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AULA 1 A TEORIA DO NOVO INCONSCIENTE Prof.ª Eliane Cristina da Silva A luno: S abrina de A lm eida K ufner C aetano E m ail: sabrinakufner96@ gm ail.com 2 CONVERSA INICIAL Visão geral e questões centrais – o inconsciente O termo inconsciente tem sido usado no senso comum quando alguém pretende se referir a fenômenos sem explicação aparente, sem fato comprovável ou observável e aviso prévio. Tornou-se um termo popular e corriqueiro e, por isso mesmo, sofreu alterações e distorções do seu sentido originário, carregando quase que um sentido místico e distante de explicações científicas. Pois bem, para além do entendimento de inconsciente como algo nebuloso, confuso, imprevisível e intangível, há um longo percurso teórico em que estudiosos de diferentes áreas das ciências do comportamento humano têm se debruçado para melhor elucidá-lo. Assim, o objetivo desta aula é ajudá-lo(a) a entender a trajetória desse fenômeno humano desde a psicanálise clássica, da época de Freud e Breuer, até os dias atuais, somada às contribuições das neurociências, especialmente no que diz respeito ao cérebro, cognição e comportamento. TEMA 1 – A HISTÓRIA DO CONCEITO DE INCONSCIENTE As perguntas movimentam a humanidade. É assim desde os primórdios de nossa história. Os filósofos pré-socráticos, isto é, de antes do séc. V a.C., buscavam descobrir o princípio das coisas, o que regia a vida, os fenômenos da natureza, a vida e a morte, o ser humano. Àquela época, a observação do ambiente e suas supostas implicações no sujeito ocorria de maneira intuitiva, ao se tentar estabelecer relações de causa e efeito, num sentido mais linear e simplório, para compreender o então desconhecido. Às vezes, falava-se de forças da natureza; em outras circunstâncias, recorria-se a deuses ou entidades sobrenaturais. O processo de tentativa de apreensão da realidade externa e interna ao sujeito fazia sentido durante um tempo, até que, logo em seguida, fosse combalido por algum outro pensador, com um outro conjunto de argumentos. Ou seja, entender o humano, o mundo e seus fenômenos passava pela observação da realidade concreta, das inter-relações entre os fatos observados e de uma boa retórica para explanação e convencimento de um grupo de pessoas. A luno: S abrina de A lm eida K ufner C aetano E m ail: sabrinakufner96@ gm ail.com 3 Dessa forma, o entendimento da mente humana passou por inúmeras fases. A questão da mente – chamada de alma, naquela época, o que inclusive deu origem à psicologia, vide a etimologia da palavra (psyche – alma; logos – estudo) – estava bastante ligada ao seu pertencimento e influência, ou não, sobre o corpo biológico. Sócrates, por volta de 400 a.C., afirmava que o que diferenciava os homens dos animais era a razão; já Platão, seu discípulo, considerava que essa razão, ou a alma, estava localizada na cabeça do homem, numa tentativa de abarcar essas esferas de conhecimento do ser humano, o corpo e a mente, ainda que os considerasse como fenômenos separados um do outro (Bock; Furtado; Teixeira, 2001). Outros estudiosos, como Hipócrates, consideravam a influência de fatores como os humores corporais em nossa formação interna, como observou Callegaro (2011, p. 21): Hipócrates propôs a hipótese, desenvolvida mais extensamente por Galeno, de que quatro temperamentos básicos (melancólico, sanguíneo, fleumático e colérico), baseados em humores corporais, moldariam o comportamento em conjunção com o pensamento consciente. A mesma divisão entre influências inconscientes biologicamente baseadas e o pensamento consciente é descrita por Kant 2 mil anos mais tarde, em sua distinção entre o temperamento e o caráter moral, instância que permitiria o controle consciente do comportamento. Desde então, várias teorias foram engendradas a fim de apreender o fenômeno da mente humana. Dentre elas, destaca-se o marco do estabelecimento da psicologia como ciência, em 1879, com a fundação de um laboratório de psicofisiologia, por Wilhelm Wundt, em Leipzig, Alemanha, que se pautava em estudos sobre a consciência, e as contribuições de Freud sobre o inconsciente, na psicanálise (Davidoff, 2001). TEMA 2 – A PSICANÁLISE E FREUD Freud, médico austríaco e um dos grandes precursores da psicanálise, construiu conceitos que até os dias de hoje influenciam fortemente práticas clínicas, visões de sujeito e modos de vida em todo o mundo. De acordo com Callegaro (2011), a teoria freudiana integra o que se conhece como as três revoluções: Freud comparou o impacto de