouma basecientífica,apoiadana estéticada re­
cepçãoe na sua efetividade".(Idem,40)
Cada wna destas observações, sem dúvida instigantes, suscita dúvidas
imediatas. Tratar-se-iasimplesmente de deslocar o centro de gravidade, retiran-
I Mesmo que não tenhamos este propósito, é importante assinalar a antecipação e/ou
a correspondência de algumas das teses de Jauss com pontos de vista desenvolvidos pelo cha­
mado estruturalismo de Praga. Vejam-se a respeito os dois seguintes testemunhos: "E sinto­
mático (... ) que esboços mais recentes de uma estética histórica da recepção (H. R. Jauss), de
início pensados independentemente, encontraram aqui (isto é, no estruturalismo de Praga)
posições em parte já formuladas", W D. Stempel: "Zur literarischen Semiotik Miroslav Cer­
venkas", introdução à tradução alemã de M. Cervenkas: Der Bedeutungsaufbau des literaris­
chen Werkes (A construção de significação da obra literdria), W Fink, München 1978, p. IX.
"Do ponto de vista da gênese, não se pode (... ) falar numa filiação direta. Mas, indo além das
correspondências sistemáticas de longo alcance, deve-se ressaltar, como um paralelo entre as
duas origens, que tanto Jauss quanto os estruturalistas de Praga des~nvolveram sua compreen­
são da percepção e da evolução literárias em confronto direto com teses e teoremas do forma­
lismo russo, de um lado, e com a teoria e crítica literárias marxistas, do outro; teses e teore­
mas, em parte tomadas de empréstimo, em parte criticamente modificadas e, em parte,
rejeitadas. Só que este confronto levou Muka.fovsky à construção de uma estética semiótica,
que ainda foi aproveitada por Vodieka, como base teórica de sua idéia de recepção. Já quan­
to à história da recepção de Jauss, sua idéia parte, não de uma estética semiótico-estrutural,
mas se liga à tradição alemã da hermenêutica, como teoria da compreensão, J. Striedter, in­
trodução à rradução alemã de Fe1ix Vodieka: Die Struktur der literarischen Entwicklung (A es­
trutura da evolução literdria), W Fink, MÜllchen 1976, p. XCI-XCII.
39
do-o do texto e passando-o para o leitor? Tratar-se-ia de oferecer à estética tra­
dicional urna base mais firme, mantendo-se contudo intaàos os seus pressupos­
tos? Perguntas semelhantes são respondidas, ao menos parcialmente, pelos au­
tores aqui selecionados. Sobre a primeira, é convincente a resposta de H. V.
Gumbrecht: /:l. estética da recepção, como ainda se objeta, perde de vista o autor, a
produção do texto como objetos da ciência da literatura. Tal crítica era correta en­
quanto a estética da recepção desejava ser apenas 'uma história da literatura do
leitor'Oauss, 1967, Weinrich, 1967)". (Gumbrecht, H. U, 1977a; ver p. 191).
E de maneira mais aguda: "... a verdadeira inovação da estética da recepção con­
sistiu em ter ela abandonado a classificação da quantidade das exegeses posslveis e
historicamente realizadas sobre um texto, em muitas interpretações JàIsI1S' e uma
cOn"eta: Seu, interesse cognitivo se desloca da tentativa de constituir uma signi-
ficação procedente para o esforço de compreender a diftrença das diferentes exegeses
de um texto" (idem, 191). Como se vê, ao passarmos em revista a resposta a pri­
meira questão, nos deslocamos para o âmbito da segunda. Pois é claro que esta
passagem quanto à meta mesma da interpretação supõe pressupostos teóricos
diversos dos válidos para a hermenêutica tradicional. Seria esta passagem aceitá­
vel do ponto de vista dos outros autores da chamada "escola de Konstanz"?
Qualquer resposta permaneceria por ora precipitada, mas, em vez de adiá-Ia.
procuremos prepará-Ia por uma reflexão mais envolvente.
Ao nos referirmos ao problema de como se haveria de entender o papel
concedido ao leitor, observamos que aí não se encontra a possível novidade da
estética da recepção. Mas, como o leitor deste ensaio poderá estar se perguntan­
do por que isso é tão relevante, empreendamos um raciocínio diferente que, ra­
tificando a primeira resposta nos dê condições de melhor formular a segunda
pergunta. Considerar de início que o leitor é o centro da pesquisa recepcional im­
plicará deixar-se de lado a reorientação teórica dos estudos da literatura que o
movimento teria operado ou poderá vir a operar. Escolhemos a forma dubitati­
va porque, de um lado, a aula inaugural de Jauss dá a entender que o leitor sim
é o que o preocupa. e, de outro, Gumbrecht afirma que esta posição teria sido
posteriormente ultrapassada. Explicitando o quadro da discussão: se a ênfase no
leitor representa a focalização do pólo hoje comumente desconsiderado, por mais
provocante que isso seja, não basta para dizer-se que a estética da recepção vio­
lenta os parâmetros da crítica imanentista (textual). Assim afirmamos conside­
rando o seguinte: em toda construção teórica, seja a científica, seja a do saber po­
pular (por ex., a de sua medicina), há um plano dos pressupostos, orientador,
40
mesmo quando o analista não o conheça, da indagação prática, e um plano me­
todológico, que diz respeito ao arsenal de regras e técnicas com que se lida com o
objeto. Portanto, se a estética da recepção se diferençar apenas pelo realce do lei­
tor, aquele primeiro plano permanecerá intaàO. Contudo, se por acaso o exame
a que vamos submeter os textos provar o contrário, quais serão as suas conse­
qüências? Para dizê-Io com poucas palavras: neste caso, a estética da recepção im­
plicaria o caminho para uma "mudança paradigmática'',2 como seria desejável
por um Gumbrecht. Segundo a furmulação deste, esta mudança dependeria do
abandono de fixarem-se as "interpretações corretas" (Gumbrecht, H.V., 1975,
389), para. em troca, reconstituírem-se as condições sócio-históricas que me­
deiam as diversas formações de sentido. Em suas palavras, trata-se agora de "com­
preender as condições de formações diferentes de sentido, realizadas sobre um
dado texto, por leitores que estão de posse de disposições recepcionais mediadas
por condições históricas distintas" (Gumbrecht, H. v., 1975,390).
Ora, se esta meta não fur válida apenas para quem a furmula. como a estéti­
ca da recepção visaria dar "uma base científica" "à estética da produção e da repre­
sentação" Oauss)? Fazemos questão de articular a passagem de Gumbrecht com o
texto "canônico" de Jauss para que bem se veja a sua não convergência e, desde lo­
go, para que o leitor brasileiro perceba que não se trata de um grupo uno. Isso p0s­
to, podemos submeter nossa segunda pergunta a uma formulação mais precisa: ou
a) a estética da recepção se caraaeriza pela ênfàse no pólo, hoje secundário, do lei­
tor, ou b) esta ênfàse é apenas o sintoma de urna decisão de maior alcance: a de
se contrapor à figura do "leitor ideal", isto é, aquele que ofereceria a leitura cor­
reta de um certo texto. Se a resposta legítima for a primeira. isso significará que
a estética da recepção metodologicamente se diferencia das correntes imanen­
tistas. Se, ao contrário, for a segunda, a diferença entre os campos será muito
maior,pois que situada no plano dos próprios pressupostos teóricos. Assim for-
2 Como prova paralela de que o destaque do leiror hoje em dia causa a sensação ou a
esperança de wna mudança de paradigma, considere-se o exemplo de Norman Holland, pes­
quisador americano que, sem nenhum contato com a estética da recepção, procura justificar
seu interesse na produção do recepror pelo questionamento do paradigma que tem guiado as
ciências, e por ele chamado "paradigma objetivo", mostrando-o como produto de wn momen­
to histórico, o qual há de ser ultrapassado para que as ciências, até agora tidas por menores,
possam alcançar seu verdadeiro estatuto. Lamentavelmente, seus argumentos em favor do "pa­
radigma subjetivo" não são convincentes. Cf. Nonnan N. Holland: "The New paradigm: sub­
jective or transactive?", in New literary history, v. VII, o. 2, 1976.
41
mulada, a questão agora pretende ter uma abrangência a que se subordinará
todo o ensaio que se escreve. A função deste, portanto, não será outra senão a
de formalizar os passos para a resposta que assim pareça mais conseqüente.
Uma vantagem complementar daquela formulação e da indicação de seu pa­
pel no interior deste texto consiste em mostrar ao leitor o que se pretende que
ele aqui encontre: nem a apresentação de uma história crítica das etapas da es­
tética da recepção, nem muito menos um acompanhamento exaustivo dos en­
saios apresentados. Contra a primeira possibilidade, levanta-se o fato de que eu
não seria capaz de melhorar o que já está feito por um R. Warning (Warning,
R., 1975, 9-41). Contra a segunda possibilidade, levanta-se uma razão funcio­
nal: tal estudo detalhado teria sentido apenas em um círculo mais restrito, com
pessoas de interesse já defmido, como ao longo de um curso. O que, portan­
to, nos interessa é situar a estética da recepção do ponto de vista do panorama
da crítica atual, implicitamente verificando em que ela nos pode ser relevante.
Por esta razão, acompanharemos os ensaios a partir de um prisma preciso e li­
mitado: o da pergunta se a estética da recepção pertence ou não ao paradigma
também válido para as outras correntes importantes da análise da literatura.
2. 1º círculo: a experiência estética
Assim posto, o primeiro problema que se apresenta é como os autores conce­
bem a experiência estética. Creio que qualquer estudioso da literatura saberá por que
esta há de ser a questão preliminar. Repetindo um argumento que já escrevi várias
vezõ, por mais distintas que sejam as conentes de análise, todas elas têm partido do
suposto que a sua teorização constitui, contribui ou fuzparte de algum copus estéti­
co. Isso, por sua vez, pressupõe que se tenha uma idéia precisa: a) da experiência es­
tética. b) de que é válido montar-sesobre esta uma teoria, a qual será necessariamen­
te então estética. Noutras palavras, que a análise da literatura se infere da experiência
que se estabelece com os seus textos. Neste sentido, quaisquer que sejam as restrições
posteriores à parte final e ao segundo texto selecionados pelo próprio Jauss para esta
antologia, eles têm a qualidade de não dar por implícito o que é a base sobre a qual
se têm collStrUÍdo as teorias neste campo: ou seja, em que consiste a experiência es­
tética primeira.
Jauss encontra em Adorno o adversário privilegiado, pois, atacando na
Asthetisehe Theorie o prazer estético como o adaptador da arte ao consurnismo
42
burguês das emoções e, ao mesmo tempo, confessando que, no momento em
que estiver retirada a última gota de prazer da arte, ela não terá mais lugar,
Adorno permitirá a Jauss armar-se de cavaleiro em defesa da arte e mostrar a
sua importância para a práxis dos homens. Jauss tem sem dúvida razão quan­
do critica a oposição adorniana entre o culto da negatividade, representado pe­
la arte, e o enfeitiçamento geral que a Asthetische Theorie - e a Escola de
Frankfurt em geral - toma como a característica mais maligna da sociedade
de consumo. Razão porque mostra Adorno tributário do culto idealista da ar­
te, do qual, contudo, tampouco Jauss se afàsta. Como justificar doutra manei­
ra a idéia de um "caráter permanente de arte" (p. 56), que a impediria de ser
totalmente manipulável pelas leis do mercado? Como não recordarmos o pa­
pel que a arte tinha para um SchiUer, quando lemos que a estética adorniana
di negatividade deve, ultrapassando o princípio vanguardista da violação da
norma, favorecer "produções formadoras de norma da experiência estéticà'?
Ora, esta produção pode-se fazer em qualquer sentido, como violadoras ou
conftrmadoras do status quo. Admitamos que a experiência estética, de fato,
contém um espectro assim variado de possibilidades. Mas, se o analista não
tem uma preocupação apenas descritiva, o que não é o caso de Jauss em seu
confronto com Adorno, ele só se contentará com aquela indicação tão ampla,
se, de fato, achar que a estética é, de qualquer forma, redentora. É por conta
da adirecionalidade de sua afirmação e por não verificar que as normas estéti­
cas estão evidentemente entrelaçadas às normas sociais, que afirmamos Jauss
pertencer ao mesmo solo idealista que critica em Adorno. Portanto, sua refu­
tação, embora correta, termina por se converter em uma obra menor. É possí­
vel que dentro do quadro institucional europeu - na Europa Ocidental por
motivos diversos dos da outra - não se possa pensar doutro modo, a tal pon­
to a práxis efetiva está afastada da práxis intelectual. Mas, evitando julgamen­
tos arriscados, o fato é que a crítica a Adorno não oferece uma réplica de igual
peso porque Jauss se mantém na arcádia paradisíaca dà literatura. Noutras pa­
lavras, porque não se permite vê-Ia no interior da dinâmica social. Neste sen­
tido, o primeiro exame, conquanto parcial, já orienta a resposta a oferecer à
pergunta central deste ensaio. Ela, contudo, é bem uma resposta provisória,
que só se configurará em sua plenitude ao observarmos como encara a expe­
riência estética.
Jauss tem aí o cuidado de notar que a sua reflexão fornecerá apenas um
contributo para a história da experiência estética. Ele parte da afirmação kan-
43
tiana sobre a diferença entre o juízo determinante e o de reflexão. Glosando li­
vremente: enquanto o primeiro afirma seu direito por conta de sua demons­
tratividade interna, o segundo é, por um lado, mais frágil, pois não dispõe de
uma rede conceitual auto--suficiente e, por outro, mais ajustado a exprimir a li­
berdade individual, pois o seu reconhecimento sempre dependerá da aceitação
pelos outros, pela formação de um consenso. Jauss está certo ao dizer então
que, assim, "a condição estética ganha, indiretamente, significação para a prá­
xis da ação". Mas o exame só poderá ser tomado como completo se, outra vez,
não considerarmos as mediações, o jogo de pressões realizados por outras ins­
tâncias sociais. Afinal, o consenso não se impõe por si; obviamente, há instân­
cias e instituições que o inclinam nesta ou naquela direção. Como, por exem­
plo, se estabelece o consenso sobre a excelência de um autor? Seria por que o
horizonte de expectativas dos leitores se ajusta com o horizonte possibilitado
pelo texto, numa espécie de contrato natural, ou por que instâncias de poder
especifico - isto é, do poder literário - se não mesmo as inclinações políti­
cas da sociedade se manifestam e/ou se orientam em favor da concessão daque­
le prêmio? Não pretendo dizer que a oposição haja de ser de tipo tão simples.
Na verdade, para o êxito ou fracasso de uma obra ou de uma corrente interfe­
rem inúmeras mediações, a priori não enumeráveis. Apenas quero dizer que
Jauss pode concluir seu artigo introdutório com a passagem de Kant porque
crê em um caráter permanente de arte e, daí, numa força especifica da arte, que
é o justo tributo à forte tradição idealista alemã.
Não comentando mais longamente este segundo exame parcial, venha­
mos às suas observações sobre a história da experiência estética primeira. Vm­
do de Aristóteles e Górgias,de Agostinho e Lutero até o romantismo, Jauss
pratica o que se chamaria o esboço de uma história do conceito. Extrema­
mente útil como é, ela me parece arriscada por não levar em conta as inter­
relações do conceito que estuda, a experiência estética, com outros conceitos­
motores, pelas quais se reconstituísse o lugar historicamente ocupado por ele,
em cada fase. Explicando melhor: à medida mesmo que o juízo estético não
é auto-suficiente, conforme a afirmação kantiana, sua história não pode ser
traçada do mesmo modo que um conceito historicamente tomado como su­
ficiente, digamos, por exemplo, o conceito de Ser. Se a consensualidade do
juízo estético é uma qualidade sua, contudo, do ponto de vista de seu traba­
lho interno, isto é, aqui do ponto de vista de constituição de sua história, se­
ria decisiva a observação das instâncias que pesam sobre a sua modelagem. O
44
afirmado é válido para qualquer um dos casos referidos. Evitemos contudo o
exame de cada um - desde logo, a articulação de Górgias com Aristóteles
aparece, do ponto de vista de suas respectivas doutrinas, um casamento entre
seres de espécies distintas - e nos restrinjamos às observações do autor sobre
o romantismo. Para Jauss, o princípio estético romântico do autodeleite da
subjetividade individual, levando à rejeição do senso comum, junto com o
culto do gênio, teve um efeito desastroso: "data de então a decadência de to­
da experiência prazeirosa da arte" (p. 69). Da maneira como o problema é
apresentado, tudo leva a crer que a catastrófica decisão foi motivada por um
maligno consenso entre os que tinham voz no campo da arte. Ora, não é pre­
ciso recorrer-se a algum conhecimento mais especializado para se compreen­
der o que passa no romantismo. Consolidada no poder político-econômico,
seja mediante o aburguesarnento da nobreza, seja mediante a sua derrota,
afastado o perigo que representava a ala mais radical da Revolução Francesa,
a necessidade de acumulação de capital provocava, nos indivíduos, a necessi­
dade de internalizar modos de conduta que destacavam, não a communittts,
de trabalho ou de vida, mas a prática da privacidade. Por outro lado, este cul­
tivo da individualidade servia ao grupo social da inteligentsia, enquanto não
diretamente envolvido na produção capitalista, de refUgio, em certos casos de
revolta, quanto à sociedade vigente. Assim, a internalização de normas volta­
das para o cultivo da individualidade, passava a ser tanto uma exigência so­
cial, quanto respondia a uma vontade de diferenciação, fosse por melancólica
identificação com o passado, fosse por inconfurmismo ou mesmo revolta, dos
grupos românticos. O exemplo banal nos mostra a debilidade resultante de
uma história imanentista da experiência estética. Não se trataria de postular,
obrigatoriamente, uma história social da experiência estética, mas, sim, tendo
em conta o caráter de juízo (o juízo de reflexão) que a anima, mostrá-Ia em
relação com as instâncias que presidiam a sua configuração. Pesquisa recente
de H. U. Gumbrecht nos mostraria as condições sociais e a sua resposta lite­
rária que levam, é verdade que não imediatamente, à formação do ideário ro­
mântico. Em estudo sobre período pouco estudado, o teatro francês entre
1794 e 1799, ele mostra como a instabilidade social provoca um clima de me­
do, que transpira nas respostas diferentes apresentadas pelos teatros populares
do Boulevard du Temple e pelos teatros do centro de Paris, freqüentados pe­
la alta burguesia. De acordo com a proveniência de seus públicos, os primei­
ros encenavam tipicamente melodramas e os segundos, peças descendentes do
45
drame sérieux. Ora, se é fácil compreender-se por que, nas peças encenadas en­
tre 1795 e 1799, desaparecem as alusões à revolução, já não seria fácil expli­
car-se o êxito que acompanha, em ambos os tipos de teatro, as peças que gi­
ram em torno de uma paroenue, Mme. Angot. Como demonstra o autor,
sucede que tais peças permitiam respostas que, embora diferenciadas, ofere­
ciam uma maneira de relacionar-se com o medo, produto da instabilidade so­
cial. Para a alta burguesia, a arrivista era objeto de um "riso agressivo", pelo
fracasso de suas tentativas de ascensão social. Já o pequeno-burguês, freqüen­
tador dos teatros populares, com ela se identificava, quer por sua procedên­
cia, quer por sua busca de ascensão (Gumbrecht, H. 0., 1979). O exemplo
parece-nos mostrar como a dinâmica social do capitalismo - vivido em seu
período nascente ou em suas crises como sensação de instabilidade - não po­
deria favorecer uma experiência estética fundada no sensus communís.
Abandonemos agora estes exames parciais e consideremos a parte central
do ensaio. Jauss a realiza a partir das especificações que desenvolvem a idéia kan­
tiana do prazer desinteressado. A primeira caracterização destacada é a interpre­
tação de Geiger por Giesz, pela qual se distingue entre o puro prazer sensorial,
onde, poderíamos dizer, o que causa prazer existe tão-só em função do sujeito
do prazer, e o prazer estético, que supõe uma distância, uma tomada de posi­
ção, mediante a qual se encontra prazer no objeto do prazer; em que o objeto
não está aí apenas para que alguém sinta prazer nele, mas se coloca numa dis­
tância em que não perde sua qualidade de objeto autônomo. Jauss reconhece o
mérito de Geiger em converter a fórmula kantiana do prazer desinteressado em
"desinteresse interessado": o objeto nem é "comido" pelo sujeito do prazer, nem
perde sua condição de outro numa relação comunicativa. Mas objeta que assim
ainda não se distingue a experiência estética da experiência teórica, pois que es­
ta também supõe uma atitude de distanciamento. Ensaiando um novo passo,
analisa a teoria sartriana do imaginário, com o destaque para o papel de aniqui­
lação da realidade, empreendida pela consciência imaginante. Observa então
Jauss que a abordagem sarrriana é importante por distinguir entre o trabalho da
percepção em face do da imaginação, mas que não explica por que o ato ima­
ginante provoca prazer estético. Incorporados estes passos, ressalta então o con­
tributo de Giesz, que aperfeiçoa a reflexão de Geiger: "Na reação de prazer an­
te o objeto estético, realiza-se (...) uma reciprocidade entre sujeito e objeto, em
que ganhamos interesse em nossa ausência de interesse" (p. 76). A experiência
estética, portanto, consiste no prazer originado da oscilação entre o eu e o obje-
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to, oscilação pela qual o sujeito se distancia interessadamente de si, aproximan­
do-se do objeto, e se afasta interessadamente do objeto, aproximando-se de si.
Distancia-se de si, de sua cotidianeidade, para estar no outro, mas não habita o
outro, como na experiência mística, pois o vê a partir de si.
Admitimos que o esforço de caracterização da experiência estética como
uma forma difêrenciada de prazer aqui alcança uma precisão poucas vezes en­
contrada. Mas exatamente por isso é que não nos convence a conclusão final a
que chega o autor: que, depois de definida a experiência estética, possamos in­
ferir as três categorias básicas, de poíesís, aísthesís, katharsís, que deverão presidir
- sou eu que interpreto - a teorização da arte. Para início de reflexão, parta­
mos de um ponto de aceitação comum: o prazer estético implica uma ativida­
de de conhecimento, embora distinta do conhecimento conceitual. O sujeito
do prazer conhece-se no outro, traz a alteridade do outro para dentro de si, ao
mesmo tempo que se projeta nesta alteridade. Ora, nesta experiência assim
complexa, o conhecimento só experimenta a diferença do outro a partir do pró­
prio estoque de prenoçóes que traz consigo. Dito doutro modo: ao passo que
Jauss destaca a alteração do conhecimento do sujeito, alteração devida à ação do
efeito estético, creio que devemos partir do momento anterior a esta alteração,
isto é, o momento representado pelo conjunto de expectativas, prenoçóes e pre­
visões do sujeito. Está certo que se, durante a experiência estética,o sujeito ape­
nas confirma seu prévio horizonte cognoscente, a experiência, enquanto estéti­
ca, fracassa, pois o sujeito excluirá o objeto, não será capaz de tematizar o que
nele é rebelde a seu prévio estoque de saber. Porém, mesmo supondo-se uma
experiência estética realizada, a fiuição da alteridade, a experiência do diverso, o
questionamento até dos valores do sujeito (isto é, o leitor) só serão abordáveis a
partir daquela gama prévia de saber. Assim como o realce apenas do estoque
prévio de saber do leitor nos levaria a dizer que toda experiência estética, por­
que conceitualmente não controlável, não passa de uma experiência de reconhe­
cimento, de reduplicação, de corroboração de valores: assim também o realce
oposto do questionamento dos valores do leitor, que a obra provocaria. nos le­
vará a exaltar a sublimidade da literatura. como via privilegiada para a aprendi­
zagem da criticidade. Ora, não parece ocasional que os analistas de Jauss, mes­
mo reconhecendo seu inequívoco mérito como teórico e como intérprete,
tenham, de frentes diversas, acentuado seu parti prís em favor do potencial re­
novador e inovador da experiência estética. Assim M. Naumann observa que
seu "leitor ideal (...) é aquele que é sempre capaz de destruir seu horizonte de
47
expectativas para gozar da literatura mais novà' (1975, 139). Em frente filosó­
fica e institucional distinta, a mesma idéia é desenvolvida porJ. Stückrath: "O
interesse de Jauss no conteúdo inovador da obra literária explica-se a partir de
sua prenoção axiológica, segundo a qual a qualidade de uma obra é função do
seu grau de inovação" (Stückrath, J., 1979, 122). Um terceiro e último testemu­
nho: "Os critérios, historicamente determináveis, da acepção realista da arte, são
rejeitados em fàvor de um modelo da história do espírito, que procura justificar
sua abstração dos sujeitos históricos por ressaltar como álibi as qualidades 'sub­
versivas' da arte" (Weimann, R, 1977, XXIV). Esta hipostasia do caráter ques­
tionador da experiência estética parece-me oriunda da autojustificação criada
pela arte da modernidade, segundo a qual a arte assume uma função social exa­
tamente por ser transgressora de normas. (Se é correto dizer-se que a arte con­
temporânea necessita valorizar a função transgressora mesmo pela fàlta de co­
munhão com os interesses dominantes, daí a admitir-se uma função social, e
exclusiva, vai um passo que não poderia ser assumido sem maiores exames.)
Sem recairmos na suspeita estética da "representação" insinuada pela citação de
Weimann, como modelo contraposto, a hipostasia jaussiana tem uma gravíssi­
ma conseqüência: por ela, o autor perde a oportunidade de repensar as relações
entre experiência estética e teoria da literatura. Refazendo neste contexto um ar­
gumento já exposto em trabalhos anteriores, e o enriquecendo com os dados
que agora Jauss me fornece, o reproponho mediante os seguintes passos: a) a ex­
periência estética é uma forma de prazer e de conhecimento sui generis, porque
conceitualmente não controlado; b) porque conceitualmente não controlado,
este conhecimento tanto projeta suas prenoções e expectativas, quanto é passí­
vel de tê-Ias questionadas; c) enquanto integrado na experiência estética, este
questionamento não se transformará em uma rede conceitual- pois esta con­
versão supõe um ato de distanciamento teórico e não estético - mas tenderá a
se congelar em novas prenoções ou, se quisermos empregar terminologia c0­
mum nos autores aqui traduzidos, em novos esquemas de ação. Por conseguin­
te, o conhecimento engendrado durante a experiência estética sempre terá um
caráter misto. Ou seja, ainda que por ela o leitor se abra a um horizonte de ex­
pectativas antes imprevisível, este não se alça à condição de uma articulação con­
ceitual, mas tenderá sim a retomar à condição de hábito mental. Como, ade­
mais, não podemos esperar leitores tão sensíveis e tão atentos que este
treinamento, via experiência estética, os leve a uma constante renovação, ainda
que a experiência estética os capacite a se tornarem permeáveis à alteridade, a
48
transformar mesmo sua visão de mundo, tal experiência não poderia ser con­
fundida com uma espécie de revolução permanente.
Se aceitarmos estes passos, a conclusão será de que da experiência estética
não se pode extrair uma teoria dos objetos causadores daquela experiência. Ou,
dito por outra via, toda teoria estética tende a ver como meta-histórico o que se
explica apenas a partir da experiência estética privilegiada, assim se tornando, no
melhor dos casos, um aglomerado de acertos e racionalizações. Não se trataria
de a ela contrapor uma teoria pura, no sentido de isenta de parti pris e de incli­
nações ideológicas. Isto seria utopia ou mistificação. O desejável será um corpus
teórico que, radicalizando a sua própria reflexão, verifique o quanto possível
suas frentes cegas, o que vale dizer, que resgate o máximo de suas possibilidades
de racionalização e, portanto, de ocultamento. Sempre falamos a partir de al­
gum ponto; numa sociedade de classes, sempre fàlamos a partir de uma classe.
Ora, porque a experiência estética não é regulada por conceitos, ela se torna
mais apta tanto a abrigar prenoções, quanto a permitir a visualização ou realiza­
ção de experiências novas. Mas a passagem deste clima para urna situação teó­
rica cria um problema imediato: o de passarmos a trabalhar com aparências de
conceitos, isto é, com racionalizações, cuja função imediata será uma função
ideológica, no sentido negativo do termo, de ocultamento do lugar (da classe)
de onde se fàla. Assim, o esforço de Jauss é extremamente louvável por nos per­
mitir uma maior clareza em uma distinção que ele, contudo, não ousa. Seu ca­
so não é único. Dentro da tradição européia, continua a aparecer como escan­
daloso postular-se uma teoria do literário que, considerando a importância
primordial e o significado o quanto possível preciso da experiência estética, sai­
ba por que, a partir daí mesmo, aquela teoria não se pode querer estética.
Do conjunto dos argumentos desenvolvidos, podemos retomar à nossa
pergunta central. A partir da proposição de Jauss - oferecer, pela estética da
recepção, um estatuto de cientificidade à estética tradicional- nos perguntá­
vamos qual a relação que a estética proposta estabeleceria com a estética tradi­
cional da produção. Cotejamos a seguir a afirmação de Jauss com passagem de
Gumbrecht, aqui utilizável porque concedia à estética da recepção um propó­
sito contraposto ao da hermenêutica orientadora da estética da produção tra­
dicional. Daí chegamos à formulação da alternativa que dissemos central a es­
te ensaio. Em poucas palavras, ela ainda pode ser assim formulada: a estética
da recepção continua ou não a privilegiar um leitor ideal? A conclusão a que
chegamos é de que, pelo menos em Jauss, a resposta correta está na primeira
49
parte da alternativa. Contudo a importância da conclusão não parece estar ne­
la mesma, mas no motivo que leva à permanência do leitor ideal: assim suce­
de porque Jauss continua a construir sua teorização sobre a base da experiên­
cia estética, sem assim se dar conta da entronização que realiza da sua própria
experiência. Sem pretender esta conclusão, de certo modo ela é confirmada pe­
lo que Stückrath observa, a partir do exame do ensaio que o autor dedicara a
"Racines und Goethes Iphigenie'; "O interesse de Jauss no autor como leitor,
seja como leitor real ou imaginário, testemunha sua orientação centrada no au­
tor (autor.zentrnche AUfrichtung) " (Stückrath, J., 1979, 122).
Não competiria a esta introdução levar adiante o programa de uma teo­
ria da literatura que já não se queira estética. Muito menos se sugere que ela já
seja constittúvel. O mais sensato é esperar que o exame acurado do que hoje se
faz, nos melhores centros, venha a contribuir para a criação de algo que pou­
cos acharão necessário. De todo modo, cabe neste contexto afirmarque tal
procura não significa negar à literatura, se não por si, pelo menos enquanto
parte integrante de um discurso maior, o ficcional, um caráter de especificida­
de. Tracemos pois um segundo círculo sobre a estética da recepção, perguntan­
do-nos agora, a partir dos textos de W Iser e K Stierle, em que ela já terá con­
tribuido para a caracterização da literatura ou da ficcionalidade. Espera-se que
o leitor entenda que esta indagação está integrada à anterior.
3. Os vazios e o leitor implícito
O texto de W Iser parte da consideração sobre o papel desempenhado pe­
la contingência nas interaçóes humanas. Na interação a dois, a cada parceiro é
impossível saber como está sendo exatamente recebido pelo outro. Na precisa
formulação de Laing: "Tua experiência de mim é invisível a mim e minha ex­
periência de ti é invisível a ti". Deste lastro negativo, resultará conmdo uma exi­
gência de ordem positiva: o hiato em que sempre corre cada ato de interação, a
transparência mútua impossível nos obriga à prática cotidiana da interpretação.
A interpretação, portanto, cobre os vazios contidos no espaço que se forma en­
tre a afirmação de um e a réplica do outro, entre pergunta e resposta.
Passemos à relação texto-leitor. Embora nesta haja a diferença acentuada
de o leitor não conhecer a reação do "parceiro", há, no entanto, um dado c0­
mum: também os textos - e não só os ficcionais - tampouco são figuras ple-
50
nas, mas, ao contrário, enunciados com vazios, que exigem do leitor o seu
preenchimento. Este se realiza mediante a projeção do leitor. A comunicação
entre o texto e o leitor fracassará quando tais projeções se impuserem indepen­
dentes do texto, fomentadas que serão pela própria fantasia ou pelas expectati­
vas estereotipadas do leitor. Ao invés, a comunicação de êxito dependerá de o
texto forçar o leitor à mudança de suas "representações projetivas" habituais. A
existência dos vazios, presente em qualquer relação humana e em qualquer tex­
to (em mínimo grau, nos textos altamente formalizados), permite, conmdo,
uma escala diferenciadora dos textos. Como o argumento será depois repetido,
formulo o mínimo indispensável para a orientação do leitor. Quando Iser ob­
serva que a interação texto-leitor fracassa quando este aciona apenas suas proje­
ções, deixando ao largo as possibilidades diversas fomecidas pelo próprio texto,
refere-se basicamente ao que sucede na relação com o texto ficcional. Não é que
a regra não se aplique aos pragmáticos, sucede, conmdo, que na situação prag­
mática as expectativas do leitor podem ser chamadas de homogêneas quanto à
intenção autoral. Isso podemos notar com perfeição ao sairmos de uma socie­
dade com que estamos familiarizados e passarmos para outra, relativamente es­
tranha. Ao recebermos, por exemplo, no Brasil, uma carta--resposta pragmática,
informando-nos que tal produto, sobre o qual havíamos indagado, se encontra
à venda em tal lugar, acrescentando-se porém que sua quantidade é limitada e
o pagamento logo deve ser enviado, podemos prever que a rapidez sugerida não
deve ser tomada muito ao pé da letra. O membro desta comunidade estoca a
interpretação e, em princípio, deve-se dar bem com ela. Ao passar para uma so­
ciedade diversa, contudo, digamos para a sociedade alemã, tende a entrar em
inesperadas confusões. Ao contrário, quando um europeu, recém-chegado ao
Brasil, mal é apresentado a alguém e ouve o nosso "aparece lá em casà', tende­
rá a entrar em situações embaraçosas, pela não homogeneidade de sua expecta­
tiva pragmática com a intenção pragmática contida em nosso estereótipo. A
partir daí, poderemos acrescentar: o próprio do texto "literário é concentrar-se
nos vazios comuns a todas as relações humanas, explorá-Ios, tomá-Ios sistemá­
ticos. Diante do texto ficcional, o leitor é forçosamente convidado a se compor­
tar como um estrangeiro, que a todo instante se pergunta se a formação de sen­
tido que está fazendo é adequada à leitura que está cumprindo. Só mediante esta
condição, dirá Iser, a assimetria entre texto e leitor poderá dar lugar "ao campo
comum de uma situação" comunicacional. Afirmar pois que o texto ficcional se
localiza por depositar seu centro de gravidade nos vazios, significa que nele a in-
51
determinação se apresenta em máximo grau, muitas vezes próximo da desorga­
nização entrópica. O que vale também dizer, por sua familiaridade com a inde­
terminação, o texto ficcional possibilita uma multiplicidade de comunicações.
Ai, no entanto, surge um problema grave: perante esta multiplicidade, como
declarar que algumas das interpretações são corretas e outras meros produtos de
projeção do leitor? Acercamo-nos pois da formulação crítica que, sob a citação
de Gumbrecht, encontrávamos na parte anterior. Vejamos primeiro, com a cau­
tela necessária, a posição de !ser. Para compreendermos sua postura, acompa­
nhemos seu raciocínio desde antes de sua discussão com as teses de Ingarden,
durante esta e depois dela.
Antes da discussão: !ser enfatiza a necessidade de o texto ficcional conter
"complexos de controle", que orientem o processo da comunicação. O próprio
destes complexos é tanto orientar a leitura quanto exigir do leitor sair de sua
"casá' e se prestar a uma vivência no "estrangeiro"; testar seu horizonte de ex­
pectativas; por a prova sua capacidade de preencher o indeterminado com um
determinável- isto é, uma constituição de sentido - não idêntico ao que se­
ria determinado, de acordo com seus prévios esquemas de ação. Mas isso não
significa que o texto se impõe ao leitor, tomando secundária a sua atividade?
Como conciliar esta concepção da textualidade literária com a estética da re­
cepção de Jauss, sob a qual o nome de !ser é freqüentemente posto? Quanto à
primeira pergunta, o próprio !ser responderá que tais complexos de controle
não expulsam o leitor, muito ao contrário, exigem sua entrada: "Estes meios
de controle (...) não podem ser compreendidos como entidades positivas inde­
pendentes do processo de comunicação" (p. 89). "O que se cala, impulsiona o
ato de constituição, ao mesmo tempo que este estímulo para a produtividade
é controlado pelo que foi dito, que muda, de sua parte, quando se revela o que
fora calado" (p. 90). A resposta é provisória e será depois desdobrada. A segun­
da pergunta, ao contrario, já nos permite uma contestação definitiva. Na ver­
dade, as posições de Jauss e Iser não são, nem nunca foram, totalmente homó­
Iogas. Ao passo que Jauss está interessado na recepçãoda obra, na maneira como
ela é (ou deveria ser) recebida, Iser concentra-se no efeito (Wlrkung) que cau­
sa, o que vale dizer, na ponte que se estabelece entre um texto possuidor de tais
propriedades - o texto literário, com sua ênfue nos vazios, dotado pois de um
horizonte aberto - e o leitor. Com o primeiro, pensa-se de imediato no re­
ceptor, com o segundo, ele só se cogita mediatamente. Não é pois ocasional
que, de Iser, possa partir uma concepção do literário e, no caminho por ele am-
52
pliado, urna concepção da recepção ficcional (Stierle), enquanto a teorização
de Jauss antes converge para a caracterização da experiência estética, com suas
três categorias básicas -poiesis, aisthesis, catharsis - das quais as duas últimas
concernem à atividade do leitor, enquanto a primeira já é definida em termos
de um autor em função de leitor. "Designamos por poiesis (...) o prazer ante a
obra que nós mesmos realizamos" (p. 79). Como, entretanto, um e outro re­
metem, se bem que de modos distintos, à figura do leitor, problemas seme­
lhantes se tornarão de igual pertinentes.
Ora, a junção do texto literário com os vazios e a indeterminação já era
postulada por R Ingarden. Declarando seu débito ao pensador polonês, ca­
berá agora a Iser mostrar em que dele se afasta. Não nos preocuparemos em
detalhar a dimensão do débito de Iser a Ingarden, mas apenas em sintetizar
os argumentos que o próprio Iser apresenta.
De acordo com a tradição husserliana, Ingardendistingue entre os obje­
tos reais, os ideais e os intencionais. Os primeiros são passíveis de determinação
completa, os ideais, porque autônomos, hão de ser constituídos, ao passo que
os intencionais, os objetos de arte, não se submetem a urna determinação exaus­
tiva. Assim definindo os objetos literários como indeterminados, e, por conse­
guinte, necessitados da participação do leitor, Ingarden acrescenta, porém, que,
pelo ato de concretimção do leitor, os objetos intencionais devem simular urna
determinação completa. Esta exigida simulação constituirá a pedra de toque da
divergência entre os dois teóricos. Pois ela impõe que o leitor, diante da indeter­
minação do texto, saiba distinguir entre as indeterminaçães que hão de ser
preenchidas ou negligenciadas. Qual o critério a orientar a separação? Como In­
garden não apresenta um critério explícito, há de se ver o tipo de arte que serve
de horizonte para a teorização ingardiana. Como mostra Iser, esta é a arte de um
período preciso: a do ilusionismo. Isso esclarecido, torna-se mais fácil com­
preender o significado e os limites da idéia de simulação, a ser realizada pela ati­
vidade do leitor. Ou seja, a marcação histórica da arte "valorizada por Ingarden
faz com que sua estética permaneça no horizonte da estética da representação.
Ou seja ainda, o receptor é convocado para formar mentalmente uma imagem
dos personagens e das situações que lê, imagem que preencha o que o texto lhe
apresenta, isto é, que preencha o seu "esquema verbal". Obviamente, pensando
na arte clássica, Ingarden haveria de considerar negligenciáveis aqueles vazios
que não levassem à formulação de imagens representáveis. Isso, ainda obvia­
mente, supõe a dificuldade do autor em conseguir anexar a experiência da arte
53
da modemidade. Nesta, principalmente se pensamos na arte e na literatura con­
temporâneas, não se realiza o ideal ingardiano da estrururação harmônica de
suas camadas, de que deveria resulrar o efeito "polifônico" da obra. Neste caso,
pois, a categoria da indeterminação entra em uma camisa-de-força, que Iser tra­
tará de liberar: "Com seu conceito de concretização, (Ingarden) chamou a aten­
ção para a estrurura de recepção necessária para a obra, embora não tenha pen­
sado este conceito como um conceito da comunicação. Em conseqüência, a
concretização é apenas a atualização dos elementos potenciais da obra e não a
interação entre texto e leitor" (p. 102-103). Vejamos pois o passo adiante libe­
rado por Iser.
Em vez de pensar centralmente no mundo do ilusionismo clássico, Iser se
orienta pelo horizonte da literatura moderna, mais precisamente, o do roman­
ce inglês que se desenvolve do século XVIII até alcançar sua radica1ização com
Joyce, Beckett e Ivy Compton-Burnett (cf !ser, W, 1972). Identificada esta ba­
se, toma-se rápido o entendimento de sua contraposição a Ingarden, bem como
sua afirmação nuclear: "A não identidade da ficção com o mundo, assim como
da ficção com o receptor é a condição constitutiva de seu caráter de comunica­
ção" (p. 105). A partir daí, Iser retoma e amplia sua formulação anterior: ''A in­
determinação resulta da função comunicativa dos textos ficcionais e, como esta
função é realizada por meio das determinações formuladas no texto, esta inde­
terminação, à medida que textualmente "localizável", não pode deixar de ter
uma estrutura. As estruturas centrais de indeterminação no texto são seus vazios
e suas negações" (p. 106). Para o melhor entendimento da idéia do vazio como
estrutura do texto, isto é, como os complexos que comandam a atividade pro­
jetiva do feitor, Iser introduz o conceito, próprio à psicologia da percepção, de
good continuatÍon. Ele pode ser descrito como o processo pelo qual uma seqüên­
cia de imagens (ou de dados da percepção) se integra, na mente do receptor, co­
mo uma Gestalt previsível. O conceito é apresentado para se mostrar que a lite­
rarura a ele se contrapõe. Pois seus segmentos não se organizam de modo a
formar uma seqüência previsível- aqui, embora Iser afirme a diferença de sua
posição quanto aos formalistas russos, não podemos deixar de pensar na catego­
ria do estranhamento. Em síntese, ao não seguir o princípio da good continuation,
a ficção exige do leitor a intensificação de sua "atividade ideativà'. Esta intensi­
ficação se faz através do constante realce de certas parcelas do texto à condição
de tema, com o que automaticamente outras parcelas ocupam a posição de ho­
rizonte. Como ao correr da leitura as posições de tema e horizonte mudam fre-
54
qüentemente, a leirura, como um todo, exige a permanência da atenção do lei­
tor, isto é, impede que, após o choque inicial, se formasse uma fluência de good
continuation, fluência própria aos textos pragmáticos e da literarura de consumo.
Retoma, contudo, aí a velha pergunta: se, com razão, a tese de Iser procura dar
conta também da literatura contemporânea, se nesta a quantidade de vazios che­
ga até a bloquear a leirura do especialista - exemplo clássico: o Fínnegans de
Joyce - como então estabelecer critérios contra a recepção puramente subjeti­
va, arbitrária? Para Iser, a resposta está na estrutura formada pelos vazios e suas
negações. Tal dupla característica da estrutura textual provoca, no leitor, a neces­
sidade da contínua formação de uma "figura de relevâncià', de um tema e seu
contorno de horizonte, e a não menos contínua transformação noutras figuras
de relevância. Como o ensaio oferece abundantes exemplos, não precisamos nos
deter em sua explicação. Basta-nos aponrar para uma de suas passagens conclu­
sivas: ''As transformações provocadas pela interação entre tema e horizonte estão
intimamente ligadas com a mudança de posição do vazio dentro do campo de
referência. Quando uma posição se toma temática, condicionada pela posição
marginal da outra, não pode deixar de ocorrer um efeito de fted back do tema
concebido sobre o vazio, que retroativamente modifica a influência modelado­
ra do ponto de vista do leitor. (...) Como esta estrurura controla a atenção exi­
gida do leitor, dá muitas vezes a impressão de ser este, pela mudança de seu pon­
to de vista, que auto-regula as perspectivas de sua observação. Nesta impressão,
se manifesta uma outra propriedade estrutural do vazio. Por ele, o "processo her­
menêutico", que transforma o tema realçado no comentário interpretativo do
horizonte, recebe a característica de uma estrutura que se auto-regulà' (p. 128).
A estrutura do texto tem, portanto, um papel de regulação da leitura, implicita­
mente oferecendo os critérios de distinção entre a pura recepção projetiva, isto
é, a leirura condenada, e a leirura constitutiva de um sentido apropriado. Aqui
se encontra o calcanhar-de-Aquiles da tearização de lser e mais, conforme a al­
ternativa atrás formulada, o ponto crítico da, genericamente falando, estética da
recepção. Pois é claro que esta distinção supõe um "implizite Leser", cujo traba­
lho de reconstrução supõe em cena um leitor ideal. Este ponto não passou des­
percebido aos analistas de lser. Bem mostrando um inegável mérito do ambien­
te universitário alemão, as críticas mais agudas a este resultado da teorização
iseriana partiram, não de adversários, mas de pesquisadores integrados na mes­
ma corrente, K Stierle (no texto aqui incluído) e H. U. Gumbrecht. Sintetize­
mo-Ias brevemente.
55
Para Stierle, "a teoria da recepção de Iser é uma teoria das variáveis da re­
cepção, cujas constantes se encontram apenas no lado do próprio texto. Em Iser,
as constantes são sempre e apenas constantes do texto, que têm a função de ge­
rar as variáveis da recepção" (p. 164). O que vale dizer, Iser ainda não dá conta
propriamente da dinâmica da situação texto-leitor, porquanto torna o pólo tex­
tual como um pólo revestido de constância. Neste sentido, ainda se mantém
preso à tradição imanentista. Desenvolvendo melhor o que dissemos a propó­
sito de sua relação com 1ngarden, a diferença básica entre as duasteorizações se
funda na diversidade dos modelos de história da arte que tomam como hori­
zonte. Reagindo favoravelmente ao impacto da literatura contemporânea, Iser
é levado a corrigir as limitações de 1ngarden, a revisar portanto a sua teoria, sem
propriamente sair de seus parâmetros. Esta crítica, como tampouco a seguinte,
não diminui o mérito de sua reflexão. Na verdade, deixemos bem claro, Wolf-.
gang Iser é, entre os teóricos alemães vivos, o teórico da literatura mais conse­
qüente e o autor da obra mais estimulante.
