Prévia do material em texto
Teologia Contemporânea Agosto / 2021 Professores/autores: Dr. Jonathan Menezes / Me. Felipe Nakamura / Me. Mariana Schietti Projeto Gráfico e Capa: Mauro Rota - Departamento de desenvolvimento institucional Todos os direitos em língua portuguesa reservados por: Rua: Martinho Lutero, 277 - Gleba Palhano - Londrina - PR 86055-670 Tel.: (43) 3371.0200 3| Teologia Contemporânea | FTSA | SUMÁRIO Teologia Contemporânea UNIDADE I - CONTEMPORANEIDADE 1.0. Introdução........................................................................................................................04 1.1. Repensando a Teologia Contemporânea......................................................................05 1.2. O que signifi ca ser contemporâneo?...............................................................................10 1.3. Resistindo à tirania do contemporâneo.........................................................................24 UNIDADE II - PESSOA 2.0. Introdução........................................................................................................................40 2.1. A pessoa entre o verdadeiro e o falso “eu”....................................................................42 2.2. A pessoa e sua autoimagem...........................................................................................48 2.3. A pessoa e o cansaço contemporâneo.........................................................................54 UNIDADE III - SOCIEDADE 3.0. Introdução........................................................................................................................66 3.1. A justiça do Reino............................................................................................................67 3.2. A questão ecológica.......................................................................................................76 3.3. A cultura do espetáculo..................................................................................................83 UNIDADE IV - IGREJA 4.0. Introdução........................................................................................................................97 4.1. Tradição e contextualização..........................................................................................99 4.2. Caminhos para o diálogo..............................................................................................110 4.3. Uma igreja reimaginada................................................................................................119 Para fazer os exercícios e ver as respostas e reações do professor, acesse o AVA (Ambiente Virtual de Aprendizagem). | Teologia Contemporânea | FTSA4 Unidade I – Contemporaneidade Introdução “Um homem inteligente pode odiar seu tempo, mas sabe, em todo caso, que lhe pertence irrevogavelmente, sabe que não pode fugir ao seu tempo”. (Giorgio Agamben) “Contemporâneo” é, de acordo com o entendimento comum, aquilo que é próprio ou peculiar de/a uma época. Para ser contemporâneo, conforme reza esse entendimento, é preciso, portanto, coincidir, estar de acordo com os padrões ou mesmo atualizado com sua época. A tentação em questão aqui, então, é: para ser contemporâneo alguém precisa, em primeiro lugar, listar quais são os temas e tendências da “ordem do dia”, e, em segundo lugar, procurar se adequar ao estilo próprio de ser evocado ou sugerido nessas tendências. Ser contemporâneo, nesse sentido, confunde-se com as populares expressões “estar na moda”, “ser tendência” e “ser relevante”. Mas será que isso é “ser contemporâneo”? Até que ponto a ânsia pela atualização, implícita nessa dada compreensão, está de acordo e/ou entra em choque com as “exigências do Espírito” (do Evangelho)? Em outras palavras, qual é o preço que estamos dispostos a pagar para conseguir uma audiência no mundo chamado contemporâneo? Para responder a essas e outras questões, vamos dialogar principalmente com dois textos que estão mais ou menos em sintonia: um texto da década de 1960, de um místico franco-americano, Thomas Merton; e um texto dos anos 2000, de um fi lósofo italiano, Giorgio Agamben. A ideia central a ser percebida, em diálogo principalmente com esses dois textos, é de que a contemporaneidade evocada aqui é a de uma coincidência inconformada. Ou seja, o “ser contemporâneo” coincide com