suas observações sobre o inconsciente no pensamento humano a duas outras revoluções paradigmáticas: a derrubada do geocentrismo e do antropocentrismo pré-darwiniano. Segundo Freud, a humanidade sofreu o abalo de reconhecer que a Terra não é o centro do universo, e que o homem não é o centro da evolução. A luno: S abrina de A lm eida K ufner C aetano E m ail: sabrinakufner96@ gm ail.com 4 [...] A terceira revolução, o terceiro grande golpe no “narcisismo” humano seria, para Freud, a remoção da vida mental consciente do centro da atividade psíquica por meio das descobertas da psicanálise, as quais ressaltaram o papel das motivações inconscientes na determinação do comportamento humano. (Callegaro, 2011, p. 22) O conceito de inconsciente, sistematizado por Freud com base em seus estudos e trabalhos clínicos, foi sem dúvida um salto no entendimento dos processos que compõem a mente humana. Freud descrevia fenômenos e forças, ou energias psíquicas, envolvidas no processamento e armazenamento de experiências vividas pelo sujeito, ora pela metáfora de descarga, relacionada ao princípio do prazer, ora pelo conceito de bloqueio, por meio dos mecanismos de defesas. Crédito: Vkilikov/Shutterstock. Devido a essa sistematização, à sua habilidade literária e aos efeitos da prática clínica de Freud e seus colaboradores, o inconsciente psicanalítico foi se tornando um termo popular e que fazia sentido para muitos estudiosos, ainda que sempre tenha enfrentado resistências e rechaços, desde seus primórdios. O entendimento do inconsciente freudiano passa pela compreensão das nomeadas estruturas de ego, superego e id. A luno: S abrina de A lm eida K ufner C aetano E m ail: sabrinakufner96@ gm ail.com 5 Crédito: T and Z/Shutterstock. Conforme representado, a estrutura do inconsciente era em parte conhecida e compreendida por meio de notícias oriundas do ego e do superego. Porém, a maior parte ainda era algo submerso, como no iceberg: vê-se o id e o superego, denotando as profundezas inexploradas e, portanto, desconhecidas pelos estudiosos do comportamento humano. Considerados como algo submerso, invisível e até então inacessível, a psicanálise e o inconsciente freudiano – ou o inconsciente dinâmico, como é chamado hoje – passaram por questionamentos da sociedade científica da época por serem considerados insuficientes no que diz respeito aos ditames científicos, que se dariam sobre fatos observáveis, passíveis de mensuração, análise e replicação de estudos (Callegaro, 2011). TEMA 3 – OS QUESTIONAMENTOS O conceito freudiano de inconsciente, ainda que Freud não tenha sido o primeiro estudioso a pensar sobre os mistérios da mente, foi/é questionado por pesquisadores que se pautam(vam) pelos critérios da ciência. Mesmo que, conforme dito anteriormente, o conceito de inconsciente psicodinâmico tenha oferecido novos ares para o estudo da área do comportamento humano, havia, porém, a necessidade de realizar essa investigação de forma sistematizada e controlada, de tal modo que ela pudesse ser ensinada e replicada, em outros contextos, por mais pesquisadores. Em outras palavras, o arcabouço teórico de Freud abalou o status quo do conhecimento disponível na época a respeito dofenômeno humano, despertando interesse de muitos estudiosos; porém, devido A luno: S abrina de A lm eida K ufner C aetano E m ail: sabrinakufner96@ gm ail.com 6 ao modo como foi construído, sem ligação com a prática científica vigente, passou por questionamentos quanto a sua validade e credibilidade no meio científico. E, desde então, um grande debate sobre fenômenos da consciência e da inconsciência foi instaurado, inclusive com a utilização do termo inconsciente cognitivo. Hoje, é possível referir-se a processos inconscientes sem, necessariamente, se estar falando da teoria psicanalítica freudiana (Callegaro, 2011). Importante dizer que foi graças a toda a reviravolta causada pela psicanálise que se tornou possível construir uma série de outras perguntas sobre o fenômeno humano. Assim, uma das grandes questões centrais era quem efetivamente estava no controle de todos os processos mentais, já que o inconsciente era algo inacessível e que dava pistas de reger “silenciosamente” a vida dos sujeitos. Foram elaboradas perguntas como: o que vem antes – ações ou intenções? Para que serve, afinal de contas, a consciência, se consideramos que vários comportamentos complexos ocorrem em nível inconsciente? E: é possível termos acesso a todos os conteúdos inconscientes, ou seja, pô-los sob o nosso controle (Callegaro, 