Quanto à crítica detalhada de Gumbrecht, sou obrigado a um maior es­
forço de síntese. Admitindo que a estética da recepção dependa, para sua pes­
quisa, de conceitos meta-históricos - a exemplo da categoria de estrutura, de­
senvolvida por 1ser - Gumbrecht contudo se pergunta se a colocação iseriana
é capaz de compreender a diversidade de fOrmações de sentido emprestada a um
mesmo texto: "Pode-se realmente derivar do modelo iseriano do efeito estético
estruturas de texto, meta-historicamente constantes, perante as quais, como pa­
no de fundo, se tornaria possível uma análise científica (porquanto intersubje­
tivamente repetível) das diferentes doações de sentido, passadas e futuras, quan­
to a certos textos?" (Gumbrecht, H. u., 1977b, 532). A pergunta tem, de
imediato, um alcance prático: "... podemos, de fato, partir da premissa de que
todos os leitores imagináveis concretizam determinados constituintes de modo
idêntico, se considerarmos os atos de apreensão e as sínteses passivas como as fa­
ses transcendentes da ação receptiva?" (idem, ibidem). Desta indagação, deriva
a contestação cabal do autor: "Segue-se daí que, em termos bem gerais, pode­
mos atribuir à necessidade de coerência, enquanto motor (M()Vens) de fases di­
ferentes do ato da leitura, o estatuto de um constituinte transcendental. Mas es­
ta necessidade de coerência adquire em épocas diferentes e, ao que parece,
também em grupos sociais diferentes, formas distintas. Justamente por isso é
impossível a especificação de um modelo de leitor, transcendentemente inten­
cionado, a ponto de se poder derivar, de sua aplicação aos textos, constantes me-
56
ta-históricas da doação de sentido" (idem, 533). Deste exame, o analista ainda
extrai duas conclusões que são importantes não só do ponto de vista das teses
aqui defendidas, como do ponto de vista da possível recepção das teses de Iser
no Brasil: 1) o modelo de texto do autor "reduz a pergunta pela função social
daqueles textos cuja oferta de sentido não se coloca em uma relação de negação
quanto ao saber internalizado do leitor à condição de uma pergunta vazià' (­
idem, 534). Ou seja, acrescentemos por nossa própria conta, de tal modo a li­
teratura da modernidade, tendo Joyce e Beckett por cume, é o padrão do obje­
to literário, para Iser, que a única função social reconhecida para o texto literário
é a de questionar o saber prévio do leitor. Como já dizíamos na apreciação so­
bre Jauss, assim resulta porque, como o analista não sente a necessidade de des­
tacar a sua teorização da experiência estética, a conseqüência forçosa é seu esfor­
ço reflexivo hipostasiar seu momento histórico, realçar os produtos que ele
próprio valoriza, conceber, em suma, como universal o que haveria de ser visto
como produto da residência na história. Mas seria possível algo diverso? Esta
possibilidade não existiria caso estivéssemos pensando numa teorização que vis­
se a Terra a partir de Saturno, isto é, que pretendesse ver o histórico de fora do
histórico. Mas, assim como é possível a alguns contemporâneos de Iser revela­
rem as razões dos limites de sua teorização, também é possível uma estratégia
teórico-analítica que não recaia na estetização da literatura. Uma destas possibi­
lidades poderá decorrer de nos darmos conta do seguinte quadro: a) a idéia de
uma constante textualmente inscrita implica a presença de um leitor implicito;
b) ele, por certo, não é qualquer um, mas apenas aquele leitor capaz de resgatar
o significado da obra de acordo com um horiwnte de exigências e expectativas
historicamente vinculado; c) horizonte de expectativas e exigências semelhantes
ao do próprio autor de Der implizite Leser; d) este leitor não é absolutamente,
um "tipo ideal", mas bem localizável. Pertence ao agrupamento culto de uma
classe, a burguesia. Pertence mesmo a um bloco: a burguesia do Ocidente de­
senvolvido. Destes passos, infiro que a separação entre experiência estética e teo­
ria baseada naquela experiência é uma necessidade para a descolonização daque­
les que não se queiram, culturalmente, europeicêntricos. Sem pensar
exatamente nestes termos, é o que, entretanto, se infere da segunda observação
de Gurnbrecht: 2) " ... para a aplicação da presente teoria do efeito na filologia
clássica, na medievalística e na pesquisa das literaturas não européias é impor­
tante conhecer os limites de sua validade" (Gumbrecht, H. u., 1977b, 533). 1n-
, corporando esta advertência à minha luta contra o círculo ideologicamente sa-
57
turado da estética, não pretendo negar, fora de qualquer necessidade de corte­
sia, a importância da caracterização da literatura pela presença dos vazios. Ao
contrário, esta é urna contribuição firndarnental- embora a ela já se tenha che­
gado por outras vias, como a da psicanálise, a do estruturalismo lévi-straussia­
no. O contributo, no entanto, seca quando interpretado à luz de um padrão li­
terário, que, recebido por uma experiência estética - como é necessdrioque seja
- passa, sem a devida cautela, para o quadro da teoria e aí se pretende meta­
histórico. Retomando pois ao argumento com que encerramos a parte anterior,
acrescentemos que esta descolagem dificilmente se cumprirá no contexto euro­
peu e, possivelmente, se adiará enquanto o "outro mundo" não se capacitar pa­
ra, aprendendo com os europeus, empreender a sua crítica, aqui pouco prová­
vel. Neste momento, em vista da problemática específica da estética da
recepção, antevejo uma estratégia possível: urna maneira talvez de escaparmos
do círculo da estética consista na análise das diversas constituições de sentido de
uma mesma obra, realizadas tanto sincrônica quanto diacronicamente, por gru_
pos e classes sociais distintas. Isso poderia ser feito ou com o propósito de con­
tribuir para urna história das mentalidades - sincrônica e não só diacronica­
mente superpostas - ou com o propósito de verificar se a literatura tem urna
identidade interclasses ou apenas intraclasse burguesa. No caso de ser a segun­
da hipótese a confirmada, seria o caso de testar se ela é substituível por outra
modalidade do discurso ficeional. Com isso, voltamos ao acompanhamento
dos textos, destacando a caracterização do ficeional por Stierle.
3a. Os vazios e o discurso ficcional
Em seu ensaio, o autor propõe-se lançar as bases de uma teoria formal
da recepção de textos ficcionais. Parece-lhe pois indispensável ultrapassar urna
recepção de base puramente material, isto é, baseada na faticidade documen­
tável da recepção, para diferençar o perfil próprio da recepção ficcional: "A
pergunta pela especificidade da recepção do texto ficcional é, antes de tudo, a
pergunta pela especificidade de sua constituição" (p. 136). Procura-se assim,
implicitamente, preencher uma lacuna da reflexão iseriana. Ou seja, em lugar
de se tomar o texto como wna constante, que provocaria a variabilidade de
respostas, busca-se revelar a constância no outro pólo, de modo que se tenha
condições de descrever melhor a interação ficcional.
58
Stierle começa por distinguir entre recepção pragmática e ficcional. C0­
mo cada uma delas supõe um texto de mesma ordem, parte das caracterizações
destes. O texto pragmático se especifica por apresentar um estado defàto (Sach­
lage) - numa tradução livre, uma interpretação que oferece um modo de
orientação quanto a uma situação dada (ou materialidade de fatos, Sachve­
rhalt). Esta interpretação diz-se elementar porque o texto se dispõe comotram­
polim para o plano da ação. Para que isso se dê é, no entanto, necessário que
o texto pragmático esteja de tal modo "programado" que o seu usuário possa
recebê-Io em consonância com um esquema de ação prévio e partilhado pelos
outros membros da comunidade. Noutras palavras, no texto pragmático não
há urna relação direta entre estado de fàto e materialidtu:le dosfàtos, entre a in­
terpretação que se faz de uma situação e esta situação do real. Entre um e ou­
tro, permitindo a sua articulação, deposita-se o saber social, sob a forma de um
esquema orientador da ação. Assim, por exemplo, quando entro em um ôni­
bus e vejo certa figura atrás da roleta, não posso imaginar que se trata de um
passageiro especial; o saber social previamente me diz que se trata do cobrador.
Do mesmo modo, na literaUlla de consumo, uma loura glamurosa, acompa­
nhada por um tipo meio cafajeste, orienta minha interpretação, tornando pre­
visível seu enleio em algum negócio escusado, embora passível de ser recupe­
rada pela paixão que sente pelo herói. Se bem interpreto, estes estereótipos são
as figuras de relevância do texto pragmático. Esta descrição, que tomamos ex­
tremamente sumária, nos permite agora verificar o relacionamento entre o
produtor e o receptor em tais textos. O texto pragmático é caracterizado pelo
fato de que o produtor e o receptor, previamente conhecedores do saber social
armazenado como esquema de ação, prevêem os seus respectivos papéis. O
produtor sabe o que dele espera o receptor e este, o que aquele lhe deve ofere­
cer. Neste sentido, Stierle escreve: "Visando ao campo da ação, os textos prag­
máticos se orientam para além de si mesmos" (p. 144).
Ao passarmos para o campo ficcional, os termos básicos da descrição per­
manecem, apenas se complexi6cando e mudando a sua meta, pois já não se
pode afirmar que a ficção remeta, de imediato, ao campo da ação. Como pro­
va desta manutenção, note-se o papel do gênero. Ele é o equivalente do esque­
ma de ação, ou, numa terminologia mais conhecida, a norma que orienta a lei­
Ulla, mostrando o grau de adequação ou rebeldia da obra que está sendo lida.
Mas, se o gênero firnciona como o mediador entre o estado de fato e a mate­
rialidade dos fatos, são estes que se metamorfoseiam, pois a materialidade dos
59
fatos já não poderia ser traduzida por "uma situação dadà'. É por isso que "a
ficção não se deixa corrigir por meio de um conhecimento minucioso da ma­
terialidade dos fatos a que se refere. (...) Os textos ficcionais são, no sentido
próprio, textos de ficção apenas quando se possa contar com a possibilidade de
um desvio do dado, desvio na verdade não sujeito a correção, mas apenas in­
terpretável ou criticável" (p. 147). '1\ relação do estado de fato e a materialida­
de dos fatos não rem, como no texto pragmático, caráter de compromisso. O
estado de fato do texto, ao contrário, é atribuído ao equivalente ficcional de
uma materialidade dos fatos" (p. 147). Até aqui, embora esteja clara a riqueza
da indagação, poder-se-ia dizer que ela não apresenta grandes novidades, em
face da teorização de Iser. O texto ganha seu contorno maior quando articula
esta diferenciação entre os textos e a sua efetiva recepção. O ensaio se tornaria
convencional se agora combinasse a cada um das duas formas, a forma de re­
cepção correspondente. Mas o autor logo adverte: ''A diferença entre os estatu­
tos dos discursos ficcional e pragmático não se mostra necessariamente na re­
cepção efetiva dos textos ficcionais" (p. 148). De fato, entre as recepção
pragmática e a ficcional, existe a que Stierle chama de quase pragmática: "Na
recepção quase pragmática, o texto ficcional é ultrapassado em direção a uma
ilusão extratextual, despertada no leitor pelo texto. A ilusão como resultado da
recepção quase pragmática dos textos ficcionais é uma extratextualidade, com­
parável à da recepção pragmática, que, ultrapassado o texto, se volta para o pró­
prio campo de ação" (p. 148). Mas a formulação deste elemento ainda seria
previsível se o autor a tomasse como uma recepção inevitavelmente errônea do
ficcional. Ao contrário, a formação de ilusão, se bem que própria ao texto qua­
se pragmático, é uma etapa necessária, mas não indispensável - Mallarmé,
por exemplo, dirá o autor, a coíbe - para a recepção ficcional. A complexida­
de do ficcional, portanto, não se encontra necessariamente em ser uma leitura
mais diflci1, mas no fato de que ela pode receber uma variedade de leituras, des­
de a ingênua, pragmaticamente orientada - a exemplo de algum pai extremo­
so que desse o Effi Briest de Fontane, esta Bovary alemã, a sua filha, para acau­
telá-Ia contra futuros descaminhos ... - passando pela quase pragmática até a
propriamente ficcional. Embora o autor não explore este filão, quase concen­
trando a leitura quase pragmática à recepção da literatura de consumo, parece­
me estrategicamente útil considerar, contra a ideologia criada pela literatura
contemporânea, sua função pedagógico-preparatória. Pois o que não pode ser
vivenciado como ilusão (ou fantasia), o que não perIlÚte a identificação, mes-
60
mo ingênua, do leitor, raramente passará para uma forma mais elevada de re­
cepção. Daí a raridade dos leitores dos romances de Beckett, de Un Coup de
dês ou do último Joyce. Dizer a sociedade de consumo culpada por este esta­
do, parece-me um esteticismo disfarçado. Embora o autor não siga este carrú­
nho, recorrê-Io é mais interessante do que ouvir os apelos à volta da função co­
mnnicativa da literatura.
Como Stierle apresenta neste ensaio uma linguagem extremamente livre, a
ponto de parecer não o ter antes bem estruturado, não espanta que torne, adian­
te, à diferenciação dos textos, não mais se referindo à oposição entre textos prag­
máticos e ficcionais. A nova divisão é, ao mesmo tempo, mais ampla e mais ade­
quada à caracterização doutro aspecto do ficcional. Referimo-nos aos três modos
de uso da linguagem: o uso referencial, a que corresponde o texto pragmático, o
uSo auto-referencial e o pseudo-referencial. Estamos acostumados a ver o texto li­
terário-incluído na segunda modalidade. É exatamente para não se confundir
com as posições de um R Jakobson que Stierle introduz o terceiro tipo. O pró­
prio do uso auto-referencial consiste em que nele a linguagem é controlada, de
modo quase absoluto, pela rede de conceitos que elabora e/ou de que se alimen­
ta. O discurso auto-referencial mais comum é o texto argurnentativo e o seu pon­
to-lirrúte, as chamadas linguagens "artificiais", totalmente formalizadas. A ficção
é o caso do uso pseudo-referencial' pois neste "as condições de referências não se­
rão simplesmente assurrúdas como dados extratextuais, mas serão produzidas pe­
lo próprio texto' (p. 153). O que vale dizer, o texto não apresenta um referente
externo, não concerne à realidade como tal; esta se apresenta enquanto interna­
lizada pelo texto. Se, assim, a ficção passa a não ter a direcionalidade do texto re­
ferencial, nem pode assuIlÚr a universalidade presurrúda pelo texto auto-referen­
cial' ganha, em troca, uma possibilidade de experimentação, não previsível ante
os dois outros usos: " ... aqui se apresentam, de forma experimental, possibilida­
des de uso dos conceitos e, com isso, possibilidades de organização dos esquemas
para a organização da experiêncià' (p. 154). Noutras palavras, o texto pragmáti­
co é voltado para uma ação prevista, o texto argurnentativo - pensemos no
científico - proporciona esquemas gerais de organização da experiência, abs­
traindo-se porém da situação específica de seu uso. O texto pseudo-rderencial,
ao contrário, perIlÚte ao leitor uma manipulação nova seja dos conceitos, seja das
experiências, facultando-lhe assim oportunidades de experiências não previstas
nem pela ciência, nem pela pragmática. Vejo neste ponto um salto, não só teóri­
co, quanto às considerações de !ser. Ao passo que, para este, a única função so-
61
cial que os textos podem desempenharé a função de negar um saber prévio, a
reflexão de Stierle nos estimula a ver um elenco de possibilidades: o texto ficcio­
nal, mesmo no âmbito da recepção mais elevada, possibilita funções não só ne­
gadoras, mas também problematizadoras, de tomada de consciência ou de au­
mento de consciência. (Note-se apenas a validade do comentário já feito a
propósito de Jauss: a determinação da função realizada ou a realizar não depen­
derá apenas da experiência estética, nem ela será o vetor mais importante nesta
determinação.) Infelizmente, a pressa com que este ensaio parece ter sido escrito,
a despreocupação em definir seus conceitos (contra este defeito, cf algumas das
notas de Peter Naumann), para não falar de certa empostação acadêmica que nos
lembra a frase de W Mills - "To overcome the academic prose you have first to
overcome the academic pose" (Mills, W, 1959,240) - prejudicam de muito a
comunicação deste ensaio e o reconhecimento de seu inequívoco valor.
4. Consideração final- o ato e a ação
O quarto e último ensaio desta seleção não foi considerado, nesta intro­
dução, porque, tratando basicamente da metodologia da pesquisa da modali­
dade da estética da recepção que pratica, não poderia ser bem analisado, se não
em confronto com uma análise concreta. Ao leitor interessado, resta o recurso
de inteirar-se de dois livros recentes do autor (Gumbrecht, H. 0., 1978a,
1978b). Na falta desta análise, e como tanto K Stierle quanto H. o. Gum­
brecht se referem com freqüência à teoria da ação de A Schütz,3 pareceu-me
conveniente introduzir um pequeno comentário a respeito.
Em passagem decisiva de Der sinnhafte Aufbau, Schütz escreve: "O que é
pEojetado ("pré-lembrado", "vorerinnert") não é o ato (Handeln) realizado pas­
so a passo, mas sim a ação (Handlung), a "meta" do ato, pela qual o ato deve ser
realizado" (Schütz, A, 1932,58). À medida que o sociólogo assim estabelece
urna hierarquia entre ação e ato e à medida que os autores citados nele se apóiam
para, de certo modo, romper a clausura do literário, ttazendo-o para o mundo
da práxis, vale a pena iniciar este comentário pelo destaque da observação que
R Bubner apresenta sobre o pensamento ali enunciado: "À medida que o ana-
3 Como a obra de A. Schütz ainda é pouco conhecida entre nós, recomenda-se, como
leitura imrodurória, o ensaio que lhe dedicou Aron Gurwitsch: "Common sense world as so­
cial real ity", in Social Research, n. 29, 1962, p. 50-72.
62
lista deve para tal (para distinguir entre o "ato consciente" e a "conduta incons­
ciente", na vida diária) se ater a estados de consciência, impõe-se a conclusão de
que o ato (Handeln) adquire consciência e certeza evidente de seu sentido (Sin­
nhaftigkeit) apenas quando ainda não se iniciou, mas ainda se encontra no es­
tágio de projeto (Entwuif), enquanto antecipação fantasiada do fim da ação
(Handlungrabschluss), ou quando já está no fim e se permite uma retrospectiva
reflexiva sobre seu resultado. Noutras palavras, o ato (Handeln) seria ato, no sen­
tido mais genuíno, somente quando não se age e quando, em vez disso, a cons­
ciência tudo ilumina, antes ou depois da realização. Que o ato se perca, pois, no
lusco-fusco destes dois momentos, não pode ser um resultado desejável da aná­
lise" (Bubner, R., 1976,28-29). Tampouco parece desejável que a preocupação
com a ação verbal dos textos ficcionais não tenha uma palavra a dizer sobre o
papel que o inconsciente desempenha na caracterização dos textos ficcionais c0­
mo estratégias de articulação dos vazios. Estranhamente, o único Freud que a
estética da recepção parece haver incorporado é o dos comentários marginais à
pintura e à literatura - cf 1º texto de Jauss. Ora, a reconsideração do Freud
mais "sério" parece inestimável para uma teoria da literatura que já não mais se
delicie com a subversão do poético. Isso para não falar de uma teoria que, se que­
rendo do jiccional- isto é, que não o tome apenas como um elemento a inte­
grar na historiografia social-, já não se limite ao circuito fechado de experiên­
cia e análise estéticas.
Bochum, fevereiro de 1979
63
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66
I
A ESTÉTICA DA RECEPÇÃO:
COLOCAÇÓES GERAIS
HANs ROBERT JAUSS
Que significa a experiência estética, como ela tem se manifestado na his­
tória da arte, que interesse pode ganhar para a teoria contemporânea da arte?
Por muito tempo, a teoria estética e a hermenêutica literária deram pouca aten­
ção a estas questões. Na reflexão teórica sobre a arte,quer a anterior, quer a pos­
terior à constituição da estética como ciência autônoma, tais perguntas perma­
neciam ocultadas pelos problemas legados pela ontologia e pela metafísica
platônica do belo. A polaridade entre a arte e a natureza, a correlação do belo
com a verdade e o bem, a congruência da forma com o conteúdo, da forma com
a significação, a relação entre imitação e criação eram as questões canônicas su­
premas da reflexão filosófica da arte. O legado platônico, muitas v~ não ad­
mitido, mostra-se ainda em curso na filosofia contemporânea da arte sempre
que se concede à verdade, manifestada pela arte, a primazia sobre a experiência
da arte, na qual se exterioriza a atividade estética como obra dos homens. Por
isso a pergunta pela práxis estética, de importância decisiva em toda arte mani­
festada como atividade produtora, receptiva e comunicativa, permanece, em
grande parte, não esdarecida e precisa ser hoje recolocada.
Este estado de coisas já é testemunhado por seu lugar na tradição: fala-se
sobre os efeitos da arte principalmente na retórica, temporariamente na polê­
mica dos doutores da Igreja contra a arte, ocasionalmente na doutrina dos afe­
tos da filosofia moral, depois na psicologia do gosto, mais tarde na sociologia
da arte e, em data recente, com mais freqüência, no estudo dos mass media. A
poética aristotélica constitui, na Antigüidade, a grande exceção e, na idade mo­
derna, a Kritik der Urteilskraft (Crítica da fàculdade dejulgar) de Kant. Contu-
67
do, nem da continuação da doutrina aristotélica da catarse, nem da explicação
transcendental de Kant, surgiu uma teoria abrangente e capaz de formar uma
tradição acerca da experiência estética. O que, ao contrário, prevaleceu foi pro­
clamado por Goethe, em seu famoso veredicto, que recusava a pergunta pelos
efeitos como, em suma, estranha à arte; assim também sobre a estética de Kant
recaiu a censura de subjetivismo e sua tentativa em prol de uma teoria da ex­
periência estética, que fundava o belo no consenso do juiw de reflexão, per­
deu-se, ao longo do século XIX, nas sombras de uma estética mais influente, a
hegeliana, que definia o belo como o aparecimento sensível da idéia e, desta
maneira, abria o caminho para as teorias histórico-filosóficas da arte.
Desde então, a estética se concentrava no papel de apresentação da arte e
a história da arte se compreendia como história das obras e de seus autores. Das
funções vitais (lebensweltlich) da arte, passou-se a considerar apenas o lado pro­
dutivo da experiência estética, raramente o receptivo e quase nunca o comuni­
cativo. Do historicismo até agora, a investigação científica da arte tem-nos in .•
cansavelmente instruido sobre a tradição das obras e de suas interpretações,
sobre sua gênese objetiva e subjetiva, de modo que hoje se pode reconstruir,
com mais facilidade, o lugar de uma obra de arte em seu tempo, sua originali­
dade em contraste com as fontes e os antecessores, mesmo até sua função ideo­
lógica, do que a experiência daqueles que, na atividade produtiva, receptiva e
comunicativa, desenvolveram in aetu a práxis histórica e social, da qual as his­
tórias da literatura e da arte sempre nos transmitem o produto já objetivado.
O programa do presente volume contém as perguntas sobre a práxis es­
tética, sobre sua manifestação histórica nas três funções básicas de Poiesis,Ais­
thesis e Katharsis (como denomino, numa retrospectiva da tradição poetológi"
ca, as atividades produtiva, receptiva e comunicativa), sobre o prazer estético
como a orientação fundamentadora, característica das três funções, e sobre a
relação de vizinhança da experiência estética com as outras áreas de significa­
ção da realidade cotidiana. Apresenta-se aqui a versão refundida das tentati­
vas primeiro formuladas na minha Kleine Apologie der iisthetischen Erfàhrung
(Pequena apologia da experiência estética) (1972) e que, de forma ampliada, le­
vei à discussão no VI Colóquio de Poetik und Henneneutik. 1 A este tomo, de-
I Negativitiit und ldentifikation - Versuchzur Theorie der iisthetÍ5chenEifahrung
(Negatividade e identificação - estudopara a teoria da experiência estética) (I972, publicado
em 1975).
68
verá seguir um outro, que procurará mostrar a tarefa de uma hermenêutica li­
terária, não tanto em mais uma teoria da compreensão e da explicação, quan­
to na aplicação, isto é, na mediação da experiência contemporânea e passada
da arte. Permanecerá neste contexto o problema central de como se pode rea­
lizar, de forma metodicamente controlável, o realce e a fusão dos horiwntes
da experiência estética contemporânea e passada. Será, ademais, colocada a re­
lação entre pergunta e resposta como instrumento hermenêutico, que tam­
bém poderá ser mostrada como relação consecutiva entre problemas e solu­
ções nos processos literários.
Os ensaios aqui apresentados no campo da experiência estética encon­
tram sua limitação necessária na competência do especialista em literatura.
Ainda quando estes ensaios incluam testemunhos da história de outras artes e
se apóiem nos resultados da história da filosofia e da história dos conceitos (Be­
griffigeschichte), de modo algum desmentem que o autor adquiriu sua expe­
riência, principalmente pelas pesquisas sobre a literatura medieval e sobre as li­
teraturas francesa e alemã dos últimos três séculos, assim como que sua reflexão
hermenêutica se formou na práxis da interpretação literária. Não obstante, a
junção, formulada pelo título, entre experiência estética e hennenêutica literdria,
também declara minha convicção de que a experiência relacionada com a arte
não pode ser privilégio dos especialistas e que a reflexão sobre as condições des­
ta experiência tampouco há de ser um tema exclusivo da hermenêutica filosó­
fica ou teológica. Essa declaração talvez me possa poupar as desculpas usuais
de diletantismo, pela inevitável ultrapassagem dos limites acadêmicos.
A bipartição do livro ademais se justifica por um fimdamentum in re: a di­
ferenciação fenomenológica entre compreensão e discernimento, entre a expe­
riência primária e o ato da reflexão, com que a consciência se volta para a signi­
ficação e para a constituição de sua experiência, retoma, pela recepção dos textos
e dos objetos estéticos, como diferenciação entre o ato de recepção e o de inter­
pretação. A experiência estética não se inicia pela compreensão e interpretação
do significado de uma obra; menos ainda, pela reconstrução da intenção de seu
autor. A experiência primária de uma obra de arte realiza-se na sintonia com
(EinsteUung auf) seu efeito estético, isto é, na compreensão fruidora e na frui­
ção compreensiva. Uma interpretação que ignorasse esta experiência estética pri­
meira seria própria da presunção do filólogo que cultivasse o engano de supor
que o texto fora feito, não para o leitor, mas sim, especialmente, para ser inter­
pretado. Disso resulta a dupla tarefa da hermenêutica literária: diferençar meto-
69
dicamente os dois modos de recepção. Ou seja, de um lado aclarar o processo
atual em que se concretizam o efeito e o significado do texto para o leitor con­
temporâneo e, de outro, reconstruir o processo histórico pelo qual o texto é
sempre recebido e interpretado diferentemente, por leitores de tempos diversos.
A aplicação, portanto, deve ter por finalidade comparar o efeito atual de uma
obra de arte com o desenvolvimento histórico de sua experiência e formar o juí­
w estético, com base nas duas instâncias de efeito e recepção.
Se, desta forma, retomam questões que desenvolvi em minha lição inau­
gural de 1967, em Konstanz, tomando posição perante a crise das disciplinas
filológicas, estou, contudo, consciente de que este começo de minha teoria da
recepção não pode ser hoje, simplesmente, prolongado e ampliado. Nos últi­
mos dez anos, mudou sensivelmente tanto a situação científica e universitária,
quanto à função social da arte e, deste modo, a experiência estética de nossa
atualidade.esperança. O resultado foi o que ago­
ra vejo. Em conseqüência, pouco do que ali escrevi será agora aproveitado.
Mas, em vez de apenas "atualizar" como hoje reajo ao que então tentava in­
corporar à cultura em língua portuguesa, procuro apresentar um breve pa­
norama dentro do qual a estética da recepção fecundara.
2. O contexto original da Rezeptionsasthetik
A Estética da recepção surgira em 1967, com a publicação da Aula inau­
gural de Hans Robert Jauss, na Universiriit Konstanz: Literaturgeschichte ais
Provokation der Literaturwissenschaji (A história da literatura como provocação
à ciência da literatura). Sem o mesmo impacto de público, teses assemelhadas
eram afirmadas, de modo mais consistente, no texto inaugural do outro pro-
10
motor do movimento, Wolfgang Iser, Die Appelstruktur der Texte (A estrutu­
ra apelativa dos textos) (1970).
Jauss e Iser haviam estudado em Heidelberg, o primeiro como romanis­
ta, o segundo como especialista em literaturas de língua inglesa (Anglistik). Aí
fizeram seus doutorados e receberam suas Habilitationen (título aproximada­
mente equivalente à nossa livre-docência).
Ainda quando estudantes, haviam fundado um grupo de discussão que
abordava temas já então (1955-1960) considerados interdisciplinares. Sendo in­
dicados professores em 1960, Jauss para a universidade de Gissen, Iser, para a
de Würzburg, decidiram manter os grupos de discussão iniciados em Heidel­
berg. É assim que se estabelece o Poetik und Hermeneutik, cujo primeiro encon­
tro se realizou em 1963, vindo a ser publicado sob o título de Naehahmung und
IUusion (Imitação e ilusão) (1969), pela mesma editora que se encarregaria de to­
da a coleção, a Wtlhelm Fink, de Munique. O Poetik und Hermeneutik - cu­
ja coleção de dezessete volumes (o último, sobre Kontingenz, apareceu em 1998,
tendo por objeto comunicações apresentadas e debates realizados em 1994)
constitui, ao lado dos livros de seus muitos membros, o acervo mais valioso le­
gado pela corrente - foi impulsionado pela transferência de seus fundadores,
Jauss e Iser, para a recém-fundada Universiriit Konstanz, assim como pela sin­
tonia de interesses do lingüista Harald Weinrich, um dos co-fundadores da Uni­
versiriit Bielefuld e primeiro diretor de sua Fakultãt jUr Linguistik und Literatur­
wissenschaji. Embora houvesse uma diferença de realces entre os dois centros­
de Konstanz, Jauss e Iser enfatizavam a pesquisa propriamente literária, ao pas­
so que de Bielefeld, Weinrich ressaltava o aspecto lingüístico [a Textlinguistik e,
a partir dela, a teoria da ação verbal (Spraehliche Handlungstheorie)], estenden­
do-se ao aspecto socioÍógico, com o destaque da contribuição de Niklas Luh­
mann - as direções convergiam por seu caráter interdisciplinar. Esta é a nota
hoje evidente na consulta da coleção do Poetik und Hermeneutik (publicada en­
tre 1969 e 1998).
A interdisciplinariedade se concretizava pela colaboração de especialistas
em áreas como a filosofia - Hans Blumenberg, Dieter Henrich - já presen­
tes no primeiro volume, Odo Marquard, cuja colaboração ao terceiro volume,
"Zur Bedeutung der Theorie des Unbewussten fiir eine Theorie der nicht
mehr schõnen Kunt" ("Sobre o significado da teoria do inconsciente para uma
teoria das não mais belas-artes") é um dos textos que mais lamento que conti­
nue não traduzido para o português; a história da arte (Max Imdahl); os estu-
11
dos judaicos (Jacob Taubes); a História antiga (Christian Meier); a História
moderna (Reinhart Koselleck); a lingüística (Harald Weinrich e Wolf-Dieter
Stempcl); a germanística (Wolfgang Preisendanz); a eslavística (Jurij Striedter).
As colaborações, de que assinalamos apenas uma pequena parcela, e as discus­
sões transcritas apontam para o caráter de work in progressda estética da recep­
ção.' A morte de Hans Robert Jauss, em março de 1997, a aposentadoria de
Wolfgang Iser e de muitos dos participantes iniciais, a passagem de outros, co­
mo]. Striedter, para universidades estrangeiras, a diminuição de dinamicidade
que parece atingir a universidade alemã dos últimos anos, se não mesmo a in­
quietação surda que atravessa o Ocidente dos últimos anos, tudo encaminhou
para o arrefecimento e, afmal, para a dissolução do grupo. O que não signifi­
ca que a apatia tenha se generalizado. Prova do contrário são os livros maiS're- '­
centes de Harald Weinrich [Lethe. Kunst und Kritik des Vet;gessens(Lete. Arte e
crítica do esquecimento) (ed. ampliada, 1997), Linguistik der Lüge (Lingülstica
da mentira) (ed. ampliada, 2000), Kleine Literaturgeschichte der Heiterkeit (Pe­
quena história literdria da serenidade) (2001) e o originalmente publicado em
inglês The Range ofinterpretation (2000), de Wolfgang Iser].
3. Alguns dados sobre o movimento
Imediatamente após o fim da Segunda Grande Guerra, tornou-se difun­
dida, na Alemanha Ocidental, a chamada crítica imanentista. À semelhança do
new criticism anglo-saxônico, ela considerava a obra apenas em sua bce textual,
com desprezo dos elementos histórico-sociais. Embora os Grundbegriffe der
Poetik (1946) (Conceitos fimdamentais da poética, trad. brasileira de 1975) seja
de um autor de nacionalidade suíça e tenha urna certa pretensão teórica, é ele
ilustrativo da tendência. Contudo o protótipo do período é o Europiiische Li­
teratur und 14teinischerMitte14lter (1948) (Literatura européia e Idade Média 14­
tina, trad. brasileira de 1957), de Ernst Robert Cunius. Nele, embora de mo­
do mais sofisticado, se advogava, pela concentração na TõposfOrschung(pesquisa
de topos), a neutralidade dos estudos literários. Sua preocupação com a reinte­
gração da Alemanha na unidade ocidental era evidente tanto no descaso pela
I Agradeço aos amigos Wolfgang Iser e Harald Weinrich, por cartas datadas respecti­
vamente de 30 de julho e 8 de agosto de 200 I, pela comunicação dos dados acima utilizados.
12
História, como em acentuar a circulação disseminada pela Europa, sobretudo
a partir dos autores medievais, de formulações tópicas (os topoi). Mostra-o pas­
sagem do pref.ício que seu autor escreve para a tradução em inglês:
Se tentamos abraçar dois ou dois milênios e meio da literatura oci­
dental em uma visão única, podemos fazer descobertas impossíveisa partir
de um ponto de vista de capela. (Curtius, E. R, 1953, IX)
Muito embora a erudição de Curtius assegurasse o presúgio de sua obra,
seus resultados não deixavam de ser parcos. A insatisfação com seus resulta­
dos ressoará mais intensamente com os protestos estudantis que agitaram a
Alemanha Ocidental, em junho de 1967. Hans Ulrich Gumbrecht, que fora
aluno de Jauss em sua chegada a Konstanz e depois seu assistente, escreverá,
sintomaticamente, na apresentação da primeira coletânea publicada em cas­
telhano sobre a estética da recepção:
Como se justificam as subvenções estatais para uma disciplina que,
por falta de motivos e métodos constantes - nunca chega a resultados
intersubjerivos? (Gurnbrecht, H. 0., 1971, 19)
A estética da recepção se apresentava como alternativa a um imanentis­
mo burocratizante. Mas não só. Do outro lado, na Alemanha Oriental, ape­
sar da influência intelectual de um ex-discípulo de Auerbach, Werner Krauss,
dominava um marxismo reflexológico. A estética da recepção aparecia pois
como opção contra o torpor filológico e o mecanicismo a que, malgrado o es­
forço de Krauss e de alguns de seus discípulos, o marxismo fora reduzido. Era
uma opção intelectual e política.
Um último dado ainda é relevante para se sentir o ambiente daqueles
anos. A partir da divulgação da antropologia de Lévi-Strauss fora dos meios
estritamente profissionais, difundia-se a crítica estruturalista francesa. Se com­
pararmos o primeiro livro de Roland Barthes, Mythologies (1957) com o se­
gundo ensaio que integrará Le Dégré zéro de l'écriture, o intitulado "Éléments
de sérniologie" (1964), veremos como uma abordagem social, de impregna­
ção marxista, cedia o lugar a uma preocupação sistemática com as categorias
básicasEsta foi a década da reforma universitária, em cujo processo se in­
cluíram, particularmente, os professores de Konsranz; reforma, cuja cilada se
fez sentir em três planos: a democratização da instituição universitária, a trans­
formação da educação histórico-humanista numa formação profissional e a re­
visão da auto-imagem da teoria da ciência presente na concepção tradicional
da universidade alemã. O ímpeto da reforma, sua estagnação e decadência2 for­
mavam o pano de fundo perante o qual este livro foi escrito, numa situação
que não propiciava a elaboração de uma teoria completa. Tal reivindicação
tampouco é reclamada para os ensaios reunidos neste volume. Vejo as partes
antes redigidas (l B, C, D, E) conto complementos do projeto que as precede
(l A), em grande parte só elaborado em 1976/7 e que representa minha posi­
ção atua},3
2 CE Gebremste Reftrm - Em KLzpitel deutscher Hochschulgeschichte. Universitiit
Konstanz 1966 bis 1976 (A Reforma travada - um capitulo da história do ensino superior ale­
mão. A Universidade de Konstanz de 1966 a 1976), (Org.) de H. R. Jauss e H. Nesselhauf,
Konstanz, 1977.
3 "Zur Frage der 'Strukrureinheic' alterer und moderner Lyrik" ("Sobre a questão da
'unidade estrutura!' da lírica antiga e moderna") (já publicado em 1960) completa o capoA 6
(Aisthesis); "Interaktionsmuster der Identiftkation mit dem Helden" ("Os padrões de interação
da identificação com o herói") (1975) e "Über den Grund des Vergnügens an1 komischen Hel­
den" (Sobre a razão do prazer diante do herói cômico") (1976) completam o capoA 7 (Kathar­
sis); "La Douceur du foyer" (''A Doçura do lar") (1975), o capoA 8 ("Sobre a delimitação da
função estética doutras funções do mundo da vida"). (Parte do capoA, o decisivo para a com­
preensão das idéias do autor, é apresentada no capitulo seguinte, N. T).
70
Os filólogos, que haviam se deslocado para Konsranz, estavam diretamen­
te interessados na revisão da auto-imagem da teoria da ciência. Fundaram, por
isso, o primeiro departamento de Ciência da literatura, na Alemanha, e se volta­
ram para a estética da recepção e do efeito, cujo respectivo Í!Úciofoi marcado pe­
la minha Literaturgeschichte ais Provokation (A História da literatura como provo­
cação) (1967) e por Die Appelstruktur der Texte (A estrntura apelativa do texto) de
Wolfgang Iser. Retrospectivamente, cabe dizer que a provocação estava menos no
ataque às convenções respeitáveis da filologia, do que na forma inesperada de
uma apologia. Diante do êxito mundial do estruturalismo lingüístico e do triun­
fo mais recente da antropologia estrutural, assinalava-se, nas velhas ciências do es­
pírito (Geisteswissenschaften), em todos os campos, o abandono dos paradigmas
da compreensão histórica. Via então a oportunidade de uma nova teoria da lite­
ratur~, exatamente não no ultrapasse da história, mas sim na compreensão ain­
da não esgotada da historicidade característica da arte e diferenciadora de sua
compreensão. Urgia renovar os estudos literários e superar os impasses da histó­
ria positivista, os impasses da interpretação, que apenas servia a si mesma ou a
uma metafisica da "écriture", e os impasses da literatura comparada, que tomava
a comparação como um fim em si. Tal propósito não seria alcançável através da
panacéia das taxinomias perfeitas, dos sistemas semióticos fechados e dos mode­
los formalistas de descrição, mas tão-só através de uma teoria da história que des­
se conta do processo dinâmico de produção e recepção e da relação dinâmica en­
tre autor, obra e público, utilizando-se para isso da hermenêutica da pergunta e
resposta.
Os anos seguinres reservaram à estética da recepção, a partir da chamada
escola de Konsranz, um êxito inesperado. Ela respondeu a um interesse laten­
te, que, nos anos 60, foi alimentado pela insuficiência geral do cânone tradi­
cional da formação ftlológica4 e que cresceu graças à crítica contra o "ideal da
ciência burguesà', empreendida pelo movimento de protesto estudantil. A teo­
ria da recepção logo entrou no fogo cruzado do debate entre crítica ideológica
e hermenêutica; mas despertou sobretudo um novo interesse de pesquisas, se­
dimentado pela abundância de pesquisas em histórias da recepção e em socio-
4 Cf. M. Fuhrmann: Alte Sprachen in der Krise? (As linguas antigas na crise?), Stutt­
gart 1976, que aqui e noutra parte fundamenta a revisão do cânone da formação clássica e
que, a partir do ponto de vista de latinista, elaborou proposições no sentido da transposição
da teoria da recepção a novos paradigmas da educação literária.
71
logia da literatura, bem como em análises empíricas da recepção. Esta mudan­
ça de paradigma não teve êxito apenas por isso, pois não se tratava apenas de
um desenvolvimento interno alemão. Meus ensaios de um novo método his­
tórico da literatura e da arte, que partiram da primazia hermenêutica da recep­
ção, foram antecipados pelo estruturalismo de Praga, que desenvolvera o for­
malismo russo. Neste entretempo, através das edições e das apresentações feitas
por um grupo de pesquisadores de Konstanz, seus resultados, ainda então des­
conhecidos, tornaram-se acessíveis ao estudioso ocidental.5 A semiologia da ar­
te de Jan Mukatovsky e a teoria da concretização de Felix Vodicka já haviam
sobrepujado o dogma da incompatibilidade entre sincronia e diacronia, entre
sistema e processo, enquanto no Ocidente procurava-se pensar a estrutura co­
mo processo e introduzir-se o sujeito no universo lingüístico auto-suficiente.
Na França, Paul Ricoeur já havia chamado a atenção sobre as raízes comuns de
uma hermenêutica da desmistificação e de uma hermenêutica da recuperação
do sentido, quando, na Alemanha, se confrontavam, na discussão entre Ha­
bermas e Gadamer, crítica ideológica e hermenêutica. Não obstante, estes dois
irmãos inimigos contribuíram, em conjunto, de forma decisiva para revalori­
zar, contra o objetivismo e o empirismo lógico da chamada ciência unitária, o
fundamento verbal (Sprachlichkeit) da experiência humana do mundo, e, com
isso, a comunicação como condição da compreensão do sentido.
Sobre a história do debate na Alemanha, entre as duas posições da teo­
ria da literatura, a "burguesa' e a "materialista', acerca dos fundamentos e da
aplicação da teoria da recepção, não preciso aqui retomar, pois foi várias ve­
zes contada e, mesmo neste livro, é bastante apresentada.6 Considero o de­
bate sobre o ponto de vista "idealista' e "materialista', no campo da teoria da
literatura, da estética e da hermenêutica, como encerrado, depois que a dis-
5 CE Striedter (1976) e as antologias de textos, junto com as introduções a Texte der
russischen Formalisten (Textos dos jórmalistas russos), vol. 1: Texte zur allgemeinen Literaturtheo­
rie und zur Theorie der Prosa (Textos sobre a teoria geral da literatura e sobre a teoria da prosa),
(Org.) ]. Suiedter (1969), v. II: Texte zur Theorie des Ven-esund der poetischen Sprache (Textos so­
bre a teoria do ven-o e sobre a linguagem poética), (Org.) W D. Stempel (1972); ainda F.Vodic­
ka: Die Struktur der literarischen Entwicklung (A Estrutura da evolução literdria), (Org.) ] . Stried­
ter (1976) e M. Cervenka: Der Bedeutungsaujbau des literarischen Werkes (A Comtrução da
significação na obra literdria), (Org.) W D. Stempel, München 1977.
6 De K Mandelkow (1970), P. U. HohendaW (1974), G. Labroisse (1974), M. Nau­
mann (1973) e R. Warning (1975); cE no segundo volume desta obra, parte G.
72
l'
cussão esclareceu? as escandalosas acusações recíprocas - as implicações
idealistas da teoria materialista e os desideratos materialistas da "idealista
burguesa' - e depois que os representantes não-dogmáticos de ambas as po­
sições se viram diante da mesma tarefa: empregar a teoria da recepção para
uma nova história da literatura e das artes.
Das críticas à minha Literaturgeschichte ais Provokation resulta, para a am­
pliação das posições ali desenvolvidas, o seguinte programa: para a análise da ex­
periênciado leitor ou da "sociedade de leitores" de um tempo histórico deter­
minado, necessita-se diferençar, colocar e estabelecer a comunicação entre os
dois lados da relação texto e leitor. Ou seja, entre o efeito, como o momento con­
dicionado pelo texto, e a recepção, como o momento condicionado pelo desti­
natário, para a concretização do sentido como duplo horizonte - o interno ao
litei:ário, implicado pela obra, e o mundivivencial (lebensweltlich), trazido pelo
leitor de uma determinada sociedade. Isso é necessário a fim de se discernir co­
mo a expectativa e a experiência se encadeiam e para se saber se, nisso, se pro­
duz um momento de nova significação. No entanto, o estabelecimento do ho­
rizonte de expectativa interna ao texto é menos problemático, pois derivável do
próprio texto, do que o horizonte de expectativa social, que não é tematizado
como contexto de um mundo histórico. Por isso, enquanto a psicologia do pro­
cesso de recepção for tão pouco esclarecida quanto o papel e a produção da ex­
periência estética no sistema das estruturas de ação de um mundo histórico, é
pouco apropriado esperar-se um esclarecimento total sobre o comportamento
dos leitores pelas análises fundadas em classes e camadas, bem como procurar
na literatura da moda, a literatura trivial e de consumo, a mais rigorosa expres­
são das relações econômicas e os interesses disfarçados de poder.
As tentativas de determinar os modos de interação da identificação com
os heróis (l B) e de pesquisar o fundamento do prazer diante dos heróis cômi­
cos (l C) dedicam-se ao problema de como se pode compreender o processo
emocional da recepção literária e da comunicação, visto sob os pressupostos da
7 cr. Schlaffer (1974), com o título representativo: Erweiterung der materialistichen Li­
teraturtheorie durch Bestimmung ihrer Grenzen (Ampliação da teoria materialista da literatura
através da determinação de suas jronteírar) e as réplicas de W Iser e H. R. ]auss a M. Naumann
Gesellchaft - Literatur - Lesen. Literaturrezeption in theoretischer Sicht (Sociedade - literatu­
ra - Leitura. A recepção da literatura do ponto de vista teórico) (1973), in Warning (Rezeption­
siisthetik - Theorie und Proxis), München 1975.
73
perspectiva estética. Com a análise transversal da lírica do ano de 1857 (l E),
espero, por outro lado, haver mostrado como pode se fazer transparente a
construção de um mundo histórico, por meio de um sistema de comunicação
literária, assim como ter descrito a função estética in aetu. Este ensaio, além do
mais, adveio da procura de uma aplicação da sociologia do conhecimento e,
em suma, mais uma vez confirma que a literatura de consumo não é determi­
nável sem referência à função estética e social da literatura "elevada".