sua época na medida em que faz parte dela e está envolvido em seus dramas, mas, precisamente no meio dela, cria uma distância 5| Teologia Contemporânea | FTSA | contemplativa a fi m de observar criticamente seu entorno podendo, assim, destoar de alguns de seus tons e dessoar de alguns de seus sons. Indo além na metáfora musical, contemporâneo é aquele/a que se recusa a cantar todas as estrofes da canção contemporânea e, enquanto a banda toca, ousa recompor alguns versos e acordes. Contemporâneo é o cristão que constantemente sofre de metanoia – a transformação de seu modo de pensar o que gera, como consequência, uma conduta inconformada com os padrões e moldes de seu tempo. Assim, e somente assim, torna-se capaz de participar da revolução silenciosa promovida pelo Espírito no mundo. Falaremos mais disso ao fi m dessa unidade. Objetivos da unidade 1. Defi nir “contemporâneo” e “contemporaneidade”; 2. Compreender alguns dos limites e possibilidades de uma teologia (que ser quer) contemporânea; 3. Refl etir criticamente sobre o cristão e a igreja em sua busca por relevância e adequação aos padrões da tal contemporaneidade. 1.1. Repensando a Teologia Contemporânea O que signifi ca fazer teologia contemporaneamente? Digamos que essa pergunta resume nosso problema de pesquisa nesse primeiro tópico. Queremos, de um modo geral, entender o que signifi ca, afi nal, ser contemporâneo para, em seguida, oferecer uma visão possível do que seja o fazer teológico do discípulo hoje, bem como o cumprimento da vocação messiânica da Igreja. Porque no mundo da teologia, partamos dessa ideia, essas – a teologia contemporânea e o fazer teológico contemporâneo – podem ser coisas diferentes, embora para nós, como você perceberá, elas não são. Por que no mundo da teologia elas podem ser diferentes? Porque o nosso entendimento disciplinar de “teologia contemporânea” está ligado | Teologia Contemporânea | FTSA6 à uma interpretação linear da história, que a divide entre a Idade Antiga, Medieval, Moderna e Contemporânea. Esta última supostamente teria sido inaugurada após a Revolução Francesa, em 1789. Assim, os eventos que ocorreram após este marco são, geralmente, considerados parte da “história contemporânea”. Agora, pense que sentido de contemporâneo é esse que, por exemplo, coloca sob um mesmo guarda-chuva a Revolução Francesa, a Semana de Arte Moderna de 1922, A Guerra do Vietnã e o Impeachment de Dilma Rousseff no Brasil, em 2016. São todos esses eventos contemporâneos? Sabemos que apenas no sentido geral anteriormente anunciado, isto é, de que são considerados parte da história contemporânea – ou de certo entendimento do que ela seja. Como não sabemos o que vem depois dela, nos cursos de história se costuma dividir a chamada “História Contemporânea” em duas ou até três partes, para cobrir cerca de duzentos anos. Mas isso não ajuda exatamente no entendimento do que quer que seja “contemporâneo” (nossa busca aqui). Na teologia o cenário não é muito diferente, precisamente porque se parte do mesmo paradigma de divisão do tempo. O marco, porém, que dá início ao que costumeiramente se entende por “Teologia Contemporânea” é a Teologia Liberal do século XIX. A partir daí, concebe-se a teologia dentro de um grande movimento, que envolve, sobretudo, teologias europeias e norte-atlânticas, em que sucessivas correntes ou são consideradas herdeiras da chamada Teologia Liberal, ou surgem como reação a ela, seja no contexto católico ou protestante. Vide, por exemplo, o Fundamentalismo na América do Norte, ou a chamada Neo-Ortodoxia, que ganha1991. MENEZES, Jonathan. No caminho do bem: sabedoria antiga para uma nova humanidade. São Paulo: Recriar, 2021. _________. Filosofi a da Religião. Londrina: FTSA Editora, 2015. MERTON, Thomas. Homem algum é uma ilha. 23ª ed. Rio de Janeiro: Petra, 2021. _________. Contemplação num mundo de ação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2019. _________. A oração contemplativa. Campinas, SP: Ecclesiae, 2018a. _________. A igreja e o mundo sem Deus. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018b. _________. A experiência interior: notas sobre contemplação. São Paulo: Martins Fontes, 2007. ROHR, Richard. O Cristo universal. Como uma realidade esquecida pode mudar tudo o que vemos, esperamos e acreditamos. São Paulo: nVersos, 2019. ZABATIERO, Júlio P. T. M. A noção de Reino de Deus em Paulo e a integralidade da missão. In: Práxis Missional, ano 01, n. 2 (2018), pp. 37-52. 