2011)? Essas e outras questões moveram diversos pesquisadores norte- americanos da área cognitiva e comportamental nas últimas décadas, conforme se verifica no livro The new unconscious (O novo inconsciente), um marco bibliográfico a respeito do tema, em que processos como motivação, memória, percepção, medo e respostas fisiológicas foram estudados (Hassin; Uleman; Bargh, 2005). TEMA 4 – O NOVO INCONSCIENTE “Todos nós prezamos muito a ideia de que somos o governante da nossa alma, que estamos no comando, e é um sentimento assustador pensar que não estamos” (Bargh, 1970). O termo novo inconsciente foi cunhado há pouco mais de uma década por um grupo de pesquisadores reunidos na obra supracitada (Hassin; Uleman; Bargh, 2005). Abarca contribuições da psicologia cognitiva, psicologia social, antropologia, evolucionismo e neurociências de forma geral. Importante assinalar que a psicanálise foi considerada fundamental para esses avanços científicos. A ideia de que o sujeito poderia ser regido por algo além de sua compreensão realmente movimentou todo o cenário científico da época e até os A luno: S abrina de A lm eida K ufner C aetano E m ail: sabrinakufner96@ gm ail.com 7 dias atuais. A metáfora do iceberg, ilustrada por Callegaro (2011), oferece essa visão de que a maior parte do que constitui um sujeito está na área submersa dele. O que aquele grupo de pesquisadores (Hassin; Uleman; Bargh, 2005) fez foi, por meio de experimentos científicos, trazer à tona uma parte desse bloco de gelo escondido num imenso oceano (Callegaro, 2011). Essas pesquisas científicas lançaram o inconsciente a um outro patamar, conforme observou Leonard Mlodinow (2013, p. 15): O inconsciente divisado por Freud, nas palavras de um grupo de neurocientistas, era “quente e úmido; fervilhava de ira e luxúria; era alucinatório, primitivo e irracional”, enquanto o novo inconsciente é “mais delicado e gentil que isso, e está mais ligado à realidade”. Nessa nova visão, os processos mentais são considerados inconscientes porque há parcelas da mente inacessíveis ao consciente por causa da arquitetura do cérebro, não por estarem sujeitas a formas motivacionais, como a repressão. A inacessibilidade do novo inconsciente não é vista como um mecanismo de defesa ou como algo não saudável. Na visão cognitivista, apreender o inconsciente seria, então, apreender o processamento de informações, sobre o qual o sujeito não tem ideia. Esse conceito foi originalmente elaborado pelo psicólogo John Kihlstrom (1987), o qual fazia analogias com o funcionamento do computador. Vale lembrar que a década de 1980 era permeada pelo zeitgeist (espírito da época) das ciências computacionais. Conforme sinaliza Callegaro (2011, p. 23), “A teoria computacional, a psicologia cognitiva e as ciências cognitivas forneceram o substrato teórico para entender o funcionamento consciente e inconsciente, fundando-se no conceito de mente como mecanismo de processamento de informação”. TEMA 5 – O PROCESSAMENTO INCONSCIENTE Crédito: Agsandrew/Shutterstock. A luno: S abrina de A lm eida K ufner C aetano E m ail: sabrinakufner96@ gm ail.com 8 Pesquisadores como Hassin, Uleman e Bargh (2005), chamavam de processos automáticos os fenômenos que aconteciam sem que o sujeito tivesse sobre eles conhecimento e controle, ou seja, sem que passassem pelo seu nível da consciência. Kihlstrom (citado por Callegaro, 2011), inclusive, descreveu processos mentais complexos, em nível inconsciente, relacionados à memória, percepção e afetos. A fim de ilustrar o avanço das teorias do inconsciente, da psicanálise freudiana às neurociências e à psicologia cognitiva, Callegaro (2011) desenhou o esquema da Figura 1. Figura 1 – Esquema com as principais estruturas teóricas sobre o inconsciente Fonte: Adaptado de Callegaro, 2011. O esquema da Figura 1 didaticamente explicita os caminhos teóricos e aplicações clínicas de ambos os constructos. Ainda que estejam separados, vale reforçar que a psicanálise deu a base para os questionamentos realizados a posteriori. O material bibliográfico lançado representou, na comunidade científica, um grande avanço no que concerne ao entendimento do processamento Inconsciente Dinâmico ou Freudiano Fundamentado na literatura psicanalítica Modelo de intervenção psicoterápica: Psicanálise Fonte de evidências: textos freudianos e pós- freudianos, observações clínicas Inconsciente Cognitivo (1987) e Novo Inconsciente (2005) Fundamentado na Teoria de Evolução e na Neurociência Cognitiva, Afetiva e Social Modelo de intervenção psicoterápica: Terapia Cognitiva Comportamental Fonte de evidências: métodos de investigação científica e observações clínicas sistematizadas Principais estruturas teóricas sobre processos inconscientes A luno: S abrina de A lm eida K ufner C aetano E m ail: sabrinakufner96@ gm ail.com 9 inconsciente. E, como se supõe em ciência, ainda é um campo em ampla construção e, portanto, passível de críticas e revisões, em outros estudos. Esse novo inconsciente, de acordo com Callegaro (2011, p. 31), “[...] envolve uma miríade de circuitos neurais que se encarregam do trabalho rotineiro pesado, deixando a consciência livre para focalizar os problemas novos a resolver”. Analogamente ao iceberg, é como se todas as correntes mais profundas do oceano o movimentassem em sua grande base, ainda que o topo, dele, não tivesse conhecimento. Para exemplificar, pense num momento criativo de concepção de uma letra de música e sua melodia. O compositor certamente entrará num processo de tempestade de ideias, ou brainstorming, para escolher as palavras, formar frases, combinar sons e repassar sua mensagem, com a composição. Mas, o que vai à consciência do compositor não são todos os processos mentais envolvidos em seus pensamentos ou como esses pensamentos se coadunam ou brigam entre si ou o léxico das palavras e a combinação com os sons que sairão dos instrumentos musicais, que são de uma outra ordem de linguagem. Ele talvez também não se dê conta de quais estados emocionais fazem parte do seu processo criativo ou de onde surgiriam determinados sentimentos. Mas, entrará em contato com somente alguns elementos de todo esse processamento, como as palavras escolhidas para formar frases, e, após um dado momento, a composição como um todo. O que representa um processo criativo e artístico nada mais é do que todo o inconsciente operando fortemente para que o sujeito trabalhe e, ao mesmo tempo, economizesua energia psíquica se concentrando naquilo que será o resultado desse processo. Crédito: Rawpixel.com/Shutterstock. A luno: S abrina de A lm eida K ufner C aetano E m ail: sabrinakufner96@ gm ail.com 10 É claro que qualquer atividade cotidiana pode ser explicada por meio de mecanismos da consciência e da inconsciência, porque isso já é ponto pacífico, entre os pesquisadores. Se até algumas décadas atrás questionava-se a existência da base do iceberg, hoje isso definitivamente não é mais uma questão para as ciências do comportamento humano. Porém, há que se alertar para o fato de que não é possível acessar esse inconsciente em sua integralidade, conforme sinaliza Callegaro (2011, p. 32): “Embora possamos eventualmente descrever por meio de palavras o trabalho dos mecanismos cerebrais que produzem as representações conscientes, não podemos acessar verbalmente a torrente subterrânea de processamento inconsciente”. Essa sinalização já havia sido feita por Freud e Lacan, a respeito da particular linguagem utilizada pelo inconsciente. FINALIZANDO É inegável toda a contribuição advinda da psicanálise, de Freud e seus colaboradores, para o entendimento dessa estrutura chamada inconsciente. Contudo, a cada época histórica, há a necessidade de entender além, responder a questões em aberto e, quem sabe?, jogar um novo olhar sobre o mesmo velho tema. E aí encontramos o conceito de inconsciente cognitivo e todos os seus desdobramentos na ciência comportamental, nas psicoterapias e na própria concepção que se tem de sujeito e sua relação consigo mesmo. O objetivo dessa primeira aula foi realizar uma breve contextualização sobre o tema novo inconsciente, saudando seus primórdios e vislumbrando novas ideias com base em pesquisas recentes. Ao longo da disciplina, mais tópicos serão explorados a fim de ampliar esse conceito inicial. Bons estudos! A luno: S abrina de A lm eida K ufner C aetano E m ail: sabrinakufner96@ gm ail.com 11 REFERÊNCIAS BOCK, A. M. B.; FURTADO, O.; TEIXEIRA, M. de L. T. T. Psicologias: uma introdução ao estudo da psicologia. São Paulo: Saraiva, 2001. CALLEGARO, M. M. O novo inconsciente: como a terapia cognitiva e as neurociências revolucionaram o modelo do processamento mental. Porto Alegre: Artmed, 2011. DAVIDOFF, L. Introdução à psicologia. São Paulo: Pearson Makron Books, 2001. HASSIN, R. R.; ULEMAN, J. S.; BARGH, J. A. The new unconscious. Oxford: Oxford University Press, 2005. MLODINOW, L. Subliminar: como o inconsciente influencia nossas vidas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2013. A luno: S abrina de A lm eida K ufner C aetano E m ail: sabrinakufner96@ gm ail.com