A práxis estética ainda não é de todo determinada quando se iguala a
atividade estética produtiva e receptiva com a dialética econômica da produ­
ção e do consumo, deixando-se de lado a atividade comunicativa, como o
momento mediador da experiência estética..8
Este momento de modo algum falta no modelo da circulação da Einlei­
tung zur Kritik der politischen Okonomie (Introdução à critica da economia polí­
tica) de Karl Marx, a que poderia recorrer a nova teoria marxista da recepção,
para legitimar seu ultrapasse da teoria do reflexo (WtderspiegelungsmodeU). 9 In­
tervém ai, entre produção e consumo, um terceiro momento, dividido em dis­
tribuição e troca, que normalmente representada a área da interação, mas que,
significativamente, permite compreender a ação comunicativa apenas na for­
ma rudimentar de relações economicamente realizadas e ver a intersubjetivida­
de da comunicação apenas no enfrentamento abstrato da sociedade com o in­
divíduo. Em conseqüência, para servir como fundamento de uma nova teoria
da práxis estética, o modelo da circulação de Marx deveria primeiro ser com­
pletado por urna revalorização do processo de interação. Isto, se à teoria de
Marx não couber a crítica que ]ütgen Habermas aplicou à simplificação, cau­
sadora das maiores conseqüências, da teoria social de Marx: que ela iguala prá­
xis e técnica, e assim "não explicita propriamente a conexão entre interação e
traba)ho, mas sim, sob o título especifico da práxis social, reduz uma à outra,
8 Assim Naumann (1973), p. 18, ss. Em "Das Dilemma der 'R=ptionsasthetik'"
(Poetica 8, 1976, p. 451 ss), incluiu recentemente a esfera da distribuição na dialética da pro­
dução e recepção, reduzida porém ao momento da circulação e reservada, historicamente, ao
processo de socialização da literatura burguesa. Assim, ainda aí se adia a revalorização da inte­
ração (a "trocá' como ação comunicativa) para uma nova teoria marxista da literatura.
9 "A pessoa se objetiva na produção, o produto se subjetiviza no consumo; na distri­
buição, a sociedade assume a mediação entre produção e consumo, sob a forma de determi­
nações gerais, dominantes; na trova, a mediação intervém através da determinação fortuÍta do
indivíduo" (ME\V, v. 13, p. 621).
74
li
ou seja, entende a ação comunicativa como conseqüência da ação instrumen­
tal". !o Quem concorde com esta crítica, não precisa fundar a esperança de uma
práxis social nova - que ponha a ação comunicativa antes da ação instrumen­
tal e que assim deveria criar de novo o equilíbrio da relação triádica entre téc­
nica, comunicação e visão do mundo - apenas no ideal do discurso livre de
poder. Esta esperança é mais fácil de se legitimar se, antes de tudo, é mostrado
o rendimento das três funções da ação humana na atividade estética, onde a
técnica transparece como Poiesis, a comunicação como Katharsis e a visão de
mundo como Aisthesis, isto é, na experiência da arte, que afirma a autonomia
da ação humana, através da história das relações sucessivas de domínio.
Como a experiência estética ainda não tem uma história canonizada e, por
isso, não dispõe do acervo correspondente de fontes!! impõe-se, e não é só algu­
maS vezes necessária, uma aproximação maior, como a aqui iniciada, com as dis­
ciplinas vizinhas, para que se aceitem ou retifiquem seus diagnósticos e interpre­
tações. Também não quero dar a impressão de que eu sozinho, a partir de minha
pesquisa e de minhas descobertas, haja decretado a tradição que se manifesta por
meio de minhas perspectivas em história e na história dos conceitos. Esforcei-me,
por conseguinte, em tornar identificável o que anexei, onde, por falta de compe­
tência própria, acreditei estar autorizado a me apoiar nas pesquisas de outros. Se,
nesse ponto, sempre me referi e citei os resultados doutros pesquisadores, sem
considerar suficientemente seus objetivos próprios, devo-lhes pedir urna descul­
pa geral por terem sido, querendo ou não, deste modo "ocupados".
Parece-me também recomendável chamar a atenção sobre estes traba­
lhos, realizados em áreas vizinhas, porque, em conjunto, tornaram disponível
um fundamento teórico e histórico, do qual podem derivar pesquisas mais am­
plas, no campo da experiência estética. O campo inteiro da pesquisa se inte­
grou, sempre sob o prisma da interdisciplinaridade, aos temas e discussões do
grupo Poetik und Hermeneutik; aos volumes publicados de sua série (I-VII:
1964-1976), devo o corpus mais rico de trabalhos preparatórios. Der Prozess der
10 "Arbeit und Interaktion" ("Trabalho e interação"), in Technik und Wissenschaft ais
'Ideologie' (Técnica e ciência como 'ideologia'). Habermas, Frankfurt, a.M., 1968, p. 45; estas
colocações foram retomadas e ampliadas no ensaio Zur Rekonstruktion des Historischen Mate­
rialismus (Para a reconstrução do materialismo hist6rico), Frankfurt 1976, espec. p. 160 ss.
11 A mais fecunda ainda é a obra de K. Borinski, Die Antike in Poetik und Kunsttheo­
rie (A Antigüidm:le na poética e na teoria da arte) (Leipzig. 1914), embora demasiado centrada
na "revivescêncià' da antigüidade e, por isso, necessitada de uma reinrerpretação permanente.
75
theoretischen Neugierde (oprocesso da curiosidade teórica) (1973), de Hans Blu­
menberg,completa essencialmente a história da experiência estética, na medi­
da em que tematiza, o entrelaçamento do teórico com o estético, desde a An­
tigüidade até a sua dissociação no princípio da Idade Moderna. Das Prinzip
Hoffnung (O Princípio-esperança) (1959) de Ernst Bloch inclui a experiência
estética nas categorias do "aparecer" (Vorschein) e, desta forma, amplia a teoria
unilateral da formação do ideal de Freud. Jean Starobinski, em L'Oeil vivant (I:
1961, II: 1970), trabalhou a idéia de imaginação, a partir da história da medi­
cina e da história do conceito, e tornou sua significação utilizável nos paradig­
mas da hermenêutica profunda. Qu'est-ce que Ia littérature? (1948) de Jean-Paul
Sartre abriu novos caminhos para a reabilitação do leitor e manteve sua impor­
tância na teoria da dialética entre escrever e ler. Seu estudo fenomenológico
Llmaginaire (1940) diferencia a produção da consciência imaginante quanto à
perceptiva. Hoje, há de se colocar a seu lado a Phénomenologie de l'expérience
esthétique (1967) de Mikel Dufrenne, compreendida como uma análise trans­
cendental do ato contemplativo além de seus "a prioris afetivos" e englobante
de diferentes artes. Wolfgang Iser, com Der Akt des Lesem (O ato de ler) (1976),
coloca ao lado da teoria da recepção uma teoria do efeito estético, que conduz,
a partir dos processos de transformação, à constituição do sentido pelo leitor e
que descreve a ficção como uma estrutura de comunicação. A estrutura dos tex­
tos literários (1972) de Jurij Lotman é também uma semiótica esteticamente
competente, que amplia o conceito de texto em direção a "informação a mais"
e ao "sistema formador de modelos". As Strukturen der Lebenswelt (Estruturas
do mundo da vida) (1975) de Al&ed Schütz e Thomas Luckmann constituem
o fundamento indispensável para o problema da demarcação do estético quan­
to a outros universos de sentido da ação humana. Odo Marquard, diversas ve­
zes (1973; Poetik und Hermeneutik III, VII e VIII), definiu o estético, históri­
ca e sistematicamente, a partir de suas funções compensatórias e sugeriu a
reintetpretação da arte moderna como contrária à "atrofia dos telos", na Idade
Moderna. Die Aujlosung des Kunstbegriffi (A dissolução do conceito de arte)
(1976), de Dieter Wellershoff, a última análise das manifestações e dissoluções
atuais do âmbito estético, já está fora do espaço histórico de minha exposição.
Admito que este elenco de autores indica as linhas mestras de experiên­
cia e que faltam alguns nomes. Pareceu-me contudo ocioso estabelecer dis­
cussões polêmicas com representantes doutras posições, onde se declare, ex­
plicitamente, a decisão prévia em favor de uma estética da obra ou em que
76
i
i
li,
ii
não se analise a função comunicativa da experiência estética. Cabem neste
reparo as teorias da chamada semiótica parisiense e do grupo Tel Quel con­
tra as quais se levantou a conhecida e até hoje não rebatida censura de Sar­
tre: absolutizam a obra como écriture, afastam o leitor e, com isso, esquecem
que a literatura é comunicação.12 E o fato de que, declaradamente, eu con­
ceda a primazia à via histórico-hermenêutica na definição das funções da ex­
periência estética, não me parece implicar uma retomada da velha discussão
com a lingüística estrutural, com a poética e com a teoria da comunicação;
gostaria de que os resultados recíprocos decidissem em que os métodos con­
tribuem para o problema da comunicação literária e onde se podem comple­
mentar, para, de fato, integrá-Ios.
Meu agradecimento aos autores que, na seqüência deste trabalho, cada
vez; mais aprendi a apreciar, e a reconhecer como meus predecessores, será, com
certeza, ocultado pela inevitável redução de suas teorias sobre a posição a par­
tir da qual pôde o problema ser mais desenvolvido. John Dewey, com Art as
experience (1934) e Jan Mukarovsky com Asthetische Funktion, Norm und iis­
thetischer Wert ais soziale Fakten (A função estética, a norma e o valor como fatos
sociais) (1936) principiaram, na década de 1930, a rejeitar a estética da obra.
O primeiro especificou a experiência estética como "qualidade" inerente de to­
da experiência, realizada, o último como o princípio "vazio", isto é, transparen­
te da função estética, que é capaz de captar e dinamizar todas as demais ativi­
dades. Os pressupostos subjetivos no enfoque estético e a delimitação da
experiência estética em face dos outros universos de sentido da vida permane­
cem em aberto e possibilitaram indagações posteriores.
No mesmo tempo, Walter Benjamin, com seu ensaio Das Kunstwerk im
Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit (A obra de arte na época de sua re­
produtibilidade técnica) (1936) e Herbert Marcuse, com sua crítica Über den Af
jirmativen Charakter der Kultur (Sobre o caráter afirmativo da cultura) (1937)
abriram a discussão sobre a abolição da arte autônoma. Benjamin definiu a ex­
periência estética a partir do conceito da aura, e, com a análise das conseqüências
de sua desrirualização, na época atual, antecipou as teses do Musée imaginaire
\2 Em uma discussão pública com J. P. Faye, J. Ricardou e outros, em 9 de dezembro
de 1964, publicada sob o título: Q!te peut Ia littérature?, na col. L1nédit, Paris, 1965, p. 107­
127. Sobre Roland Banhes, que, em Le plaisir du mete, redescobre o leitor que usufrui isolada
e filologicamente, voltarei no Capo 3 (cE aqui ensaio seguinte. N. T.).
77
(1951) de Malraux,13 concedendo à arte tecnizada a significação revolucionária
de, no fututo, transformar as massas no próprio sujeito de uma prm estética po­
litizada. Marcuse atacou a cultuta idealista da época burguesa, considerou a ex­
periência estética vigente suspeita de corroboradora do status quo e fundamentou
a esperança em uma organização melhor na "liberação do ideal", através da
emancipação da experiência sensível do belo. Marcuse que, nesta obra, esteve
prestes a cair in toto na crítica ideológica, viu mais tarde na experiência estética a
"dimensão decisiva da liberdade" e inferiu da "verdade subversiva da arte" a "pro­
messa da liberação possível", 14Deste modo, entretanto, ainda havia de se provar,
pela história da experiência da arte, este seu potencial subversivo, não violento,
"transcendente a todo conteúdo de classe"; ou seja, havia de se esperar, como diz
em fàce da teologia da história redentora de Benjamin, a redenção do passado,
não só dos "momentos verdadeiros" de uma coincidência entre crítica e profecia,
mas também da continuidade da prática estética dos homens, nunca totalmen­
te reprimível.
A hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer (Wahrheit und Metho­
de) (Verdade e método) (1960) e a obra póStutna de Theodor Wiesengrund Ador­
no, Asthetisehe Theorie (Teoria estética) (1970), deram-me o impulso direto para
esta pesquisa. A teoria de Gadamer da experiência hermenêutica, a explicação
histórica desta experiência na história dos conceitos humanísticos fundamentais,
seu princípio de reconhecer na história do efeito (Wirkungsgesehichte) o acesso a
toda a compreensão histórica e a solução do problema da realização controlável
da "fusão de horizonte" são os pressupostos metodológicos inquestionáveis, sem
os quais o meu projeto seria impensável. Parece-me contudo discutível a "salva­
ção do "passado" de Gadamer por sua idéia do clássico, atribuindo-se "aos textos
eminentes" uma "superioridade e uma liberdade de origem", diante doutra tra­
dição.15 Como, no entanto, conciliar esta superioridade original da obra clássica
com o princípio de concretização progressiva do sentido? Como harmonizar a
"identidade de sentido" da pergunta original, "que sempre medeia entre a origem
e a arualidade",16 com a conduta produtiva da compreensão, na aplicação her-
13 ln Les voix du silma, Paris, 1951, não se encontra nenhuma referência ao que
é ramado de Benjamin.
14 ln Konterrevolution und Revolte (Contra-revoluçáo e revolta), p. 82, 104, 116.
15 Posfácio a Wahrheit und Methode, 3ª ed., Tübingen 1973, p. 539-540.16 lb. e (J 960), com referência ao cap(ruJo "Das hermeneutische Problem der An­
wendung" ("O problema hermenêutico da aplicação"), p. 290 ss.
78
I
li
menêutica? Creio, por isso, que possa invocar Gadamer contra Gadamer, quan­
do sigo seu princípio de aplicação e entendo que a hermenêutica literária tem por
tarefa interpretar a relação de tensão entre texto e arualidade como um processo,
no qual o diálogo entre autor, leitor e novo autor refaz a distância tempotal no
vai-e-vem de petgunta e resposta, entre resposta original, pergunta atual e nova
solução, concretizando--se o sentido sempre doutro modo e, por isso, sempre
maIS rICO.
Um segundo ponto que me parece discutível é a crítica de Gadamer à
"abstração da consciência estéticà' .17Esta crítica atinge, na verdade, as formas
de decadência da cultura estética do século XIX, mas não esclarece as funções
da experiência estética entre os pólos históricos da apropriação cultural ("não
diferenciação estéticà') e do museu imaginário ("diferenciação estéticà').18 Na
Aithetisehe Theorie de Adorno, estas funções, como toda a prm estética da ar­
te pré-autônoma, caem numa dialética formada entre afirmação e negativida­
de: em vista de uma práxis funesta, que ameaça reduzir toda experiência esté­
tica ao círculo da satisfação das necessidades manipuladas, ao comportamento
consumista, apenas a obra de arte monádica ainda tem a força de, por efeito
de sua negatividade e pela reflexão de seu contemplador solitário - contem­
plador que renuncia a todo prazer estético - de romper com a aparência do
contexto geral de enfeitiçarnento. Na estética da negatividade de Adorno, a ar­
te e a literatuta vanguardistas dos anos 60 alcançam sua mais ampla teorização
e sua mais forte legitimação; dediquei-lhe uma crítica detalhada (Cap. 2), por­
que reconheço em Adorno o adversário que me provocou à busca de assumir
o papel pouco comum de apologeta da experiência estética, posta em descré­
dito. Em vista da situação atual, o "parti pris" de minha intenção apologética
deve ser agora sumariamente exposto.
O discurso pouco crítico sobre o "caráter de mercadorià' da arte, mesmo
sob as condições da sociedade industrial, não considera que, até mesmo os produ­
tos da "indústria da culturà', permanecem como mercadorias sui generis, cujo ca­
ráter permanente de arte é tão pouco compreendido pelas categorias de valor de
uso e de mais-valia, quanto a sua circulação o é pela relação de oferta e procura. 19
\7 Gadamer (1960), p. 84 ss.
18 Cf. ibidem, p. 81 ss.
19 A respeito, deve-se chamar a atenção para a análise minuciosa que Hannelore ScWaf­
fer apresentou em sua "Kritik eines Klisches: 'Das Kunstwerk alsWare'" ("Cólica de um c1ichê:
'a obra de arte como mercadorià "), in Heinz ScWaffer:Erweiterung (cf nota 7).
79
É só de modo parcial que a necessidadeestéticaé manipulável, pois a produção
e a reprodução da arte, mesmo sob as condições da sociedade industrial, não
consegue determinar a recepção:a recepção da arte não é apenas um consumo
passivo, mas sim uma atividade estética, pendente da aprovação e da recusa,20
e, por isso,em grande parte não sujeita ao planejamento mercadológico. Han­
nelore Sch1affer,a quem agradecemos a crítica mais penetrante do exitoso cli­
chê, "a obra de arte como mercadorià', também mostrou a curiosa passagem
desta estéticacrítico-ideológicapara o campo do pessimismo conservador: para
sair do suposto "COntextode enfeitiçamento" total da práxis estética contempo­
rânea, restaura-se,sem se dizer, a obra de arte revestida de aura e sua contem­
plação solitária, como medida estética de urna essencialidadeperdida. Assim a
crítica materialista retoma à compreensão idealistada arte, própria daquela "es­
tética burguesà' contra a qual se levantara.21
A teoria de Adorno sobre a maquinaria da indústria cultural e de seu
efeito de conjunto, no sentido de um "antiiluminismo",22 ainda despertou,
noutras escolas,o preconceito de que a arte de uma elite cultural cada vezme­
lhor, diante da multidão crescente de consumidores da indústria cultural, não
tem mais salvação.Mas o contraste entre urna arte de vanguarda, apenas vol­
tada para a reflexão, e uma produção dos mass media, apenas voltada para o
consumo, de modo algum fàz justiça à situação atual. Ainda não se provou
que a quebra das fronteiras do estético, através das possibilidades não pressen­
tidas da atividade poética e estética, leve necessariamente à "dialética do ilu­
minismo". Tampouco está provado que a experiência estética, tanto da arte
contemporânea quanto da arte do passado, que, pelos mass media, já não só
atinge urna camada culta, mas se abre para um círculo de destinatários até ho­
je nunca alcançado, deva inevitavelmente degenerar numa relação consumis­
ta e corroboradora do status quo. Contra isso é, quando nada, de se opor o
que Brecht já formulara a respeito do efeito do cinema: "Todos concordam
20 Sobre o duplo sentido do conceito de "manipulação" e para a defesa da retórica an­
te a suspeita de formadora inevitavelmenre coerciriva da opinião, veja-se H-. G. Gadamer, in
Apel: Hermeneutik und ldeologiekritik (Hermenêutica e critica ideo16gica), Frankfurt a.m. 1970,
p. 304 ss.
21 In Schlaffer (1974), p. 282 ss, com referência a H. H. Holz: Vón Kunstwerk zum
\.%re (Da obra de arte à mercadoria). Neuwied, 1972
22 "Resumé über Kulturindustrie" ("Resumo sobre a indústria da cultura"). in Ador­
no: Ohne Leitbild - Parva Aesthetica (Sem /dolo - pequena estética), Frankfurt, 1967.
80
que o filme, mesmo o mais artístico, é uma mercadoria (...). Quase sem exce­
ção, todos lamentam este fato. Aparentemente, ninguém consegue imaginar
que esta maneira de ser lançado no mercado possa ser vantajosa para uma
obra de arte".23
Em que a teoria estética - que aparentemente está em desvantagem
crescente quanto aos métodos mais divulgados da semiótica, da teoria da in­
formação e da lingüística do texto (Textlinguistik) - pode contribuir para
a solução do problema, a partir de sua própria competência e tradição, se a
mudança, tantas vezes prognosticada, de toda experiência estética comuni­
cativa em uma função apenas ideológica é o destino inevitável da arte con­
temporânea? A Asthetische Theorie de Adorno apresenta quanto a isso ape­
nas uma resposta puritana: "Abstendo-se da práxis, a arte se torna o
esquema da práxis social".24A ascese, que, desta maneira, se impõe aos pro­
dutores e receptores da arte, deve libertar a consciência tutelada do indivÍ­
duo da práxis de seu comportamento consumista. Não se entende, porém,
como, mediante receitas da pura negatividade, que também representam o
último degrau da sabedoria para uma estética materialista do tipo da do
grupo Tel Quel realizar-se-á a passagem para um novo esquema de práxis
social.25A tese segundo a qual é exatamente a obra de arte autônoma aque­
la que oferece a contradita implacável à opressão social, herda, com o prin­
cípio de tart pour lart, que volta aqui a ser valorizado, a perda da práxis,
por sua vez conseqüência da autonomia da arte, alcançada no século XIX,
junto com a separação da arte em "superior" (desinteressada) e "inferior"
23 Gesammelte W'erke (Obras reunidas), v. 18, Frankfurt, 1967, p. 60-70.
24 Adorno (1970), p. 339.
25 Na França, a teoria panideológica da Louis Althusser exerceu uma influência mar­
cante. Segundo esta teoria, toda ação social inevitavelmente cai em poder do aparelho ideoló­
gico do Estado e o imaginário funciona como o instrumento principal da ideologia, para que
os indivíduos concretos se convertam, sem o saber, em "sujeitos" (jogo de palavra com o du­
plo sentido da palavra francesa) dependentes. Como a "produção do interesse estérico" pode
servir apenas à reprodução do código ideológico, é conveniente suspender, por enquanto, a ex­
periência estética, até que de novo se realizem as condições para uma arte livre, através da ação
da luta de classes. Esta conseqüência foi inferida, de maneira mais conseqüente, por Charles
Grivel, a partir do ensaio deAlthusser, "Idéologie et appareils idéologiques d'État" (in Ia Pen­
sle, junho 1970, 1-36), em uma monumental análise transversal da década de 1870-1880 (cf.
Produetion de l'intérét romanesque. Un état du texte, Hague-Paris, 1973).
81
(útil).26 Para que ao antiiluminismo da indústria cultural se oponha um no­
vo iluminismo, por meio da experiência estética, é preciso que a estética da
negatividade não mais renegue o caráter comunicativo da arte. Ela deve se
libertar da alternativa abstrata entre negatividade e afirmação, pela procura
de refundir as formas violadoras da norma, ressaltadas na arte de vanguar­
da, em produções formadoras de norma da experiência estética.
A história da experiência estética nos oferece pelo menos três boas ra­
zões para a tese de que a função normativa da experiência estética, mesmo ho­
je, não há de, inevitavelmente, resvalar na adaptação, ideologicamente dirigi­
da, e que haja de terminar na pura afirmação do status quo. Por mais terrível
que possa parecer aos puritanos da crítica ideológica a situação das artes sob
o domínio e a velada manipulação dos novos mass media, houve épocas no
passado em que a sujeição da arte tornava muito mais verossímeis os prognós­
ticos sobre sua decadência. A proibição de imagens, por exemplo, que ressur­
giu periodicamente durante o domínio da Igreja, por certo não era um peri­
go menor à práxis estética do que a inundação de imagens através de nossos
mass media. E, no entanto, de cada fase de hostilidade à arte, a experiência es­
tética emergiu numa forma nova e inesperada, seja esquivando-se da proibi­
ção, seja reinterpretando os cânones, seja descobrindo novos meios de expres­
são, sobre o que ainda se falará (Cap. A 4). Esta rebeldia básica da experiência
estética evidencia-se em segundo lugar, por sua permissão, muitas vezes rei­
vindicada e dificilmente reprimível, de colocar perguntas indiscretas ou de su­
gerir veladamente pela ficção, onde um sistema de respostas obrigatórias e de
indagações apenas toleradas consolidava e legitimava o predomínio de uma
visão de mundo. Esta função transgressora de pergunta e resposta encontra­
se nos caminhos clandestinos da literatura ficcional, assim como no caminho
real dos processos literários: na recepção dos mitos, que - veja-se, por exem­
plo, a história de Anfitriã027 - deixa longe de si toda "superioridade origi­
nal" e, enquanto veículo de emancipação, pode plenamente concorrer com o
pensamento filosófico.
26 Contra Adorno que, em seu "Resümé über Kulturindustrie" (1967, p. 60), apa­
rentemente ignora que a separação das esferas da arte em superior e inferior não vigora há mi­
lênios, pois aquelas esferas se enconrravam unidas na função prática, até a emancipação das
belas-artes.
27 Cf. minha contribuição a Poetik und Hermeneutik VllI (a ser republicada no v. II
desta obra).
82
Quanto à pergunta como a arte poderá negar o status quo e, não obstan­
te, formar normas; dito doutro modo, como poderá prescrever normas para a
ação prática, sem as impor, de modo que sua normatividade só se imponha pe­
lo consenso dos receptores, há, em terceiro lugar, a fórmula de um ilurninista
do século XVIII, de indiscutível autoridade. Ela se encontra na explicação de
Kant sobre o juizo de gosto: "O juizo de gosto não postula por si mesmo a ade­
são de cada um (pois só um juizo lógico universal pode fazê-lo, porque pode
apresentar razões), ele apenas atribui a cada um esta adesão como um caso da
regra, em vista do qual espera a confirmação, não a partir dos conceitos, mas pe­
lo acordo dos outros.28 Por conseguinte, a experiência estética não se distingue
apenas do lado de sua produtividade, como criação através da liberdade (§ eJ
43), mas também do lado de sua receptividade, como "aceitação em liberdade".
A medida que o julgamento estético pode representar tanto o modelo de um
julgamento desinteressado, não imposto por urna necessidade (§ eJ 5), quan­
to o modelo de um consenso aberto, não determinado a priori por conceitos e
regras (§ eJ 8), a conduta estética ganha, indiretamente, significação para a prá­
xis da ação. É o caso exemplar, distinguido por Kant como o procedimento da
sucessão (NaehjiJlge) em face do mero mecanismo da imitação (Naehahmung),29
que medeia entre a razão teórica e a prática, entre a universalidade lógica da nor­
ma e do caso e a vigência apriorística da lei moral, possibilitando, deste modo,
a ponte entre o estético e o ético. 3D O que, de início, poderia parecer como de­
ficiência do juizo estético - isto é, que possa ser apenas exemplar e não neces­
sário pela lógica - mostra-se como seu traço peculiar: o fato de o juizo estéti­
co depender do consenso de outrem possibilita a participação em urna norma
em formação, e, ao mesmo tempo, constitui a sociabilidade. Kant, portanto, re­
conheceu no juizo do gosto, necessariamente pluralístico (§ eJ 29), a capacida­
de dejuizo sobre tudo aquilo através de que sepode transmitir a qualquer um até o
seu próprio sentimento; derivou, ademais, este interesse empírico pelo belo, se
28 Kritik der Urteilskraft (Critica da faculdade dejulgar), § 8.
29 Para o melhor entendimento do leitor. brasileiro, transcrevemos a passagem refe­
rida de Kant: "A justa expressão para a influência que as produções de um criador exemplar
podem ter sobre os outros é sucessão (NaebfVlge) e não imitação (Nachahtnung)'; Kritik der
Urteilskraft. § 32 (Nota dos Tradutores).
30 lb. § 32. Sigo aqui a interpretação de Günther Buck: "Kants Lehre von Exempel"
(''A doutrina kantiana do exemplo"), in Archiv flir Begriffigeschichte11 (1967), 148-183, es­
pecop. 181.
83
bem que só de passagem, de uma analogia notável com o Contrat social de
Rousseau. O juízo estético, que exige de cada um a busca de uma comnnicação
universal, satisfàz um máximo interesse, pois resgata, esteticamente, uma pane
do contrato social originário: "Também cada um espera e exige que se busque
uma comnnicação nniversal com os outros, como se fosse por conseqüência de
um contrato original, ditado pela pr6pria humanidade" (§ e.E 41).
Tradução de Luiz Costa Lima e Peter Naumann
Revisão técnica de Heidrun Krieger e Uwe Schmelter
84
11
O PRAZER ESTÉTICO E AS
EXPEroÊNC~SFUNDAMENTMSDA
POIESIS, AlSTHESIS E KATHARSIS
HANS ROBERT JAUSS
Quem hoje ousasse empregar a palavra "prazer" no sentido da conheci­
da citação do Faust
E o que é concedido a toda a humanidade
Desejo gozar dentro de meu eu
como referência a sua conduta quanto à ane, expor-se-ia à censura de igno­
rância ou, ainda pior, de satisfazer as meras exigências do consumo e do
Kitsch. O prazer estético é hoje, ou era até há pouco, em geral desprezado co­
mo um privilégio da invectivada "burguesia cultà'. O significado primitivo
de "prazer", isto é, "ter o uso ou o proveito de uma coisà', encontra-se hoje
apenas no emprego obsoleto ou especializado (quem daqueles que se tratam
como "camaradas" ainda sabe e ouve com agrado que camarada (Genosse)
vem de prazer (Geniessen) e originalmente significa aquele que tem o gado
no mesmo campo?) Mas também a importância histórico-cultural desempe­
nhada pela palavra até o classicismo alemão hoje antes nos deveria surpreen­
der. 1 O significado, latente apenas na palavra alemã, de "participação e
apropriação" e o sentido espedfico de "alegrar-se com algo", se unem, de for­
ma peculiar, nesta época. Na poesia religiosa do século XVII, "prazer" podia
I Segundo H. Paul, Deutsehes Worterbuch, 5" ed., (Org.) por W. Berz, verbete "Ge­
niesse und Genosse", Tübingen, 1966; o que vem a seguir, baseia-se em W. Binder, "Genuss
in Dichtung und Philosoprue des 17. und 18. Jahrhunderts" (O prazer na poesia e na filoso­
fia dos séculos XVII e XVIII), in Arehiv fitr Begriffigesehiehte 17 (1973), p. 66-92.
85
significar "tomar parte em Deus"; no pietismo, ambos os significados, "pra­
zer e participação", se associavam no ato em que o crente certificava-se dire­
tamente da presença de Deus; a poesia de KJopstock conduzia ao prazermental o conceito de Herder de prazer espiritual fundava o autoconheci­
mento em um ter-se original, que tinha como conseqüência, de forma tam­
bém original, um ter o mundo (existência éprazer); no Faust de Goethe, por
fim, o conceito de prazer podia abarcar todos os graus da experiência até o
mais alto desejo de conhecimento (do prazer de vida da pessoa, passando pe­
lo prazer da ação e pelo prazer com comciência, até o prazer da criação, con­
forme o conhecido esquema do Faust).
O que nos ensina a história, história infelizmente ainda não escrita2, do
conceito de prazer acerca da experiência estética elementar? A elevação do
significado do prazer estético, no período da arte clássica alemã, precedeu
um processo, no qual conhecimento e prazer, isto é, a atitude teórica e a es­
tética, mal podiam ser verbalmente diferenciados. A diferenciação do prazer
estético realizou-se sob a necessidade de sua justificação, ante as instâncias da
fIlosofIa e da religião. Mas também a reflexão moderna sobre a conduta de
prazer, que era capaz de liberar a produção e a recepção da arte, permaneceu
por muito tempo subordinada à argumentação retórica e moralista. A retros­
pectiva seguinte pode oferecer apenas uma primeira orientação.
Um ponto-chave na poética aristotélica, que viria a desempenhar um
papel significativo na história de sua recepção, aparece no Capo IV; com a pas­
sagem sobre a razão do prazer, ante a representação de objetos feios (l448b).
Aristóteles atribui este prazer à dupla origem do prazer da imitação: pode de­
rivar da admiração de uma técnica perfeita da imitação, mas também do re­
gozijo ante o reconhecimento da imagem original no imitado. De acordo
com esta explicação de caráter estético-recepcional, reúnem-se, no prazer es­
tético, um efeito perfeitamente sensível e um de ordem intelectual.3 Mas a ex­
periência estética não se esgota em um ver cognoscitivo (aisthesis) e em um re-
2 O artigo "Genuss", in Historisches Worterbuch der Philosophie de J. Richter, Ba­
sel/Stuttgarr 1974, limita-se ao desenvolvimento desde o século XVII e anuncia um artigo que
deve tratar da tradição da diferença entre uti e frui.
3 Cf. M. Fuhrmann: EinjUhrung in die antike Dichtungs!ehre (Introdução à doutrina
antiga do poético), Darmstadt 1973, p. 10-11 eM. Komerell, Lessing und Aristote!es _ Unter­
suchung über die Theorie der Tragodie (Lessing e Aristóte!es - investigação sobre a teoria da tragé­
dia), Frankfurt 1957, p. 256.
86
conhecimento perceptivo (anamnesis): o espectador pode ser afetado pelo que
se representa, identificar-se com as pessoas em ação, dar assim livre curso às
próprias paixões despertadas e sentir-se aliviado por sua descarga prazerosa,
como se participasse de uma cura (katharsis). Esta descoberta e justifIcação do
prazer catártico, com a qual Aristóteles corrigia o "mecanismo do efeito dire­
to", sobre o qual Platão apoiara sua condenação da arte,4 é por certo a heran­
ça mais provocante da teoria antiga do poético. Dela se poderia dizer (o que
a estética psicanalítica apenas confirmou) que "nos deu a única resposta até
hoje convincente sobre a questão de por que a contemplação do mais trágico
acontecimento nos causa o mais profUndo prazer".5
A diferenciação agostiniana entre uso e prazer, uti efrui, é o segundo con­
tributo poderoso para a formação e a auto-afirmação da experiência estética.
Segundo Hans Blumenberg, Agostinho viu "o caráter básico do mundo em
sua utilitas como o instrumento ad salutem, ao passo que a relação plena e ple­
nificante com o ser só se pode esperar da fruitio orientada para Deus". 6 São por
isso representativos os capítulos 33 a 35, no livro X das Conftssiones. O catálo­
go dos exemplos para o "prazer dos olhos" (concupiscentia oculorum) distingue
entre o uso dos sentidos para o prazer (voluptas) e para a curiosidade (curiosi­
tas): o primeiro refere-se ao belo, ao harmonioso, ao perfumado, ao gostoso,
ao agradável de tocar, em suma, às sensações positivas dos cinco sentidos, o se­
gundo é esclarecido também por seu oposto, como pela fascinação por um ca­
dáver mutilado ou ainda apenas pela lagartixa que caça moscas. Para as duas
direções da experiência estética, Agostinho traça uma nova linha divisória en­
tre o bom, orientado apenas para Deus, e o mau uso do prazer dos sentidos,
voltado para o mundo. Os prazeres da audição podem, pelos cânticos religio­
sos, elevar a alma a uma maior devoção espiritual; os prazeres da visão podem
apontar para a beleza da criação divina. Mas esta fruitio, a única legítima, está
sob o constante risco de cair no simples gozo sensual e de ceder à sedução es-
4 Fuhrmann (I973), p. 85: ''Aristóteles, ao contrário, reconheceu que há estados de
emoção que têm uma função na economia psíquica dos homens, que, por isso, não podem ser
reprimidos, mas sim liberados de forma adequada; além disso, não deixa que se infira da poe­
sia nenhum efeito direto, mas, por assim dizer, eleitos opostos: a poesia, assim proclama seu
ensinamento, não contagia, mas sim inoculà'.
5 Komerell (1957), p. 103.
6 Blumenberg, Der Pro= der theoretischen Neugierde (O processo da curiosidade teórica),
Frankfurt, 1973, p. 107.
87
tética da experiência sensual incitada pelas artes. Também a curiositas, que pa­
radoxalmente pode-se deleitar ante fenômenos desagradáveis e até mesmo re­
pugnantes, é vista e condenada por Agostinho como o avesso do deleite esté­
tico, pois "ela não 'goza' de seus objetos como tais, mas goza de si mesma, pelo
poder de conhecimento confirmado por eles".?
Para a história da experiência estética, esta introdução do autodeleite
não é menos significativa do que o emprego, per negationem, da diferencia­
ção entre uso e prazer, quanto à experiência inter-humana. Em De Doctrina
christiana (I 20), Agostinho coloca a "pergunta maiúsculà' se o novo man­
damento "amai-vos uns aos outros, como eu vos amei" Ooão 13, 34) há de
ser compreendido como uma relação do frui ou do uti e se um homem de­
veria amar o outro por si mesmo. Sua resposta, por seu lado, reserva a frui­
tio do outro ao amor a Deus, pois "só pode ser amado por si mesmo o que,
de antemão, garanta ao homem a vita beata':s Esta reserva sempre provocou
a fruitio, entre duas pessoas na relação de amizade ou de amor, como possi­
bilidade terrena da vita beata; Abelardo e Heloisa (nihil unquam, Deus scit,
in te nisi te requisivi), Montaigne e La Boétie (parce que cetoit luy, par ce que
cetoit moy) e a relação dramática do par Don Rodrigue e Dona Prouheze
com Don Camille, como o mal-amado, no Soulier de Satan de Claudel, po­
dem servir de exemplos.9 Mas isso de modo algum significa que o amor pa­
ra com o outro deva ser visto como uma experiência estética por si; enquan­
to Agostinho rebaixa esta relação a um gozar-se a si mesmo no outro, a
relação autônoma eu-tu evidencia, ao contrário, um reconhecimento do ou­
tro como pessoa física e moral. Elimina-se assim por completo a diferencia­
ção entre prazer e uso. A crítica agostiniana do autodeleite da curiositas, por
fim, também alcança o lado produtivo do deleite estético: a autoconfirma­
ção que o homem pode ganhar por sua própria obra, deixa de lado a sua in­
terioridade, que, na contemplação absorta de Deus, deve abrir a única entra­
da para a salvação. 10
7 Blumenberg (1973), p. 106.
8 Segundo Blumenberg (1973), p. 106.
9 Cf. H. Friedrich: "Über den BriefWechselAbélard-Héloise" ("Sobre a correspondên­
cia de Abelardo com Heloisà'), in RomanÍJche Literaturen, Frankfurt 1972, p. 67 e Helga Me­
yer: Dm franzOsÍJche Drama des 20. Jahrhunderts ais Drama der Wiederholung (O drama francês
do século XX como drama da repetição), disserto (darilogr.), Heidelberg 1952, capo II B.
10 Segundo Blumenberg (1973), p. 108-9.
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Um terceiro ponto de partida para o problema da gênese da experiência
estética encontra-se no conhecido elogio que o sofista Górgias compôs em jus­
tificação de Helena. Com a descoberta do lado sensível da língua e de sua teo­
ria do poder dafala - "ela é capaz de afugentar o temor e de banir o sofrimen­
to, de provocar alegria e de suscitar a compaixão" - Górgias se reportou ao
prazer estético dos afetos provocados pelo discurso ou pela poesia e se valia, an­
tes ainda de Aristóteles, das categorias de terror (Phobos) e paixão (eleos), assim
como da analogia médica da catarse. 11 Ao passo que Aristóteles pensava, sobre­
tudo, no estado de ânimo do espectador de uma tragédia e na conseqüente li­
bertação de sua psique, Górgias estava interessado na "preparação" (paraskeua­
zein) do ouvinte de um discurso e na transposição de seu esfurço apaixonado
para uma nova convicção, I2 que, irresistivelmente, "forma a sua alma como ela
deseja". A tradição aí iniciada da retórica realça a função comunicativa do efei­
to catártico: o prazer estético dos afetos provocados pelo discurso ou pela poe­
sia é a tentativa de deixar-se persuadir pela transformação do pathos arrebatador
na serenidade ética (na terminologia posterior, excitare et remittere, movere et con­
ciliare). A persuasividade peculiar que um discurso só pode alcançar pelo pathos
e pelo ethos, através do prazer catártico, é explicada por Górgias por meio de
exemplos que logo, mostram a ambivalência da sedução estética: a arte do dis­
curso de tal modo pode '''fazer aparecer o inaereditáveI e o desconhecido ante os
olhos do crente" que nele chega a implantar uma outra crença; ela pode influir
a muitos nos processos judiciais, "mesmo se ela não corresponde à verdade"; po­
de influenciar a alma como um veneno ao corpo e enfeitiçar o ouvinte tanto pa­
ra um bom objetivo, quanto conduzi-Io para o mau.
Em sua luta secular contra a filosofia e a teologia, a retórica foi sempre
acusada por esta ambivalência de seus meios estéticos. Ainda no recente deba­
te entre a hermenêutica e a crítica da ideologia reencontra-se a dupla face da
persuasão e da indução, sob os títulos atuais de consenso e manipulação. Para
o nosso questionamento, é importante que a história da recepção da doutrina
antiga sobre o prazer catártico tenha quase tão-só se preocupado com o seu la­
do psicagógico, negligenciando seu lado comunicativo, que, por isso, deve ser
indagado na tradição retórica. Nela, afirmou-se desde o tenascimento - co-
li Fuhrmann (1973), p. 92-4.
12 Segundo K. Dockhorn: "Rezension von H. G. Gadamer, Wahrheit und Metho­
de '; in Gottingische Gelehrte Anzeigen, 218 (1966), p. 181.
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mo mostrou KIaus Dockhorn, em seu corolário indispensável à hermenêutica
de Gadamer - com base na doutrina da função do afeto (Affikt) para a cre­
dibilidade, o direito próprio da lógica do sensus communis (logicaprobabilium),
contra a lógica demonstrativa (logica veritatis ).13 Mas também Lutero serviu­
se do princípio retórico do movere et conciliare, ao descrever o que se passa no
"ouvinte da palavra" e quando este se defronta com a questão mais dif1cil, o
rhetoricari do Espírito Santo: ''A crença realiza-se no afeto, precisa consumar­
se no afeto, pois a razão é incapaz de presentificar o passado e o futuro". 14So­
bretudo a doutrina dos afetos da retórica ofereceu as bases da nova estética e
"dentro do iluminismo, ela não apenas acomparJhou teoricamente, mas evo­
cou a cultura do sentimento".15 Ainda a estética romântica da experiência (Er­
lebnisiisthetik), que se contrapôs à cultura da razão do bel esprit e à suposta ar­
tificialidade de toda a cultura retórica, tinha de desmentir que seu programa
de uma nova autenticidade e imediatidade se enraizasse na velha exigência re­
tórica de que o próprio orador, para comover seu público, devesse estar passio­
naImente excitado. 16 A subjetividade que goza de si mesma, como novo ideal
do prazer estético, abandonou o sensus communis como expressão de uma sim­
patia comunicativa, enquanto, ao mesmo tempo, o culto do gênio desterrou,
uma vez por todas, a "estética do efeito" da retórica. 17
Data de então a decadência de toda experiência prazerosa da arte. O
prazer estético, restringido em sua produção cognitiva e comunicativa, mos­
tra-se, de agora em diante, nos modelos trifásicos da história da filosofia co­
mo a contra-instância sentimental ou utópica da alienação, ou, na teoria es­
tética contemporânea, como a quintessência de uma conduta que, já em face
da arte clássica, é tomada como alheia à arte (banausisch), passando a conde­
nada face a todas as formas artísticas da modernidade. Um ponto de partida
de todas as determinações histórico-filosóficas da contraposição moderna en­
tre prazer e alienação, mesmo da contraposição materialista, se encontra ex­
plicitamente na VI carta do ensaio de Schiller, Ober die iisthetische Erziehung
des Menschen (Sobre a educação estética da humanidade) (1793/4). Antecipan-
13 13. Dockhorn (966), p. 184-205.
14 Ibidem, p. 178.
15 Ibidem, p. 173 e já em Die Rhetorik ais Quefle des vorromantischen Idealismus
(A retórica como fonte do idealismo pré-romântico), 1954.
16 Dockhorn (966), p. 176.
17 Dockhorn (966), p. 186.
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do-se historicamente à visão concreta do fenômeno, ali está a alienação da so­
ciedade industrial, com as conseqüências da divisão social do trabalho. Ela é
compreendida de um modo em relação ao qual as passagens correspondentes
da Deustche ldeologie (Ideologia alemã) (1845/6) podem ser lidas como uma
concretização histórica: "O Estado e a igreja, as leis e os costumes agora se dis­
sociam; o prazer foi separado do trabalho, os meios dos fins, o esforço da re­
compensà' .18 Para Schiller, a separação entre prazer e trabalho é sinonímica
da perda de uma totalidade que o mundo grego visto sentimentalmente, ti­
nha representado. A tarefa de restabelecer a totalidade perdida dá ao estético,
isto é, ao "prazer da autêntica beleza", um papel na verdade eminente, pois só
a atitude estética traz consigo uma postura do espírito "que afasta todos os li­
mites da totalidade da natureza humanà' (carta XXII). No entanto, este "pu­
ro efeito estético" não é encontrável na realidade, na qual "gozamos as alegrias
dos sentidos apenas como indivíduos" e as "alegrias do conhecimento apenas
como espécie", enquanto a beleza, a única que podemos "gozar ao mesmo
tempo como indivíduo e como espécie", pertence ao reino da aparência esté­
tica. Por isso a realização do "Estado estético", condição prévia de realização
do "ideal da igualdade" (carta XXVI!), permanece utópica.
A conseqüência que o materialismo retira da filosofia idealista da histó­
ria - não importa como se interprete a tão discutida posição do "império da
liberdade" no Capital 19 - mostra-se em a alienação ser superada, na utopia
de Marx da sociedade comunista realizada, e a medida da felicidade plena de­
ver-se encontrar exatamente, não na superação do trabalho ou do lazer, mas
no prazer do trabalho como "primeira necessidade vital" e como meio para a
auto-realização. A estética marxista posterior manteve tão decididamente que
o caráter do prazer estético está relacionado com o futuro, quanto a estética
psicanalítica tem insistido no inverso, isto é, que o prazer estético se relacio­
na com o passado, como retorno do recaIcado. Cite-se como testemunho da
primeira posição uma passagem das Geschichtin von Herrn Keuner (Estórias do
18 Colocação chave paralda: "porque com a divisão do trabalho deu-se a possibilidade,
sim, a realidade, de que a atividade intelectual e a material, de que o prazere o trabalho, a produ­
ção e o consumo passassema caber a indivíduos diferentes", encontra-se em ME'W, vol. 3, p. 32.
19 CE W Conze, artigo "Arbeit", in Geschichtliche Grundbegriffe - HistorÍsches Lexi­
kon zur politisch-sozialen Sprache in Deutsch/and (Conceitos históricos bdsicos - Léxico histórico
da linguagem politico-social na Alemanha), (Org.) O. Brunner. W Conze, R. Koselleck, Stutt­
gart 1972, I, p. 202.
91
senhor Keuner) de Brecht: "O senhor K viu, certa vez, uma velha cadeira, be­
lamente trabalhada, e a comprou.Dizia: ao refletir, às vezes espero ter muitas
idéias como a vida deveria ser organizada, para que nela urna cadeira como
esta nem sequer chamasse a atenção ou em que o prazer causado por ela não
fosse nem vergonhoso nem excepcional" .20Enquanto aqui só a expectativa de
urna situação ainda utópica, onde o trabalho não fosse alienado, é capaz de
justificar o prazer da beleza, em face da mácula de sua origem na opressão ve­
lada, em Freud o prazer estético ganha seu significado mais profundo, sobre­
tudo, do "desencadeamento do maior prazer, a partir de fontes psíquicas pro­
fundas", ou seja, a partir do reconhecimento de experiências passadas: "Uma
forte experiência atual desperta no poeta a lembrança de uma passada, expe­
riência principalmente pertencente à infância, da qual agora deriva o desejo,
cuja satisfação se realiza na poesia; a própria poesia revela tanto elementos do
motivo recente, quanto elementos das velhas lembranças".21
No seu uso atual, o prazer perdeu muito de seu sentido elevado. Outro­
ra, o prazer justificava, como um modo de domínio do mundo e de autoco­
nhecimento e, a seguir, como conceito da filosofia da história e da psicanáli­
se, as relações com a arte. Hoje, para muitos a experiência estética só é vista
como genuína quando se priva de todo prazer e se eleva ao nível da reflexão
estética. A crítica mais aguda a toda a experiência de prazer da arte encontra­
se, outra vez, em Adorno. Quem procura e encontra prazer ante as obras de
arte não passa de um idiota (Banause): "Expressões como 'delicioso de ouvir'
falam por si". Quem é incapaz de eliminar o prazer da relação com a arte, a
coloca junto aos produtos culinários ou pornográficos. Em suma, o prazer da
arte não passa de uma reação burguesa à espiritualização da arte, sendo desta
forma o pressuposto para a indústria cultural da atualidade, que, no circuito
fechado das necessidades dirigidas e do ersatz estético, serve aos interesses ca­
muflados do poder. Em poucas palavras: "O burguês deseja a arte opulenta e
a vida ascética; o inverso seria melhor" (p. 26-7).