39| Teologia Contemporânea | FTSA | Discografi a GABRIEL O Pensador. Palavras Repetidas. Álbum: Cavaleiro Andante. Rio de Janeiro: Sony BMG, 2005. JOHN Mayer. Sob Rock. Album. New York City: Columbia Records, 2021. Webgrafi a AGAMBEN, Giorgio. Cristianismo como religião: a vocação messiânica. In: IHU On-line, 25 de Maio 2017. Disponível em: . Acesso em 17 Julho 2021. APPLE Music. John Mayer: ‘Sob Rock’ and Implanting False Memories. Disponível em: . Acesso em 16 julho 2021. | Teologia Contemporânea | FTSA40 Unidade II - Pessoa Introdução Nós, homens do conhecimento, não nos conhecemos; de nós mesmos somos desconhecidos – e não sem motivo. Nunca nos procuramos: como poderia acontecer que um dia nos encontrássemos?. (Friedrich Nietzsche) Uma vida interior profunda é a base de toda vida exterior fecunda. (Maria Clara Bingemer) Vamos iniciar essa unidade falando sobre a alma, que aqui defi nimos como a habitação de nosso ser mais profundo, onde nossos anseios e desejos mais primordiais são originados e que, obviamente, se realiza em um corpo (para não reforçar dualismos). Corpo que sente, sofre, padece e, também, se revitaliza a partir do que acontece no interior ou na alma, afi nal, somos um todo interligado. É na e através da alma que sentimos e pulsamos Deus com mais vivacidade, como também onde sofremos a angústia de seu silêncio e aparente ausência. A alma é o esconderijo de nosso verdadeiro ser, de nosso ser destituído das pretensões e das ilusões do ego – o que é o ego e o verdadeiro ser será matéria de nossa conversa adiante. Então, o que designamos como “alma”, aqui, receberá outros nomes ao longo dessa abordagem, tais como “verdadeiro-eu”, “verdadeiro si-mesmo”, ou nosso “eu mais profundo”. Essa preocupação nasce de uma observação da realidade e da constatação de que estamos vivendo neste tempo as consequências do alvorecer daquilo que Jesus alertou ser um perigo há dois milênios, através da pergunta: “Pois, que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?” (Mc 8:36). A humanidade vem “ganhando o mundo” de modo avassalador nos últimos séculos e, até por isso, vem também perdendo o mundo. Já não 41| Teologia Contemporânea | FTSA | estamos mais seguros de por quanto tempo esse mundo vai durar (ou, pelo menos, de quanto tempo sobreviveremos nele), porque esgotamos cada vez mais irresponsavelmente seus recursos – daí todas as conversas importantes, que vêm sendo travadas ultimamente, sobre ecologia e sustentabilidade (que, aliás, trataremos na terceira unidade desse curso). E, enquanto nos mantivermos sufi cientemente ocupados fazendo isso, isto é, dominando o mundo com outras pessoas e, também contra os melhores interesses delas mesmas – refi ro-me àquelas pessoas mais empobrecidas e vulneráveis –, também vamos nos esquecendo de habitar nosso interior e fazer a lição de casa que tem nos esperado ali desde que tomamos consciência de nossa existência. De modo que, como consequência dessa negligência, o mundo “ganho” é um mundo cada vez mais difícil, confl ituoso e menos habitável de um modo saudável. Nos esquecemos, como alertou Maria Clara Bingemer (2018, p. 8) na epígrafe dessa unidade, que a vida exterior fecunda depende do quão profundo resolvemos ir interiormente. E porque resolvemos nos manter distantes de nosso interior, já não sabemos mais tratar com a devida probidade e profundidade das questões da alma. Como diz Nietzsche (2007, p. 7), nos tornamos estranhos a nós mesmos porque desistimos de nos procurar. Ou, como disse alguns séculos antes Teresa de Ávila (2014, p. 18, grifo meu): “Não pequena lástima e confusão é não nos entendermos a nós mesmos, por nossa culpa, nem sabermos quem somos”. Exatamente: e continua sendo nossa culpa. A sociedade da medicalização, do bem- estar e do culto à saúde, como entendo ser esta em que estamos nos fazendo, oferece assim cuidados para “males” que ela nem sequer tomou consciência, pois tampouco se preocupa em compreender suas raízes. Como corolário, ela medica, mas não cura; trata, mas não liberta; alivia as consequências sem fazer a devida exploração holística das causas. Nesse horizonte, não pode ser menos importante perguntar: afi nal, quem é a pessoa humana, isto é, quem sou eu, quem é você? Não pretendemos, nem nesta unidade dedicada a isso ou mesmo ao longo do curso, dar a resposta sobre quem você é, mas compartilhar alguns achados como pessoas que também estão em busca. | Teologia Contemporânea | FTSA42 Objetivos da unidade 1. Reconhecer a importância da noção de “ego” para entendimento da pessoa e diferenciar as noções de “verdadeiro” e “falso eu”; 2. Fundamentar biblicamente a importância da construção de uma autoimagem redimida ou saudável; 3. Refl etir criticamente sobre seu lugar como pessoa, criada à imagem e semelhança de Deus, numa sociedade do cansaço. 