A pintura e a poesia vanguardisras de pós-guerra contribuíram, sem dúvi­
da, para isso: contra a fartura do mundo do consumo, a arte de novo se fez as­
cética e tomou-se intragável ao burguês. Um exemplo disso são os fenômenos,
20 Gesammelte Werke (Obras reunidas), Frankfurt, 1967, vol. 12, p. 406.
21 "Der Dichter und das Phanrasieren" ("O poeta e a fantasià') (1908), Studiensauga­
be (SA), Frankfurt, v. 10, p. 177-8.
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semelhantes por sua tendência, do sublime abstrato na pintura de Jackson Pol­
lock. ou de Barnett Newmans,22 e do teatro ou do romance de Samuel Beckett
que, na mesma época, se tornaram modelares. A arte ascética e a estética da ne­
gatividade ganham, neste contexto, o pathos solitário de sua legitimação, a par­
tir do contraste com a arte de consumo dos modernos mtISS media. Adorno, o
mais decisivo pioneiro da estética da negatividade, viu entretanto o limite de to­
da experiência ascética da arte, ao notar: "Se, entretanto, o último traço de pra­
zer fosse extirpado, colocar-se-ia a embaraçosa pergunta: para que, em suma, as
obras de arte servem?" (p. 27). Nem a sua teoria estética, de onde as citações são
extraÍdas, nem tampouco as teorias vigentes na ciência da arte, da hermenêuti­
ca e da estética oferecem resposta a esta pergunta.
Para a ciência da arte, a experiência estética, digna de ser teorizada, co­
meça hoje além do comportamento contemplativo ou de prazer; como lado
subjetivo da experiência da arte, abandona-se este aspecto à psicologia que por
ela mal se interessa, ou então se lhe acusa de ser a falsa consciência da cultu­
ra de consumo do capitalismo tardio.23 O problema do prazer estético, um
dos temas principais, antes da Primeira Grande Guerra, da estética psicológi­
ca e da ciência geral da arte, sobre a qual Moritz Geiger escreveu24 a palavra
decisiva, do ponto de vista fenomenológico, interessa à ciência da arte con­
temporânea, representada pela filosofia hermenêutica de Hans-Georg Gada­
mer, apenas sob o aspecto de uma crítica à abstração da consciência estética,
especialmente ao museu imaginário da subjetividade que goza de si mesma; à
sua decadência se opõe a experiência de uma compreensão atenta, destinada
a defender a "experiência da verdade, de que participamos pela obra de arte,
contra a teoria estética, que se deixa lirrútar pelo conceito de verdade da ciên­
cii' .25 A verdade social da arte não necessita, tampouco como a ontológica,
22 Cf. M. Indahl, "Who's afraid of red, yellow and blue III", Srurrgart 1971 (Re­
clam, Werkmonographien zur bildenden Kunst (publicidade, monografias sobre a arte fi-
gurativa, n. 147).
23 Para s6 indicarmos dois anrípodas, cf K Badt, Kunsttheoretische Versuch (Estudo teó-
rico sobre a arte), Kõln 1968, p. 103 e O. K Werckmeister, Ende der Asthetik (O fim da estéti­
ca), Frankfurt 1971, p. 83.
24 M. Geiger, "Beirrage zur Phanomenologie des Esrhetischen Genusses" ("Contri-
buições à fenomenologia do prazer estético"), in Jb. fUr Philosophie und phiinomenolische Fors­
chung, v. 1,2 (1913), p. 567-684.
25 Gadamer (1960), p. XV
93
da mediação do prazer estético. Enquanto a concepção marxista da literatura
se restringiu, desde Plekhanov até Lukács, à teoria do reflexo e, daí, ao ideal
da mimesis do realismo burguês, esperou ela que o receptor reconhecesse de
imediato uma realidade objetiva; só a partir de Brecht pode-se War de uma
consideração do efeito da literatura, embora apenas com a intenção de edu-'
car o receptor no sentido de uma postura racional e crítica, contra a tendên­
cia deste em favor de uma empatia (EinfUhlung) prazeirosa e da identificação
estética. Não quero, por fim, esconder que mesmo a estética da recepção, por
mim defendida desde 1967, até hoje só tratou deste problema em relação à
literatura de consumo ou em relação à mudança de horizonte da negativida­
de original para a familiaridade com os clássicos. No restante, porém, pressu­
pôs a reflexão estética como base de toda a recepção, participando assim da
ascese, surpreendentemente unânime, que a ciência da arte se impôs contra a
experiência estética primeira.
Pouco depois de minha Kleine Apologie des iisthetischen Eifahrung (Peque­
na apologia da experiência estética) (1972) e dela independente, Roland Bar­
thes, em Le plaisir du texte (1973), empenhou-se na reabilitação do prazer es­
tético. Dirigindo-se contra a suspeita panideológica de que todo prazer estético
não passa de um instrumento da classe dominante, escreveu: "O prazer, entre­
tanto, não é um elemento do texto, não é um resíduo ingênuo; não depende de
uma lógica do entendimento e da sensação; é uma deriva, algo ao mesmo tem­
po revolucionário e associal e não pode ser assumido por nenhuma coletivida­
de, por nenhuma mentalidade, por nenhum idioleto". 26 Segundo Barthes,
chegou o momento de delinear-se uma estética moderna, que examine a fun­
do o "prazer do consumidor' (p. 94). Com este fim, oferece a dicotomia entre
plaisir ejouissance, entre o prazer afirmativo e o deleite estético negativo, o que
de alguma forma pode ser visto como a contraproposta francesa à teoria esté­
tica de Adorno. Deixa-se a critério do leitor participar do "profundo hedollÍS­
mo de toda culturà' ou de contradirá-Ia: "ele frui da consistência de seu eu (é
seu prazer) e busca a sua perda (é seu deleite). E um sujeito duas vezes dividi­
do, duas vezes perverso" (p. 26). Este contraste ainda se apresenta noutras di­
cotomias como "dizível-indizível", "sedução - violêncià', "o familiar _ o
inusitado", que cada vez mais levam a caracterizar a "atopià' do deleite (jouis­
sance) em face da "ubiqüidade" do prazer (plaisir), como a verdadeira condu-
26 R. Banhes, Le plaisir du texte, Paris 1973, p. 39.
94
ta estética em face da inadequada. Assim também a tentativa de Barthes parti­
cipa do círculo de negatividade e afirmação: o momento mistificado da ruptu­
re separa a literatura,não dialeticamente, em um duplo cânone, atribui as
obras-primas do passado ao prazer auto-afirmativo, e, ao mesmo tempo, sub­
trai o que, ao contrário, pretende que forme o cânone subversivo da jouissan­
ce (neste lado, figura quase tão-s6 Georges Bataille).
Barthes ressalta unilateralmente o "caráter insular" da leitura solidária e
o aspecto anárquico do prazer estético, nega o caráter de diálogo entre leitor
e texto (p. 28) e, desta forma, exclui a macroestrutura da situação da leitura
comunicativa. Assim o processo de leitura se reduz à percepção de microes­
truturas; ao leitor passa a caber apenas um papel passivo, tão-só de recepção
e desaparece, como fonte de prazer, sua atividade imaginante, experimenta­
dora e doadora de significação. Isso vai tão longe que a primazia ontológica
do texto, de início abandonada, retoma, podendo o texto tornar-se até mes­
mo um "objet-fétiche" (p. 45): "O texto que escreves deve-te dar a prova que
me deseja. Esta prova existe: é a escritura (écriture). A escritura é isso: a ciên­
cia dos deleites da linguagem, seu kamasutra" (p. 13-4).
Não é por acaso que a apologia de Barthes reduz o prazer estético ao re­
gozijo em face da linguagem (uma outra palavra ainda, ainda uma outra fes­
ta, p. 17). Por força de não abrir, de forma decisiva, o universo lingüístico au­
to-suficiente para o mundo da práxis estética, o deleite máximo de Barmes
permanece sendo o eros redescoberto do ftlólogo contemplativo e a sua bem
resguardada reserva: oparaíso das palavras (p. 17).
Em que consiste, porém, a experiência estética original? Como, afinal
de contas, o prazer estético se distingue do prazer dos sentidos? Como a fun­
ção estética do prazer se relaciona com outras funções do mundo cotidiano?
Partindo-se do uso atual da linguagem, infere-se que o prazer tanto se opõe
ao trabalho, quanto se afasta do conhecimento e da ação. Sobre isso vale notar
que, por um lado, prazer e trabalho formam, de fato, uma velha oposição,
atribuída desde a antigüidade ao conceito de experiência estética. A medida
que o prazer estético libera da obrigação prática do trabalho e das necessida­
des naturais ao cotidiano, funda uma função social, que sempre caracterÍwu
a experiência estética. Por outro lado, a experiência estética não era, desde o
princípio, oposta ao conhecimento e à ação. Ao contrário da vigência secular
da doutrina horaciana sobre a dupla finalidade do poético (delectare et prodes­
se, deleitar e ser útil), que, junto com a tripartição retórica - docere, delecta-
95
re, movere - justificava toda a práxis estética desde a antigüidade até aos tem .
pos modernos mais av~çados e era, ademais, antes sentida como uma tole .
rância do que como uma restrição do representável, a separação entre delecta""'
re e prodesse, o princípio de l'art pour l'art, mostra-se, ao contrário, como um
mero episódio na história da arte. A função cognitiva do prazer estético, que
ainda se mostrava no Faust de Goethe contra a capacidade cognitiva abstrata
e conceitual, só foi abandonada no século XIX, com a autonomização pro­
gressiva da arte. Também para a arte antiga, pré-autônoma, que de múltiplas
formas mediava as normas de ação, aquela função cognitiva era inquestioná ...
vel. Hoje, ao invés, levianamente acusa-se muitas vezes a arte de corroborar os
interesses dominantes, sendo mal compreendida ao ser tomada como mera
transfiguração do status quo e, assim, severamente rejeitada.
À pergunta como o prazer estético se distingue dos prazeres simples, is­
to é, da entrega sensitiva e imediata do eu a um objeto, COstuma a teoria es­
tética contestar, quase unanimemente, referindo-se à doutrina de Kant sobre
o prazer desinteressado, com definições relativas a distância estética. Enquan­
to o eu se satisfaz no prazer elementar, e este, enquanto dura, é auto-suficien­
te e sem relação com a vida restante, o prazer estético exige um momento adi­
cional, ou seja, uma tomada de posição, que exclui a existência do objeto e,
deste modo, o converte em objeto estético. E o que mostra Ludwig Giesz, em
seu aprofundamento crítico da fenomenologia do prazer estético de Moritz
Geiger e que descreve precisamente assim: "O prazer aponta para o objeto de
prazer, que é fiuído no isolamento; o prazer estético de certa forma elimina
este isolamento do prazer, porque agora se toma posição, se encontra prazer
no objeto de prazer. Realiza-se assim aquele hiato no decurso do prazer que
se descreve como distância estética ou como o momento da contemplação". 27
Geiger pensava aí em um "distanciamento entre o eu e o objeto", que, no en­
tanto, não é suficiente para diferençar o prazer estético da atitude teórica, pois
que esta também implica um distaneiamento. Em face disso, a atitude estéti­
ca exige que o objeto distanciado não seja contemplado desinteressadamente,
mas que seja co-produzido pelo fruidor à semelhança do que se passa no
mundo imaginário, em que entramos como co-participantes - como obje­
to imaginário. Conforme mostrou Jean-Paul Sartre, em sua análise fenome­
no lógica do imaginário, na experiência estética o ato de distanciamento é, ao
27 L. Giesz, Phanomonologie des Kitsches. 1960 (München, 1971), p. 30.
96
mesmo tempo, um ato formador da consciência representante.28 A consciên­
cia imaginante deve negar o mundo dado dos objetos, para poder produzir,
por meio de sua própria atividade e segundo os signos ou esquemas estéticos
de um texto verbal, pictórico ou musical, a Gestalt lingüística, pictórica ou
musical do objeto estético irreal. A realidade, e assim também a natureza ou
uma paisagem, nunca é bela por si mesma: ''A beleza é um valor que nunca
poderia se aplicar senão ao imaginário e que comporta a aniquilação (néanti­
sation) do mundo, em sua estrutura essencial" .29 Se, no entanto, a beleza é
necessariamente imaginária e o objeto estético somente constituído pelo ato
contemplativo do observador, daí entretanto não se infere que o imaginário
seja belo por si, que o ato imaginante também necessariamente conduza con­
sigo o prazer estético. A análise de Sartre esclarece a diferença fundamental en­
tre percepção e imaginação, a sua relação contraditória quanto a um objeto
dado ou quanto a um ausente, mas não questiona o que se deveria acrescen­
tar para que a imaginação do ausente possa causar um prazer estético.
Giesz determinou este interesse superior, que ultrapassa tanto o mero
preenchimento da "forma vazià' de uma imaginação, quanto a entrega a um
objeto real de prazer, como um modo dialético do comportamento fruidor:
"pois usufruo a própria suspensão a que sujeitei o prazer primário e seu obje­
to".30 Esta afirmação tem por conseqüência que a distância estética não pode
ser compreendida apenas como uma relação unilateral e solidária, apenas con­
templativa e desinteressada quanto ao objeto "distanciado". Na reação de pra­
zer ante o objeto estético, realiza-se, ao invés, uma reciprocidade entre sujeito
e objeto, em que "ganhamos interesse em nossa ausência de interesse".3l Este
interesse estético se explica de forma mais simples pelo fato de que o sujeito,
enquanto utiliza sua liberdade de tomada de posição perante o objeto estético
irreal, é capaz de gozar tanto o objeto, cada Vf2 mais explorado por seu próprio
28 J. P. Sartre, L'Imaginaire, Paris 1940, p. 239 ss.
29 Ibidem, p. 245.
30 Giesz (1971), p. 33.
31 Ibidem, p. 32. Também Geiger (1913) já conseguira converter a fórmula de Kant do
"prazer desinteressado" em "interesse desinteressado", p. 660; mas, mesmo aí, ainda negava, con­
forme sua decisão prévia em favor do ideal classicista da pura contemplação, que o eu, no pra­
-rer estético, "participe de algum modo da constituição do objeto", p. 662. Esta posição também
o levava a afastar de sua descrição fenomenológica todo o prazer catártico, tido como mero "efei­
to" da experiência estética.
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prazer, quanto seu próprio eu, que, nesta atividade, se sente liberado de sua
existênciacotidiana. Por conseguinte, o prazer estético realiza-se sempre na re­
lação dialética do prazer de si no prazer no outro (Selbstgenuss im Fremt:lgenuss).
Escolhi a formulação "prazer de si no prazer no outro" para caracterizar a "sus­
pensão" realçada por Giesz, como um movimento de vai-e-vem, no qual oeu
com seu objeto irreal, o objeto estético, pode, ao mesmo tempo, gozar de seu
correlato, o sujeito também convertido em irreal,32 isto é, liberado de sua rea­
lidade efetiva. Se esta oscilação se concentrar em um dos dois pólos, o prazer
estético recairá ou num prazer quase místico do objet033 ou, segundo a forma
descrita por Giesz, num prazer sentimental de si mesmo, "em que o puro frui­
dor (portanto não estético ou não lúdico) se goza a si como fruidor".34
A determinação do prazer estético como prazer de si no outro pressu­
põe, por conseguinte, a unidade primária do prazer cognoscente e da com­
preensão prazerosa, restituindo o significado, originalmente próprio ao uso
alemão, de participação e apropriação. Na conduta estética, o sujeito sempre
goza mais do que de si mesmo: experimenta-se na apropriação de uma expe­
riência do sentido do mundo, ao qual explora tanto por sua própria ativida­
de produtora, quanto pela integração da experiência alheia e que, ademais, é
passível de ser confirmado pela anuência de terceiros. O prazer estético que,
desta forma, se realiza na oscilação entre a contemplação desinteressada e a
participação experimentadora, é um modo da experiência de si mesmo na ca­
pacidade de ser outro, capacidade a nós aberta pelo comportamento estético.
Deve-se distinguir entre as formas decadentes mencionadas e o modelo
antropológico de distanciamento interno, com que Hans Blumenberg escla­
receu a possibilidade do prazer estético ante negatividades objetivas, que, de
antemão, não parecem "deleitáveis", como o feio, o terrível, o cruel, o disfor-
32 Segundo Iser in Der Akt des Lesem - Theorie iisthetischer Wirkung (O ato da leitu­
ra - teoria do efeito estético), München, 1976, p. 226-7: "Estar na presença de uma represen­
tação significa sempre experimentar uma cerra irrealização; pois representar sempre supõe es­
rabelecer irreal idade (Irrealitiitssetzung), na medida em que me ocupo com algo que me retira
da faticidade (Gegebenheit) de minha realidade".
33 Segundo meu modo de ver, isso indui o que, segundo Geiger (1913, p. 664), "jun­
to com a dissolução do eu que toma posição no eu que frui, constitui o 'auto-esquecimento'
no prazer esrético".
34 Giesz (op. cir.), p. 33. Minha inrerpretação da "suspensão" como prazer de si no
prazer no outro, no fundo, apenas dá um passo a mais não empreendido por Giesz por equi­
parar o prazer de si e a "prazeirosidade" (Genüssltchkeit).
98
me.35 Aqui, o prazer estético pode-se realizar sob a condição de que o sujeito
não goze os objetos em sua negatividade flagrante, mas sim a pura função de
suas próprias faculdades, afetadas por aquela presença negativa. Isso pressupõe
que o sujeito se libere para o exercício de suas afeições, através "da consciên­
cia intensificada de sua condição de não afetado". Por meio deste distancia­
mento interno, é neutralizado não só o contato direto com o objeto represen­
tado, como também o contato direto do autoprazer sentimental. Nos termos
de minha formulação: as próprias faculdades afetadas se "despersonalizam"
[(hier werden (...) die ajfizierten eigenen Vermogen selbst zum Fremden)], poden­
do assim ser fruídas esteticamente pelo sujeito nuclearmente não afetado, gra­
ças à sua liberdade de tomar posição. É claro que o modelo de Blumenberg
sobre o distanciamento quanto aos próprios afetos também descreve o meca­
nismo de defesa mais seguro contra a COl;l1oçãotrágica: o espectador deixa de
se perturbar quando consegue gozar reflexivamente apenas a função de suas
próprias faculdades afetadas.
Já Freud diversas vezes descrevera o prazer estético pelo relacionamento
do prazer no outro com o prazer de si.36 O paradigma com que Freud descre­
ve a necessidade antropológica do herói, tanto nos devaneios cotidianos quan­
to na literatura, explica o prazer estético da identificação pela função de alívio
e proteção da distância estética e, ao mesmo tempo, por um interesse mais pro­
fundo pela atividade da fàntasia. O espectador no teatro ou o leitor de roman­
ces pode "gozar-se como uma figura importante e se entregar de peito aberto
a emoções normalmente recalcadas, pois o seu prazer tem "por pressuposto a
ilusão estética, ou seja, o alívio da dor pela segurança de que, em primeiro lu­
gar, trata-se de um outro que age e sofre, na cena, e, em segundo lugar, de que
se trata apenas de um jogo, que não pode causar dano algum à nossa seguran­
ça pessoal". 37 Deste modo, o prazer estético da identificação possibilita parti­
ciparmos de experiências alheias, coisa de que, em nossa realidade cotidiana,
não nos julgaríamos capazes. Contudo a teoria de Freud sobre o autoprazer es-
35 Poetik und Hermeneutik m, p. 646-7.
36 "Psychopatische Personen auf der Bühne" ("Pessoas psicopáticas em cena"), SA, v. X,
Frankfurr 1969, p. 163-168; "Der Dichter und das Phantasieren", SA, v. X, p. 171-179; "Ex­
kurs über Phantasieratigkeit" ("Excurso sobre a atividade da fantasia"), in capo XXIII das Vorle­
sungen zur Einfiihrung in die Psychana/yse (Conferências introdut6rias sobre a psicanálise), SA, v. 1,
p.362-366.
37 lbidem, v. X, p. 163.
99
tético no prazer no outro não se esgota em uma reprise psicanalítica da cata.l!'Se
aristotélica. O efeito da poesia não se restringe ao despertar das próprias pai­
xões do prazer estético da identificação com ações ou sofrimentos alheios e n()
alívio pela descarga relaxante. O que a doutrina tradicional do prazer catártico
incluía, é atualizado por Freud e, ao mesmo tempo, superado pela nova desta-'
berta, segundo a qual, ao puro ganho de prazer estético na economia psíquica,
se acrescenta uma função mais ampla - a de um prazer primário ou de uma
"bonificação de incentivo" (Verlockungspramie) para "a liberação de um mai()r
prazer advindo de fontes mais profundas".38 Trata-se da chocante experiência
estética do retorno do reca1cado: o reencontro das expectativas investidas nos
jogos infantis e dos desejos ali experimentados, e, daí, o ditoso reconhecimen,­
to da experiência passada e do tempo perdido. É evidente que o prazer assim
determinado - e a experiência da leitura de Proust o confirma39 - é capaz
de alcançar uma aura de incomparável intensidade, enquanto ele repõe a
anamnese platônica em um mundo terreno. Isso desde que se entenda que es­
te prazer é determinado pela distância interior do eu, que se faz estranho a si
próprio, e pela superação (Aufhebung) desta distância em uma catarse que bro­
ta do prazer do trabalho e da relembrança.
Uma outra vantagem, ainda inexplorada, da estética freudiana consiste
em que ela permite desenvolver as funções produtiva e receptiva da experiên­
cia estética, a partir de um conceito do prazer estético que as fundamenta e
que, com facilidade, pode ser completado em direção ao intersubjetivo, ca­
rente na teoria de Freud: a função comunicativa da experiência estética.
Podemos agora introduzir, para as três categorias fundamentais da
fruição estética, três conceitos da tradição estética, que sempre encontra­
mos na retrospectiva sobre a história do prazer estético: Poiesis, Aisthesis e
Katharsis.
Designamos por poiesis, compreendida no sentido aristotélico da "fàcul­
dade poética", o prazer ante a obra que nós mesmos realizamos, que Agostinho
ainda reservava a Deus e que, desde o Renascimento, foi cada vez mais reivin­
dicada como distintivo do artista autônomo. Como afirmação estética produ-
38 Ibidem, v. X. p. 179.
39 Sobre a concepção de Proust dapoésie de Ia mémoire e sua inversão da anamnese plarô­
nica, cf. o meu "Proust auf der Suche seiner Konzepcion des Romans" ("A procUIa de PrOUStde
sua concepção do romance"), in Rumanische Forschungen 66 (1955). p. 255-304, espec.p.fornecidas pela lingüística. O resultado se tornará mais evidente no
Sur Racine (1963). A preocupação com a criação literária abandonava, como
13
andaimes ociosos, as especificações historicizantes que haviam marcado a aná­
lise acadêmica francesa (e, em geral, européia), desde o século XIX. Através da
revista Communications, a crítica estruturalista seguia o modelo lingüístico
transposto por Lévi-Strauss para a análise de instituições sociais, de pinturas
corporais e, sobretudo, dos mitos sul e norte-americanos, aplicando-o a obras
verbais e não verbais, ao mesmo tempo que libertava os primeiros dos gran­
des panoramas da história literária, uma forma, justamente considerada, cô­
moda e estéril de tratar seu objeto.
Como a crítica estruturalista repercutia no recente movimento alemão?
O ataque virulento a Barthes pelos sorbonnards servia de prova extra aos roma­
nistas alemães de que o imanentismo teria de ser combatido com armas mais
amplas do que aquelas que bastariam para aniquilar os seguidores de Curtius.
Pois, se Barthes e seus companheiros de viagem representavam a nouvelle va­
gue, esta, não menos que a lõpoifõrschung, punha em risco o prestígio de uma
disciplina que tanto se desenvolvera na Alemanha, a História. A situação era
ainda mais delicada pelo confronto com a Alemanha Oriental. De um lado, a
teoria do reflexo marxista punha entre parênteses o valor estético, de outro, o
estruturalismo francês desdenhava a inserção da literatura na sociedade. Para
os adeptos da estética da recepção, estava a priori fora de cogitação (a) aliar-se
aos sorbonnards, pois a visão da história literária por estes era uma antiqualha;
(b) favorecer a divulgação estruturalista, pois Barthes e companhia tomavam a
história como acidente; (c) muito menos estabelecer algum pacto com os re­
flexólogos. É verdade que Jauss mantinha boas relações com Werner Krauss,
mas a força deste não era suficiente para romper com a Wtderspiegelung (teoria
do reflexo), politicamente imposta.2 Em suma, as três direções referidas, o tra­
dicionalismo sorbonnard, o estruturalismo barthesÍano e a interpretação histó­
rico-reflexológica indicavam o impasse que assediava a abordagem da literatu­
ra (por extensão, da arte). Em comum, estava em jogo o relacionamento da
arte com a realidade, partindo-se do suposto de que os termos em conflito,
"arte" e "realidade" eram categorias indiscutíveis. O momento pois não deixa­
va de ser propício para uma "mudança de paradigmà'.
2 Desconheço se p existe alguma análise da luta interna travada na Alemanha
Oriental contra a refIexologia. Percebo apenas, em rextos da época, que haveria um embate
contra seus excessos. Provavelmente, razões polfticas impediam que ele se explicitasse mais
claramente.
14
A fama que logo alcançará a Literaturgeschichte ais Provokation, publica­
do comercialmente em 1970 por uma editora do prestígio da Suhrkamp,
mostrará que o autor, independentemente do filão que descobrira, exercera
uma admirável habilidade política. Seu texto tinha um tom liberal capaz de
agradar aos estudantes rebelados sem incomodar as autoridades, ao lado do
entusiasmo com que apresentava uma via ainda inexplorada. Se sua repercus­
são demorou mais do que a difusão do estruturalismo, isso se deve tanto às
dificuldades da língua, como ao fato de que Paris continuasse a ser o centro
de difusão das ondas culturais. Mas em que consistia a novidade da aborda­
gem de Jauss? Por que se falava muito mais de seu ensaio do que da Appels­
truktur, de Wolfgang Iser? Essas perguntas orientarão estas páginas.
Em primeiro lugar, não é que o leitor antes houvesse sido desconheci­
do. Krauss, a quem já nos referimos, havia advertido:
Como a palavra, como uma frase, como uma carta, assim também
a obra literária não é escrita no vazio, nem dirigida à posteridade: é escri­
ta sim para um destinatário concreto. (apud Naumann, M., 1965, 58)
Por outro lado, outro discípulo de Krauss teria a agudeza de assinalar
que o desaparecimento da preocupação com o leitor e o advento do imanen­
tismo crítico haviam se dado antes mesmo do advento do nazismo:
Com a estiJiscicaidealista começa não só o relacionamento minu­
cioso, de fato fruúfero, da filologia com a ciência da literatura, como
também o desenvolvimento de uma concepção formalista da literatura,
que considera a obra literária uma creatio ex nihifo. O estilista compreen­
de a obra literária como um organismo cerrado, cuja estrutura há de des­
cobrir. (Barck, K., 1975, 115)
Cabe acrescentar que essa substituição do leitor por uma estética da
produção fora facilitada porque, nos séculos passados, sobretudo nos trata­
dos de retórica, o leitor era invocado dentro de um contexto normativo, is­
to é, era invocado para que se dissesse como deveria se conduzir, assim co­
mo quais os estilos e gêneros adequados às diversas circunstâncias. Assim
sucedera na Roma antiga e voltara a se dar tanto nas poéticas renascentistas,
como na estrita regulação do teatro clássico francês. Noutras palavras, obra e
15
leitor faziam parte de um círculo fechado, sujeito às normas de que o autor
das retóricas era o representante, se não o legislador. Por isso a luta pela au­
tonomia do discurso literário passava pelo desdém com os cuidados com o
leitor. É esse o contexto histórico que motivava o fragmento nQ 85 dos "Kri­
tische Fragmente":
Todo autor legitimo (rechtlich) escreve para ninguém ou escreve
para todos. Quem escreve para que possa ser lido por estes e aqueles,
merece não ser lido. (Schlegel, F., 1797, 157)
A desconsideração do leitor era proposta a partir de duas perspectivas:
da clássicae da moderna. Do ponto de vista clássico,não o levar em conta era
romper frontalmente com o pacto normativo;3 do pOnto de vista moderno,
não se sujeitar ao que, a partir de agora, será cada vez mais intensamente o
pacto comercial. Ora, à medida que a autonomização da literatura, em fins
do século XVIII, supunha a presença cada vez maior do livro, isto é, de um
bem negociável, a estética da produção, centrada na qualidade estética do pro­
duto, parecia a orientação propícia à autonomia da arte. O descaso do leitor
se faziaem nome da importância estética da obra. Por conseguinte, a (re)des­
coberta do leitor por Jauss propunha noutros termos a questão da autonomia.
Desde o século XVIII, a estética normativa perdera seu lugar. Voltar a tratar
do leitor, no século XX, não mais ameaçava a autonomia do discurso literá­
rio. A questão importante consistia em articular a qualidade estética com a
presença do leitor, fora de injunções comerciais. A questão porém exigia mais
do que astúcia política.
Se a peça principal para o exame há de ser a Literaturgeschichte ais Pro­
vokation, ganharemos tempo em, desde logo, afàstar a impressão de que a
obra fosse recebida como de uma novidade absoluta. A introdução de Rai­
ner Warning à sua coletânea Rezeptionziisthetik (I975) é a respeito preciosa,
3 No seu "Discours de l'utilité et des parries du poeme dramatique" (1660),
Corneille avança relativamente sobre sua época ao propor uma norma acolhida em
função de sua vantagem para o dramaturgo: "[... ] Il est impossible de plaire selon les
regles, quíl ne s'y rencontre beaucoup d'utilité", em Oeuvres completes, André Steg­
mann (Org.). Seuil, Paris, 1963. (A utilidade teria a vantagem de, sem desrespeitar o
princípio normativo, reunir os interesses do público e do dramaturgo.)
16
ao acentuar o papel precursor do estruturalismo de Praga, sob as figuras de
Mukafovsky e Vodicka. É justo supor que Jauss então não os referisse por­
que tanto os Kapitei aur der Asthetik do primeiro, como Die Struktur der li­
terarischen Entiwiclung de FelixVodicka só posteriormente foram traduzidos
para o alemão (respectivamente em 1970 e 1976). O prejuízo causado por
escreverem em uma língua de pequena circulação como o tcheco foi sufi­
ciente para que antes não fosse notada a convergência ocasional do desdo­
bramento do formalismo russo e a recente reflexão alemã. VIStaa272 ss.
100
"'j-.
'J'formativo da relação autor-texto-Ieitor, pelo qual o pré-dado não é mais visto
como um objeto de representação, mas sim como o material a partir do qual
algo novo é modelado. O novo produto, entretanto, não é predeterminado pe­
los traços, funções e estruturas do material referido e contido no texto.
Razões históricas explicam a mudança em foco. Sistemas fechados, c0­
mo o cosmos do pensamento grego ou da imagem de mundo medieval, prio­
rizavam a representação como mímesis por considerarem que todo o existen­
te - mesmo que se esquivasse à percepção - deveria ser traduzido em algo
tangíveL Quando, no entanto, o sistema fechado é perfurado e substituído
por um sistema aberto, o componente mimético da representação declina e o
aspecto performativo assume o primeiro plano. O processo então não mais
105
implica vir aquém das aparências para captar um mundo inteligível, no sen­
tido platônico, mas se converte em um "modo de criação de mundo" ("way
ofworld-makinl)· Se aquilo que o texto realiza tivesse de ser equiparado com
a feitura de mundo, surgiria a questão se ainda se poderia continuar a fular em
"representação". O conceito podia ser mantido apenas se os próprios "modos
de criação de mundo" se tornassem o objeto referencial para a representação.
Neste caso, o componente performativo teria de ser concebido como o pré­
dado do ato performativo. Independente de se isso poderia ou não ser consi­
derado tautológico, permanece o fato de que provocaria uma quantidade de
problemas de que este ensaio não pretende tratar. Há, contudo, uma inferên­
cia altamente relevante para a minha discussão: o que tem sido chamado o
"fim da representação" 1 pode, afinal de contas, ser menos a descrição do es­
tado histórico das artes do que a articulação de dúvidas quanto à habilidade
da representação como conceito capaz de capturar o que, de fato, sucede na
arte ou na literatura.
Isso não equivale a negar que a relação autor-texto-Ieitor contém um am­
plo número de elementos extratextuais que entram no processo, mas são ape­
nas componentes materiais do que sucede no texto e não representados um a
um. Parece portanto justo dizer que a representação, no sentido em que vie­
mos a compreendê-Ia, não pode abarcar a operação performativa do texto co­
mo uma forma de evento. Com efeito, é importante notar que não há teorias
definidas da representação que de futo fixem as condições necessárias para a
produção da mÍffiesis.
Entre as raras exceções está a idéia de representação de Gombrich: ele
fragmentou a noção recebida em fases claramente distintas de um processo,
que começa com a interação entre o pintor e os esquemas herdados, seguido
pela correção destes na pintura e culmina com a atividade de deciframento pe­
lo espectador, cuja leitura dos esquemas corrigidos leva o objeto da representa­
ção à fruição.2
1 Cf. Michel Foucault, The Order o/thing;. An arcaeology o/ the human sciences, Londres,
Tavistock, 1970, p. 217-49 e Jacques Derrida, Writing and difJerence, trad. de Alan Bass, Londres,
Routledge and Kegan Paul, 1978, especialmenre o ensaio sobre Artaud. Para uma exploração mi­
nuciosa da questão, cf. Gabrielle Schwab, Samuel Beckett Endspiel mit der Subjetivitdt: Entwuif
einer Psychoiisthetik des modernen Theatm, Stuttgart, J. B. Metzler, 1981, p. 14-34.
2 E. H. Gombrich, Art and illusion: A study in the psychology o/pietorial representation,
Londres, Phaidon Press, 1962, especialmenre p. 154-244.
106
O presente ensaio é uma tentativa de dispor o conceito de jogo sobre a
representação, enquanto conceito capaz de cobrir todas as operações levadas
a cabo no processo textual. Ele apresenta duas vantagens heurísticas: 1. o jo­
go não se ocupa do que poderia significar; 2. o jogo não tem de retratar nada
fora de si próprio. Ele permite que a inter-relação autor-texto-Ieitor seja con­
cebida como uma dinâmica que conduz a um resultado final.
Os autores jogam com os leitores3 e o texto é o campo do jogo. O pró­
prio texto é o resultado de um ato intencional pelo qual um autor se refere e in­
tervém em um mundo existente, mas, conquanto o ato seja intencional, visa a
algo que ainda não é acessível à consciência. Assim o texto é composto por um
mundo que ainda há de ser identificado e que é esboçado de modo a incitar o
leitor a imaginá-Io e, por fim, a interpretá-Ia. Essa dupla operação de imaginar
e interpretar faz com que o leitor se empenhe na tarefa de visualizar as muitas
formas possíveis do mundo identificável, de modo que, inevitavelmente, o
mundo repetido no texto começa a sofrer modificações. Pois não importa que
novas formas o leitor traz à vida: todas elas transgridem - e, daí, modificam
- o mundo referencial contido no texto. Ora, como o texto é ficcional, auto­
maticamente invoca a convenção de um contrato entre autor e leitor, indicador
de que o mundo textual há de ser concebido, não como realidade, mas como se
fosse realidade. Assim o que quer que seja repetido no texto não visa a denotar
o mundo mas apenas um mundo encenado. Este pode repetir uma realidade
identificável, mas contém uma diferença decisiva: o que sucede dentro dele não
tem as conseqüências inerentes ao mundo real referido. Assim, ao se expor a si
mesma a ficcionalidade, assinala que tudo é tão-só de ser considerado como se
fosse o que parece ser; noutras palavras, ser tomado como jogo.
O mundo repetido no texto é obviamente diferente daquele a que se re­
fere, quando nada porque, como repetição, deve diferir de sua existência extra-­
textual- o que vale para todos os tipos de discurso, textual ou não - por­
quanto nenhuma descrição pode ser aquilo que descreve. Há, por conseguinte,
vários níveis de diferença que ocorrem simultaneamente no texto:
1. Extratextualmente:
a. Entre o autor e o mundo em que ele intervém.
3 Peter Hutchinson, Cames authors play, Londres, Methuen, 1983, fornece um catá­
logo dos vários jogos executados em textos literários.
107
b. Entre o texto e um mundo extratextual, assim como entre o tex­
to e outros textos.
2. Intratextualmente:
a. Entre os itens selecionados a partir de sistemas extratextuais.
b. Entre constelações semânticas construídas no texto.
3. Entre texto e leitor:
a. Entre as atitudes naturais do leitor (postas agora entre parênte­
ses) e aquelas que se lhe exige adotar.
b. Entre o que é denotado pelo mundo repetido no texto e o que
essa denotação - agora a servir como um análogo que guia _
pretende transgredir.
Os níveis de diferença são bastante distintos mas todos eles constituem o
espaço vazio do texto, que põe o jogo em movimento.
O movimento é o do jogo por três diferentes aspectos:
1. Em cada nível, posições diferenciáveis são confrontadas entre si.
2. A confrontação provoca um movimento de ida e vinda que é bási­
co para o jogo e a diferença resultante precisa ser erradicada para
que alcance um resultado.
3. O movimento contínuo entre as posições revela seus aspectos mui­
to diferentes e como cada um traspassa o outro, de tal modo que
as próprias várias posições são por fim transformadas. Cada uma
dessas diferenças abre espaço para o jogo e, daí, para a transforma­
ção, que, mesmo no estágio preliminar de meu argumento, pare­
ceria descreditar a noção tradicional de representação.
Os jogos visam a resultados e, se as diferenças não são transpostas ou
mesmo removidas, o jogo chega ao fim. O resultado do jogo textual, no en­
tanto, pode ser altamente redutivo, pois os lances do jogo fragmentam as po­
sições em uma multiplicidade de aspectos. Se consideramos ser o significado
o resultado do jogo textual, então este só pode provir da suspensão do movi­
mento do jogo que, com alta freqüência, envolve a tomada de decisões. Mas
qualquer decisão eclipsará inúmeros aspectos provocados pela mudança e in­
teração constantes e, daí, pela reiteração variada de posições do jogo, de mo­
do que este, por si mesmo, se contrapõe a chegar ao fim.
108
Ressalta-se assim a dualidade do jogo. Ele se dirige a ganhar alguma coi­sa, daí a se encerrar, ao mesmo tempo que remove a diferença. Mas também
se contrapõe à remoção da diferença e supera seus feitos de maneira a resta­
belecer sua própria liberdade como um movimento sempre descentrante. Em
suma, o jogo preserva a diferença que procura erradicar.
Estes traços mutuamente excludentes se entremesclam e assim conver­
tem o significado do texto em uma espécie de "suplemento". A multiplicidade
de diferenças que ocasionam o jogo e que também resultam dele nunca pode
ser totalmente removida mas pode, de fato, aumentar com as tentativas de er­
radicá-Ia. Em conseqüência, o "suplemento" deriva não só do ganhar no jogo
(isto é, do estabelecimento do significado) mas também, e ao mesmo tempo,
a partir do jogo livre - pois o próprio jogo livre permaneceria inapreensível
se não tivesse alguma forma de manifestação. Se o "suplemento" é o produto
desses traços contrapostos, podemos extrair duas conclusões: 1. O "suplemen­
to", como o significado do texto, é engendrado através do jogo e, portanto, não
há um significado prévio ao jogo. 2. A geração do "suplemento" através do jo­
go admite diferentes desempenhos por diferentes leitores no ato de recepção
- e isso mesmo na medida que pode ser jogado ou para que se alcance a vi­
tória (o estabelecimento do significado) ou para que se mantenha o jogo livre
(a conservação em aberto do significado).
Esta dualidade do jogo - remover e manter a diferença - desafia uma
conceitualização mais avançada. Ela não pode ser fenomenologicamente re­
duzida por reconduzi-Ia a uma causa subjacente. Mesmo teorias unilaterais do
jogo como a de Huizinga afirmam que o jogo precede todas as suas possíveis
explicações.4 Por isso o jogo do texto só pode ser avaliado em termos de suas
possibilidades, por meio das estratégias empregadas no jogo e pelos jogos de
fato realizados no texto.
Como o espaço entre autor e leitor, o texto literário pode ser descrito em
três níveis diversos: o estrutural, o funcional, o interpretativo.Uma descrição
estrutural visará mapear o espaço; a funcional procurará explicar sua meta e a
interpretativa perguntar-se-á por que jogamos e por que precisamos jogar.
Uma resposta à última questão só pode ser interpretativa pois que o jogo, apa-
4 Johan Huizinga, Homo ludens. 110m Ursprung der Kultur im Spie4 Hamburgo, Ro­
woWt, 1956, p. 9-14.
109
r
rentemente, é fundado em nossa constituição antropológica e pode, com efei-;I nificante fraturado ao bloqueá-Io com um significado.Se o significadodo texto,
to, nos ajudar a captar o que somos. ~ no entanto, não é inerente mas é atribuído e alcançado apenaspor meio do mo--
Devemos agora detalhar melhor os três diversos níveis. Primeiro, o da f' vimento de jogo, então o significadoé um meta-enunciado acercade enunciados
estrutura. Focaliza-seaqui o contramovimento como o traço básico do jogo. ou mesmo uma metacomunicação acercado que se supõe ser comunicado (isto
O modo operacional do contramovimento converte o texto de um ato mi- é, uma experiênciapor meio do texto).
mético em um ato performativo. Ele se manifesta por criar o que poderíamos Outro espaço de jogo básico no texto é aberto pelo esquema. Um es-
chamar os espaços do texto, que, deve ser lembrado, tanto repete como inclui quema, como Piaget afirma em sua teoria do jogo, é o produto de nosso cons-
os mundos extratextuais cujo retorno é indicativo de uma diferença. Nas pa- tante empenho em nos adaptarmos ao mundo em que estamos.6 Sob este as-
lavrasde Gregory Bateson, é "uma diferença que fazdiferença"5- pois gran- pecto, ele não é dessemelhante da imitação, porquanto é motivado pelo
des diferenças derivam da diferença inicial entre os componentes do texto. A desejo de sobrepujar a diferença que marca nossa relação com o mundo. An-
diferença, como vimos, provoca o movimento para diante e para trás, que tes de tudo, é a percepção que tem de exercitar essesesquemas de adaptação.
abre os espaços do jogo entre as posições que separa. Uma vez que estes esquemas tenham sido formados, o primeiro passo
O menor espaço de jogo é produzido pelo significante fraturado, que vital para eles está em serem internalizados, de modo que possam funcionar
perde sua função designante de modo a poder ser usado figurativamente, por subconscientemente. Isso significa que tendem a se tomar ritualizados de um
efeito da indicação ficcional do texto, segundo a qual o que é dito há de ser modo ou de outro e, quando issosucede, separam-se dos próprios objetos que
tomado como se pretendesse o que disse. O significante, portanto, denota al- deram origem à sua formação. As convenções da arte não são senão conjun-
go mas, ao mesmo tempo, nega seu uso denotativo, sem que abandone o que tos de tais esquemas, que facilmente se prestam a novos usos, sobretudo quan-
designava na primeira instância. Se o significante significa algo e simultane- do tenham sido separados do mundo de objetos.
manete indica que não significa aquilo, funciona como um análogo para a Em vez de facilitar a adaptação ao mundo fisico,os esquemas podem ser
figuração de algo mais que ajuda a esboçar. Se o que é denotado é transfor- usados para moldar coisas doutro modo inapreensíveis ou de que queremos
mado em análogo tanto do ocasionar como do formar uma atividade-que- dispor dentro de nossas condições. Assim como os esquemas nos capacitam a
mostra, então algo ausente é dotado de presença, embora aquilo que está au- nos acomodarmos a objetos, assim também nos concedem assimilar objetos
sente não possa ser idêntico ao análogo que favorecia ser concebido. Assim de acordo com nossas próprias inclinações. Quando ocorre essa inversão,
o significante fraturado - simultaneamente denotativo e figurativo _ in- abre-se o espaço do jogo. O esquema é dissociado de sua função de acomo-
voca alguma coisa que não é pré-dada pelo texto mas engendrado por ele, dação e, ao se tornar subserviente à função assimilativa, permite que tudo que
que habilita o leitor a dotá-Io de uma forma tangível. é retido de nós venha a ser encenado como presente e manejável. Esse proces-
Assimo movimento do jogo converteo significantefraturado em uma ma- so se mostra imediatamente evidente no jogo da criança. O movimento do
triz para o duplo significado,que se manifesta no análogo como interpenetração jogo sucede quando o esquema deixa de funcionar como uma forma de aco-
mútua das funçõesdenotativa e figurativa.Em termos do texto, o análogo é um modação e, em vez de tomar sua forma do objeto a ser imitado, impõe uma
"suplemento";em termos do receptor,é a pauta que o habilita a conceber o que forma sobre aquilo que está ausente. Noutras palavras, o esquema de acomo-
o textoesboça.Mas, no momento em que issose torna concebível,o receptor ten- dação copia o objeto, ao passo que o esquema de assimilação modela o obje-
ta atribuir significaçãoao "suplemento"e todas as vezesque issosuceda o texto é to de acordo com as necessidades individuais. O jogo, portanto, começa
traduzido nos termos à disposiçãodo leitor individual,que encerra o jogo do sig- quando a assimilação desloca a acomodação no uso dos equemas e quando o
p.315.
5 Gregory Bareson, 5teps to an eeologyo/ the mind, San Francisco, Chandler, 1972,
110
6 Jean Piager, Naehahmung. Spiel und Traum, Gesammelte Werke, nº 5, (Trad. Leo
Monrada, Srurtgan, Ernst Kletr, 1975, p. 178-216.
111
esquema se converte em uma projeção de maneira a incorporar o mundo em
um livro e cartografá-Io de acordo com as condições humanas.
Um traço notável do uso assimilativo dos esquemas está em que eles se
tornam sujeitos à desfiguração. Isso realça a mudança em sua função, bem co­
mo a diferença em sua aplicação. É uma dualidade inerente a todos os esque­
mas textuais, em que a função original do esquema passa a segundo plano,
embora mantenha sua forma e, em ve:zde imitar algo, serve para representar
o irrepresentável.
A este respeito, o esquema invertido apresenta uma estreita semelhança
com o significante fraturado. Ambos formam espaço de jogo do texto e põem
ojogo em movimento. E, em ambos os casos, uma função básica é transfor­
mada em meio para algo mais: com o significante, a função denotativa se
transforma no meio para a figuração e, com o esquema, a função de acomo­
dação se torna o meio para a modelagem do sem traços. As funções originais,
contudo, nunca são totalmente suspensas e há, assim, uma oscilação contínua
entre denotação e figuração, e entre acomodação e assimilação. Essa oscilação
ou movimento de ida e vinda é básico para o jogo e permite a coexistência do
mutuamente exclusivo. Também converte o texto em uma matriz geradora
para a produção de algo novo. Força o leitor a realizar os jogos do texto e ter­
minar o jogo ao alcançar o que considera ser seu significado. Na análise final,
a oscilação é uma modelagem do jogo livre - que pode ser um traço da na­
turexa ou mesmo da nature:za humana mas que não o é do texto. A oscilação,
no entanto, também pode restringir o jogo livre. Isso é evidente quando ve­
mos como as estratégias do texto reestruturam a maneira como é executada a
dualidade respectiva do significante fraturado e do esquema invertido.
Há quatro estratégias fundamentais, cada uma das quais permite um ti­
po diferente de jogo. São eles agon,alea, mimicry (mimetismo) e ilinx. A mes­
cla de termos gregos e latino pode ser irritante, mas as expressões se tornaram
termos padrões na teoria dos jogos desde Caillois.7
Explico primeiramente os termos e os tipos de jogos que abrangem
de modo a verificar os padrões de jogo que organizam:
7 Roger Cai1Jois,Man, play, and games, trad. de Meyer Barash, New York, Free Play
of Glencoe, 1966, p. viii.
112
1. Agon é uma luta ou debate e é o padrão comum de jogo quando o
texto se centra em normas e valores conflitivos. O debate envolve
uma decisão a ser tomada pelo leitor em relação a estes valores con­
trários, que se mostram internamente em colisão.
2. Alea é um padrão de jogo baseado na sorte e na imprevisibilidade.
Sua proposta básica é a desfamiliarização, que é alcançada pela es­
tocagem e condensação de diferentes textos, assim despojando de
significado os seus segmentos respectivos e identificáveis. Pela sub­
versão da semântica familiar, ele' atinge o até então inconcebível e
frustra as expectativas guiadas pela convenção do leitor.
3. Mimicry 8 é um padrão de jogo designado para engendrar ilusão.
O que quer que seja denotado pelo significante ou prenunciado
pelos esquemas deveria ser tomado como se fosse o que diz. Há
duas razões para isso: (a) quanto mais perfeita é a ilusão, tanto
mais real parece o mundo que pinta; (b) se, no entanto, a ilusão é
perfurada e assim se revela o que é, o mundo que ele pinta se con­
verte em um espelho que permite que o mundo referencial fora do
texto seja observado.
4. Ilinx é um padrão de jogo em que as várias posições são subverti­
das, recortadas, canceladas ou mesmo carnavalizadas, como se fos­
sem lançadas umas contra as outras. VISa fazer ressaltar o ponto de
vista dos fundos das posições assumidas no jogo.
Embora essas estratégias admitam a realização de jogos diversos, é fre­
qüente que se liguem como modos mistos. Por exemplo, se ilinx joga contra
ou é combinado com agon, pode haver dois tipos possíveis de jogo: ilinx do­
mina, neste caso o debate entre normas e valores se torna ilusório ou domina
agon e então o debate se torna mais diferenciado. Essas estratégias podem ser
mesmo invertidas, jogando contra suas intenções subjacentes. Por exemplo,
agon parece se dirigir à vitória no jogo, mas, na literatura pós-moderna, é fre­
qüentemente usado para um jogo em que se perde. Isso pode implicar que to-
8 Como o próprio CailJois explicava, "mimicry [... ] nomeia em inglês o mimerismo,
sobretudo dos insetos, a fim de sublinhar a natureza fundamental e elementar, quase orgânica,
da impulsão que suscita estas manifestações", Roger Caillois, Les Jeu>:et les hommes, Paris, Gal­
limard, 1958 (ed. revista e ampliada em 1967), p. 61 (N. T.)
113
dos os conflitos de normas e valores sejam deliberamente marcados como coi­
sas do passado, assim expondo a natureza fechada dos sistemas que deram a
eles função e validade. Pode também mostrar que todas as formas de signifi­
cado não passam de mecanismos de defesa destinados a conseguir o fecha­
mento em um mundo em que reina a abertura, a falta de conclusão.
Essas quatro estratégias de jogo podem ser combinadas dos mais varia­
dos modos e todas as vezes que são combinadas cada uma assume um papel
particular. Todos os papéis - como temos de nos lembrar - se caracterizam
por uma duplicidade intrínseca: representam algo que visam projetar e, con­
tudo, simultanemanente carecem de controle total sobre a meta intenciona­
da. Deste modo sempre há um elemento no papel de jogo que escapa do do­
mínio do jogador.9 Isso se aplica igualmente aos padrões de jogo acima
esboçados quando se tornam papéis. Assim o jogo pode ser realizado seja pa­
ra ampliar, seja para restringir o grau de incontrolabilidade.
Ora, qualquer tipo de jogo que resulta em aceitar-se a duplicidade do
papel de jogo será sempre governado por dois diferentes conjuntos de regras.
Na teoria dos jogos, são chamadas regras comervadoras e regras dissipativas.lO
Com r~lação ao texto, podem ser chamadas reguladoras (que funcionam de
acordo com as convenções estabilizadas) e aleatónas (que liberam o que tenha
sido restringido pelas convenções). As regras aleatórias se aplicam ao que não
pode ser controlado pelo papel em questão, enquanto as reguladoras organi­
zam o que o papel representa em termos de relações hierárquicas, causais, sub­
servientes ou de apoio. As regras aletórias liberam o que as regras reguladoras
amarraram e, assim, dão acesso ao jogo livre dentro de um jogo doutro mo­
do restrito.
Resumo a descrição estrutural apresentada até aqui: o significante fratura­
do e os esquemas invertidos abrem o espaço do jogo do texto. O movimento
para trás e para diante é dirigido por quatro estratégias básicas de jogo: agon,
alea, mimicry e ilinx. Essas, de sua pane, podem ser submetidas a inúmeras
combinações, que, daí, se convertem em papéis. Os papéis são bifaces, com uma
representação inevitavelmente escapando por sombreamentos incontroláveis.
9 Irving Goffinan, The Presentantion ofselfin everyday lije, Garden City, New York,
Doubleday, 1959, p. 855, 141·66.
10 Manfred Eigen e Ruthhild Winkler, Das Spiel. Naturgesetze steuern den Zufall, Mu­
nique, R. Piper, 1985, p. 87·121.
114
Os jogos resultantes de papéis podem ser produzidos de acordo com regras re­
guladoras, que fazem o jogo basicamente conservador, ou de acordo com regras
aleatórias, que o fazem basicamente inovador.
Todos estes traços estruturais fornecem uma armação para o jogo. Assi­
nalam tanto os limites e as áreas livres de jogo, assim representando as pré­
condições para "suplementos" - na forma de significado -, assim como pa­
ra que esses "suplementos" sejam ludicamnente desfeitos. Há assim um
movimento de contrabalanço em que o jogo se empenha por um resultado e
o jogo livre rompe com qualquer resultado alcançado.
Os traços estruturais, contudo, assumem significação apenas em relação
à função que se pretendeu ser realizada pelo jogo do texto. Em virtude de que
o jogo se empenha por algo, mas também desfaz o que alcança, continuamen­
te o jogo produz diferença. A diferença, de sua parte, pode-se manifestar tão­
só pelo jogo, pois que tão-só o jogo torna concebível a alteridade ausente que
jaz do outro lado de todas as posições. Assim o jogo do texto não é nem ga­
nho, nem perda, mas sim um processo de transformação das posições, que dá
uma presença dinâmica à ausência e alteridade da diferença. Em conseqüên­
cia, aquilo que o texto atinge não é algo pré-dado, mas uma transformação
do material pré-dado que contém. Se o texto acentua a transformação, é ele
obrigado a ter uma estrutura de jogo, pois doutro modo a transformação te­
ria de ser subsumida a uma armação cognitiva, com a destruição desua pró­
pria natureza. Se a noção de representação tivesse de ser mantida, ter-se-ia de
dizer que o texto "representà' o jogo, à medida que explica o processo indivi­
dual de transformação como está em curso no texto.
Este processo de transformação é comum ao texto literário e se desdo­
bra por todas as fases interconectadas que esboçamos até agora - do signifi­
cante fraturado, através dos esquemas invertidos e os papéis estratégicos de
agon, alea, mimicry e ilinx, até a interferência mútua das regras reguladoras e
aleatórias. Ainda que, por motivos analíticos, tenha separado estas fases, de fa­
to elas se superpõem e inter-relacionam e por elas podemos observar a trans­
formação, por assim dizer, em câmera lenta, tornando perceptível um proces­
so de outro modo seria intangível.
Mas a tranSformação chega à plena fruição pela participação imaginativa
do receptor nos jogos realizados, pois a transformação é apenas um meio para
um fim e não um fim em si mesmo. Quanto mais o leitor é atraído pelos pro­
cedimentos a jogar os jogos do texto, tanto mais é ele também jogado pelo tex-
115
to. Assim novos traços de jogo emergem - ele assegura certos papéis ao leitor
e, para fazê-Io, deve ter claramente a presença potencial do receptor como uma
de suas partes componentes. O jogo do texto, portanto, é uma peifõrmance pa­
ra um suposto auditório e, como tal, não é idêntico a um jogo cumprido na
vida comum, mas, na verdade, um jogo que se encena para o leitor, a quem é
dado um papel que o habilita a realizar o cenário apresentado.
O jogo encenado do texto não se desdobra, portanto, como um espetá­
culo que o leitor meramente observa, mas é tanto um evento em processo co­
mo um acontecimento para o leitor, provocando seu envolvimento direto nos
procedimentos e na encenação. Pois o jogo do texto pode ser cumprido indi­
vidualmente por cada leitor, que, ao realizá-Io de seu modo, produz um "su­
plemento" individual, que considera ser o significado do texto. O significado
é um "suplemento" porque prende o processo ininterrupto de transformação
e é adicional ao texto, sem jamais ser autenticado por ele.
Dentro desta ordem de consideração, algo importante há de ser revelado
pelo jogo textual. Como um meio de transformação, o jogo não só socava a
posição apresentada no texto; faz o mesmo com o status daquilo que a trans­
formação converteu de ausência em presença, isto é, o "suplemento" que o lei­
tor acrescentou ao texto. Mas a escavação, mesmo que pareça negativa, é de fa­
to altamente produtiva, pois ocasiona a transformação e gera "suplementos".
Donde essa operação, movida pela negatividade, é basicamente uma estrutura
capacitadora. A negatividade está, portanto, longe do negativo em seus efeitos,
pois metamorfoseia a ausência em presença, mas, por continuamente subver­
ter aquela presença, a converte em condutora para a ausência de que, de outra
maneira, nada saberíamos. Através dessas mudanças constantes, o jogo do tex­
to usa a negatividade de um modo que sintetiza a inter-relação entre ausência
e presença. E aqui está a unicidade do jogo - ele produz e, ao mesmo tempo,
possibilita que o processo de produção seja observado. O leitor é, então, apa­
nhado em uma duplicidade inexorável: está envolto em uma ilusão e, simulta­
neamente, está consciente de que é uma ilusão. É por essa oscilação incessante
entre a ilusão fechada e a ilusão seccionada que a transformação efetivada pe­
lo jogo do texto se faz a si mesmo sentir pelo leitor.
A trasformação, de sua parte, parece encaminhar a alguma meta a ser
cumprida pelo leitor e, assim, o jogo do texto pode ser concluído de vários
modos: um deles é em termos de semântica. Neste caso, é dominante nossa
necessidade de compreensão e nossa premência de nos apropriarmos das ex-
116
r
periências que nos são dadas. Isso poderia mesmo indicar um mecanismo de
defesa em operação dentro de nós mesmos, como a busca de significado po­
de ser nosso meio de nos desviarmos do não-familiar.
Outro modo como podemos jogar o texto consiste na obtenção de ex­
periência. Então nos abrimos para o não-familiar e nos preparamos para que
nossos próprios valores sejam influenciados ou mesmo modificados por ele.
Um terceiro modo de jogo é o do prazer. Damos então precedência
ao deleite derivado do exercício incomum de nossas faculdades, que nos
capacita a nos tornarmos presentes a nós mesmos. Cada uma dessas opções
representa uma tendência de acordo com a qual o jogo do texto pode ser
realizado.
Chego agora ao ponto final: que é o jogo e por que jogamos? Qualquer
resposta a esta questão fundamental será uma interpretação de natureza hipo­
tética. Em termos filogenéticos, o jogo, no reino animal, começa quando se
expande o espaço do hábitat. A princípio, parece ser uma atividade que tem
seu fim em si mesma, explorando os limites do possível, em vista do fato de
que tudo é agora possível. Mas também podemos vê-Io como uma suposta
ação ou como uma experiência que prepara o animal para enrrentar o impre­
visível por vir. Quanto mais se expande o território do animal, tanto mais im­
portante e, certas vezes, mais deliberado se torna o jogo como um meio de
preparação para a sobrevivência.
Em termos ontogenéticos, há de se observar uma distinção, no jogo da
criança, entre percepção e significado. Quando uma criança monta em um
cavalo-de-pau, sua ação mental é bastante distinta daquilo que de fato perce­
be. Naturalmente, não percebe um cavalo real e, assim, o jogo consiste em de­
compor o objeto (cavalo) e o significado daquele objeto no mundo real. Sua
ação é, portanto, uma ação em que um significado desfamiliarizado é repre­
sentado em uma situação real.
Estes dois exemplos de jogo têm em comum uma forma de encenação.
Mas em nenhum dos casos a encenação é levada a cabo para seu próprio fim.
No reino animal, ela serve para antecipar e preparar futuras ações; no jogo in­
fantil, permite que limitações reais sejam ultrapassadas. A encenação, portan­
to, é basicamente um meio de transpor fronteiras e isso é igualmente verdadei­
ro para o jogo do texto, que encena uma transformação e, ao mesmo tempo,
revela como se faz a encenação. Essa dualidade deriva amplamente do fato de
que, aqui, a transformação não tem uma meta pragmática: não converte uma
117
coisa em outra. Ela é antes uma finalidade que só pode ser propriamente cum­
prida se se exibem seus preparativos.
Qual a natureza dessa finalidade? A transfOrmação é um caminho de aces­
so para o inacessível, mas a transformação encenada não só torna acessível o ina­
cessível. Seu alcance talvez seja mais prazenteiro. Concede-nos ter coisas de dois
modos: por tornar aquilo que é inacessível tanto presente como ausente. A pre­
sença acontece por meio da transformação encenada e a ausência pelo fato de
que a transformação encenada é tão-só jogo. Daí que cada ausência apresenta­
da é qualificada pelo aviso de que é apenas encenada na forma do faz-de-conta,
pelo qual podemos conceber o que doutro modo escaparia de nossa apreensão.
Aí está a façanha extraordinária do jogo, pois parece satisfazer necessidades tan­
to epistemológicas como antropológicas. Epistemologicamente falando, im­
pregna a presença com uma ausência esboçada pela negação de qualquer auten­
ticidade quanto aos resultados possíveis do jogo. Antropologicamente falando,
nos concede conceber aquilo que nos é recusado. É interessante notar que as
perspectivas epistemológica e antropológica não entram em conflito, mesmo se
pareçam caminhar uma contra a outra. Se houvesse um choque, o jogo se des­
faria, mas como não há a irreconciliabilidade de fato revela-se algo de nossa pró­
pria constituição humana. Por nos conceder ter a ausência como presença, o jo­
go se converte em um meio pelo qual podemos nos estender a nós mesmos.
Essa extensão é um traço básico e sempre fascinante da literatura. Inevitavel­
mente, se põe a questão por que dela necessitamos. A resposta a esta pergunta
poderia ser o pontode partida para uma antropologia literária.
118
IV
QUE SIGNIFICA A RECEPÇÃO
DOS TEXTOS FICCIONAIS?
KARLHEINZ STIERLE
1.
o ponto de vista da recepção, das formas de apropriação da literatura por
seus leitores tem ultimamente motivado um novo interesse pela história da lite­
ratura. A recepção tornou-se o problema fundamental da reflexão da literatura
desde que Hans Robert Jauss, em sua lição inaugural na Universidade de Kons­
tanz, em 1967, exigiu a renovação da história da literatura, dando a prioridade
analítica ao aspecto da recepção sobre os da produção e da representação (Dars­
teflung). Jauss o fez contrapondo-se, de um lado, à reflexão formalista e estrutu­
ralista, interessada apenas pela estruturação imanente, "verbal", do texto e que
compreendia a produção, fundamentalmente, como organização de estruturas e,
do outro, à estética marxista da representação, que tomava apenas o "reflexo" c0­
mo a tarefa legítima da literatura. Contra cada urna destas reduções A (Vereindeu­
tigung) apressadas da obra literária, a estética da recepção contrapunha a concep­
ção da abertUra do horizonte de significação da literatura e da contribuição
iniludível do receptor, que, antes de mais nada, realiza e articula esta abertUra. À
medida que se estabelecia o papel próprio da recepção, não considerado quer pe­
lo formalismo e estruturalismo, quer pelo marxismo, a literatura, especialmente
a do passado, passou a se mostrar sob uma nova luz. Possibilitou-se a regiões fun­
damentais da história da comunicação literária - que até então constituíam um
terreno confinado à sociologia da literatura - urna nova, se não a primeira, en­
trada metódica e faetual na área da Literaturwissenschaji B (ciência da literatura).
As pressuposições materiais, formais e ideológicas, a organização da recepção li-
119
terma e suas instituições foram reconsideradas como momentos decisivos da "vi­
da literárià'. No entanto, a história de tais condições possibilitadoras da recepção
literária ainda está além da compreensão e da penetração do próprio ato da re­
cepção literária. Em Jauss, a recepção é sempre o momento de lUll processo de
recepção, que se inicia pelo "horizonte de expectativa" de lUll primeiro público e
que, a partir daí, prossegue no movimento de lUlla "lógica hermenêutica de per­
gunta e resposta,"l que relaciona a posição do primeiro receptor com os seguin­
tes e assim resgata o potencial de significado da obra, na continuação do diálogo
com ela. O significado da obra literária é apreensível não pela análise isolada da
obra, nem pela relação da obra com a realidade, mas tão-só pela análise do pro­
cesso de recepção, em que a obra se expõe, por assim dizer, na multiplicidade de
seus aspectos. Se esta abordagem se presta a revelar, nos grandes paradigmas do
cânone literário, os conceitos mutáveis condutores da recepção e a conexão argu­
mentativa. "dia!ógica" deles entre si e deles com a obra, torna-se possível antes
lUlla história da intetpretação da recepção do que lUlla história da recepção. A
teoria da recepção assim se concretiza como lUlla teoria dos pontos de vista rele­
vantes da recepção e de história; e assim, iguaImente, como uma teoria de sua
justificação. A legitimidade estética do julgamento pessoal, mesmo do que só se
formulou lUlla vez, se torna segura de si mesma apenas em fàce de lUll processo
de formação do julgamento. Mas a pergunta sobre as estruturas possibilitadoras
da recepção - transcendentes à própria obra - assim como a pergunta sobre
sua legimitidade estética - a que se pode responder apenas no processo dialógi­
co de uma formação consensuaI e nunca de modo definitivo - deixam em aber­
to a questão daquelas estruturas de recepção, relativamente estáveis, que fundam
a própria possibilidade da obra, às quais, ademais, se liga a identidade desta, no
processo de recepção. A estética da recepção, que até agora tem sido sobretudo
uma estética de tipo materiaI, precisa ser complementada por lUlla teoria formal
(não formalista!) da recepção. As reflexões seguintes buscam daborar alguns pon­
tos de vista de wna teoria formal da recepção, através da análise do próprio con­
ceito de recepção. Parece-me que os prolegômenos de uma tal teoria encontram­
se até hoje mais amplamente desenvolvidos na tradição da fenomenologia
1 "Racines und Goethes 1phigenie. Mit einem Nachwort über die Partialitiit der rezep­
cionsiisthetischen Methode" ("A Efigênia de Racine e de Goethe. Com o postacio sobre a par­
cialidade do método da estética da recepção"), in R Waming (Org.) Rezeptionsilsthetik. Theorie
undPmxís (A Estética da recepção. Teoria eprdtica) (UTB 303), München 1975, p. 353-400, pas_
sagem na p. 385.
120
,..
husserliana e, em sua feição estético-literária, nas obras de Roman Ingarden.
Quanto à pergunta específica sobre a recepção dos textos ficcionais, são assinaIá­
veis, para os fins deste trabalho, como as posições mais desenvolvidas, os ensaios
de Wolfgang Iser sobre "Der Lesevorgang" ("O processo da leiturà') e "Die Wlf­
klichkeit der Fiktiori' ("A realidade da ficção"),2 bem como a pesquisa de Johan­
nes Anderegg Fiktion und Knmmunikation (Ficção e comunicação). No decorrer
de nossas reflexões, nos referiremos com maiores detalhes aos trabalhos de Iser e
Anderegg, que interligam de modo peculiar os pontos de vista material e formal.3
O conceito de recepção pode-se referir a muitas atividades do "receptor".
O que Wittgenstein disse sobre "a diferença indizível dos jogos de linguagem
cotidianos" c, isto é, que deles não tomamos consciência, "pois a veste de nos­
sa linguagem a tudo nivelà',4 ainda vale especialmente para o que se entende
pelo conceito de recepção. A recepção abrange cada uma das atividades que se
desencadeia no receptor por meio do texto, desde a simples compreensão até a
diversidade das reações por ela provocadas - que incluem tanto o fechamento
de um livro, como o ato de decorá-lo, de copiá-Io, de presenteá-Ia, de escrever
uma crítica ou ainda o de pegar um papelão, transformá-Io em viseira e mon­
tar a cavalo ... Independente das múltiplas reações possíveis e não teorizáveis, há
uma conexão complexa das camadas instauradoras da recepção, que se oferecem
para a apreensão teórica. Descrever o ato da recepção significa, de imediato, di­
rerençar seus vários passos e apreender sua construção hierárquica. A medida
que se apresenta a hierarquia destes passos, possibilitados pelo próprio texto, tor­
na-se apreensível um potencial de recepção, que, no caso concreto, se atualiza
sempre de modo parcial, mas que constitui o horizonte para uma recepção sem­
pre mais abrangente. A tarefa de uma teoria formal da recepção deve ser formu­
lar este potencial recepcional, independente da sua atualização particular e con­
dicionada por interesses mutáveis. Ao lado da história da recepção das obras
isoladas, há, mesmo que não escrita, uma história do próprio potencial da re­
cepção como história da possibilidade da complexidade crescente da recepção.
O esclarecimento deste potencial recepcional, como tarefà de uma teoria formal
da recepção, pressupõe, desde logo, a distinção entre a recepção como constitui-
2 Os dois ensaios se encontram in Rezeptionsilsthetik. op. cit., p. 253-276 e 277-342.
3 Em Beitrag zur Theorie der Prosa (Contribuição à teoria da prosa) (Sammlung Vande­
nhoeck), Gõttingen, 1973.
4 L. Wittgenstein, Philosophísche Untersuchungen (Investigações filosóficas) (1958), re­
publicado in: L. w.: Schriften (Escritos), Frankfurt a. M. 1963, p. 534.
121
ção e a recepção como "processamento" do constituído. Em uma acepção mui­
to geral, a pergunta pela recepção como constituição é de ordem gnoseológica,
induindo-se no quadro da teoria do conhecimento do objeto cultural, cujos an­
tecedentes remontam a Giovanm Battista Vico. A sua forma atual como teoria
do signo voltada para a ação é, simultaneamente, o quadro de referência dentro
do qual pode ser colocada a pergunta pelos pressupostos do ato de recepção de
textose, especialmente, dos textos ficcionais.
A pergunta pela especificidade da recepção do texto ficcional é, antes de
tudo, a pergunta pela especificidade de sua constituição. Ao mesmo tempo, ade­
mais, ela afeta a competência metodológica da ciência da literatura, enquanto o
"processamento" nao é apreensível sem abordagens de tipo psicológico, socioló­
gico e crítico-ideológicoD. Contudo, antes que se possa tratar da recepção co­
mo constituição do texto 6ccional, é necessário voltar à recepção ingênua do
texto pragmático, entendida como a forma de recepção elementar e comum a
todos os textos. Com a passagem para o campo dos textos ficcionais, dever-se­
á discutir a recepção ingênua, aí também possível, que compreende o texto fic­
cional como quase pragmático e, assim, o toma como ilusão. Diante disso, de­
ve-se mostrar a possibilidade de wna recepção que surge das condições da
própria ficção. Se a ficção for interpretada como uma indicação para o cumpri­
mento de urna figura de relevânciaE, exigida por sua forma, daí decorrerá a per­
gunta sobre até que ponto o leitor porá em jogo o mnndo como horiwnte da
ficção e quais as conseqüências disso quanto a distância histórica entre o texto e
a recepção. Por fim, com a pergunta sobre o mundo como horizonte da ficção,
coloca-se a pergunta complementar sobre a função vital (febensweltlich) da fic­
ção, isto é, sobre a ficção como "horiwnte do mnndo".
2.
"No one can nnderstand poetry well whose mÍnd cannot take in the pro­
se of discussion and necessary business"5 ("Quem não possa entrar na prosa da
discussão e dos negócios necessários nao é capaz de bem compreender a poe­
sià'). Isso significa que, a respeito das camadas recepcionais elementares da
5 I. A. Richards: How to reM a page, London 1967, p. 16. O livro de Ivor A. Richards
contém uma série de observações penetrantes sobre o processo da leitura.
122
constituição, a recepção do texto pragmático não é simplesmente dissociável
da do texto ficcional. Para que se represente a hierarquia dos passos recepcio­
naisF em um texto de ficção, é, antes de mais nada, necessário analisarem-se os
passos recepcionais exigidos pelo texto pragmático. Pois só quando entende­
mos a recepção ingênua, na forma como se automatiza nos contextos cotidia­
nos da ação verbal, é que podemos passar para as formas mais complexas de
recepção, que, na verdade, já são possíveis no campo pragmático, mas só se tor­
nam necessárias no campo da ficção. Se, portanto, os passos recepcionais para
a apreensão de textos pragmáticos são o pressuposto necessário também para a
apreensão de textos ficcionais, não constituem, contudo, um pressuposto sufi­
ciente. Os passos recepcionais mais complexos, exigidos pelo texto ficcional, só
são apreensíveis sobre o fundo da recepção dos textos pragmáticos.
Partindo-se da idéia de que a base da recepção é constituída por uma se­
qüência de "significantes" e, ainda mais, da idéia de que um significante só é
significante quando a ele pertence um significado, conclui-se que a tradução
do significante no significado parece ser o passo mais elementar da recepção.
Pois o caso ideal de que um significante tenha um e apenas um significado,
conforme nos ensina qualquer dicionário, praticamente inexiste. Cada signifi­
cante evoca, de imediato, um horizonte de significados possíveis, dentro do
qual se há de descobrir o significado visado. Assim, a recepção elementar já im­
plica uma redução. Esta, no entanto, só é possível por meio de uma contextua­
lização, o que significa que, de cada significante e de seu significado, se passa a
um plano maior, que se revela nos significados que, por sua vez, se manifestam
pelos significantes dados. Só a contextualização assim estabelecida permite a re­
dução da quantidade dos significados de uma oração, que deste modo forma
uma significação frasal consistente. A significação frasal é uma hipótese, que se
erige sobre uma quantidade de significados correlacionados, que, por sua vez,
são projetados sobre a base material dos significantes. O núcleo do significado
frasal assim obtido é definível como estado de fato (Sachlage) 6 G. Na acepção
própria do termo, este estado de fato é o primeiro passo da recepção. Para a
6 Sobre a diferença entre 5tUhlage (estado de fato) e 5tUhverhalt (materialidade dos fu­
tos). Cf. do autor "Der Gebrauch der Negation in fiktionalen Texten" ("O emprego da negação
nos textos ficcionais"), in H. WeinrÍch (Org.): Positionen der Negativitiit (Posiçõesda negativida­
de) (Poetik und Hermeneutik, 6), München, 1975. p. 235-262. [também in: Text ais Handlung
(O texto como açiio) (UTB 423), München, 1975, p. 98-130)], espec. p. 236 ss.
123
constituição do estado de fato, no entanto, é necessária não s6 a atividade re­
dutora do leitor, como, ao mesmo tempo, uma atividade catalisadora, que OClr
pe os vazios (Leerstellen) H do estado de fato, verbalmente indiciados. O preen­
chimento dos vazios torna-se especialmente necessário onde o estado de fàto
constituído pelo texto é complexo, articulado por uma seqüência de estados de
fàtos. Neste processo, a posição do estado de fàto simples, com vista ao com­
plexo, deve ser sempre reajustada pelo leitor. Ao mesmo tempo, deve-se saltar
os vazios que se formam onde um estado de fàto conflna com outro, sem que
a pr6pria vizinhança seja tematizada.
Com a passagem do estado de fato elementar para o complexo, impõe­
se uma nova competência recepcional, que ultrapasse a tradução do signifi­
cante em significado, assim como a redução, a catálise e a contextualização.
Trata-se do enfoque do estado de fato visando à relação do tema com o hori­
zonte I. O estado de fàto, exposto pelo texto, não se oferece simplesmente de
uma maneira aperspectivística, mas se diferencia em si mesmo segundo rele­
vâncias temáticas. Para a compreensão desta competência recepcional é de
imponância decisiva a diferença introduzida por Husserl e desenvolvida por
Alfred Schütz entre horizontes interno e externo? O estado de fato do texto
é o seu tema, que tem um horizonte externo, na medida em que se refere a
tudo que no mundo é o caso K, mas permanece tematicamente não apreen­
dido. Ao mesmo tempo porém o pr6prio tema é horizonte de sua tematiza­
ção, isto é, horizonte de sua elaboração que se realiza por sucessivas articula­
ções. O que Husserl enuncia como Innenhorizont (horizonte interno) é esta
horizonticidade do pr6prio tema, com vista à sua tematização. A relação do
tema com o horizonte no texto, contudo, não é de modo algum limitada ao
estado de fàto complexo do texto, como horizonte interno dos estados de fà­
to nele constitlÚdos. Repete-se, ao contrário, a relação entre tema e horizon­
te no pr6prio texto, necessitando ela da atualização realizada pelo receptor.
Considerando-se a relação entre tema e horizonte e, desta maneira, a "figura
de relevâncià' do texto, a recepção como constituição é, de várias maneiras,
verbalmente orientada. Na pr6pria frase, esta orientação é desde logo realiza­
da pela organização sintática, instauradora da distância e da relevância. A es-
7 cr E. Husserl: Erfàhrung und Urtei! (Experiência ejulgamento), (Org. L. Landgre­
be, Hamburg, 1948, p. 28 ss. e A. Schütz: Das Probkm der Relevanz (O probkma da relevân­
cia), Frankfurt a. M. 1971, p. 61 ss.
124
ta orientação se associa a possibilidade de "ajuste" L semântico, de aproxima­
ção e distanciamento, pela escolha do ponto de vista (Hinsicht) relacionado
com a pr6pria designação em que surge o intencionado. De acordo com a sua
relevância, este intencionado será expresso com maior precisão sintática e se­
mântica. Vem a seguir outro instrumento do situar no tema ou no horizon­
te: o ponto de vista semântico pode, de seu lado, indiciar-se pelo emprego do
artigo defmido ou indefinido, por meio de que de novo se indica um primei­
ro plano ou um pano de fundo (Vordergrundhaftigkeit oder Hintergrundht1f
tigkeit). Junto aos procedimentos estilísticos para a centralização notema ou
para a transposição no horizonte da significação, há outros procedimentos
que resultam da macroestrutura composicional do texto, que é independente
da articulação verbal. Estes outros procedimentos são fundamentalmente de­
terminados por sua valência (Wertigkeit) funcional na economia do tema glo­
bal, tema entendido como um horizonte interno de estados de fato a serem
articulados. O pr6prio texto em sua sucessão possibilita um constante movi­
mento de horizonte e tema e, com isso, da perspectividade, na qual se mos­
tra o pr6prio estado de fàto. Este movimento pressupõe urna recepção que,
na apreensão da respectiva unidade de recepção sintaticamente organizada,
torna-se, ao mesmo tempo, consciente do transcurso do movimento temáti­
co e de seu respectivo horizonte. A atenção exigida do receptor pode ser di­
versamente orientada, através da combinação dos diferentes recursos estilísti­
cos e composicionais da colocação de tema e horizonte. Depende da
competência recepcional do leitor, até que ponto ele consegue resgatar, na
economia de seus conceitos (Konzepte) M, a intenção de direção, objetivada
no pr6prio texto. A orientação verbal pode atingir urna absoluta precisão ape­
nas no caso limite de uma linguagem formal construída sobre a linguagem
natural. A possibilidade de uma orientação (Feinsteuerung) diferençante e ma­
tizadora permanece, contudo, no âmbito da determinação relativa, sempre
definida com vista a indeterminação. O potencial inesgotável desta orienta­
ção está, justamente, no princípio da determinação relativa, isto é, na relação
necessária entre determinação e indeterminação.
Para além da constituição dos estados de fàto e de sua perspectivização, es­
tende-se a função orientadora da linguagem à sua modalização, isto é, a adjudi­
cação do estado de fàto, constituído e perspectivizado pela orientação verbal, a
uma materialidade dos fàtos (Saehverhalt) N a ser pressuposta. O caráter desta
adjudicação tem lima importância decisiva para a qualidade pragmática especi-
125
fica do texto, isto é, para o seu caráter como ação verbal.8 As diferenciações ele­
mentares no sistema das ações verbais ancoram na diferença da adjudicação do
estado de fato quanto à materialidade dos fatos. Esta adjudicação, por exemplo,
é diversa no caso de uma ordem ou de uma pergunta, de um projeto, de um
contrato, dos parágrafos de uma lei, de um julgamento, de um relatório, de uma
argumentação, de uma reflexão etc. Se a possibilidade de diversas ações verbais
se funda em tais diferenças da modalidade, estas precisam, no entanto, da res­
pectiva atualização e da estabilização formal em um sistema de ações verbais. A
recepção adequada de um texto pragmático, por conseguinte, consiste não só
na constituição, perspectivização e modalização de um estado de fato, mas, além
disso, na adjudicação de uma ação verbal a um esquema de ação verbal (Sprach­
handlungschema) 0. Esta adjudicação não é apenas dependente de traços ver­
bais. Os planos da constituição, perspectivização e modalização, que, juntamen­
te, determinam a figura de relevância do texto, são, por seu lado, lugar de signos
semióticos, que indiciam a seu usuário competente o esquema de ação verbal
intencionado. Através de seu esquema de ação verbal, isto é, através de sua c0­
locação no quadro refCrencial de um universe o/ discourse, que por sua parte per­
tence a um universo abrangente de ação, o texto recebe um sentido que vai além
da comunicação verbal imediata. Assim como a compreensão de uma ação sem­
pre implica adjudicação da manifestação desta a um esquema, já preexistente e
partilhado com os outros membros da comunidade social, assim também a re­
cepção constituinte de sentido sempre implica a recepção à luz de um esquema
de ação verbal existente. O esquema de ação verbal não só determina a dimen­
são pragmática do texto, mas, ao mesmo tempo, implica as condições elemen­
tares para a figura de relevância do texto e para as oposições constitutivas, de­
marcadoras do campo temático da figura de relevância. A adjudicação da ação
verbal e de sua figura de relevância a um esquema de ação verbal é o dado ele­
mentar do que se mostra, no mundo da literatura, como adjudicação de um
texto a seu gênero. Também ai o esquema do gênero de um texto implica pre­
noções (Grundvorptellungen ) básicas sobre o horizonte das figuras de relevância.
Tão-só a adjudicação do texto a seu gênero cria um pano de fundo da norma,
condição prévia para que o texto se torne "legível". É justamente no campo
pragmático, onde o texto não possui significado fora de sua finalidade, que se
8 Sobre o conceito de ação verbal, cf do auror Text ais Handlung (O texto como ação),
op. C1L
126
torna visível a função da forma que ultrapassa a ação verbal concreta e que con­
siste na institucionalização de uma figura de relevância. Assim não é por acaso
que o programa de uma "história da literatura considerada a partir de suas for­
mas" como uma "história da literatura sem nomes" tenha se originado no cam­
po extra-literário ou só marginalmente literário. Assim Franz Overbeck, o ami­
go de Nietzsche, postulava, em seu escrito Über die Anfinge der patristischen
Literatur (Sobre os começos da literatura patrística) (1882),9 uma "história da li­
teratura considerada a partir de suas formas"lO antes ainda da interpretação dos
textos bíblicos pela teologia protestante, caracterizada por sua interpretação
pragmática da forma como função de seu uso, de seu "Lugar na vidà' p. Com
seu projeto, Overbeck buscava caracterizar a forma como função de um "públi­
co ideal", 11 compreender a "obra literária como sintoma de seu público. 12
Considerando-se a recepção como constituição, nos textos pragmáticos
o plano da ação é o plano de remate. Cada um destes planos desempenha um
papel na formação da ação verbal, que abrange todos os planos de constitui­
ção do significado. Ao mesmo tempo porém cada posição de um destes pla­
nos possui significados secundários, conotativos, que recobrem os significados
primários e à sua formação, assim abrindo horizontes suplementares de signi­
ficação, ou seja, o vertical das conotações metafóricas e o horÍwntal das me­
tonímicas.13 É justamente a dimensão que não tem um significado organiza­
do e articulado verbalmente, mas semiótico; que abre ao texto, sobre o espaço
recepcional da compreensão ingênua, a inesgotável riqueza de significados.
Nenhum texto diz apenas aquilo que desejava dizer. Cada texto sofre a coer­
ção inevitável de produzir uma comunicação suplementar e não prevista. De­
pende do próprio modo de comunicação em que medida a comunicação su­
plementar, assim engendrada, se torna eficaz à recepção ou é por ela
neutralizada. A recepção da comunicação secundária, sua consideração e in­
clusão na estratégia verbal são possibilidades de uma formação cultural mais
elevada, que especialmente se nota nas classes sociais fechadas e desligadas da
9 Nova impressão: Darmstadt, 1954.
10 P. 12: "Uma literatura tem sua história em suas formas; cada história literária genuí-
na assim será uma história das formas".
II P. 20: "Este público é antes de tudo um público ideal, que cabe à obra descobtir
12 p. 66.
13 Cf. do autor "Versuch zur Semiotik der Konnotation" ("Estudo sobre a semiótica
da conoração"), in: Text ais Handlung, p. 131-151, especialmente p. 13955.
127
produção imediata, como exemplarmente se encarna na sociedade de Ia cour
et Ia vi/te da França de Luís XIv. Às formas extraordinariamente sofIsticadas
de articulação do significado correspondem formas de igual requinte de re­
cepção de uma mensagem que respeitava as normas, mas que mantinha sua
liberdade, por meio das dimensões conotativas. Uma "representação" desta
cultura se encontra tanto na moralística da época, quanto em sua transposi­
ção ficcional por uma Mme. de Lafayette.
O texto recebe sua orientação pragmática por meio de sua correlação
com um esquema de ação verbal. Mas só ganha sua dimensãopragmática pró­
pria ao passar da inserção no esquema para uma situação concreta. À medida
que a ação verbal é atribuída a um falante e a seu papel em um contexto situa­
cional dado, a própria ação verbal adquire sua determinação concreta. Só as­
sim se estabelece a distância pragmática do leitor quanto ao texto. À medida
que a ação verbal é atribuída a um falante e ancorada em uma situação, o lei­
tor pode assumir o papel que a pragmática do texto lhe destina e tomar posi­
ção diante deste papel: seja atualizando-o, seja recusando-o, seja ainda consta­
tando que a alternativa não lhe concerne. Esta produção recepcional torna
manifesto por que não se pode separar a perspectiva da recepção da perspecti­
va da produção. Assim dizemos porque, através daquela produção recepcional,
o horiwnte interno da articulação temática se abre para um determinado ho­
riwnte externo do campo da ação, previamente estruturado pela ação verbal,
e dentro do qual o texto pragmático cumpre a sua função. A comunicação
pragmática, portanto, funciona apenas quando produtor e receptor, dialetica­
mente mediados, intervêm como posições de papéis em um campo de ação. A
comunicação pragmática funciona apenas porque o produtor consegue imagi­
nar o papel do receptor e vice-versa. Mas se pressupõe que ambos os papéis
participam de um esquema de ação preexistente, habitual ou institucionaI­
mente estabilizado, que condiciona a possibilidade de ambas as posições e de
sua dialética. A produção do texto pragmático, e tampouco a sua recepção, não
pode ser compreendida fora do quadro de referência do esquema de ação ver­
bal. O sujeito da produção e o sujeito da recepção não são pensáveis como su­
jeitos isolados, mas apenas como social e culturalmente mediados, como sujei­
tos "transubjetivos". A diferença que George Herbert Mead estabelece entre a
instância subjetiva pré-social do I e a instância subjetiva social do Me é decisi­
va para a compreensão do elo entre produção e recepção conotativas e, deste
modo, em sentido lato, também para a possibilidade de uma "estética da re-
128
cepção". "O princípio fundamental da organização social humana parece-me
ser a comunicação, que pressupõe a participação na vida dos outros. Para tal é
necessário o surgir dos outros na própria identidade, a identificação dos outros
com a identidade, o alcance da consistência de si próprio através dos outros". 14
A mediação da identidade própria com a alheia se cumpre por meio de esque­
mas de ação, de cuja vigência depende a possibilidade da ação simbólica, c0­
mo a ação por excelência. A partir daí pode-se descrever fundamentalmente o
papel do horiwnte de expectativa, cuja significação para a recepção dos textos
ficcionais Jauss foi o primeiro a elaborar. Deste modo, ao mesmo tempo, ga­
nha-se um ponto de partida para a determinação da especificidade do horiwn­
te de expectativa dos textos ficcionais. Quanto aos textos pragmáticos, é evi­
dente que o horiwnte de expectativa do receptor não é analisável sem se
considerar o horiwnte de expectativa do produtor. 15 Nos textos pragmáticos,
o sujeito da produção leva em conta a imagem do leitor e seu papel em um
contexto da ação. Nesta medida, sua produção textual já se coloca em um ho­
riwnte de expectativa, que ultrapassa o próprio texto. Por outro lado, o leitor
está colocado em um horiwnte de expectativa duplo e ultrapassante do texto,
na medida em que, para ele, o texto, como meio, remete para o papel do su­
jeito constitutivo do texto e ainda para o papel do próprio leitor, que situa em
seu próprio campo de ação a possibilidade de ação que o texto lhe sugere. As­
sim o horiwnte de expectativa do autor faz parte do duplo horiwnte de expec­
tativa de seu leitor. À medida que, na articulação do texto, o horiwnte de ex­
pectativa do autor se condensa em expectativa, o leitor pode esclarecer seu
próprio horiwnte de expectativa pela determinação da distância pragmática
em que se encontra quanto ao texto e, para além deste, quanto ao autor.
VISando ao campo da ação, os textos pragmáticos se orientam para além
de si mesmos. A recepção de tais textos implica portanto a passagem para urna
14 Geist, ldentitiit und Gesellsehaft (Espirito, identidade e socieddde), trad. alemã, Frank­
furt a. M. 1968 (original 1934), p. 299. A respeito também, d. H. U. Gumbrecht: "Konse­
quenzen der Rezeptions3sthetik oder Literaturwissenschaft als Kommunikationssoziologie"
("Conseqüências da estética da recepção ou a ciência da literatura como sociologia da comu­
nicação"), in Poetiea vol. 7, t. 3-4, p. 388-413.
15 Sobre os horiwmes de expectativa recíprocos do ato de comunicação, d. ]. v.
Kempski: "Handlung, Maxime und Situation. Zur logischens Analyse der mathematischen
Wirtscha&theorie" ("Ação, máxima e situação. Para uma análise da teoria matemática da eco­
nomià'), in Studium generale, vol. 7, p. 60-68, 1954.
129
disposição de ação de complexidade crescente. O texto pragmático, por assim
dizer, deve ser esgotado. Nisso, em cada momento da recepção, a figura recep­
cional, até então processada, se converte em condição para a seguinte, com vis­
ta a um horizonte de ação, que cada vez mais se especifica e condensa. O texto
é assim traduzido em uma determinação situacional e, após o cumprimento
desta tarefa, permanece como uma estrutura que se exauriu nesta relação. O
movimento da recepção e sua capacidade diretiva de atenção seguem um cami­
nho correspondente. Esta capacidade diretiva sempre leva para fora do texto, à
medida que a recepção se processa automaticamente, por assim dizer nas costas
do receptor, voltado para o campo da ação. A orientatividade para a ação enco­
bre os atos da recepção, que se tomam conscientes e problemáticos apenas
quando a própria conexão pragmática é perturbada. Tão-só a partir deste pres­
suposto é que a recepção é ressaltada, mas tão-só com a finalidade de captar a
causa de um transtorno. O texto pragmático é centrífugo e este seu caráter se
acentua quanto mais imediata seja a sua intenção pragmática. "O homem que
falà', diz Sartre, em "Qu'est-ce que Ia littérature?", a partir da perspectiva do fa­
lante, "está além das palavras, perto do objeto; o poeta está aquém".I6 E mais
ainda: "O falante está em situação na linguagem, investido pelas palavras; elas
são os prolongamentos de seus sentidos, suas pinças, suas antenas, seus óculos;
manobra-as de dentro, sente-as como seu corpo, é cercado por um corpo ver­
bal de que mal toma consciência e que estende sua ação sobre o mundo" .17 O
texto pragmático é centrífugo não no sentido de que engendre por si mesmo
um movimento textual contínuo, mas noutro sentido, no de que sua meta sem­
pre se encontra além de si mesmo, no campo da ação.
Se a compreensão do texto pragmático, como a de qualquer texto, e,
muito mais, de qualquer ação, pressupõe a capacidade de julgamento - isto
é, a capacidade de traduzir a linearidade do texto no realce de conceitos Q so­
brepostos e limítrofes e, a partir daí, a capacidade de captar a concretização des­
tes conceitos como a sua interpretação - então ela aqui se cumpre em um es­
paço da experiência, que, em grande parte, se distancia da articulação verbal
dos conceitos. A redução do texto - que constitui o sentido e que, ademais,
16 ln ].-P. Sartre: Situations lI, Paris 1948, p. 55-330, especialmente p. 64.