2.1. A pessoa entre o verdadeiro e o falso “eu” Thomas Merton, um dos maiores místicos do século passado, apresenta em sua obra uma distinção muito importante para que refl itamos sobre nossa identidade ou a questão do “si-mesmo”. É a distinção entre o “verdadeiro” e o “falso” si mesmo. Antes, cabe indagar: em que contexto Merton apresenta essa ideia? Em seu livro Novas sementes de contemplação (1999), Merton pontua que uma dessas “sementes”, que nos conduzem à vida contemplativa, está na consideração das coisas a partir de sua identidade, ou seja, do que elas são em sua essência em contraste com o que são em sua aparência. “Uma árvore”, por exemplo, “glorifi ca a Deus sendo uma árvore”, de modo que, “quanto mais uma árvore se assemelhar a uma árvore, tanto mais se assemelhará a Deus” (Merton, 1999, p. 37). O contrário também é verdadeiro: caso tente se assemelhar a outra coisa que não ela mesma, não respeitando e realizando sua natureza arbórea, menos glória dará a Deus e mais distante Dele permanecerá. Isso é o que Merton chamou de “santidade das coisas”, que reside na qualidade delas serem elas mesmas e não outras, de modo que não há nada que se iguale a elas nem na terra ou nos céus. Santidade é sinônimo de singularidade. Ora, sabemos que a mensagem bíblica diz que Deus é Santo: “Mas, assim como é santo aquele que os chamou, sejam santos vocês também em tudo o que fi zerem, pois está escrito: ‘Sejam santos, porque eu sou santo” (1Pe 1.15-16). Dizer, em primeiro lugar, que “Deus é santo” é o mesmo 43| Teologia Contemporânea | FTSA | que dizer que Ele é único: incomparável, está “acima de todo nome”, não há outro igual a Ele, que não é e nem pode ser idêntico a outros deuses, tampouco às formas, fórmulas ou nomes que tentam descrevê- lo. E recomendar, em segundo lugar, que “sejamos santos como Deus é” signifi ca aceitar este “sim” gratuito de Deus e ser único, singular, como é o Deus que nos deu essa vida. Afi nal, não há nenhum outro ser vivente ou pessoa que seja idêntica a mim no universo.Por que razão macularei a santidade da vida tentando representar um personagem, imitar outro alguém ou ser quem não sou? Isto tem nome, chama-se “pecado” ou traição à santidade. Na defi nição de Merton (1999, p. 39), portanto, “ser santo signifi ca ser eu mesmo”, o que não é possível senão na comunhão entre caridade (amor) e graça. Isso, por outro lado, engendra uma dupla relação com a minha humanidade: (1) ser santo é assumir-se como ser humano: a santidade se realiza na humanidade (como quero discutir mais detidamente na próxima aula); e (2) ser santo é também ser mais que humano: a santidade é aquilo que a humanidade, sozinha, não realiza. Mas o que o ser humano, sim, realiza no gozo relativo de suas liberdades é o ato de decisão sobre o que ou quem será na vida, o que inclui a decisão sobre se deseja ou não se aprofundar no conhecimento de quem é, habitando conscientemente seu interior, ou permanecer apenas na superfície, como turista em sua própria vida – frequenta seus espaços sem nenhum compromisso com a transformação deles; ou gravita apenas na “circunferência” da vida sem tomar a jornada que conduz até o “centro” da vida, tornando-se pessoas excêntricas (literalmente fora do centro) e não centradas, como postulou Richard Rohr (2003, pp. 13- 27). Como salienta Merton (1999, p. 39), “temos a liberdade de ser reais ou irreais. Podemos ser verdadeiros ou falsos; a opção nos pertence. Podemos usar ora tal máscara, ora outra e nunca, se o desejarmos, aparecer com o nosso verdadeiro rosto”. Assim, o problema da santidade, para Merton, necessariamente evoca o problema, que vimos enunciando desde o início desta unidade, da “procura de quem sou e da descoberta de meu verdadeiro ser” (idem). | Teologia Contemporânea | FTSA44 Nesse contexto, Merton apresenta