17 As análises penetrantes de Sartre sobre os dois usos, fundamentalmente diferencia­
dos, da linguagem, são prejudicadas porque o autor distingue a poesia da não-poesia, mas não
a ficção da não-ficção.
130
é uma redução a uma receita que o toma pragmaticamente utilizável- reali­
za o julgamento de furma, podemos dizer, pré-consciente, porquanto traduz a
faticidade do texto em disposições acionais. Se partimos da idéia de que a com­
preensão implica, em primeiro lugar, a compreensão de uma figura de relevân­
cia e a capacidade de articulá-Ia em uma metalinguagem, então o ponto nodal
desta compreensão, condição prévia para a especificaçãoda figura de relevân­
cia do texto, se transforma no núcleo da decisão na ação do receptor, decisão
que o texto pragmático provoca. O núcleo do texto pragmático não se encon­
tra, portanto, em si mesmo, mas fora de si, na esfera da ação. A medida que
esta se define a partir daquele ponto nodal mencionado, leva para fora do tex­
to, que é, por assim dizer, abandonado como uma forma vazia. 18
3.
Assim como não se pode discutir a recepção do texto pragmático sem se
considerar a sua produção e a mediação das duas esferas, através de um esquema
preexistente de ação verbal, assim também a recepção do texto ficcional pressu­
põe uma indagação sobre o estatuto da própria ficção. Se, por um lado, no caso
concreto, os momentos ficcional e não-ficcional podem ser tão entrelaçados que
o estatuto de todo o texto oscila entre ficcionalidade e não ficcionalidade e se tor­
na diRci! a sua determinação,I9 por outro lado, o esquema da própria ficcionali­
dade é inequivocamente determinável. 20 A marca básica do texto ficcional é, não
obstante todas as referências à realidade, o seu caráter de colocação (Setzung). Sob
este pressuposto, a relação do texto com a realidade não é urna simples fimção de
urna realidade a ser retratada, mas sim de urna poética da ficção, que pode ser ora
mais, ora menos relacionada com a realidade e com a experiência coletiva da rea-
18 A descrição clássica deste estado de coisas se encontra no ensaio de Paul Valéry,
"Poésie et pensée abstraite", in P.V.: Oeuvres, Pléiade, Paris, 1957-1960, vol. 1, p. 1314-1339,
passagem na p. 1325: "Compreender consiste na substituição mais ou menos rápida de um sis­
tema de sonoridades, de durações e de signos por outra coisa, que é, em suma, uma modifica­
ção ou uma reorganização interior da pessoa a quem se falà'.
19 Cf. a respeito a minha nótula: "Fiktion, Negation und Wirklichkeit" ("Ficção, ne­
gação e realidade"), in: Positionen der Negativitiit (Posições dd negatividade), p. 522-524.
20 Cf. o meu "Der Gebrauch der Negation in fiktionalen Texten" ("O emprego da ne­
gação nos texros ficcionais"), p. 235-240. Para a argumentação aqui desenvolvida é de pouca
monta o livro recente de Jürgen Landwehr: Text und Fiktion, München, 1975.
131
lidade. A ficção não se deixa corrigir por meio de um conhecimento minucioso
da materialidade dos fatos a que se refere. Ao passo que os textos assertivos p0­
dem ser corrigidos pela realidade, os textos fiecionais são, no sentido próprio, tex­
tos de ficção apenas quando se possa conrar com a possibilidade de um desvio
do dado, desvio na verdade não sujeito a correção, mas apenas interpretável ou
criticável. No entanto, mesmo por causa desta liberdade da constituição dos tex­
tos fiecionais, o desvio quanto ao esquema da imagem pura e simples da realida­
de carece de uma motivação, que, por sua parte, radicalmente se liga ao funda­
mento da própria ficção. Em sua essência, a ficção não significa identidade entre
materialidade dos fatos e estado dos fatos, fOsseapenas parcial; significa sim dife­
rença. Contudo o desvio parcial, se não é eliminável como engano, tem a opor­
tunidade de tornar-se o ponto principal da intenção construtiva e de sua moti­
vação poética. A função básica da recepção dos textos fiecionais - e nisso eles
não diferem dos pragmáticos - está na constituição dos estados de fato e em sua
perspectivização. Diferem, entretanto, no plano da modalização e da condensa­
ção, em formas historicamente situáveis da ação verbal. A relação do estado de
fato e a materialidade dos fatos não tem, como no texto pragmático, caráter de
compromisso. O estado de fato do texto, ao contrário, é atribuído ao equivalen­
te fiecional de uma materialidade dos fatos. Deste modo, tal atribuição é efetua­
da sem que daí resultem conseqüências imediatas para a atividade do leitor. A dis­
tância pragmática do leitor quanto ao texto fiecional é uma distância "fingida"
(gespielte ); o leitor assume um papel que independe do contexto concreto de sua
história pessoal. Do mesmo modo é "fingido" o papel pragmático do autor, pa..­
pel que se liga apenas ao próprio texto. Que os papéis do autor e do leitor do ta •.
to fiecional sejam apenas papéis pragmáticos "fingidos" significa que o texto fic­
cional não se coloca simplesmente fora de urna situação de comunicação, sendo
pois assituacional e aberto a uma determinação situadora, mas sim que a ficção
se refere a uma situação comunicacional implícita, parte, por seu lado, da prá..
pria ficção. Isso diretamente se mostra no exemplo do romance que trata do fu­
turo. O fàto de o romance do futuro ser escrito em forma de passado é, para Ka­
te Hamburger, um argumento em favor da afirmação de que, no reino da ficção,
a forma de passado perde a sua função temporal.2I No entanto, no romance que
trata do futuro, a fOrma de passado conserva sua função tradicional ainda no ca-
2\ Die Logik der Dichtung (A lógica da ficção) (Há trad. brasil. da Ed. Perspectiva,
São Paulo).
132
so em que se parte do caráter fictício da própria situação comunicativa. Neste ca­
so, aquilo que, na perspectiva do leitor real, aparece como futuro, é concebido,
na situação fiecional, como um futuro já passado (Nachzukunji), que assinala o
momento de uma situação de comunicação em que o futuro se mostra como
passado.
A diferença entre os estatutos dos discursos ficcional e pragmático
não se mostra necessariamente na recepção efetiva dos textos ficcionais.
Há uma forma de recepção dos textos ficcionais que se pode denominar
de recepção quase pragmática. Na recepção quase pragmática, o texto fic­
cional é ultrapassado em direção a uma ilusão extratextual, despertada no
leitor pelo texto. A ilusão como resultado da recepção quase pragmática
dos textos ficcionais é uma extra textual idade, comparável à da recepção
pragmática, que, ultrapassando o texto, se volta para o próprio campo de
ação. A ilusão é, por assim dizer, a forma diluída da ficção, que, na reali­
dade quase pragmática, se separa de sua base de articulação, sem que ve­
nha a ocupar um lugar no campo de ação extratextual do leitor real.
A recepção da ficção como ilusão é uma etapa primária da recepção, que
pode reivindicar para si um direito relativo próprio. Seu objeto é, empregando­
se um termo reatualizável da estética do século XVIII, o interessante,22 que es­
tá ligado à eficácia (Lebendigkeit) da ilusão e que coloca o leitor em uma pers­
pectiva específica de identificação.23 Em sua forma mais pura e incondicional,
esta etapa da recepção se mostra na atividade recepcional da criança que inicia
seu contato com a imaginação. Para a criança, os contos infantis ainda são a pu­
ra presença do imaginário, sem que se dê conta de sua mediação. Explica-se daí
a violência com que o imaginário, verbalmente apreendido, se apossa da crian­
ça. Ela encontra, sobretudo, nos contos infàntis, a concretização das experiên­
cias elemenrares e pré-conceituais R de angústia, de esperança, de felicidade e
desgraça, do misterioso e do apavorante. Mas já que, no desejo de repetição, se
anuncia um interesse de não se expor simplesmente ao imaginário, mas de do­
minar o mundo da experiência própria que se articula de forma estranha por
22 Cf. J. G. Sulzer: Al/gemeine Theorie der Schonen Kümte (Teoria geral das belas-artes),
Leipzig, 1773, parte 1, p. 751: "O interessante é a propriedade mais imponante dos objetos
estéticos".
23 Sobre a teoria da identificação ficcional, cf. H. R. Jauss: "Negativirat und Idemifi­
kacion. Versuch zur Theorie der iisthetischen Erfahrung" ("Negacividade e identificação. Esbo­
ço para a teoria da experiência estécicà'), in Positionen der Negativitat, op. cit., p. 263-339.
133
meio de um desencadeamento intencional de sua encenação. A incondicionali­
dade com que a criança experimenra o mundo da imaginação liberada pela lin­
guagem é impressionantemente apresenrada por Les Mols 24 de Sartre, onde, ao
mesmo tempo, se mostra como a experiência da própria língua e da ilusãoposteriori,
chega a ser espantoso que em texto, originalmente datado de 1935,
Mukafovsky já dissesse:
Podemos por fim voltar à pergunta de que partimos: pode a vali­
dez objetiva do valor estético ser de algum modo demonstrada? Já se alu­
diu ao fato de que o objeto imediato da valoração (Bewertung) estética
atual não é o artefato "material", mas sim o "objeto estético", que apre­
senta seu reflexo e correlato na consciência do observador. (MukaIovsky,
J., 1935, 105-6)
Sem insistir que seria preciso um exame bem mais minucioso, diremos
apenas o básico. Em vez de considerar, por um lado, a obra de arte, e, por ou­
tro, a função do receptor, o autor tcheco parte de sua absoluta interação: en­
quanto estético, o valor da arte, ainda que sustentado na materialidade da
obra, se atualiza tão-só na consciência do observador. É verdade que o tratar
como "reflexoe correlato" do artefato material é tremendamente embaraço­
so, pois supõe que a valoração estética depende de uma representação passi­
va, isto é, em que o receptor duplicaria subjetivamente o que já estava dado.
Era assim facilitada a questão da objetividade do valor estético, mas ao preço
de evitar a questão mais espinhosa: que lastro de objetividade poderá ter o va­
lor estético se entendermos que, na experiência em causa, como já se afirma­
va em Kant, a imaginação é produtiva? Ou seja, que o receptor não capta um
reflexo mas estabelece uma configuração, isto é, organiza, filtra e seleciona o
que recebe? De todo modo, apesar desse lado problemático, a passagem de
Mukafovsky ia além da formulação inicial de Jauss, que entendia o leitor co­
mo uma figura empírica fora da obra.
Sem que apontasse para o avanço da formulação de Mukafo:vskye, em­
bora se restrinja, já no caso de Iser, a assinalar sua inegávelsuperação da expli-
17
cação fornecida por outro tcheco, Roman Ingarden, em DIJS literarische Kuns­
twerk (1930),4 Warning tinha o mérito de reconhecer claramente:
A realização decisiva dos estruturalistas de Praga é de haver descri­
to este valor estético objetivo não mais pelas qualidades metafísicas e pe­
las emoções por elas desencadeadas, mas sim pelo relacionamento semió­
tico entre determinação e interdeterminação comunicativas. (Warning,
R, 1975, 18)
Ao lado dos tchecos, ainda que tratados apenas como precursores, o tex­
to de Rainer Warning tem ainda a qualidade de apontar para o papel desem­
penhado por Hans-Georg Gadamer no entendimento do que significa com­
preender. Fiel ao tratamento heideggeriano, em Gadamer a compreensão não
se cumpre entre um sujeito e um objeto:
[... ] Compreender significa primariamente: orientar-se na coisa
(in der Saehe) e só secundariamente: destacar e compreender a opinião
do outro como tal. (Gadamer, R-G., 1960, 278.)
A compreensão do outro não é o dado primário, porque, no mundo do
DlJSein, o outro em princípio se orienta pelo mesmo modo que preside a com­
preensão do agente. Noutros termos, a compreensão se realiza não como ati­
vidade reflexiva, em que apontariam o que reflete (o sujeito) e aquele sobre que
reflete (o objeto), mas sim na estrutura da impessoalidade [a estrutura do man
(man sagt, man spricht etc.)]. É evidente que Jauss guardara a lição de seu ex­
mestre, mas, por alguma razão, a lição gadameriana não fora bem internaliza­
da. Pois o que significa considerar o leitor fora da obra senão retomar à velha
dicotomia entre sujeito e objeto?! Embora talvez o momento hist6rico não fos-
4 O cotejo da posição assumida por Ingarden e sua retificação por Iser pode ser reali­
zada pelo próprio leiror, pois a obra capital de Ingarden é acessívelem português: A obra de ar­
te literária, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1973. Quanto a Iser, embora lamentavel­
mente não haja tradução de Die AppeLstruktur,em suas obras já vertidas para o português (O
ato da leitura, Edirora 34, 2 vols., São Paulo, 1996, 1999, Oficticio e o imaginário, Eduerj, Rio
de Janeiro, 1996), o autor alemão manterá e desenvolverá o refinamento do conceito de "ca­
madas esquematizadas", do qual Ingarden ainda se contentava com a determinação das quali­
dades meraRsicas. Dasein.
18
li
se propício para explicitar a presença, embora oblíqua, de Heidegger, via Ga­
damer, a verdade é que o retorno à dicotomia sujeito-objeto, por conferir ao
leitor uma posição externa quanto à obra, criará problemas para a História da
literatura como provocação. Vejamo-Io por sua análise mais de perto.
O texto que, de súbito, lançará Jauss no cenário mundial principia com
a afirmação do descrédito da história da literatura, tal como então praticada:
Em nosso tempo, a história da literatura entrou em wn descrédito
cada vez maior e não imerecido. Qauss, H. R, 1970, 144)
Embora a afirmação longe estivesse de ser inédita (cf. por exemplo Wel­
lek, R.: 1956,653-61), não deixava de ser chocante. Jauss entretanto apenas
cOmeçava um exame que o levaria a criticar acerbamente o objetivismo da His­
tória, a tradição da História literária alemã encarnada por Gervinus e o histo­
rismo de Ranke. O exame terminava com a condenação, extremamente justa,
das histórias literárias nacionais:
A realização da história literária do século XIX estava ligada à con­
vicção de que a idéia da individualidade nacional era a parte invisivel de
todo fato e que uma sucessão de obras literárias faz aparecer, por essa
idéia, a firma da História. (Idem, ibidem, 152)5
O tom veemente, senão mesmo agressivo, era a maneira eficaz de Jauss
ser ouvido e encontrar a simpatia dos universitários rebelados. Não se trata­
va tão-só de identificar-se como liberal, mas sim de fazer com que seu pro­
jeto intelectual fosse favorecido pelo momento propício a mudanças na es­
trutura acadêmica. Essa terá sido pelo menos uma das razões para o
tratamento das onze teses que se seguem à primeira crítica. Elas atacarão tan­
to corrente do passado próximo, o formalismo russo, como prática que vi­
gorava do outro lado do Muro: a teoria do reflexo, além de reparos eventuais
contra o "hoje em moM' estruturalismo literário. Entre o ataque e a propos­
ta recepcional, a relação era inequívoca. Sem meias palavras, ela se manifes­
ta no final do item IV:
5 As passagens grífàdas são citações de Wilhelm von Humboldr.
19
Ao reexaminarmos daqui o dilema recíproco das teorias fOrmalista
e marxista da literanua, surgirá uma conseqüência não tirada por nenhu­
ma delas. Se, por um lado, podemos captar a evolução literária na mudan­
ça histórica de sistema e, de outro, a História pragmática no encadeamen­
to processual de estados da sociedade, não deve então ser possível
estabelecer uma relação entre "série literárià' e a "série não literária" que
contenha a relação entre história e literatura, sem obrigar a literatura a dis­
sipar seu caráter de arte em uma mera função de cópia ou de ilustração.
(in eine blofe Abbildungr- oder Erliiuterungrfimktion)? (Ibidem, 167)
Tudo isso é bastante correto e bem dito. Bastou contudo a passagem de
algumas décadas para que deixe de provocar indignação e, em seu lugar, pareça
um tanto banal. Não é esse, contudo, o problema maior - afinal, poderia ser
dito que a afirmação se banalizou porque sua razão se impôs sem grande esfor­
ço. A questão principal consiste em supor que a entrada em cena do leitor era
por si suficiente para romper os impasses da abordagem histórico-literária:
Seus métodos (dos rormalistas e dos marxistas) captam o fito literá­
rio no círculo fechado de urna estéticada produção e da representação (Pro­
duktions und DarsteUung;iisthetik). [... ] A vida histórica da obra literária é
impensávelsem a participação ativa de seu destinatário (Ibidem, 168-9).
A formulação seria suficiente apenas se a estética da recepção tivesse por
meta uma sociologia do leitor. (Vemos aqui a conseqüência de não haver de­
senvolvido o postulado que retirara de Gadamer, de haver então se contenta­
do em manter o postulado de que o conhecimento põe um sujeito (uno)
diante de um objeto.) Para que ultrapassassede ••
Ia engendrável resulra da experiência de um mundo ilusório, aberto a partir da
linguagem. A ilusão infantil desencadeia a aparência do interessante. Esra não
perderia seu caráter de esboço do imaginário caso a própria ficção aí não inter­
viesse, resgatando a conexão conceitual em uma articulação especifica e assim
ultrapassando o solo do ilusório. Essa conexão, ainda inacessível à criança, de­
verá ser necessariamente apreendida na experiência estética, qUando a "ilusão re­
ferencial" já houver perdido sua indubitável evidência. Só uma ilusão fundada
na ficção é capaz de se transformar em experiência estética, que não se esgora na
ilusão propriamente dita.
Se o texto ficcional se abre, de início, no sentido de uma leitura primária
e "ingênua", a uma forma de recepção elementar, pragmaticamente ensaiada e
esrabilizada, então, por outro lado, há formas de ficção que conram exclusiva­
mente com a recepção quase pragmática e se comportam de acordo com ela.
Em rais casos, a possibilidade de separar a ilusão da ficção já está contida na for­
ma verbal. A ficção ganha, por assim dizer, uma pragmática própria, que é
orienrada para a fusão da ficção com a ilusão, por meio da recepção quase prag­
mática. Isso vale, em primeiro lugar, para aquela forma da literatura de consu­
mo que, aliás, só funciona como provocadora para a criação, pelo leitor, de ll.l'Ua
realidade ilusória.25 Nesra literatura, que conra com a recepção quase pragmá .•
tica, os diferentes momentos são organizados de forma a liberar os estereótipos
da imaginação e da emoção e, simultaneamente, a ocultar que a própria lingua­
gem os tenha desencadeado. A ilusão, construída pelos estereótipos da percep­
ção, da condura e do julgamento, provocados pelo texto, tem normalmente
uma coloração emotiva. A tensão do texto, por assim dizer, expulsa do texto o
leitor; transfere-o para uma ilusão parcialmente irrealizada, que se há de trans­
formar em ilusão realizada. A expecrativa produzida pela ilusão irrealizada é, por
um lado, esperança, por outro, receio. Estes são como os vetares da tensão pro­
vocada pela ilusão. A tensão, que provoca a consistência do mundo ilusório ex-
24 Paris, 1964. Cf. por exemplo p. 37.
25 Sobre a hisrória e a decadência da comperência da leitura, na sociedade burguesa, cf
a pesquisa engajada e bem informativa de Q. D. Leavis:Fiction and the readingpublic, London,
1968 (I ª ed. 1932).
134
tratextual, fortalece-se por um sistema de afirmações, que esrabiliza a ilusão uma
vez produzida; o narrador afirma a história por sua tomada de posição; a histó­
ria se afirma a si própria por meio da recorrência; os conceitos (Konzepte) da
história reciprocamente se afirmam por meio de sua correlação inequívoca e não
problemática; as expecrativas do mundo ilusório engendrado pelo texto são afir­
madas por seu resgate; por fim, a visão de mundo 0J(7eltsicht) do leitor é afirma­
da à medida que o texto lhe devolve os seus estereótipos. Exaramente este siste­
ma de afirmações torna possível que a leitura quase pragmática, com sua
transformação da ficção em ilusão, ocupe, de modo inequívoco, os vazios do
texto. A atividade produrora de ilusão do leitor apresenra a tendência de dissol­
ver os contornos do texto em um contínuo ilusório. O leitor responde ao estí­
mulo do texto com estereótipos de sua experiência, que, por assim dizer, se for­
mam independente de si, e que provocam a evidência da ilusão. Aquilo que se
constituiu sem a consciência do próprio leitor, situa-se no ponto cego da recep­
ção e assim, ineviravelmente, adquire um caráter de verossimilhança. A inveros­
similhança da ficção narrativa toma-se, por efeito da atividade não consciente
do leitor, na verossimilhança da ilusão produzida pelo próprio leitor, a relação
quase pragmática com a ficção que a exige tem seu correspondente nas artes fi­
gurativas. Há uma maneira de ver o quadro, que, incapaz de descobrir a ima­
gem na pintura, vê no quadro da extrapictoricidade ilusória, que, em verdade,
não passa da imagem efetiva do receptor, a unificar os signos do quadro em es­
tereótipos da percepção. Ainda aqui a própria pintura pode contar com a força
centrífuga da ilusão que a ultrapassa e ser assim apenas uma base para o salto na
ilusão autoprovocada, o que, como no texto banal, exige o emprego de poucos
meios técnicos. É na pintura banal, com sua imprecisão pictórica, a que ade­
mais corresponde a execução estereotipada, que se evidencia o modo de recep­
ção que conduz o texto ficcional ao mundo da ilusão.
O romance banal é o paradigma por excelência de uma forma de ficção
que exige a recepção quase pragmática. O ato de leitura é aqui apenas o meio
para um fim, que se toma vitorioso pelo desenvolvimento técnico dos media.
A leitura deste tipo de obra, a que a sociologia da literatura consagra sua aten­
ção especial, pode ser com muira razão descrira como uma recusa ativa da lei­
tura, pois esra recepção se impermeabiliza quanto às formas mais altas de re­
cepção, que pressupõem uma perspicácia a que repugna a conversão passiva da
ficção em ilusão. Uma cultura da leitura, merecedora deste nome, apenas po­
de consistir na abertura da recepção quase pragmática da ficção em favor de
135
formas de recepção mais elevadas, conformes ao estatuto específico da ficção.
Só na medida em que o receptor está consciente da multiplicidade infinita das
atividades que se englobam sob a rubrica "leitura", é possível que alcance o ní­
vel de recepção capaz de resgatar o próprio texto em sua faticidade. A recepção
competente da literatura pressupõe uma flexibilidade teorizável, embora teori­
camente inexaurível, isto é, um repertório de técnicas de recepção a que não se
chega por uma práxis apressadamente reducionista.
A recepção quase pragmática dos textos ficcionais encontrou na própria
literatura, através de Don Q!4ijote, o seu monumento. Dom Quixote é o sím­
bolo do leitor em que a ficção se converte em ilusão com tal força que, por fun,
se põe no lugar de sua realidade. Nos iIÚcios do romance banal moderno e da
tradição do anti-romance, sempre oposto àquele, coloca-se o Dom Quixote
como a figura clássica do leitor que não lê, preso que está ao poder ilusório do
texto, leitor para o qual os estereótipos de sua leitura só se transformam nos es­
tereótipos de sua ação e de sua ação verbal porque ele, por assim dizer, perdeu
o próprio texto. O fato de o texto abolido converter a própria realidade em tex­
to é a irônica radicalização daquela postura própria à recepção de textos ficcio­
nais que se entrega ao movimento centrífugo, não mais condutor da ação ver­
bal para o campo de ação do leitor, mas condutor do equivalente ficcional de
uma ação verbal para o substituto ilusório do mundo da ação.
4.
Na recepção quase pragmática do texto ficcional, deste é retirado a con­
creticidade de sua constituição. Para compreendê-Ia, é preciso uma outra leitu­
ra que, em oposição ao movimento centrífugo da recepção quase pragmática,
que apenas se relaxa no imaginário além do texto, se poderia denominar de re­
cepção centrípeta, orientada para a ficcionalidade do próprio texto. Na elabora­
ção dos quadros desta recepção, a ciência sistemática da literatura pode indicar
possibilidades concretizáveis da recepção, que, na história da recepção de obras
particulares, se realizam apenas parcialmente. Deste modo, ela pode ainda pro­
duzir pressupostos para uma didática da recepção dos textos ficcionais, que de­
veria servir de base para o desenvolvimento de urna nova cultura da leitura, tan­
tas vezes desejada. Para que a função comunicativa da literatura de novo se
imponha, entre outras coisas se requer o pressuposto formal de uma competên-
136
cia recepcional, a ser teoricamente refletida. O próprio potencial da recepção,
de cuja apreensão o texto ficcional necessita, ainda não é bem captado pela des­
crição de recepções isoladas. Onde há recepções registradas de obras particula­
res, trata-se sempre de recepçõesjá articuladas, cuja particularidade nunca retra­
ta simplesmente a complexidade da experiência concreta da recepção, mas que
a estiliza de acordo com conceitos (Knnzepte) e normas em vigor e com interes­
ses particulares. Por seu lado, o eixo de relevância da recepção articulada não
precisa coincidir com o eixo de relevância tematizado pela própria obra; ele po­
de alcançar seu sentido precisamente por isolar um aspecto e ressaltá-Io, dando
àquele, assim, um eixo de relevância próprio. Considerando-se que a recepção
articulada e a experiência da recepção não seguem, necessariamente, os mesmos
critérios de relevância, torna-se, em princípio, difícil querer elaborar, da história
da recepção articulada, uma construção de sentido da própria obra. Por mais
importante que seja a compreensão da história dos efeitos para o conhecimen­
to efetivo da significação do texto e para a determinação de seu lugar na tradi­
ção canonizada, ela contudo não pode captar sistematicamente a significação
contida na própria obra. Por isso a história dos efeitos necessita de uma teoria
formal e complementar da recepção, que extraia do conceito da própria ficcio­
nalidade as perspectivas da recepção. Mesmo se a relação entre produção e re­
cepção não tenha, no campo ficcional, a estabilidade que apresenta no campo
pragmático, permanece contudo um consenso acerca do estatuto da própria fic­
cionalidade, como pressuposto para a comunicação. A explicação teórica deste
consenso prático poderá mostrar a recepção dos textos ficcionais como a forma
mais alta de recepção. A história da ficção é a história do crescimento de sua
complexidade, que, em cada caso, indica o IÚvel da complexidade mais alta da
constituição do texto. Também a história do potencial da recepção está sujeita
à tendência da complexidade crescente. Especialmente, desde que a esfera da
produção se tornou um desafio para uma recepção que lhe estivesse à altura ­
como se pode observar na passagem do princípio do goút para o de génie, en­
quanto princípio-chave do estético - estabilizaram-se as formas de recepção
que ultrapassam de muito a recepção "ingênuà', pragmática.
A determinação dos momentos de um modo de recepção que, especifica­
mente, corresponda aos textos ficcionais, pressupõe uma determinação apro­
fundada dos momentos essenciais da ficção. Mostramos antes que as ficções co­
mo colocações (Setzungen) não podem ser, por princípio, corrigidas por uma
experiência antagônica, o que, de antemão, condiciona a particularidade de sua
137
forma própria, em face do universo do conhecimento. O que surge na esfera da
ficção não se deixa facilmente desligar dela e transpor para o contexto geral do
conhecimento. Tornou-se além do mais claro que a ficção, como estado de fa­
to ficcional, não pode se abstrair da situação comunicacional, mas que pressu­
põe uma comunicação própria, que pré-constitui os vazios da recepção. Com
isso, no entanto, apenas descrevemos o quadro para a possibilidade dos textos
ficcionais, sem que este tenha sido melhor explicitado. A linguagem, em prin­
cípio, pode ser empregada de dois modos: ou em fimção referencial, como, por
exemplo, na descrição, na narração, ou em fimção auto-referencial. A lingua­
gem ganha fimção auto-referencial nos textos sistemáticos, onde a condição de
uso da linguagem é determinada por meio da reflexão. A seu lado, existe uma
outra possibilidade de uso da linguagem, passível de ser descrita como pseudo­
referencial. Pelo uso pseudo-referencial da linguagem, as condições de referên­
cia não serão simplesmente assumidas como dados extratextuais, mas serão pro­
duzidas pelo próprio texto. É por isso que nos textos que empregam a
pseudo-referencialidade, ou seja nos textos ficcionais, não é possível verificar se
o autor quis dizer o que disse. O uso pseudo-referencial da linguagem como uso
verbal da ficção não passa de uma forma particular do uso auto-referencial da
linguagem. Sua determinação ainda necessita de uma determinação maior. É
importante antes de tudo assinalar que um posicionamento quase pragmático
diante dos textos ficcionais e a fimção pseudo-referencial da linguagem em tex­
tos ficcionais só aparentemente estão numa conexão direta. A forma de recep­
ção quase pragmática deve ser ultrapassada para que ressalte a pseudo-referen­
ciaIidade da linguagem. A fimção pseudo-referencial da linguagem não passa da
auto-referencialidade, na forma de pseudo-referencialidade. Desta maneira o
texto narrativo ficcional se mostra como uma variante do texto sistemático, se
se entende por texto sistemático aquele que serve ao esclarecimento das condi­
ções de uso de seus termos.
Este aparente paradoxo precisa, para que seja dissipado, de uma maior re­
flexão. Para isso, é preciso considerar a relação da experiência com o conceito
(Konzept), relação que determina tanto o uso referencial, quanto o auto-refe­
rencial e o pseudo-referencial de conceitos verbalmente articulados. Os concei­
tos não passam de instrumentos para a organização e para a comunicação da
experiência. Fenomenologicamente falando, os conceitos são pontos de vista
(Himichten) sob os quais a experiência aparece e se organiza em classes, que
formalmente podem ser entendidas como feixes de condições para a classifica-
138
ção dos fenômenos singulares. Por seu lado, tais pontos de vista podem ser des­
ligados de sua relação referencial e considerados em si. O conceito assim se tor­
na reflexivo, torna-se auto-referente. Neste estado - que é o do texto sistemá­
tico - os conceitos reflexivos servem reciprocamente à organização dos
esquemas de organização da experiência. Isto é, entretanto apenas passível ao
preço de uma abstração que exclui a situação especifica de uso dos conceitos
em fimção referencial. Justamente essa deficiência do uso sistemático auto-re­
ferencial dos conceitos é reparada pelo uso pseudo-referencial dos conceitos, no
texto ficcional. No entanto, essa forma de ordenação dos conceitos não tem
mais o rigor que a caracteriza nos textos sistemáticos. Ao contrário, aqui se
apresentam, de forma experimental, possibilidades de uso dos conceitos e, com
isso, possibilidades de organização dos esquemas para a organização da expe­
riência. A maleabilidade da relação entre os conceitos é, porém, disfarçada pe­
la unidade formal da obra de ficção, como uma relação específica, formal e es­
truturalmente realçada e não transferível para o conhecimento geral. Também
os momentos referenciais emergentes, no contexto da pseudo-referencialidade,
participam desta unidade. Para dar um exemplo: à medida que uma paisagem
real e uma estória ficcional são entrelaçadas, é possível fazer com que a própria
paisagem real participe de um conjunto por assim dizer "mítico". Baudelaire,
Proust, García Márquez são exemplos do poder de transformação de uma pai­
sagem real em mítica, narrativamente saturada, cuja coesão ficcional se sobre­
põe à própria realidade. A realidade que se acha implicada na ficção responde
assim, ao fim de tudo, a ficção que se torna implicada na realidade. A unida­
de da ficção não é a unidade de uma consistência sistemática, mas sim a de
uma figura de relevância que se concretiza como o equivalente de uma expe­
riência. Deste modo, no meio verbal e pseudo-referencial da ficção, tanto rela­
ções unívocas entre conceitos quanto relações tensas e contrárias aos estereóti­
pos da experiência podem ser tematizadas, podendo, por fim, ser tematizadas
experiências ainda não possuidoras de uma estabilização conceituaI. A ficção
apresenta conceitos, problematiza conceitos e representa condensações pré­
conceituais da experiência. Cada conceito do texto é, em primeiro lugar, deter­
minado através de todos os outros conceitos do texto e de suas relações recí­
procas. Esta determinação interna do conceito pela ficção, isto é, através de um
conjunto restrito doutros conceitos, coloca-se em uma relação relevante quan­
to ao uso pragmático do conceito correspondente. Assim,a ficção, como for­
ma do texto auto-referencial, oferece, em primeiro lugar, possibilidade de dife-
139
renciação do léxico empregado, que, deste modo, ganha uma imprevisível pro­
fundidade. Não é por acaso que nos dicionários franceses clássicos são preferi­
dos os paradigmas ficcionais que podem dar a um conceito um horizonte de
uso normativo. Ao mesmo tempo, o texto ficcional permite a tematização de
experiências ainda pré-conceituais, sob pontos de vista conceituais possíveis.
Essa possibilidade se funda no eStatuto conceitual peculiar ao texto ficcional.
Se se compreendem as relações sistemáticas entre os conceitos como relações
habituais, então as relações referenciais podem ser chamadas relações ocasio­
nais. A medida porém que, no contexto da pseudo-referencialidade, se mani­
festam tanto relações habituais quanto ocasionais, torna-se possível tanto apre­
sentar (anschaufich zu machen) relações habituais em sua ocasionalidade
possível, quanto, ao contrário, ressaltar as relações ocasionais como hipotéticas
relações habituais. A auto-referencialidade do texto pseudo-referencial é uma
auto-referencialidade totalizada, que não mais se limita, como no texto siste­
mático, à auto-referencialidade de conceitos e conjuntos conceituais, por meio
de metaconceitos. Discute-se a seguir a qualidade peculiar da auto-referencia­
lidade ficcional e suas dimensões.
Determinou-se a recepção do texto pragmático pela constituição de um
estado de fato, de sua perspectivização, modalização e de sua interpretação
pragmática, e a intenção pragmática transcendente ao texto possibilitou a con­
dição da figura de relevância do texto. Determinou-se, em segundo lugar, a re­
cepção quase pragmática dos textos ficcionais como uma recepção que repete
os passos da recepção pragmática, sob condições totalmente novas, isto é, de
uma situação de comunicação ficcional obtida a partir da própria obra. A re­
cepção própria à ficção não é, do ponto de vista das etapas das recepções pre­
cedentes, uma alternativa, mas sim um passo a mais, uma possibilidade de re­
cepção que alcança sua significação apenas sob o pressuposto da ficção. A
produção da ficção pressupõe, na perspectiva do leitor, a transformação quase
pragmática da ficção em ilusão. Mas isso apenas para que se alcance a base ne­
cessária para a constituição da própria ficção. Esta nova dimensão da recepção,
a única adequada ao seu novo objeto, a ficção, fundamenta-se em uma rever­
são generalizada da relação do tema com o horizonte, tal como se mostra no
movimento "natural" da recepção, isto é, o pragmático e o quase pragmático.
Enquanto ali o significante apresenta-se apenas como horizonte do significado
temático, este agora pode-se converter, em um movimento conhecido como
círculo hermenêutico, no horizonte para o significante temático e para os pro-
140
cessos de constituição entre o primeiro significante da base material do signo e
o último significado da "ilusão" referencial. O movimento centrífugo do texto
para sua significação realiza-se, por assim dizer, automaticamente, no leitor, no
dorrúnio da constituição da significação fàcultado à competência da recepção
pragmática. Ao contrário, o movimento centrípeto, o único que pode levar à
ficcionalidade do texto, é pouco familiar, é diRcil, metodicamente trabalhoso,
e isso tanto mais quanto o próprio texto ficcional é o resultado de um traba­
lho ousado de constituição. Quando Holderlin diz do poeta:
Ein Zeichen sind wir, deutunglos,
Schmerzlos sind wir und haben fast
Die Sprache in der Fremde verloren
(Somos um sinal, insignificante,
Somos indolores e quase
A fala perdemos no estrangeiro)
articula uma experiência da práxis poética, que há de ser recuperada na re­
cepção que pretenda atingir a concretude da ficção.
A reversão de tema e horizonte pode mostrar de duas maneiras a fic­
cionalidade concreta do texto. Primeiro, como reversão vertical, à medida
que a estratificção verbal se converte em objeto da atenção, em seus planos
de articulação - com o que, ademais, cada plano pode conquistar, além de
sua funcionalidade estética, uma autonomia estética relativa. Segundo, como
reversão "horizontal", na esfera da própria significação. Exatamente porque
a ficção pressupõe, por princípio, a possibilidade de reversão, todos os pla­
nos da constituição podem ser não apenas meios, mas momentos da ficção.
Contudo o plano da significação é o decisivo para a construção da ficção. To­
dos oS outros planos do texto ficcional recebem sua função a partir apenas
do plano da significação, ou, ao contrário, do horizonte da significação. E
ele, ao mesmo tempo, o plano legitimador, por excelência, da tensão emoti­
va e do colorido emotivo que o leitor experimenta e para cuja liberação co­
laboram todos os planos do texto. A camada conceitual da ficção é o lugar
não conotativo desta, que serve de base para as transformações, por mais
exuberantes que sejam, em ilusão referencial. A base do perfil emotivo da fic­
ção é mostrada apenas pelo retorno à camada conceitual. Daí nada mais pre-
141
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judicial ao efeito da ficção, que só conte com a recepção quase pragmática,
do que a reversão do horizonte da ilusão, de contornos emotivos, feita pelo
próprio leitor, em construção conceitual. Pois através dessa reversão torna-se
patente o excesso (Überschuss) de uma recepção não fundada na construção
e na articulação da própria obra, porquanto assim se revela a pobreza e o
inarticulado, a secura da construção conceitual que nada capta, encoberta
pelo leitor na recepção quase pragmática, pelo acréscimo de seus estereótipos
cotidianos. A reversão da perspectiva que procede da ilusão temática para a
conceitualidade horizôntica (horizonthaft) em conceitualidade temática e
ilusão horizôntica significa, antes de tudo, no sentido já descrito, a apreen­
são do uso quase referencial da linguagem como uso auto-referencial e des­
tinado à apreensão da ficção como uma organização específica de esquemas
da organização da experiência. A atividade pressuposta por esta leitura, que
consiste em ligar um fenômeno específico a seu esquema foi melhor descri­
to por Kant como a fàculdade de julgar (Urteilskraft). No texto ficcional, a
faculdade de julgar, a que cabe captar o particular como expressão do uni­
versal (em Kant, pelo juízo de reflexã026) é exposta, por assim dizer, a um
"treinamento" contínuo, em que se pode perceber a relevância pragmática do
convívio com os textos ficcionais, relevância que ultrapassa o horizonte da
ficcionalidade. Essa prática da faculdade de julgar, por seu relacionamento
do universal com o particular, exigido pelo texto ficcional, está sempre in­
cluída, para além da recepção concreta de um texto, em uma evolução da fa­
culdade de julgar, que, teoricamente, é interminável, mas que, na prática, en­
contra seus limites na história da vida do leitor.
A faculdade de julgar é tão necessária para o resgate da relação entre
esquema e sua atualização, tematizada no próprio texto, quanto para a des­
coberta, na constituição sempre nova da totalidade dos conceitos abran­
gentes, que o texto preenche em sua linearidade. Orientar-se no texto sig­
nifica poder situar aquilo que é tematizado, desde logo, no respectivo ato
de leitura, com relação ao conceito abrangente que constitui o respectivo
contexto. Só por meio desta leitura conceitual, a linearidade do texto ad-
26 Kritik der Urteilskraft (Critica da faculdade de julgar), (Org. K. Vorlander, Hamburg,
1959, p. 15: "A faculdade de julgar é, em suma, a capacidade de pensar o particular como conti­
do sob o universa1.Quando o universal (a regra, o princípio, a lei) está dado, a faculdade de jul­
gar, que subswne o particular naquele, é (...) detenninante. Se, contudo, apenas o parácular é da­
do, para que dele se infira o universal, então a bculdade de julgar é só de rtjlexão."
142
quire seu relevo, podendo-se assim apreender o texto ficcional como um
contínuoe como uma hierarquia de disposições para a experiência. Apare­
cem assim várias estruturas sobrepostas, que obedecem uma ordem ao
mesmo tempo elementar e muito complexa, cujos alinhamentos, apreen­
síveis pela expansão e concretização do texto, constituem a poética do tex­
to. Necessita-se da faculdade de julgar para que o texto, antes linear, ad­
quira um revelo, conceitualmente demarcado. A particularidade, colocada
pelo leitor na ficção, é o ponto de partida para uma reversão conceitual,
pela qual o conceito, de um lado, orienta o particular e, de outro, o parti­
cular submete o conceito a uma iluminação específica, isto é, o coloca pe­
rante o fundo específico de uma experiência. O tema da faculdade de jul­
gar, apreensora, estabelecedora de distância e relação ou resgatadora de
relações, é, de imediato, a relação de percurso imposta pelo próprio texto,
como a relação textual privilegiada. A faculdade de julgar, no entanto, não
se esgota na apreensão desta relação. Antes de mais nada, ela deve ser an­
tes vinculada a um nexo conceitual hierárquico, que se manifesta e, a par­
tir daí, se interpreta, no próprio texto. O texto se auto-interpreta, à medi­
da que lexicaliza sua constituição hierárquica e, por outro lado, a inclui em
um sistema de concretizações. Assim como o texto é construído até a sua
camada de significação por uma sucessão de camadas de embasamenta27
assim também esta sucessão é determinada como uma construção concei­
tual, através de uma estratificação dos planos de significação. A organiza­
ção conceitual pode-se mostrar no horizonte da concretização linear como
a sua estrutura possibilitadora. Por outro lado, a linearidade do próprio
texto pode-se representar no horizonte da camada conceitual como sua in­
terpretação e focalização. Com esta focalização, a perspectivização do esta­
do de fato, já relevante nos textos pragmáticos, se torna o meio da perspec­
tivização do todo conceitual. Para que, entretanto, se torne possível a
reversão da perspectiva do texto em seu sistema para a perspectiva do sis­
tema no texto S, pressupõe-se necessário o horizonte da segunda leitura.
Apenas quando as cláusulas de abertura do texto estão saturadas pelas cláu-
27 O mérito decisivo de Ingarden está em haver, antes de tudo, explorado todas as
conseqüências deste ponto de vista Das literarische Kunstwerk (A obra de arte literária), Tü­
bingen 1965, espec. capo2: "Der Aufbau des literarischen Werks" ("A construção da obra li­
terárià'), p. 25 ss.
143
I
sulas de fechamento correspondentes, é possível a reversão da perspectiva,
que a própria ficção mostra, diante do fundo da ilusão referencial, por ela
desencadeada. Só mediante uma segunda leitura, é possível ao leitor situar,
em cada momento, em uma visada abrangente do texto, o texto parcial
que sobressai tematicamente. Isso não só visando a seu "contexto à esquer­
di', isto é, o texto já trabalhado, mas também visando a seu "contexto à
direita", isto é, aquele ainda não explorado. Só quando a parte já trabalha­
da e a parte a explorar forem unificadas, no horiwnte da segunda leitura,
poder-se-á precisar o lugar de cada momento do texto, no contexto inte­
gral da obra e determinar a sua função na hierarquia dos conceitos. Só o
horiwnte da segunda leitura pode converter a primeira leitura, quase prag­
mática e causadora de ilusão, em uma leitura captadora da ficção. Pois só
assim a construtividade da ficção pode-se tornar objeto da faculdade de
julgar do receptor.28 Enquanto o texto pragmático deve ser trabalhado
com vista a uma intenção que o transcende, o texto ficcional auto-referen­
cial exige ser internamente trabalhado. A passagem do trabalho sobre o
texto pragmático para o trabalho interno do texto ficcional poderia ser fi­
gurativamente descrita como a passagem da superfície textual para o espa­
ço textual. Assim como a geometria euclidiana se constrói segundo uma
seqüência progressiva de novas dimensões (ponto-linha-plano-espaço tri­
dimensional ou pluridimensional), onde cada nova dimensão contém as
dimensões anteriores como momentos constitutivos, incluindo-os, ao
mesmo tempo, em um contexto novo e irredutível, assim também poder­
se-ia distinguir, a grosso modo, as palavras como pontos textuais, sua liga­
ção na frase como a linha textual e o ultrapasse da frase, realizado no pla­
no da significação, como espaço textual. Sob este pressuposto, o texto,
enquanto ficcional, se converteria em espaço ficcional, em que se eviden­
cia o seu caráter de relevo e em que todos os seus momentos podem entrar
em relações relevantes secundárias com os outros, pois a pseudo-refeten­
cialidade do texto ficcional implica que cada conceito pressupõe os restan-
28 Apenas esta segunda leitura tealiza o que NielZSche chamou, e insuperavelmente
descreveu, de a arte filo lógica da "leituta lenta". A filologia, diz no prefácio de Morgenrote (Au­
rora), "ensina a ler bem, ou seja, lenta, profunda, respeitosa e cautelosamente, com perspicácia
e flexibilidade, com dedos e olhos sensíveis (... ) in E N.: Werke in drei Biinden (Obras em trfs
tomos), (Org. K. ScWechta, München, 1954, t. I, p. 1010-1279, passagem na p. 1016)
144
tes, como seu segundo plano (Hintergrund).29 O texto como espaço tex­
tual,30 em que se multiplicam infinitamente as possibilidades de relaciona­
mento, e, daí, as possibilidades de constituição da significação, torna-se, na
perspectiva do leitor, espaço ou meio de reflexão,31 em que o leitor pode
penetrar cada vez mais, sem nunca o esgotar.32 A apreensão do texto fic­
cional converte-se assim em uma tarefa infinita. Na perspectiva ficcional,
o texto nunca é captado de maneira cabal. O que disse Valéry a propósito
da constituição do texto ficcional- que ela nunca se encerra, mas apenas
se interrompe - também vale para o processo da recepção dos textos fic­
cionais. O processo da recepção encontra seu limite apenas na capacidade
do leitor de apreender o texto, clara e distintamente, como um conjunto
infinito de relações constitutivas de sentido. As fronteiras que se colocam
para a recepção são tanto as fronteiras subjetivas da percepção e da facul­
dade de julgar quanto as objetivas de um potencial de recepção disponível
em uma situação histórica dada.
29 Para o escritor, a correlação de todos os momentos do texto é um problema tão com­
plexo que ele nunca os exaure e os convette na concretização da ficção. Em um comentário de
Flaubett sobre a formação de MlUiame Bovary, encontra-se uma indicação valiosa sobre o pro­
blema do escritor que, durante a constituição do texto, se transforma em leitor de si mesmo:
"Estou à beira de recopiar, de corrigire de rasurar toda a primeira parte de Bovary Os olhos quei­
mam. Gostaria de, com um olhar apenas, ler estas cento e cinqüenta e oito páginas e, num só
pensamento, captar todos seus detalhes" (Carta a Louise Collet de 22 de julho de 1852, in: G.
E: Extraits dela correspondance ou préfaee à Ia vie d'écrívain, (Org.) G. Bolleme, Paris 1963, p.
83). Tanto o autor quanto o leitor, diante da ficção, têm um poder apenas relativo.
30 Cf a propósito o número especial da revista Esprít (n. 12, dezembro 1974): "Leetu­
re 1. [Espace du texte". Sobretudo o ensaio de Jean Ricardou, "La Révolution textuelle", p. 927­
945, mostra como uma nova literatura provoca novas formas de recepção.
. 31 Walter Benjamin introduz este conceito em sua tese de dourorado sobre Der Begríff
der Kunstkrítik in der deutschen Romantik (O Conceito da critica de arte no romantismo alemão )
(1920) para caracterizar a teoria da recepção de Friedrich Schlegel. O ensaio de Benjamin, ho­
je ofuscado pela influência de seus trabalhos posteriores, por sua penetração incomparável da
teoria pré-romântica da recepção, é ainda hoje fundamental para qualquer teoria da recepção.
32 A ficção assim se mostra como uma mônada. Devemos aqui de novo nos referir a
Benjamin, pela fecundidade que emprestou a este pensamento, na introdução gnoseológica
de seu livrosobre o Ursprung des deutschen Trauerspiels (Origem do drama alemão). O que Ben­
jamin ai chama de "idéia" não passa da configuração conceitual (W. B.: Schríften (Escritos),
Frankfurt a. M. 1955, t. 1, p. 164. A respeito, veja-se ainda a carta de Benjamin a Friedrich
Christian Rang, de 8.12.1923.
145
Se a apreensão dos textos ficcionais é infinita, isso contudo não quer di­
zer que qualquer recepção seja válida. A elaboração metódica acerca da tarefa
infmita é a condição prévia para a sua discussão. Há aspectos do texto que se
mostram apenas a uma recepção metodicamente organizada, a qual se infere
de uma teoria do texto e não se garante pela recepção pragmática da práxis
pré-teórica. O próprio método assim produz o seu próprio objeto, à medida
que o torna visível o cognoscível. 33
A inexauribilidade dos relacionamentos que o texto ficcional possibilita é
de caráter intensivo e não extensivo; realiza-se em uma região claramente delinea­
da, a da ficção e de sua figura de relevância. As fronteiras da ficção permanecem
claramente determinadas, mesmo quando o texto se oferece ao leitor apresentan­
do-lhe a profundeza das conexões temáticas e das possibilidades não temáticas.
A ficção se diferencia, fundamentalmente, da experiência vivencial porque nela a
relação do tema com o horizonte se pré-constitui segundo os princípios estabe­
lecidos por uma poética. No "mundo da vida" (Lebenswelt), o tema, para o qual
se dirige a atenção, está situado diante de um horizonte do outro contingente,
33 Neste sentido, Fichte refere-se à leitura como wn experimento e, especificamente,
com vista aos textos filosófico-sistemáticos. Cf. Die Grundzüge des gegenwiirtigen Zeitalters (Os
fundamentos da época atwll) (I 806), in: J. G. E: Werke (Obras), (Org.) I. H. Fichte, t. 7, Berlin
1846; nova impressão: Berlin 1971, p. 91: "No que concerne às obras cientificas, a primeira fi­
nalidade de sua leitura reside na sua compreensão e no reconhecimento histórico da verdadeira e
essencial intenção do autor. Nesta tarefà, não é que se haja de proceder de wna maneira que con­
siste em entregar-se passivamente ao autor e em deixá-Io atuar sobre como queiram o acaso e a
boa fortuna; ou de uma maneira que nos fàça dele dizer justamente o que ele nos quer dizer; e
que daí se saia e se guarde o que ele disse. Mas, ao contrário, assim como nas ciências da nature­
za tem-se de convener a natureza em objeto das perguntas que o experimentador lhe endereça e
tem-se de procurar que ela não fàle a esmo, mas que responda à pergunta formulada, do mesmo
modo tem-se de convener o autor em objeto de wn experimento do leitor, experimento tão há­
bil quanto bem calculado". A recepção da ficção por Fichte, ao contrário, é de antemão com­
preendida como urna recepção quase pragmática: "Pois bem, esta forma de leitura já traz consi­
go um estado de espírito específico, que implica um sentimento swnamente agradável e que, com
o correr do tempo, pode-se transformar em uma necessidade imprescindIvel. Do mesmo modo
como os outros narcóticos, ela nos põe em wn estado prazenreiro entre o sonho e a vigília e nos
embala em wn doce esquecimento de nós mesmos, sem que se torne necessária qualquer ativida­
de. Sempre tive a impressão de que este estado, antes de mais nada, se parece ao fumar (Taba­
krauchen) e que o fiunar é a melhor maneira de explicá-lo. Quem tenha provado do doce sabor
deste estado quer seguir gozando-o para sempre e não mais deseja outra coisa na vida; esta pessoa
vai ler sem nenhum conhecimento da literatura e do progresso de sua época; vai ler apenas para
ler e viver lendo e assim apresenta, em sua pessoa, o leitor puro" (p. 89 ss.).
146
que necessita, em primeiro lugar, ser excluído, de forma que o distanciamento
- pelo qual o tema se faz tema - depende de uma produção sempre renova­
da do agente. Ao invés, no mundo ficcional, a relação entre tema e horizonte se
encontra fixada pela entrada do leitor na situação de comunicação ficcional. Isso
significa que na ficção se tematiza a própria relação do tema com o horizonte.
Durante sua participação na ficção e na ilusão por meio dela causada, o leitor vi­
ve em um mundo da relevância (Relevanz- Welt), em que, ao contrário da expe­
riência cotidiana, não penetra nenhuma realidade perturbadora. Também a con­
tingência ocorrente na ficção participa da figura de relevância desta, mesmo
quando ela rompe com a ilusão ficcional, em favor de uma ilusão de segundo
grau. O leitor dos textos ficcionais submete-se ao postulado da teorizibilidade da
ficção. Sob este pressuposto, tudo nela é pretensão à relevância.
O desequilibrio entre determinação e indeterminação, entre a contensão
e a expansão do texto, ou seja sua forma,34 produz uma figura de relevância que
prescreve a recepção do leitor e, mais precisamente, o papel do leitor implícito.
Não obstante, o texto é inesgotável na criação de relevâncias secundárias, que se
agregam às determinadas pelo próprio texto. No ato da recepção, podem-se
produzir, na perspectiva dos leitores, inúmeros eixos de relevância que não rom­
pem com o texto. Estes contudo necessitam constantemente da relativização da
figura de relevância determinante do próprio texto. A concepção segundo a qual
o próprio texto é uma figura de relevância tem por conseqüência que aquilo que
no texto permanece aberto ou indeterminado, não deve ser compreendido, fun­
damentalmente, como estímulo para a atividade criadora do leitor, mas, funcio­
nalmente, como esboço (Abschattung) da figura de relevância, cuja apreensão,
em sua própria regulagem do relacionamento entre determinação e indetermi­
nação, é exigida do leitor.35 Este é o ponto em que a concepção aqui defendi­
da, acerca das condições constitutivas dos textos ficcionais, se separa da estética
34 Sobre a relação entre determinação e indeterminação, cf. também do autor "Der
Gebrauch der Negation in fiktionalen Texten",op. cit., p. 240.
35 Cf. Iser: "Der l..esevorgang" ("O processo da leitura"), p. 265: "Projetamos no texto
as expectaúvas por ele despertadas, até que, pela redução das relações polissemânticas dos signos,
elas se realizem e, assim, se possa constituir uma configuração de sentido (Sinngestalt). A polis­
semia do texto e a fOrmação de ilusão da leitura (IllusionsbiUung der Lektüre) são, em princípio,
movimentos contrários". A constituição do sentido faz parte, por conseguinre, da formação de
ilusão da própria leitura. Mas, neste contexto, é importante observar que a redução da polisse­
mia semântica já é wn momento da recepção elementar dos textos pragmáticos. A capacidade
para esta redução é levada em conta em cada comunicação.
147
da recepção de !ser, especialmente desenvolvida em seus trabalhos sobre "Der
Lesevorgang" ("O processo da leiturà') e sobre "Die WItldichkeit der Fiktion"
(''A realidade da ficção"). Os trabalhos de !ser se diferenciam das pesquisas his­
tóricas e sociológicas, já numerosas, sobre o complexo da recepção, pois conver­
tem o próprio ato da recepção em tema da pesquisa fenomenológica, abrindo
assim uma nova dimensão da estética recepcional. Neste sentido, o nosso ensaio
se liga à pesquisa de Iser. Mas dele divirjo em virtude da concepção segundo a
qual o próprio texto constitui uma figura primeira de relevância, à qual se de­
vem relacionar todas as figuras secundárias de relevância, ao passo que Iser dife­
rencia entre a constituição do sentido como uma atividade peculiar da recepção
e a constituição da própria obra.36 A constituição do sentido pelo leitor é, para
!ser, fundamentalmente, uma atividade criadora, que consiste no preenchimen­
to dos vazios e das indeterminações produzidas pelo texto, das quais se apodera
a capacidade imaginativa do leitor. À medida que o leitor atualiza a possibilida­
de de tais preenchimentos, em constelações sempre novas, toma-se envolvido
na própria ficção e a experimenta como uma "realidade" peculiar. A experiên­
cia estética do texto ficcional é, para Iser, o processode formação da ilusão e de
quebra com a ilusão, em que se constituem e questionam figuras de sentido
sempre novas, de modo q~e a produtividade constituinte do leitor, provenien­
te das indeterminações, se experimenta a si própria e, ao mesmo tempo, à resis­
tência de uma realidade textual, que se mostra por perspectivas sempre novas e
na história das diferenças destas perspectivas.3? Este pensamento altamente su­
gestivo e que impressiona pela força de sua penetração fenomenológica, parece­
me, contudo, ser desenvolvido com uma exclusividade, que é preciso relativizar.
A teoria da recepção de Iser é uma teoria das variáveis da recepção, rujas cons­
tantes se encontram apenas no lado do próprio texto. Em !ser, as constantes são
sempre e apenas constantes do texto, que têm a função de gerar as variáveis da
36 Cf. "Der Lesevorgang", p. 269 ss' "Como as discrepâncias são, por assim dizer, os
lados negacivosdos atos de apreensão, e, por conseguinte, são por eles engendrados, porém não
mais integrados, sua natureza não é de todo arbitrária. Têm como efeito final que, ao lermos,
nos enredamos no texto".
37 Há neste contexto uma diferença importante entre a leitura silenciosa e a recepção
da leitura a viva voz. Enquanto a leitura pode apreender o estado de fato (Sarh!.age), verbal­
mente apresentado, tal qual, e não considerar todos os problemas de realce (Akzentuierung), a
leitura a viva voz não pode prescindir do realce, isto é, da redução de uma figura de relevância
a uma leitura lmívoca. Sendo pois, necessariamente, wna variante unívoca. a própria leitura a
viva voz torna possíveis outras recepções igualmente unívocas.
148
recepção. Iser não coloca expressamente a pergunta sobre a relação entre cons­
tantes e variáveis da recepção; por isso, em sua teoria, permanece um lugar de
indeterminação, que condiciona sua oscilação entre teoria formal e material. A
teoria formal da recepção de Iser se converte em uma teoria material da recep­
ção, em virtude de que uma teoria apenas das variáveis da recepção, em última
análise, não vai além da possibilidade de constatação de variáveis. Assim, onde
as variáveis da própria recepção devem ser determinadas, Iser se refere a um mo-­
delo de ficção, que, fundamentalmente, é o do romance inglês do século XVIII,
até o processo de radicalização no romance do século XX. O paradigma da es­
tética da recepção de Iser é o romance de Joyce, em que, de fato, as constantes
da recepção, correspondentes ao texto ficcional tradicional, são abaladas, à me­
dida que, aqui, o robisonismo do sujeito representado remete ao robisonismo
do sujeito da produção ficcional e, ademais, conduz a um sujeito da recepção
que pode se ver a si mesmo apenas e ainda em um isolamento à Ia Robinson.
Se aqui uma teoria das variáveis da recepção, considerada em si mesma, ainda
parece ser bastante para descrever a condição de possibilidade da experiência es­
tética, mostra-se, contudo, como problemático o rendimento heurístico deste
caso-limite, isto é, o romance de Joyce, para a teoria da recepção dos textos fie­
cionais. Isso pois não esclarece em que a ficção, de imediato e por si própria, ad­
quire sua possibilidade específica. Ou seja, em que ela, como articulação de uma
figura de relevância, possibilita uma experiência que radicalmente se diferencia
da experiência do mundo cotidiano. Enquanto nesta, o tema há-de ser cada vez
reconquistado pelo esforço da abstração, a partir de um determinado horizon­
te, o receptor da ficção experimenta uma relação entre tema e horizonte já pré­
construído, teoricamente refletível, que é, em si mesma, o tema. A ficção atin­
ge sua possibilidade própria de constituição da experiência ou, mais
precisamente, de pré-constituição dos esquemas possíveis da experiência, não
como realidade, mas sim como irrealidade. Por isso, contudo, é preciso corrigir
a leitura quase pragmática, criadora de ilusão, não por meio de uma segunda
leitura quase pragmática, embora diferente, mas sim por meio de uma recepção
que se define, em face da recepção de base quase pragmática que a funda, c0­
mo auto--referencial. Só assim a dimensão auto--interpretativa do texto, que se li­
ga fundamentalmente à interpretação dos leitores, se toma visível e, deste mo-­
do, também visível o desequilíbrio entre determinação e indeterminação
intencionada pelo próprio texto, que é destruído quando o leitor preenche os
vazios do texto, com sua própria criatividade e, assim, altera a figura de relevân-
149
cia do texto. Do desequili'brio instalado no próprio texto, resulta a estrutura de
interesses do leitor implícito, pressuposta com a própria situação comunicativa
ficcionaI. A figura de relevância do texto é a dinâmica temática objetivada, que
se manifesta, de modo específico, seja no desenvolvimento de um máximo em
contextos sucessivos, como na dinâmica extensiva do romance, seja no desdo­
bramento de um máximo em contextos simultâneos, como na dinâmica inten­
siva da lírica. A medida que o texto ficcional articula uma figura de relevância e
só nesta medida, possibilita uma experiência que não deve provir de uma reali­
dade alheia, mas que, por assim dizer, se conscientiza de sua própria estrutura
no mundo artificial da ficção, constituido de forma a fàzer sentido (sinnhaft). E
de ressaltar, ao mesmo tempo, que as relevâncias do texto ficcional nem são pre­
viamente dadas pelo mundo cotidiano, nem dele divergem como meros postu­
lados, mas sim que devem ser elaboradas e garantidas pelo trabalho no próprio
texto. A relevância temática J importa, no texto ficcional, apenas na proporção
em que é funcionalmente elaborada. A elaboração funcional, em um sentido
técnico o levar a sério, é a homenagem do autor à relevância representada por
ele no meio da funcionalidade. Torna-se, deste modo, também possível temati­
zar, na ficção, novas figuras de relevância ou submetê-Ias à prova, a título de ex­
periência.38 O mundo da ficção é um mundo das figuras de relevância "elabo­
radas" concorrentemente, que determinam o horizonte da práxis da vida como
modelos orientadores da experiência.
A figura de relevância do texto ficcionaI só é esgotada quando a constitui­
ção deste e seu plano são apreendidos numa visada auto-referencial. Também !ser
ressalta, referindo-se a Cassirer, o "caráter auto-reflexivo do discurso ficcionaI".
No entanto, este não é para ele a meta da ficcionalidade, mas apenas seu ponto
de partida: "O caráter auto-reflexivo do discurso ficcional coloca pois à disposi­
ção da imaginação as condições de apreensão, capacitando-a para criar um obje­
to imaginário". 39 A "figuração" (Vergegenwartigung) do não dado, ou seja do "au­
sente",40 em que Iser vê o trabalho da auto-reflexividade, não é específico,
conrudo, ao texto ficcional, pois, para dar lUll exemplo, também lUll texto his-
38 A nova concepção do estilo por Flaubert, considerado como "maneira absoluta de
ver as coisas" poderia assim ser compreendida, de modo totalmente não metafísico, como um
programa de afastamento das figuras de relevância estereotipadas e, desta forma, ao mesmo
tempo, de afastamento da reificação dos clichês verbais a elas correspondentes.
39 "Oie Wirklichkeit der Fiktion" (op. cit.), p. 292.
40 P. 291.
150
toriográfico evoca O "ausente". A idéia da auto-reflexividade, que, em lser, só ga­
nha um valor funcional considerando-se a estrutura possibilitadora da recepção,
parece-me que deva ser radicalizada, de modo a se converter na idéia básica com
que se capte a da ficção. Dessa maneira, porém, a ficção já não se apresenta c0­
mo um evento, que devesse ser ordenado e apreendido apenas pela constituição
de sentido da recepção, mas sim como a manifestação de um agrupamento, mais
ou menos complexo, de conceitos, que organizam lUlla figura de relevância, c0­
mo o equivalente de um esquema da experiência. Nestas condições, a indetermi­
nação, a incompletude, a demarcação fragmentária da ficção adquirem lUll esta­
tuto teórico, que é encoberto,em vez de elucidado, pela atividade criadora do
leitor.41 A condição específica da opera aperta é apenas apreensíveI se não for
"preenchida", por meio da transposição quase pragmática do leitor, na unidade
aparente de uma figura de sentido, mas se a recepção quase pragmática for con­
duzida a uma reflexiva, que dê justa conta quer do momento da obra, quer do
de sua abertura. Pierre Macherey, em sua Théorie de Iaproduction littéraire,42 sub­
meteu a teoria de Umberto da "opera aperta",43 entendida como possibilidade
da atividade receptiva, a uma crítica, a partir do ponto de vista da estética da pro­
dução, que me parece válida, mesmo considerando o extraordinário aperfeiçoa­
mento por Iser do argumento criticado: "Assim o não dito do livro é uma falta a
ser preenchida, uma insuficiência que se precisaria recuperar. Não se trata de um
não dito provisório, que se poderia eliminar definitivamente. O que é preciso é
discernir seu estatuto necessário de não dito na obrà'.44
A recepção de textos ficcionais precisa de uma orientação teórica, que
também permita que se indaguem os vazios e as inconsistências do texto, do
ponto de vista de suas implicações teóricas. Exige-se ao leitor, a título de ex­
periência, a constituição de figuras complexas de relevância, que superem o
horiwnte de sua práxis cotidiana e que possam então, justamente, se conver-
4\ Neste contexto, é importante a distinção proposta por Karl Maurer entre as lacunas
de informação (Informationslüeken) e os vazios (Leerstellen), que, na recepção, são necessaria­
mente preenchidos "Formen des Lesens" ("Formas de leitura") (Trabalho apresentado ao Con­
gresso da associação de romanistas alemães, 9-11 de outubro de 1975, em Mannhein), p. 20ss.
Por outro lado, deve-se ainda acentuar que também a "abertura" ficcional sempre pressupõe o
princípio da unidade da ficção.
42 Pour une théorie de Ia produetion littéraire, Paris, 1970 (l" ed. 1966).
43 Opera aperta, Milano 1962.
44 Pour une théorie de Ia produetion littéraire, p. 103.
151
terem em estimulo para a formação de figuras da experiência vivencial, quan­
do constituídas pelo leitor numa atitude absolutamente referente ao objeto,
isto é, o texto. A provisoriedade de cada recepção textual é discernível ape­
nas do ponto de vista da norma do texto, que se instala por meio da institui­
ção da própria linguagem. Só em vista disso, pode-se transformar a proviso­
riedade em ponto de partida para um movimento reflexivo, que tome cada
figura de recepção como base para a seguinte, mais distinta e mais clara.
A auto-reflexividade do texto ficcional implica, para o leitor, a tarefa
de tematizar as suas estruturas formais, no horizonte das de conteúdo. To­
do conteúdo deve ser compreendido na recepção do texto ficcional como
pseudo-referencial e ser derivado dos conceitos que o produzem. Por con­
seguinte, a predominância da forma é constitutiva para o texto ficcional e,
deste modo, prescreve uma condição para a sua recepção. Esta afirmação,
contudo, ainda precisa ser melhor explicitada. O caráter formal da ficção
não remete nem a uma estética da forma, como corresponderia ao progra­
ma de um lart pour lart, nem a um conceito de forma de tipo puramente
estrutural. Ao contrário, o caráter formal da ficção é determinado pela qua­
lidade que esta possui de "representar", enquanto ordenação de conceitos,
formas possíveis de organização da experiência. A representação da ficção, e
nisso concordo com Iser, não é uma representação do mundo, mas sim uma
representação da possibilidade de organização dos complexos da experiên­
cia. A história da descrição, como um esquema elementar de organização da
experiência, poderia mostrar, para as formas de descrição do século XVIII
até as descrições do nouveau roman, como, no campo da ficção, as formas
de organização foram postas à disposição para a experiência da realidade,
adquirindo importância paradigmática para a história da experiência coti­
diana de si próprio e dos outros.
O significado do texto ficcional é o significante de sua forma. Isso não
exclui, nem inclui a referência deste significado a uma realidade. Se desejásse­
mos descrever este problema, seguindo Gadamer e ]auss, com o paradigma de
pergunta e resposta,45 deveríamos dizer que o texto ficcional oferece respostas
45 O: H. G. Gadamer: Wahrheit und Methode (Verdi1tie e método), Tübingen, 1965,
p. 351 ss: "Die Logik von Frage und Antwort" ("A lógica de pergunta e resposrà'). A rrans­
posição do paradigma de "pergunta-resposrà' a partir dos rexros sistemárica e pragmaticamen­
te narrativos para os textos narrativos ficcionais não é tranqüila, pois o texto ficcional não po­
de, no mesmo sentido, ser tomado como "resposrà'.
152
que são metáforas de perguntas. Assim como a pergunta pode ser compreen­
dida como a "formà' de sua resposta, e, deste modo, é mais "poderosà' que
esta, assim também o texto ficcional é mais "poderoso" do que qualquer tex­
to referencial, porquanto apenas projeta formas de organização da experiên­
cia e as concretiza em figuras de relevância. Só a volta reflexiva da ilusão,
apreendida quase pragmaticamente, para a ficção e para sua articulação pseu­
do-referencial, revela a forma que é visada pela instauração ficcional.
Assim como há textos ficcionais que só se concebem do ponto de vista da
recepção quase pragmática, assim também há outros cuja própria forma já exi­
ge uma recepção reflexiva. Há assim romances como a Éducation sentimentale
de Flaubert, A Ia recherchedu tempsperdu de Proust ou o Zauberberg (A monta­
nha mágica) de Thomas Mann, cuja composição só se decifra no horizonte da
segunda leitura, convertendo-se no tema propriamente dito. A dominância do
movimento centrífugo de recepção sobre o centrípeto é aqui neutralizada pelos
procedimentos da própria apresentação. Isso vale ainda mais para um poeta co­
mo Mallarmé, que constrói suas obras de tal maneira que nelas, de antemão,
desaparece a possibilidade da recepção quase pragmática. Mallarmé, que atacou,
incansavelmente, a recepção quase pragmática da ficção como incapacidade de
ler, compôs de forma proposital seus poemas como ficções, desenvolvendo-os a
partir de um conceito de ficcionalidade, que ainda hoje se pode considerar
atual. Para Mallarmé, a ficção é fundamentalmente um esquema auto-referen­
ciado. Para ele, ficção e reflexão mantêm uma conexão indissolúveL A este esta­
do de coisas corresponde a poética de seus poemas. Eles impedem a leitura qua­
se pragmática, por meio de um sistema de procedimentos poéticos combinados.
Uma técnica sintática do suspense, ao lado de uma simultânea abertura semân­
tica das unidades de sentido unificadas pela sintaXe, retarda a passagem do sig­
nificante para o significado e, deste modo, traz à consciência a verbalidade
(Sprachlíchkeit) desta própria passagem. Assim a reversão da relação do tema
com o horizonte pode-se aqui mostrar paradigmaticamente. No horizonte da
significação aparece como tema a concretização do ato verbal enquanto organi­
zado em sua manifestação de sentido ainda estranho, que se conecra, de modo
indissolúvel, com o sentido afinal ganho. Ao suspensesintático e à polissemia se­
mântica, que devem perder a ambigüidade no processo da formação contextual,
acrescenta-se a dominância da negação, que leva da materialidade dos fatos
(Sachverhalt), instaurada pela ilusão referencial, de volta ao puro esquema do es­
tado de fato (Sachlage), que é negado à materialidade dos fatos. Em Mallarrné,
153
ficção e negação se encontram em uma relação privilegiada. Tão-só o esquema
da negação apresenta a pura conceitualidade, ruja possibilidade de experiência
constitui, para Mallarmé, a quintessência da ficção.46
Começa com Mallarmé uma tradição da ficção que acolhe, em sua cons­
tituição, a auto-reflexividade como traço fundamental e que assim, de antemão,
bloqueia a possibilidade da recepção quase pragmática. O fato de que seja im­
pedida ou retardada a dissolução da ficção na ilusãonão deve ser entendido c0­
mo provocação para ganhar, pela atividade do próprio leitor, uma quase refe­
rencialidade, mas sim como um impulso para cumprir o movimento reflexivo
da recepção, já pré-traçado pela forma da própria ficção. Em vista desta nova
forma de ficção, que se tornou desde Mallarmé a forma genuinamente moder­
na, só uma forma de recepção que transcenda a ficção quase pragmática ainda
está apta a captar o texto. Na tradição inaugurada por Mallarmé, incluem-se
tanto as descrições de coisas por Francis Ponge, em que a história da experiên­
cia da coisidade (Dingerfahrung) dos objetos sempre converge com a história de
uma experiência da linguagem, quanto as descrições de Jean Ricardou e os jo­
gos verbais do mais recente nouveau roman, por exemplo em Philippe Sollers,
cuja poética do materialismo semântico não seria pensável sem a teoria mallar­
meana da ficção. Também os textos curtos e enigmáticos de Gertrude Stein, que
trazem o título de Tender buttons, não mais permitem sua solução referencial,
pois sua significação só pode ser captada se a abertura referencial se mostrar co­
mo horizonte de uma organização sintático-formal tematizada. Pela desorgani­
zação do material semântico, torna-se mais visível a força organizatória no cam­
po sintático, à medida que este surge, semanticamente, como estrutura
possibilitadora da perspectivização de estados de fato. Assim como as ações ver­
bais poéticas podem "tornar visíveis" esquemas de ações verbais pragmáticas, as­
sim também as "ocupações" poéticas de estruturas frasais podem tornar visíveis
as estruturas frasais como formas de articulação possível.
Uma literatura experimental, ao explorar as possibilidades da própria
ficção e da reflexividade tematizada por ela, representa, ao mesmo tempo, pa­
ra a recepção o desafio de abordá-Ia de modo reflexivo e, assim, ampliar o pró­
prio potencial de recepção.
46 Esta posição será em breve detalhada em wn ensaio sobre posição e negação na "Pro­
se pour des Esseintes" de MaUarmé [Hoje já se encontra publicado, cf. "Position and negation
in MaUarmé's Prose pour des Esseintes", in Valefrench studies, n. 54, 1977, N. T.].
154
Mesmo a recepção de ficções precedentes não fica imune a este proces­
so. A ampliação do potencial de recepção ganho pelo contato com uma fic­
ção experimental permite que se apresentem as ficções do passado sob novas
premissas de recepção.
5.
A auto-reflexividade da ficção não implica a sua autonomia quanto ao
mundo real. O mundo da ficção e o mundo real se coordenam reciprocamen­
te: o mundo se mostra como horiwnte da ficção, a ficção, como horizonte do
mundo. O âmbito da recepção dos textos ficcionais demarca-se apenas na
apreensão desta dupla perspectiva.
Já do fato de que a ficção, pela maneira como emprega a linguagem, se
movimente no horizonte da experiência possível - não importa o quanto as­
sim se afasta da realidade a nós acessÍvel- se infere que o mundo, como hori­
wnte da ficção, literalmente a pré-orienta. Os alinhamentos (Fluchtlinien) da
ficção e de seu mundo sempre convergem em uma experiência do mundo. Es­
te é o pressuposto básico posto em jogo pelo receptor, mesmo quando a ficção
se mostra por completo esquiva àquela experiência. Se tudo na ficção fosse, em
princípio, diverso de nossa experiência da realidade, ela não mais se relacionaria
a um conceito de realidade e assim não seria nem verbalmente articulável, nem
constituível na recepção. Exatamente por isso, contudo, parece problemático o
conceito de "campo de referência ficcional" que Anderegg, em Fiktion und
Kommunikation, contrapõe ao campo de referência do leitor. Pois, se o próprio
texto ficcional é, de fato, o campo de referência imediato de suas partes, entre­
tanto, tal campo não conduz a um campo de referência ficcional- que não é
relacionável ao campo de referência do leitor - mas sim leva a um campo de
referência posto em jogo pelo leitor. Para Anderegg, o campo de referência fic­
cional da ficção não é ela mesma, mas sim a hipótese de um "outro mundo",
em que a ficção encontra o seu lugar. Mesmo se este outro mundo tem uma mí­
nima base comum com o mundo de nossa experiência, assim se daria apenas
para que pudesse saltar para o mundo estranho: "O leitor supera seu campo de
referência por meio da constituição do campo de referência ficcional, isto é,
pondo em jogo seu campo de referência como basepara a interpretação, mas o
põe em jogo deftrma interpretativa. O fato de cada interpretação partir do cam-
155
po de referência do leitor, ao qual contudo sobrepuja, significa que o próprio
campo de referência é questionado pelo ficcional. A interpretação do texto fic­
cional, isto é, a apreensão do campo de relação fiecional que nele se constitui,
deve ser entendida como o questionamento do próprio campo de referência ou,
para tomarmos um conceito da teoria formalista, como o seu estranhamento". 47
Não se pode duvidar que o estranhamento é urna das formas pelas quais
a ficção se manifesta. Parece no entanto duvidoso que toda ficção seja enten­
dida sob o estranhamento. O critério de estranhamento, que questiona um
certo campo de referência por certa via do ficcional, não é bastante se tomar­
mos o trabalho interno (Durcharbeitung) das figuras de relevância como o al­
vo próprio da constituição do texto ficcional. Sua mediação entre referencia­
lidade e auto-referencialidade evidencia uma diferença que, em Anderegg,
não é discutida: a diferença entre campo de referência histórico e sistemático
e, deste modo, entre mundo "histórico" e mundo "sistemático". Aquilo que
um certo mundo histórico expulsa de si como ficcional, pode ser mostrado
como índice de um "mundo sistemático".
lser chamou a atenção para o furo de que o mundo ficcional sempre pres­
supõe um repertório de normas, conceitos, esquemas, repertório que ultrapassa
o mundo ficcional e leva ao mundo da experiência e dos receptores.48 Um dos
serviços prestados pela ficção consiste em evidenciar este sistema de normas.
Quando !ser, em suas reflexões de caráter sistêmico T, parte da premissa de que
o repertório vivencial, ternatizado no texto, é, deste modo, "equilibrado" (bilan­
ziert),49 parece-me limitar em demasia a determinação do âmbito da ficção a
uma de suas formas históricas. Creio que se poderia mostrar que, ao lado das for­
mas totalizantes da ficção que !ser tem em vista - que, por assim dizer, temati­
zam o sistema social total em urna metareflexão - ainda são possíveis furmas fic­
cionais de caráter particularizante. Independentemente porém da pergunta sobre
o "efeito de equilt'brio" da ficção, é importante considerar a realidade do repertó­
rio, pressuposto pelo texto ficcional, no receptor. Os repertórios culturais não se
inter-relacionam, de imediato, na consciência do leitor, de forma conceituaI (be­
grifJlich ), mas se apresentam como experiência inarticulada. No horizonte da ex-
47 Fiktion und Kommunikation, p. 10755 (grifo meu). Cf também a resenha de Wal­
ter Bruno Berg, in Poetica, t. 6, 1974, p. 513-519.
48 Cf. "Die Wirklichkeit der Fiktion", p. 298 55.
49P.318.
156
periência do receptor sempre está presente aquilo que a teoria do sistema analisa
como repertório. Quando o leitor recebe um texto ficcional, baseia-se, mais ou
menos inconscientemente, na rede de orientação de sua experiência. No relacio­
namento espontâneo, não refletido, da ficção com a experiência, encontra-se
uma possibilidade específica, mas ao mesmo tempo também um risco, que de­
termina a recepção contemporânea e a diferença de cada uma das recepções pos­
teriores. O produtor e o receptor da ficção encontram, no horizonte da expecta­
tiva, um solo comum, que possibilita urna comunicação conotativa e semiótica
multifacetada. Por mais que o produtor da ficção se afaste da representação da
realidade, não pode, assim como seu receptor, ultrapassar o horizonte de sua ex­
periência. Justamente por isso é possível uma comunicação conotativa entre o
produtore o receptor da ficção, que antecede seus papéis na situação fiecional.
Em virtude de o receptor e o produtor disporem de um repertório comum, há
urna diferença fundamental entre sua situação comunicacional e a situação co­
municacional assimétrica da recepção posterior. Se o receptor posterior põe irre­
fletidamente em jogo o seu repertório, isso conduzirá ao fulseamento da ficção.
Por outro lado, ao texto do passado fà.ltam em geral exatamente aqueles sinais
que permitiriam a entrada em cena do repertório dos leitores. O leitor não con­
temporâneo é por isso obrigado, não só a estabelecer uma relação com o texto,
mas ao mesmo tempo a reconstruir os repertórios de que dispunha o receptor da
comunicação original. No entanto, esta reconstrução nunca poderá restituir o
horizonte original da experiência; ela não passa de relativa e particular, pois é pos­
sibilitada por urna conceitualidade explícita. Mas a extinção do contexto da ex­
periência original não tem apenas um aspecto negativo. À medida que reduz os
efeitos peculiares das significações conotativas, remete para a conceitualidade es­
sencial do texto e, desse modo, dirige especialmente a recepção quase pragmáti­
ca, criadora de ilusão, para a própria ficção. A diferença temporal entre a produ­
ção e a recepção f.rz com que se perca o encanto dos estereótipos da experiência,
trazidos pela própria recepção, e isso permite que se patenteie, sob a qualidade
quase pragmática, a qualidade fiecional do texto. Aqui se mostra como a incapa­
cidade de ler os textos ficcionais como textos, limita decisivamente o potencial
de recepção do leitor. Como lhe está vedada a gratificação da leitura quase prag­
mática, ele forçosamente exclui o texto ficcional do passado do círculo de seus in­
teresses, considerando-o árido ou enfadonho. Contudo, mesmo nesta aridez de
um texto que se afastou dos conceitos inarticulados da experiência e assim se fez
efetivamente visível, Friedrich Nietzsche via urna vantagem para a recepção que
157
se volta para o próprio texto: "O necessário ressecamento de todo o bem. - Ora!
Compreender uma obra exatamente como o tempo que a produziu? Mas o pra­
zer, o assombro e a aprenclizagem são bem maiores quando não se pensa assim!
Você não nota que toda obra nova de qualidade, enquanto se encerra na atmos­
fera úmida de seu tempo, não vale quase nada, justamente por ainda trazer con­
sigo o cheiro das feiras e das inimizades e as opiniões e toda a efemeridade entre
o hoje e o amanhã? Depois ela resseca, sua "temporalidade" se extingue e só en­
tão ela alcança seu brilho profimdo e o perfume, sim, se for o caso, seu olhar se­
reno da eternidade".50
Precisou-se de um filósofo que fosse um filólogo, de um filólogo que fos­
se um filósofo, ou seja, de um questionador de todos os estereótipos da expe­
riência, para se revelasse a aridez como uma qualidade estética do texto, quali­
dade que, sem nenhuma metáfora, é a experiência estética básica do leitor,
caríssimas vezes refletida. A aridez da ficção, sua sobriedade, encontra-se em sua
conceitualidade. E a esta só se alcança pela recepção orientada para a própria fic­
ção, não mais para a ilusão ficcional. Walter Benjamin, que, seguindo Nietzs­
che, renovou a reflexão sobre a distância temporal entre obra e recepção, nas
"Considerações preliminares" de seu ensaio sobre Wahlverwandtschaften (As afi­
nidades eletivas) de Goethe, estabeleceu a diferença entre o comentário dirigido
ao "conteúdo material" da obra e a crítica dirigida a seu "conteúdo de verdade".
Primeiramente, o comentário tem de escavar o conteúdo material, os "registros"
que a obra pressupõe, no horiwnte de sua recepção contemporânea. À medida,
contudo, que esta já é uma atividade conceitualmente controlada, assim prepa­
ra a apreensão conceitual da própria ficção: "Quanto mais o tempo passa, a ta­
refa preliminar dos críticos posteriores consistirá na interpretação do que sur­
preende e espanta, do conteúdo material das obras. Eles se tornam comparáveis
a um paleógr;ifo diante de um pergaminho, cujo texto apagado é recoberto pe­
los traços de uma escrita mais forte, que lhe superpuseram. Assim como o pa­
leógrafo deveria começar pela leitura desta segunda escrita, assim também o crÍ­
tico deve começar pelo comentário. E, de imediato, ele aí encontra um critério
inestimável para o seu julgamento: só então pode colocar a pergunta crítica fUn­
damental, a saber, se a aparência do conteúdo de verdade é devida ao conteúdo
material ou se é a vida do conteúdo material que decorre do conteúdo de ver­
dade? Pois, dissociando-se na obra, estes dois elementos determinam a sua imor-
50 Morgenrote (Aurora), p. 1250.
158
I
talidade. Neste sentido, a história das obras prepara a sua crítica e assim a dis­
tância histórica aumenta o seu poder" .51
A verdade em Benjamin - que aqui ainda apresenta uma terminologia
platonizante - é a organização conceitual dos esquemas de experiência, que
permite organizar a própria experiência, de um modo tal que ela realiza uma
conexão de inexcedível relevância.
Ao mundo, que, como horizonte da ficção, a esta perspectiviza, pertence o
mundo da literatura, em cujo plano de fimdo situa-se um dado texto. Esta cor­
relação significa, inicialmente de maneira pouco específica, que a ficção partici­
pa dos esquemas elementares de textos, esquemas que são também o substrato
das ações verbais pragmáticas. Os textos ficcionais representam os esquemas das
ações verbais e, enquanto tais representações, relacionam-se ao mesmo tempo
com os esquemas da ficcionalidade, ou seja, com os gêneros literários e com as
figuras de relevância, instauradas com eles.52Contudo esta orientação sistemáti­
ca é apenas o pressuposto de uma orientação histórica, no contexto da literatura.
O texto ficcional relaciona-se com os paradigmas literários, por meio da imita­
ção, da superação, da continuação, da paródia etc. Por outro lado, relaciona-se
com o horizonte de expectativa de um leitor pressuposto e é por este inserido,
com maior ou menor direito, em seu próprio horizonte de expectativa. A inter­
textualidade, contida no próprio texto, pode coincidir com ou se opor ao hoti­
mnte de expectativa do leitor. Na perspectiva do leitor, o texto é localizado em
um sistema preexistente de pontos fixos paradigrnáticos. Apesar disso, a posição
do texto varia constantemente, pois o sistema dos pontos fixos paradigmáticos,
por seu lado, está submetido a uma contínua mudança. Enquanto na perspecti­
va do leitor contemporâneo, o sistema paradigrnático do leitor pode ser partilha­
do pelo autor, com o crescimento da distância temporal o sistema do texto e o
sistema do leitor cada vez mais se afustam. Assim o texto recebe de seu horizon­
te de passado um horizonte de futuro que o ultrapassa. Neste horizonte de futu­
ro, pode-se mostrar, de um lado, o efeito da obra e, por outro, a obra se articula,
com precisão cada vez maior, por meio de um contexto paradigmático cada vez
mais abrangente, como diferença concreta. A atividade exigida do leitor, em face
51 Sehriften (Escritos), t. I, p. 55 ss.
52 Cf. do autor "Geschichte ais Exemplum - Exemplum ais Geschichte" (A Histó­
ria como exemplo - o exemplo como histórià') (1973), republicado in Text ais Handlung (O
texto como ação), p. 14-41 e "Baudelaires 'Tableaux parisiens' und die Tradition des tableau de
Paris", in Poetiea, r. 6, 1974, p. 285-322.
159
dos horizontes externos da obra, pode ser considerada como "situamento" (Si­
tuierung), através do qual a recepção permanece como constituição. Do mesmo
modo que a elaboração interna do texto abre uma infinitude intensiva, assim
também o "situamento" do texto oferece uma infinitude extensiva. O texto par­
ticipa de um sistema objetivo, dotado de quadros de referência infindavelmente
diferenciáveis e articuláveis. Ao mesmo tempo, porém, ele fàz parte de uma fOr­
mação intelectual (Bildung;geschichte) subjetiva, que nunca é idêntica às outras
formações intelectuaise que implica uma variedade não teorizável de recepções
possíveis. O fàto de um leitor ler Tolstoi depois de haver lido Proust ou de ler
Proust depois de haver lido Tolstoi, pode ser de importância decisiva para a re­
cepção concreta. No entanto, esta dimensão da recepção é apenas mencionável.
Ela não permite sua apreensão sistemática. Pode-se, contudo, sem dúvida afirmar
que a comunicação por meio da recepção literária só é possível na medida em
que existe uma homologação das histórias da recepção. Seria urna tarefà provei­
tosa para uma ciência empírica da literatura mostrar como a recepção literária se
realiza usualmente no quadro de padrões literários de recepção, ou seja, no qua­
dro que estabelece as motivações para as escolhas das leituras. Desse modo, por
exemplo, pela pesquisa das bibliotecas particulares, seria possível tratar das ten­
dências gerais da recepção e traçar as "redes de recepção".
6.
"O horizonte circundado por mitos encerra todo um movimento cultu­
ral." Este pensamento de NietzSche53 ultrapassa seu contexto - a pergunta so­
bre a função do mito para a tragédia grega - e capta um momento que é es­
sencial para cada forma de ficção, inclusive para aquela que se separou da
forma do mito. Tomar o mito como portador de horizonte é urna das obser­
vações fecundas de que é tão rica a filosofia aforismática de NietzSche. Gene­
ralizando, assim deveria soar a frase: o horizonte circundado por ficções encer­
ra todo um movimento culrural. O próprio NietzSche não estaria de acordo
com esta frase, pois, incluindo-se na tradição de Schiller e Schlegel, opunha
sentimentalmente o mundo do passado fechado no rnítico à "insatisfàtória cul-
53 Die Geburt der Tragodie aus dem Geiste der Musik (O nascimento da tragédia a partir
do espirito da música). in Werke, t. I, p. 7-134, passagem na p. 125.
160
I
rura moderDà'. Apesar disso, do aforisma nietzScheano sobre o mito como
portador de horizonte, pode-se compreender a ficção, no seu caráter de hori­
zonte vivencial, e a função pragmática que desta maneira lhe cabe. Ao horizon­
te de expectativa do leitor responde o caráter concreto de horizonte da própria
ficção e isso de tal maneira que a ficção não satisfaz simplesmente o horizonte
de expectativa do leitor, mas a ele se relaciona como seu reverso. O momento
da horizontidade (Horizonthajtigkeit) da ficção ainda precisa ser analisado, an­
tes que se indague sua função pragmática.
O fato de a ficção mostrar-se como horizonte do mundo significa, antes
de tudo, que ela estabelece uma divisória, a partir da qual dois campos são vi­
sualizados. A ficção não é um reflexo do mundo, nem a representação de um
outro bem diverso. Ao contrário, ela descreve, numa configuração sempre no­
va, a tensa mediação entre os dois campos, à medida que os reúne em uma fi­
gura de relevância. É nesta fronteira que se articulam as figuras de experiência
possível, a saber, na distância insuprirnível de uma horizontidade estética, que,
ao mesmo tempo, se define pela intimidade de uma concepção prévia do mun­
do e pela estranheza do outro, oposto àquele. A superação da horizontidade da
ficção, por isso, só é possível para o lado da práxis, ao preço da ilusão, e, para
o lado do imaginário, ao preço da comunicabilidade. O outro, que define a fic­
ção em sua força de horizontidade, pode aparecer de dois modos: pela "ficção
metonímica" - o outro da continuidade, que provém da exploração das pos­
sibilidades não atualizadas da combinatória do existente - ou pela "ficção me­
tafórica" - o outro, que concerne apenas ao modo de manifestação do fami­
liar, que, enquanto apresentado sob condições estranhas, pode-se tornar objeto
de uma nova experiência.
A recepção de um texto como ficção que resgate sua ficcionalidade é
sempre uma recepção que instaura horizontes. Só quando, na recepção qua­
se pragmática, estiver percorrida a imediatidade da criação de ilusão e o rece­
bido estiver sedimentado como lembrança (Erinnerung) - na qual se cons­
titui, de modo inarticulado, uma figura de relevância, obtida pela figura de
relevância articulada do texto -, só então a ficção recebe a sua verdadeira for­
ça de horizonte (horizonthaji) e se decide a sua qualidade. Ou neste caminho
ela se extravia, por ter apenas possibilitado a criação da ilusão, ou ela agora ad­
quire, definitivamente, seu contorno próprio. O que se realiza aqui no pro­
cesso de sedimentação é apreensível, por assim dizer, motu proprio, em um ní­
vel superior de recepção, como a instauração de horizonte pelo trabalho
161
interno (Durcharbeitung). A proximidade da ilusão é levada pelo trabalho
conceitual interno para a distância horizôntica da ficção. "Quanto de mais
perto se olha uma palavra, tanto de mais longe ela torna a olhar" ("Je ndher
man ein Wórt ansieht, desto femer sicht es zurück"). Esta aguda frase de Karl
Kraus,54 aplica-se melhor à ficção e a seu uso auto-referencial, do que a qual­
quer outro dos empregos da linguagem. O trabalho interno, consciente, con­
trolado e a sua instauração de horiwnte não é, contudo, apenas a etapa pos­
terior que deixa intacta a experiência primária da recepção. Relaciona-se, ao
contrário, com a primeira etapa desta. Assim como o trabalho interno nunca
funciona sem o acúmulo de experiências recepcionais básicas, assim também
as próprias experiências básicas estão sempre abertas para a complementação,
ampliação e aprofundamento. O conhecimento metódico, científico, no que
concerne ao essencial, não se opõe à compreensão primeira. Ele apenas é co­
roado de êxito quando pode ser incluído na própria experiência estética ini­
cial, ampliando-a, assegurando-a ou ainda problematizando-a.
O fato de as ficções terem um caráter de horiwnte não é apenas uma ex­
periência da leitura subjetiva. Isso se evidencia no paradigma do mito, portan­
to naquela forma de ficção em que Nietzsche evidenciou a horiwntidade da fic­
ção. Os mitos são, por excelência, ficções públicas e não projeções subjetivas do
inconsciente. E apenas como ficções públicas podem encerrar e determinar o
horÍwnte de uma cultura, não só o horiwnte privado de expectativa de um lei­
tor. O que vale para o mito como forma elementar da ficção pública, também
vale para as ficções, enquanto mitos da era não-mitica. Mesmo que estes se tor­
nem, com a passagem para o romance moderno, em mitos da subjetividade, a
eles permanece ligado o momento da publicidade. As ficções são "reais" à me­
dida que são públicas; apenas enquanto públicas, a elas pertence uma horiwn­
tidade, não só subjetivamente provada, mas inter-subjetivamente presente. As­
sim como Kant diz do juizo de gosto que ele é exigido de cada um, poder-se-ia
dizer da ficção que ela exige de cada um a sua recepção e que apenas a recepção
geral e abrangente seria a sua realização ideal. Só a publicidade da ficção pode
resgatar a sua genuína função pragmática. Parece-me impossível que esta se en­
contre seja numa função imitativa, que dissolve a horiwntidade da ficção, seja
na função de estabelecimento imediato de normas. Ao contrário, a ficção só rea-
54 Pro Domo et Mundo, Beim U'órtgenommen (Pro Domo et Mundo. Ao pé da letra).
~ünchen, 1955,p.291.
162
liza uma função pragmática, que não afete sua horiwntidade, quando é com­
preendida como um relais para a comunicação social. A presença social da fic­
ção, isto é, sua publicidade (Bekanntheit) - que vai além da simples relação do
leitor solitário com a ficção isolada, publicidade comparável à das próprias pa­
lavras e que tem algo de sua constância - instaura a possibilidade de pontos de
orientação objetivos-subjetivos, a partir dos quais se podem situar tanto o indi­
víduo, quanto os grupos sociais. À medida que a ficção assume o papel de um
relaispara a comunicação social, tornando disponíveis esquemas de experiência
pseudo-referencialmente manifestados, ela ajuda a facultar a identidade social.
É nesta medida - e não simplesmente por projetos sociais alternativos,essa lacuna teria sido preciso tra­
zer o leitor para a estrutura da obra, isto é, mostrar que seu papel vivo e ativo
é previsto pela própria estrutura da obra. (Em termos mais rigorosos, em re­
lacionar, como notara Warning a propósito de Iser, determinação e indeter­
minação.) A obra assume seu caráter histórico quando a intervenção do leitor
não se confimde com a de um mero complemento. Não é esse, entretanto, o
caminho que toma a reflexão inicial de Jauss. Ao contrário, contenta-se ain­
da em declarar que "o conjunto de eventos da literatura é fundamentalmen­
te constituído pelo horizonte de expectativas da experiência literária de leito­
res, críticos e autores contemporâneos e posteriores" (ibidem, 173).
20
Embora sucinta a análise anterior nos faz entender por que Jauss se es­
forçará, nos anos seguintes, em ultrapassar aquela lacuna. É o que fará procu­
rando ampliar sua teoria pela incorporação das categorias fundamentais da ex­
periência estética (cE, a seguir, os Textos I e 11).
Jauss encontrava em Adorno o adversário sob medida. Atacando, em sua
póstuma.Astheti>ehe Theorie (1970), o prazer estético como adaptador da arte ao
consumismo burguês das emoções ao mesmo tempo que confessava a arte não
ter vez sem urna gota de prazer, Adorno permitia a Jauss armar-se cavaleiro, de­
fensor simultaneamente da arte e do establishment. Jauss criticava a férrea oposi­
ção adomiana entre o culto da negatividade, praticada pela arte não cooptada, e
o enfeitiçamento generalizado, próprio da sociedade de consumo. A oposição ab­
soluta equivalia a ver o Ocidente vítima de um impasse - o qual se mostra ca­
da vez mais cabal e sem que alguém se atreva a dizer como dele sair -, ao pas-
, so que Jauss procurava wna saída dentro da sociedade presente. Como entender
doutro modo a afirmação de um "caráter permanente da arte" (cf.Texto I,p. 56),
que a impediria de ser totalmente manipulável pelas leis do mercado? Como não
recordar o papel que a arte tinha para um Schiller, quando lemos, em Jauss, que
a estética adorniana da negatividade deve, ultrapassando o princípio vanguardis­
ta da violação da norma, favorecer "produções formadoras da norma da expe­
riência estética"? Ora, se essas produções são contra a violação só poderão ser ta­
tificadoras do status quo. Assim, contra o pessimismo de Adorno, Jauss afirmava
que a estética é, de qualquer forma, redentora. Sua refutação pois terminava por
mostrar sua verdadeira fàce: a de um liberal, que afinal crê que o mundo, apesar
dos contratempos, anda em boa direção. Éverdade que Jauss tinha o cuidado de
observar que sua reflexão fornecia apenas uma contributo para a história da ex­
periência estética. Mas, como fàzê-Io, sem se pressupor uma posição quanto às
demais experiências sociais? Jauss considerava que podia praticar essa separação
encerrando seu Texto 1 com a afirmação de Kant sobre a força de consenso que
a arte traria consigo. Mas repetir dois séculos depois a esperança de Kant, sem o
exame das mudanças sofridas neste entretempo pela sociedade, é converter o tex­
to kantiano em objeto de um ritualismo acadêmico.
Deixemos de lado essas considerações marginais e examinemos a reflexão
central do autor (cf. Texto 2). Ela parte das especificações com que desenvolve
a afirmação kantiana sobre o prazer desinteressado, próprio da arte. A primei­
ra deriva da interpretação de Moritz Geiger por Ludwig Giesz. Distingue-se
por ela entre o prazer dos sentidos, que existe tão-só em função do sujeito do
21
prazer, e o prazer estético, que supõe uma distância e uma tomada de posição,
pelas quais se encontra prazer no objeto do prazer. Jauss tem razão em reco­
nhecer o mérito de Geiger ao converter a f6rmula kantiana do prazer desinte­
ressado em "desinteresse interessado": o objeto nem é consumido pelo sujeito
do prazer, nem perde sua condição de alteridade. Mas objeta, também com
acerto, que assim não se distingue a experiência estética da experiência te6rica,
pois também esta supõe uma atitude de distanciamento. Ensaia pois um novo
passo pela análise da teoria sartriana do imaginário, com o destaque da aniqui­
lação da realidade, empreendida pela consciência imaginante. Importante por
diferençar o ato de percepção do ato de imaginação, a teoria sanriana contu­
do não explica por que o ato imaginante suscita o prazer estético. Torna-se en­
tão necessário a Jauss voltar a Giesz:
Na reação de prazer ante o objeto estético, realiza-se [... ] uma re­
ciprocidade entre sujeito e objeto, em que ganhamos interesse em nossa
ausência de interesse. (cE Texto 2, p. 76)
Aqui, Kant se revigora, em vcr-de se reduzir a um clichê inerme. Na ex­
periência estética, o sujeito tem a possibilidade de se afastar de si, de seus há­
bitos e valores cotidianos, para se experimentar na alteridade da obra. É ine­
gável, pois, o ganho da interpretação. Ela, contudo, encaminha para uma
conclusão que ainda parece insatisfàt6ria. Definida a experiência estética,
Jauss considera poder inferir as três categorias básicas, apoiesis, a aisthesis, a ka­
tharsis, que, segundo infiro, deverão presidir a teorização da arte. A falha do
raciocínio é prévia à sua feitura: prende-se à suposição de que a experiência
estética contém necessariamente um potencial renovador. Isso será verdadei­
ro apenas no caso de êxito absoluto. O parti pris era indispensável para justi­
ficar a crença do autor no potencial de renovação da sociedade que conhece­
mos. Gostaria que isso fosse inquestionável. Mas da data do original, 1977,
para cá, é a sensação contrária que se acumula.
Sob o neoliberalismo contemporâneo, a situação da arte é tão embaraço-­
sa quanto a do homem em geral. Extremamente merit6rio como era o esforço
de Jauss, seja em ultrapassar sua proposta inicial, seja em, rompendo com os li­
mites acadêmicos das disciplinas, pensar um fundamento para a teorização da
literatura, ele, entretanto, ainda é simplista ... por otimismo. Eis o paradoxo de
nosso tempo. Assim como Adorno, o defensor da música dissonante e dodeca-
22
fônica, reconhecia que não pode haver arte sem uma gota de prazer, devemos
reconhecer que não é possível estímulo para a reflexão sem uma gota de espe­
rança. Mas, quando a esperança se converte em puro otimismo, é dillcil distin­
gui-Io da defesa das estruturas existentes. Não se pode sequer dizer que Jauss caí­
ra na armadilha criada pela sociedade contemporânea. Ele era seu adepto. Os
limites de sua teoria derivam de sua opção. Mas daí seria ridículo estabelecer
mna relação de causa e efeito. Se assim fosse a superioridade teórica que reco­
nheceremos em seu companheiro de grupo resultaria de que ele fosse menos
simpático ao mundo contemporâneo. O que não é verdade. A apreensão da
complexidade e a busca de trabalhá-la são as únicas armas intelectuais disponí­
veis para pensar-se o impasse do qual ninguém ainda sabe como sair.
Passemos pois ao comentário, também ligeiro, do texto inaugural de
Wolfgang Iser. Ao passo que, por suas carências iniciais, a formulação de Jauss,
na prática, se apresentava apenas como "uma hist6ria da literatura do leitor"
(Gumbrecht, H. u., 1977a, 191) e, depois de sua retificação, como mna teo-­
rização carente de revisão, o texto inaugural de Wolgang Iser, "A Estrutura ape­
lativa dos textos" (1970), nos lançava de imediato na relação intrínseca entre o
texto literário e seu efeito (UTtrkung), empiricamente concretizado pelo leitor.
É a essa presença interna, existente mesmo antes de que surja um agente para
exercê-Ia, que Iser alude ao falar em "estrutura apelativà'. Reduzamos seu ar­
gumento a dois pontos capitais:
(a) o primeiro se projeta a partir de mna formulação extremamente sin­
tética de Gadamer:
o objetivismo histórico, à medida que se atém a seu método crÍ­
tico, encobre a implicação dos efeitos (die wirkungsgesehiehtliehe Verfleeh­
tung) em que a própria consciência histórica está enredada. (Gadamer,
H.-G., idem, 284)
A explosividade do enunciado está em assinalara exi­
girem sua realização ou imitação utópicas ou críticas - que a ficção alcança
aquela força de modelagem social, que Jauss tanto tem ressaltado. 55Entender a
ficção como relais da fOrmação da identidade social, da pré-formação da expe­
riência ou ainda da comunicação ideológica, significa que a sua função não es­
tá em oferecer respostas concretas, mas sim em servir de ponto de orientação da
práxis vital própria e alheia, enquanto figura de relevância conhecida por todos.
O valor pragmático que a ficção pode alcançar, não só como sensibiliza­
ção da faculdade da fala e "treinamento da faculdade de julgar", mas como re­
lais da comunicação pública, é mediado de múltiplas maneiras. A ficção, que
não se presta diretamente ao papel de sermão ou de guia de boas maneiras, é
a que importa para a função de distanciamento orientador. A polissemia do
mito é um exemplo tão elementar disso, quanto as fábulas de Esopo, que sem­
pre receberam novas interpretações, ora UllÍvocas, ora plurívocas. Contudo a
ficção, não importa por quantas mediações, está sempre relacionada com o
mundo da ação, cujo horÍwnte articula. Este relacionamento não se confunde
com o da recepção quase pragmática, que provoca a ilusão de relação direta e
que nisso, por assim dizer, desgasta a ficção. Quanto mais a ficção é compreen­
dida, o que desde logo significa ter sido elaborada a fundo, tanto mais ela po­
de ser figura de relevância no horÍwnte da práxis do leitor. Se, por outro lado,
a apreensão científica do texto e de sua auto-referencialidade, no esforço de ul­
trapassar a compreensão reducionista da leitura mediana, parece com freqüên­
cia perder de vista a relação pragmática concreta, assim o faz para manter a fic­
ção no horiwnte das ficções, presentificando-a e mantendo-a em sua múltipla
55 Cf. o "Nachwort über die Partialitat der rezeptionsasthetischen Methode" ("Posfá­
cio sobre a parcialidade do método da estética da recepção"), especialmente p. 392.
163
articulação. Deste modo, seu alvo último consiste em possibilitar, de maneira
inesgotável e múltipla, a visão daquele horizonte das ficções, sem que se em­
pobreça a comunicação social.
O horizonte que se abre com cada ficção particular é momento de um ho­
rizonte das ficções que o ultrapassa. A horizontidade da ficção é absorvida num
horizonte de ficções, que perspectivamente se ordena sempre de novo e sempre
doutro modo. O horizonte dos mitos, como Nietzsche o estima para o momen­
to da tragédia grega, é um horizonte fechado. Ao horizonte cerrado do mundo
vivencial circundado pelos mitos poder-se-ia opor o horizonte aberto da vida
pós-mitica e de suas ficções. A história da recepção é ainda a história do hori­
zonte em que cada ficção encontra o seu lugar. Cada geração histórica tem seu
horizonte de ficções, que se define a partir da diferença entre as ficções que o as­
sinalam. Friedrich Schlegel foi o primeiro que, em sua memorável dissertação
Über das Studium der griecheschen Poesie (Sobre o estudo da poesia grega), conver­
teu em programa a não isolabilidade da obra particular e tentou formular, em
uma especulação histórico-filosófica. a lei da mudança do horizonte das ficções.
Na passagem histórica da antigüidade para a modemidade, surge um horizon­
te cada vez mais abrangente das ficções, que, na crescente parcialidade das obras,
evidencia a totalidade cada vez mais abrangente de seu inter-relacionamento,
oferecendo assim à reflexão teórica um horizonte sempre mais amplo da ficcio­
nalidade. A tendência deste movimento é a da "progressiva poesia universal" e
de seu horizonte ficcional, cada vez mais amplo. Ao programa romântico de
Schlegel da "liberação das energias imaginativas", responde, cinqüenta anos de­
pois, a descrição apaixonante de Karl Marx sobre a liberação das forças produ­
tivas na sociedade burguesa. Deixando-se de lado a questão infrutífera de sua
derivação, poder-se-ia mostrar, numa convergência que apenas sugiro, como o
horizonte infinitamente crescente do mundo da ação corresponde a um hori­
zonte infmitamente crescente da ficção. O leitor de textos ficcionais aqui se en­
contra numa situação bem pouco confortável, pois sua capacidade de leitura,
inclusive de leitura profissional, é sobrecarregada por esta ampliação de horizon­
te. Em poucas palavras, a riqueza infinita do que se pode receber impede a re­
cepção. Enquanto crise da cultura do leitor ou da injustamente ridicularizada
burguesia culta (Bildungrbürgertum), esta situação é o fato histórico, a partir do
qual a ciência da literatura hoje deve-se compreender a si mesma e à sua função.
Esta função não está na receita de uma redução ao "essencial", seja de que pon­
to de vista for, mas na manutenção ou na inovação da comunicação literária pú-
164
blica. A ciência da literatura pode realizar esta tarefa, ÚIstbut not Ieast, à medida
que possibilite, pela pesquisa sistemática e histórica. a recepção dos textos ficcio­
nais, assim ganhando um campo de referência dentro do qual o leitor pode-se
orientar e situar-se, a partir do horizonte presente das ficções.
Tradução de Heidrun Krieger, Luiz Costa Lima e Peter Naumann
165
NOTAS *
A - lIereindeutigung significa, literalmente, ato de tornar unívoco (eindeutig).
B - Literaturwissenschaft (ciência da literatura) é a denominação tradicionalmente
usada na Alemanha (hoje tanto na RFA como na ROA) para distinguir os estu­
dos de literatura, institucionalizados na universidade, da Literaturkritik (crítica li­
terária), praticada nos jornais e em revistas destinadas a um público mais amplo.
Segundo esta distinção, a crítica literária se oporia à ciência da literatura precisa­
mente pelo seu impressionismo, isto é, pela &lta de embasamento teórico e, con­
seqüentemente, pelo seu antimetodismo.
Esta distinção é problemática, à medida que as fronteiras entre a crítica e a preten­
sa ciência raras vezesficaram claramente delimitadas, o que se pode notar pelos di­
ferentes conceitos e pelas diferentes pré-noções de "ciência", que permitiram a es­
colas tão heterogêneas como, para citar alguns exemplos, as de Emil Staiger, Ernst
Robert Curtius e Erich Auerbach, o uso da etiqueta Literarurwissenschaft.
Mais recentemente, Hans Ulrich Gumbrecht procurou reformular esta distinção,
caracterizando a crítica literária como uma atividade que não explicita as suas pre­
missas (como se verificasobretudo nos juízos de valor, onde o quadro de referência
é, via de regra, pressuposto tacitamente) nem - poder-se-ia acrescentar - os seus
passos de argumentação. A distinção é útil se formulada com vistas ao status quo da
crítica literária - que, tanto no Brasil como na Alemanha, permanece, com raras
exceções,no impressionismo - e se formulada com vista ao status ideal da ciência
da literatura - que também, tanto na Alemanha como no Brasil, permanece, em
graus variáveis e com exceções igualmente variáveis, no impressionismo. Mas ela
não satisfàzplenamente, à medida que se pode conceber uma crítica literáriaem que
o crítico explicite os quadros de referênciasdos seus julgamentos, tornando estes as­
sim mais transparentes. Tal crítica, raras vezespraticada, é até urna necessidade pa­
ra quem combate o elitismo cultural implícito na crítica literária tradicional.
C - Sprachspiel (jogo de linguagem), na terminologia inglesa language game, é ter­
mo central da filosofiada 2ª fasede Ludwig Witrgenstein (1889-1951). Wirrgens­
tein considera, nas suas Philosophische Untersuchungen (Investigações filosóficas, pu­
blicadas postumamente em 1953), as palavras como integrantes constitutivos de
* Estas notas foram especialmente organizadas por Peter Naumann.
166
ações complexas, que denomina "jogos de linguagem". O termo aparece pela pri­
meira vez no § 7 das Philosophische Untersuchungen: "Denominarei (...) a totali­
dade da linguagem e das atividades, com as quais ela se entrelaça, de 'jogo de
linguagem'." (op. cit., in: idoSchriften I (Escritos I). Frankfurt/Main, Suhrkamp,que a História, não por
alguma falha conjuntural mas por conseqüência de seu próprio método obje­
tivista, se mostra incapaz de não se ver atada às malhas que a prendem à sua
ambiência temporal. A falência do objetivismo é do historiador à medida que
é de toda criatura humana: a impossibilidade de tomar consciência e de então
se desligar dos eftitos provocados pela maneira como sua circunstância históri­
ca, com seus valores, usos, costumes e tradições, está constituída. Isso é secun-
23
dário nas ciências duras porque o que aí vale é a verificação experimental do
resultado. A diferença entre o historiador objetivista e o homem comum está
em que este não se julga forçado por um "método crítico", isto é, não é pres­
sionado a agir à semelhança de um cientista em seu laboratório. Próprio do
método é impor a seu praticante o cumprimento de um programa de obser­
vação e inferências, independente das idiossincrasias do praticante. Mesmo
porque o agente, na caso o historiador, não dispõe de um outro corpo a que se
trasladasse enquanto realiza sua observação, o método crítico o impede de ver
a interferência dos efeitos de sua posição no mundo em sua pretensa objetivida­
de. A passagem, portanto, não apenas reitera a crítica gadameriana à pretensão
do historiador senão que introduz um termo, Wirkung, que, nas mãos de !ser,
ultrapassará os limites com que se debatia a análise da recepção. Trata-se para
tanto de observar a relação estabelecida entre a obra literária e seu(s) efeito(s).
O caminho mais direto de indagá-Ia consiste em se perguntar por que a obra
literária necessita de intetpretação. Embora a pergunta nos leve ao segundo
ponto a ser ainda destacado, suspendamos por um instante o seu desdobra­
mento. Para isso, precisamos esboçar uma anatomia da obra. Para fàzê-Io, a pri­
meira providência não chegará a ser novidade: "É urna das ingenuidades mais
arraigadas da consideração literária pensar que os textos retratam a realidade"
(Iser, w., 1970,232). Ora, se os textos não recebem sua realidade de antemão,
mas a alcançam por uma espécie de reação química processada entre o texto e
seu leitor, tal "reação" já aponta para o papel do leitor; do leitor enquanto ha­
bitado por orientações e valores que ele próprio não domina conscientemente.
Noutras palavras, é o efeito (produto de orientações e valores) atualizado no
leitor que lhe serve de filtro para emprestar sentido à indeterminação contida
na estrutura do texto. Daí resulta a primeira propriedade do texto literário:
[... ] Ele se diferencia [... ] das experiências reais do leitor à medi­
da que oferece sintonias e abre perspectivas nas quais se mostra outro o
mundo conhecido pela experiência. (Iser, W, idem, 232)
o texto, literário e artístico tem, pois, como primeiro efeito converter o
habitualizado em estranho. (O estranhamento já fora assinalado pelos formalis­
tas russos, que, entretanto, o tornavam associado à percepção, enquanto em
Iser o é ao ato de imaginar do leitor.) Dizer, portanto, que o significado do tex­
to literário é engendrado no processo de leitura (ibidem, 229) significa que o
24
texto não é "expressão de algo outro" (ibidem, 230), anterior e independente
dele. Como, não o sendo, será então capaz de apeÚlr para o sentido que o lei­
tor lhe concederá? É capaz de tal apelo porque o texto contém um grau inter­
no de indeterminação (Unbestimmtheit), que o distingue tanto de um teorema
como de urna mensagem pragmática. Como o próprio !ser o assinala, o con­
ceito de indeterminação já fora formulado em Ingarden. Mas neste a indeter­
minação se localizava em camadas pré-constituidas, cabendo ao leitor simples­
mente preenchê-Ias. Pois em Ingarden o conceito de arte era presidido pela
concepção de obra clássica, sendo resgatado por um acorde harmônico, do
qual o receptor se fazia responsável. Para se compreender a diferença em Iser,
basta traduzir-se um fragmento de frase: "[ ... ] A indeterminação incorpora uma
condição elementar do efeito" (ibidem, 230, grifo meu). O efeito está plantado
na estrutura da obra e será atualizado de acordo com o "horizonte de expecta­
tivas" (expressão não usada por !ser) de seu receptor.
Mesmo sem nos alongar, convém acentuar que é aqui bem evidente a
divergência com a solução de Mukarovsky (tampouco referido por Iser).
Como víamos, o teórico tcheco falava na objetividade do valor estético, re­
sultante de a resposta do receptor ser "reflexo e correlato" do materialmen­
te figurado na obra. O princípio do "reflexo", embora não se confunda com
o reflexo da teoria marxista,6 visava assegurar a estabilidade da leitura, isto
é, a sua correção. Em Iser, muito ao contrário, o argumento de Gadamer
contra a objetividade é bastante evidente. De antemão, nada assegura que
o efeito produzido seja correto. Com isso, abre-se a segunda grande ques­
tão contida em "A estrutura apelativa dos textos literários": (b) o questiona­
mento da própria interpretação.
Não se trata de indagar se a interpretação é ou não necessária. Pelo pró­
prio encaminhamento já feito, compreende-se que esta não é uma questão de
opção. Sempre se interpreta. A verdadeira questão consiste em saber qual sua
relevância. Para tornarmos mais clara a explicação, antes introduzamos um
novo operador: o de "lugar vazio".
6 Lamentavelmente. Não tivemos acesso à primeira publicação do ensaio de Mukarovsky
(1935), escrita em alemão, sob o titulo "Ãsthetische Funktion und asthecisme Noml ais soziales
Fakten". Não podemos pois saber se o tradutor da versão alemã de seu livro Studie z Ertetiky terá
aproveitado o texto de 1935. O fato é que, na edição que ciramos, Mukarovsky fala em "Reflex
und Korrelat", enquanto o reflexo na teoria marxista é sempre designado pela palavra "Wuier­
spiegelung' .
25
A indetermillação - que não é exclusiva ao texto literário mas nele se
acentua - "encarna uma condição elementar do efeito" (ibidem., 230), que,
de sua parte, é motivado pela presença na cena textual de "lugares vazios'
(Leerstellen). Estes podem ser definidos como relações não-formuladas entre as
diversas camadas do texto e suas várias possibilidades de conexão. Exemplo
simples: em Dom Casmurro, Bentinho, na melancolia da velhice, acusa Capi­
tu de havê-Io traído; Bentinho, contudo, é a única voz que se ouve, aquele cu­
ja narração não é COntestada por nenhum outro personagen, além de ser um
experimentado advogado. Além do mais, Bentinho não esconde que, desde
criança, se caracterizara por ser uma maria-vai-com-as-outras. Cada um destes
segmentos entra em choque com os demais e cria um lugar vazio. Caberá ao
leitor suplementar o(s) vazio(s) assim criado(s) pois, do contrário, o enredo não
"fluirá". Diz-se suplementá-Io(s) e não o(s) complementar pois, ao contrário
de uma quebra-cabeças, não há uma única maneira correta de fazê-lo. Os lu­
gares vazios, em suma, apresentam a estrutura do texto literário como uma ar­
ticulação com furos, que exige do leitor mais do que a capacidade de decodi­
ficação. A decodificação diz respeito ao dOITÚnio da língua. O vazio exige do
leitor uma participação ativa. Essa concepção se choca com o entendimento
tradicional da obra literária. De acordo com esta, a obra não só pedia uma in­
terpretação - que, no mais das vezes, não passava de uma glosa - como su­
punha que haveria uma interpretação correta.
Iser contradita o prinápio da interpretação correta por dispor previamen­
te da crítica do objetivismo, por haver ampliado o critério de indeterrninação,
por sua conseqüente operacionalização do rftito e pela introdução dos Leerstel­
fen. Ser a interpretação uma tarefa normal na inter-relação do texto com o lei­
tor não significa que a interpretação desempenhe apenas e necessariamente um
papel positivo. Ao contrário, aponta para as condições em que se realiza o co­
mércio mental com o texto. A saber: como os lugares vazios estimulam a inde­
terminação e esta, em vez de tão-só dificultar o reconhecimento das expectati­
vas do leitor, as põe emquestão, abre-se uma relação potencialmente tensa. A
primeira possibilidade é, então, de o leitor tentar eliminá-Ia:
A indeterminação se "normaliza" quando se mantém o texto tão
distante dos dados reais e, deste modo, verificáveis, que o texto aparece
apenas como seu espelho. No reflexo (Widerspiegelung), se extingue sua
qualidade literária. Obidem, 233)
26
A segunda maneira, embora através de uma operação contrária, não é
menos freqüente: a normalização da indetermillação resulta da redução do tex­
to às próprias experiências do leitor (idem, ibidem). Em ambos os casos, veri­
fica-se a possibilidade de coneetar as próprias experiências do leitor às suas pró­
prias representações do mundo ou ao texto. Há ainda uma terceira maneira de
neutralizar a indeterminação: o leitor se faz dócil e vê no texto uma proposta
para "mudar de vidà'. A intervenção interpretativa, portanto, destrói a expe­
riência literária, seja quando, em um extremo, toma-se o texto como confir­
mação do mundo (que se julga saber como é), ou como confirmação da expe­
riência do leitor ou, noutro extremo, quando o leitor entende o que lê como
exigência de sua "correção reflexivà' (idem, ibidem). Apontando tais respostas
como negativas, Iser nega à obra literária uma vocação didática. Em seu lugar,
propõe ser próprio à obra literária a fecundação de uma atitude pendular:
[... ] A peculiaridade do texto literário [... ] está em uma oscilaçãosin­
gular entre o mundo dos objetos reaise a experiênciado leitor.(Ibidem, 234)
É por essa pendularidade que a obra literária é passível de manter a aber­
tura de sua indetermillação. Enfatizando-a, e não um certo resultado "positi­
vo", que então dizer da interpretação "correu' senão que ela é uma forma per­
versa de destruição da peculiaridade do texto literário? Daí a acuidade de um
de seus comentadores:
[... ] A verdadeira inovação da estética da recepção consistiu em ter
ela abandonado a classificação da quantidade de exegesespossíveis e his­
toricamente realizadas sobre um texto, em muitas interpretações "falsas"
e uma "correta'" Seu interesse cognitivo se desloca da tentativa de cons­
tituir uma significação procedente para o esforço de compreender a dife­
rença das diversas exegesesde um texto. (Gumbrecht, H. 0., 1975, 191)
Pode-se, entretanto, contestar a conclusão, dizendo-se que Gumbrecht
afasta a questão estética em favor de uma sociologia da comunicação. Isso en­
tretanto não afeta a base do argumento: a interpretação "correu' não anula a
possibilidade doutras interpretações corretas. Ao contrário de um objeto cien­
tífico, a obra literária não escolhe as variáveis com que sua análise trabalhará
em razão da operacionalidade que mostre haver-se alcançado o domínio do
27
objeto. Na ciência, quanto maior operacionalidade uma teoria admite, tanto
maior será a sua legitimação. No campo da experiência estética, a interpreta­
ção não está a serviço do domínio do objeto, mas sim da complexidade que por
ela se atinja do objeto (o poema, o romance, o quadro, a peça musical). O que
vale dizer, a experiência estética não visa ao domínio das coisas, mas a contri­
buir para o pensamento sobre a relação entre o pensável e o ftgu.rável.
Já a discussão antes esboçada mostra que o texto de Iser, mesmo em
consonância com seus reparos à interpretação "correta", não deixou ou deixa
de provocar reparos. Considerá-Ios é decisivo para não a "normalizar". Assim,
para Stierle:
A teoria da recepção de Iser é uma teoria das variáveis da recepção,
cujas constantes se encontram apenas no lado do próprio texto. Em Iser,
as constantes são sempre e apenas constantes do texto, que têm a função
de gerar as variáveis da recepção. (Stierle, K., 1975, 164)
Portanto, Iser ainda não daria conta da dinâmica da situação texto-lei­
tor, pois os distribuiria simetricamente entre os pólos da constância e da va­
riável. Sua diferença com Ingarden se resumiria a que um e outro tenham ta­
mado como modelos momentos diversos da história da arte. Reagínd6
favoravelmente ao impacto do modernismo, Iser corrige os lirrútes de Ingar­
den, revisa sua teoria, sem propriamente sair de seus parâmetros.
A crítica de Stierle é sofisticada mas também sofística. SofISticada porque,
de fato, a dinâmica da situação tematizada não é de todo apreendida. Soflstica
por sua partição entre aspectos da constância e da variável. A respeito, diría­
mos, ao contrário, que o operador "efeito" é simultaneamente constante e va­
riável, constante enquanto parte da estrutura da obra e variável porque depen­
dente da atualização efetiva que alcança em cada relação empírica e concreta.
Mas o texto de Stierle, a que ainda nos referiremos, opta por outro caminho.
Quanto à crítica detalhada de Gumbrecht, serei obrigado a maior es­
forço de síntese. Admitindo que a estética da recepção dependa, para sua
pesquisa, de conceitos meta-históricos - a exemplo do de estrutura, desen­
volvido por Iser - Gumbrecht se indaga se a teorização iseriana é capaz de
compreender a diversidade de formações de sentido emprestadas a um mes­
mo texto:
28
Pode-se realmente derivar do modelo iseriano do efeito estérico es­
truturas de texto, meta-historicamente constantes, perante as quais, como
pano de fundo, se tornaria possível uma análise científica (porque inter­
subjerivamente repetível) das diferentes doações de senrido, passadas e fu­
turas, quantos a certos textos? (Gumbrecht, H. u., 1977b, 532)
Embora a pergunta derive de apriori inaceitável por um dos respaldos de
Iser, o pensamento de Gadamer, isto é, o privilégio concedido à indagação
científica, ela tem a qualidade de se desdobrar praticamente:
[... ] Podemos, de fato, parrir da premissa de que todos os leitores
imagináveis concretizam determinados consrituintes de modo idênrico,
se considerarmos os atos de apreensão e as sínteses passivas como as fases
transcendentes da ação recepriva? (Idem, ibidem)
Deriva daí a contestação cabal do autor: se se pode outorgar à "necessi­
dade de coerência [... ] o estatuto de um ronstituinte transcendental", essa ne­
cessidade assume, entretanto, em épocas e grupos sociais diferentes, formas dis­
tintas. Daí a impossibilidade de se extrair "a especificação de um modelo de
leitor", do qual derivassem "constantes meta-históricas de dooção do sentido"
(idem, 533). Embora a conseqüência exposta resultasse do pressuposto implí­
cito de que a ciência é a forma discursiva superior e sempre desejável, pois só
ela asseguraria resultados intersubjetivamente repetíveis - o que era desconsi­
derar a diferença de abordagem da sociedade em face dos objetos da natureza
feita há várias décadas por Simmel e Weber, assim como a indagação posterior
de um Geertz sobre as condições de existência da antropologia - a crítica de
Gumbrecht alertava para dois aspectos que precisam ser considerados: (a) o
modelo de texto de Iser "reduz a pergunta pela função social daqueles textos
cuja oferta de sentido não se põe em uma relação de negação quanto ao saber
internalizado do leitor à condição de uma pergunta vazia" (idem, 534). O que
vale dizer, de tal modo a literatura modernista, tendo Joyce e Beckett como cu­
mes, é o modelo do texto literário iseriano, que a única função social reconhe­
cida pata a literatura é a de questionar o saber prévio do leitor; (b) "[ ... ] É im­
portante reconhecer os lirrútes da validade da presente teoria do efeito para a
sua aplicação na filologia clássica, na medievalística e na pesquisa das literatu­
ras não européias" (ibidem, 533).
29
Muito embora embasadas em uma concepção positivista do conheci­
mento, que não questiona os limites da própria ciência e reduz a inter-subje­
tividade ao reconhecimento do que mostre um processo de verificação expe­
rimental, as observações são dignas de consideração. (O próprio Iser de certo
modo reconheceria seu privilégio do modelo modernista, procurando, desde
o final da década de 1980, ampliar sua abordagern, pelo realce do aspecto an­
tropológico-filosófico.)Porém, se recusamos o reducionista cientificista que
Gumbrecht privilegiava, devemos acrescentar que a ênfàse no ifeito é capaz de
se ajustar a outros momentos históricos, sem reduzir a pergunta pelo leitor à
vacuidade. (Disso seria exemplo o Shakespeares Historien, que Iser publicaria
em 1988.) De todo modo, o reparo de Gumbrecht é válido, quer do ponto
de vista de diferentes períodos da História, quer do ponto de vista das litera­
turas não européias. Diríamos mesmo: o desafio que se põe para os analistas
que conhecem a obra de Iser será evitar a alternativa: ou repetir um modelo
ajustado ao modernismo europeu ou submeter outras épocas e literaturas a
um ponto de vista meramente histórico-sociológico.
(Não julgamos necessário introduzir um comentário específico ao novo
texto de Iser que aqui se apresenta por ser suficiente assinalar que pertence à
sua já referida fase antropológico-filosófica. Note-se apenas que a ênfase no
princípio de jogo, como propriedade do texto 6ccional, procura romper com
o privilégio, acentuado por seus críticos, do texto modernista, sem, com isso,
negar seus resultados.)
4. Desdobramentos do momento inicial
Os Textos N e V; respectivamente de autoria de Karlheinz Stierle e Hans
Ulrich Gumbrecht, pertencem a autores que desdobram as propostas iniciais
da corrente. Entre os dois, nos deteremos de preferência no Texto N seja por­
que o seguinte tem um propósito sobretudo metodológico, seja porque depois
seu autor rompeu com o movimento, passando a ser conhecido por obras que
derivam doutros parâmetros. O Texto VI, de sua parte, nos devolve a um dos
co-fundadores do movimento, dedicando-se porém a aspectos antes lingüísti­
cos do que estritamente literários.
Em "Que significa a recepção dos textos ficcionais", Stierle se propunha
lançar as bases de uma teoria formal dos textos ficcionais.
30
A pergunta pela especificidade do texto ficcional é, antes de tudo, a per­
gunta pela especificidade de sua constituição (Stierle, K, 1975, 136)
Procurava assim romper com a lacuna que notara na teoria iseriana. Em
vez de um modelo que bipartisse seus pólos entre constante e variáveis, busca­
va revelar a constância no pólo também do leitor, de modo a ter melhores con­
dições de descrever a interação com o 6ccional. Começa para tanto por distin­
guir entre recepção pragmática e ficcional. Isso o obriga a antes caracterizar os
textos correspondentes. O texto pragmático se especifica por apresentar um es­
tado de fato (Sachlage), isto é, urna interpretação que oferece um modo de
orientação quanto a uma situação dada (Saehverhalt). Através do estado de fa­
to que o constitui, o texto se dispõe como trampolim para o plano da ação. Pa­
ra que isso se dê é entretanto necessário que o texto pragmático esteja de tal
modo "programado" que seu usuário possa recebê-lo em consonância com um
esquema de ação prévio e partilhado pelos outros membros da comunidade. Ou
seja, entre o estado defato (o texto) e a situação dada, deposita-se o saber social,
sob a forma de um esquema orientador da ação. Os estereótipos são portanto
as figuras de relevância do texto pragmático, isto é, aqueles que indicam ao lei­
tor o esquema que sua leitura deve seguir. Assim o texto pragmático é caracte­
rizado por o produtor e o receptor conhecerem previamente seus respectivos
papéis, estabelecidos no esquema social. Neste sentido, Stierle bem escreve:
"Visando ao campo de ação, os textos pragmáticos se orientam para além de
si mesmos" (idem, 144). A transcendência do texto pragmático está em sua in­
finita capacidade de reduplicação.
Ao passarmos para o campo do 6ccional, os termos básicos se mantêm
enquanto se complexificam, mesmo porque a ficção não remete, de imedia­
to, ao campo da ação. Mas isso não significa que o texto agora se torne solto,
entregando-se ao livre uso de seu receptor. Não, o esquema de ação encontra
seu equivalente na obediência a um gênero. Se o gênero funciona como o me­
diador entre o estado de fato e a materialidade dos fatos, são estes que se trans­
formam, pois a materialidade dos fatos já não poderia ser traduzida por "uma
situação dadà'. Por isso, formulando algo que já se sabia mas que não estava
tão precisamente dito, escreverá o autor:
A ficção não se deixa corrigir por meio de um conhecimento mi­
nucioso da materialidade dos fatos a que se refere. (... ), Os textos são, no
sentido pr6prio, textos de ficção apenas quando se possa contar com a
31
possibilidade de wn desvio do dado, desvio na verdade não sujeito a cor­
reção, mas apenas interpretável ou criticável. (Ibidem, 147)
O texto ganha seu contorno maior quando articula a diferenciação en­
tre os textos e sua respectiva recepção. O que não significa que Stierle supo­
nha sua automática adequação:
A diferença entre os estatutos dos discursos ficcional e pragmático
não se mostra necessariamente na recepção efetiva dos textos ficcionais.
(Ibidem, 148)
Pois entre uma e outra está aquela que Stierle chama de recepção quase
pragmática:
Na recepção quase pragmática, o texto ficcional é ultrapassado ru­
mo a wna ilusão extratextual, despertada no leitor pelo texto. A ilusão
como resultado da recepção quase pragmática dos textos ficcionais é wna
extratextualidade, comparável à da recepção pragmática, que, ultrapassa­
do o texto, se volta para o próprio campo de ação. (Ibidem, 148)
A formulação ainda seria previsível se o autor a tomasse como uma re­
cepção inevitavelmente errônea do texto ficcional. Mas, em vez disso, a for­
mação da ilusão, se bem que própria ao texto quase pragmático, é uma eta­
pa necessária, mas não indispensável. Mallarmé, por exemplo, diz o autor,
a coíbe, para o texto ficcional. A complexidade do ficcional, portanto, não
está em que seja necessariamente uma leitura mais difícil, mas sim em ela
poder receber uma variedade de leituras, desde a ingênua, pragmaticamen­
te orientada - a exemplo de um pai que desse à sua filha o Madame Bo­
vary, para evitar seu futuro descaminho - passando pela quase pragmáti­
ca até a propriamente ficcional. Embora o autor considere a leitura quase
pragmática como a praticada diante da literatura de consumo, é convenien­
te chamar a atenção para o fato de que muito do que passa por ficção na
verdade antes reclama a leitura quase pragmática. (Situações e modos de ser
dos personagens convocam a atualização pela fantasia dos estereótipos do
leitor.) Ou seja, muito do que se louva como ficção antes se definiria como
um texto quase pragmático.
32
Mais adiante, o autor busca a caracterização doutro aspecto do ficcio­
nal: refiro-me aos três modos de uso da linguagem: o uso referencial, a que
corresponde o texto pragmático, o auto-referencial e o pseudo-referencial. O
próprio do uso auto-referencial consiste em que nele a linguagem é controla­
da, de modo tendencialmente absoluto, pela rede de conceitos de que se ali­
menta. O limite do discurso auto-referencial são as chamadas "linguagens ar­
tificiais", totalmente formalizadas. A ficção, de sua parte, corresponde ao uso
pseudo-referencial. Nele, "as condições de referência não serão simplesmente
assumidas como dados extratextuais, mas serão produzidas pelo próprio tex­
to" (ib., 153). (Escusado acrescentar que a identificação do ficcional com o
pseudo-referencial se opunha ao desdém pela referencialidade, muito comum
em certa crítica avançada de então e agora.) O texto não apresenta um refe­
rente externo, não concerne à realidade como tal, pois, intemalizada pelo tex­
to, a realidade se modifica. Deste modo, se a ficção não tem a direcionalida­
de do texto referencial, nem pode assumir a universalidade presumida pelo
texto auto-referencial, ganha, em troca, uma possibilidade de experimentação
e de variação de efeitos não previsível pelos dois outros usos. O texto pseudo­
referencial permite ao leitor uma manipulação nova seja dos conceitos, seja
das experiências, facultando-lhe oponunidades de experimentação, não pre­
vistas seja pelaciência, seja pela pragmática. Neste ponto, Stierle parece efeti­
vamente ir além de lser. Enquanto neste - refiro-me ao Iser pré-antropoló­
gico - a única função social que os textos ficcionais podem desempenhar é
negar um saber previamente constituído, a reflexão de Stierle abre o caminho
para um elenco de possibilidades: desde a negadora até a problematizadora.
(De todo modo, mantém-se excluída a função ratificadora!)
Quanto ao Texto V, de Hans Ulrich Gumbrecht, sobre o qual já expli­
camos por que nele não nos detemos, acrescente-se apenas que o leitor terá a
oponunidade de ver quer a sua eventual continuidade, quer a sua interrup­
ção nos livros do autor, já traduzidos para o ponuguês: Modernização dos sen­
tidos (Editora 34, São Paulo, 1998), Corpo efOrma, (Eduerj, Rio de Janeiro,
1998), Em 1926, (Record, Rio de Janeiro, 1999).
A presente edição ainda inclui um pequeno texto de Harald Weinrich,
"Estruturas narrativas na escrita da histórià', apresentado no quinto volume do
Poetik und Hermeneutik, que se intitulava Geschichte-Ereignis und Erziihlung
(O acontecimento na história e a narrativa). O texto de Weinrich integrava to­
da uma seção, "Narrativitãt und Geschichte", para a qual ainda contribuíam
33
Wolf-Dieter Stempel, Karlheinz Stierle e Ferdinand Fellmann. Dada a atuali­
dade do relacionamento entre escrita da história e forma narrativa, pensamos
em traduzir toda a seção. Mas terminamos por preferir fazer do texto de Wein­
tich um balão de ensaio. Se for positiva a resposta do público, muitos outros
textos fundamentais poderão vir a ser vertidos.
Rio de janeiro, outubro, 2001
34
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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35
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cepts o/ criticism, (organiz. e inrrod. de Stephen Nichols), Vale University Press,
New Haven and London, 1963.
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Prefácio à primeira edição
o LEITOR DEMANDA (D)A LITERATURA
LUIZ COSTA LIMA
1. Aproximação da paisagem
Ao contrário da linguagem poética, a linguagem dos textos argumenta­
tivos (como o ensaio, a análise) pouco permite que o autor se diga, não só in­
telectual mas afetivamente. Werner Krauss aqui, entretanto, me oferece a opor­
tunidade de, rapidamente, romper aquela norma: citando Krauss, aluno de
Auerbach, que deste manteve a abertura de pensamento, refaço a cadeia que
me trouxe onde hoje me encontro. Pois, independente das diferenças, Auer­
bach é o guia que escolhi na selva selvaggia em que transito. Traduzo Krauss e
já me dou por situado:
"Como a palavra, como uma frase, como uma carta, assim
também a obra literária não é escrita no vazio, nem dirigi da à poste­
ridade; é escrita sim para um destinatário concreto". (in Naumann,
M., 1965,58).
A frase de Krauss pareceria uma afirmação anódina, mero artefato
do bom senso, caso não fosse vista no contexto contemporâneo da análi­
se da literatura. Por efeito da tradição que se instaura com a poesia da mo­
dernidade - ou seja, de Nerval ou Baudelaire para cá -, por efeito, co­
mo seria mais correto dizer, das condições sociais em que esta tradição é
engendrada, a crítica que responde a seu apelo concentrou-se cada vez
mais na relação autor-texto ou mais puramente, no pólo da textual idade,
37
abandonando o leitor nas sombras de uma área confinada apenas à histó­
ria ou à sociologia da comunicação literária. À medida que a poesia se
afastava da experiência comum, reagia aos estereótipos da experiência,
mediante a exploração de uma "vivência de choque" (Benjamin) e se con­
centrava em sua própria linguagem, a crítica, acompanhando este proces­
so, dirigia-se à textualidade, refinava seus métodos de análise e tendia a
ver toda busca de inserção social do produto literário como um esforço
rançoso, próprio de pesquisadores sem sensibilidade, senão mesmo, a
exemplo do que sucedeu entre nós, como um sintoma subversivo. A pri­
mazia histórica desta orientação coube à estilística: "Com a estilística
idealista começa não só o relacionamento detalhado, de fato frutífero, da
filologia com a ciência da literatura, mas também o desenvolvimento de
uma concepção formalista da literatura, que considera a obra literária
uma creatio ex nihilo. O estilista compreende a obra literária como um or­
ganismo fechado, cuja estrutura há de descobrir" (Barck, K., 1975, 115).
Nisto, contudo, ela não esteve sozinha. Independentes da estilística e en­
tre si autônomos, o formalismo russo (salvo as exceções de Tynianov e
Bakhtin), o new criticism, o estruturalismo francês (que nunca absorveu a
vocação etno-antropológica da obra de Lévi-Strauss) aprimoraram as aná­
lises imanentes do texto, assim determinando um panorama que não po­
de ser ignorado e, ao mesmo tempo, necessita ser redimensionado. Pois,
ampliando e modificando o que Barck diz sobre Croce - "No confron­
to (...) da literatura com a poesia, a primeira é subordinada, em um sen­
tido pejorativo, à pura função da comunicação, enquanto a poesia, como
pura expressividade do artista genial, se basta e se satisfaz consigo mesmà'
(Barck, K., 1975, 117) -, por todas estas correntes perpassa a divisão en­
tre uma área menosprezada, a área da comunicação, e uma privilegiada, a
da textualidade. Acrescente-se: estes modelos imanentistas perduraram e
perduram mesmo pelo contributo de seus adversários, que, quando mar­
xistas, se restringiam a insistir no condicionamento social das obras, co­
mo se o problema maior não fosse demonstrar as mediações que levam da
base social para a produção e a circulação propriamente ditas; que, quan­
do "humanistas", "espiritualistas", defensores da "morada do ser" ou do
que fosse se afincavam em afirmar um dito primado

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