suas noções de “eu” verdadeiro e falso. Segundo ele, cada um de nós é acompanhado pela “sombra” de uma pessoa ilusória ou de um “eu falso” ou “falso si-mesmo”. O eu falso é o ser humano que eu quero ser, e todas as suas ornamentações externas (identidades, títulos e posições provisórias às quais este “eu” se agarra a fim de se afirmar, para si e para os outros), mas que “não pode existir, porque Deus não o conhece” (Merton, 1999, p. 42). Rohr (2010, p. 12) afi rma que esse “eu” é um “self separado” (de Deus e das outras pessoas), pois escolhe viver “a partir da divisão, tem a necessidade de expor-se, colocar-se em cena, supervalorizar-se, incensar-se”. Você certamente conhece alguém assim ou, se exercitar a coragem da honestidade, talvez se reconheça um pouco nesta descrição. Não confundamos, porém, a separação aqui em jogo com um mero apartar-se solitário. Para que o self-separado seja é necessário que outros (Deus e o próximo) não sejam, que é a defi nição que C. S. Lewis (2005, p. 162) deu para orgulho, e por isso ele o chamou de “estado mental mais oposto a Deus que existe”. A autocontradição evidente desse eu falso é que ele pode aparentar autossufi ciência, mas na realidade “é carente e frágil por natureza”, pois “depende das coisas externas a si mesmo e delas espera sua felicidade” (Rohr, 2010, p. 26). Por isso nunca está contente e sua existência é pura ilusão, pois está desligado de si mesmo, uma vez que, de acordo com Rohr (2010, p. 22), ela se centra no ego, que é algo que todos temos: uma percepção equivocada de quem somos ou “um sentido ilusório da identidade”, como o defi niu Eckhart Tolle (2007, p. 30). Para não nos estender demais neste ponto, o que une esses três autores (Merton, Rohr e Tolle) é a percepção de que existe um “eu” que antecede todas essas identifi cações em torno das quais nossa identidade se formou, antes que começássemos a interpretar papéis e a desempenhar funções e anos aferrar tanto a elas, transformando-as em ídolos muitas vezes. Um “eu-infantil”, uma parte de nós “que sempre disse sim a Deus, e sempre dirá” (Rohr, 2010, p. 32), é aquela que Merton chamou de “eu” verdadeiro: o ser que eu sou em Deus, escondido em seu amor desde a eternidade. 45| Teologia Contemporânea | FTSA | Quando se torna adulto, porém, “o homem abandona o jardim”. Como diz Rohr (2010, p. 21), “de forma cada vez mais crescente, o ser humano participa nos dramas da existência, desempenha papéis e assume uma identidade proposta por seus pais e pelo mundo circundante”. Isso não é algo necessariamente ruim, faz parte da experiência humana; até porque, como diz Rohr (2010, p. 25), “o verdadeiro e o falso si-mesmos dançam mutuamente”. Não podemos querer expulsar ou exorcizar um sem prejudicar o outro. O problema maior, a nosso ver, começa quando acreditamos que nosso ser se resume a essa identidade exterior, ou quando mobilizamos todos os recursos de que dispomos para nos tornar “alguém”, e, para isso, precisamos negociar a alma e perder de vista Deus e quem realmente somos Nele. A libertação do ego começa quando: (1) Tomamos consciência do ego, do “eu-falso” e de sua agenda; (2) Identifi camos aquilo que nesta agenda se encontra em rota de colisão com a vontade de Deus, expressa em sua Palavra; (3) Decidimos não mais viver uma vida “dedicada ao culto dessa sombra”, que Merton (1999, p. 42) defi ne como “vida de pecado”; e, fi nalmente, (4) buscamos através da vida na fé e da contemplação conhecer quem nós realmente somos em Deus, com o auxílio do Espírito. Grande parte dos problemas da vida espiritual são, portanto, esclarecidos com a lenta, porém gradual, libertação do verdadeiro eu das cadeias | Teologia Contemporânea | FTSA46 do falso. Chamamos isso de “maturidade cristã”. Isso signifi ca que precisamos diariamente fazer o trabalho interior e passar por uma kenosis ou o auto-esvaziamento das dimensões superfi cial e identitária do “eu”, para encontrar sua dimensão profunda. E aqui vem uma longa e importante passagem nas refl exões de Merton: A tarefa de encontrar a nossa própria identidade em Deus, que em linguagem bíblica é “operar a nossa salvação”, é um trabalho que requer sacrifício e angústia, risco e muitas lágrimas. Exige atenção rigorosa à realidade, a cada instante, e grande fi delidade a Deus, tal como ele se revela a nós, obscuramente, no mistério de cada nova situação. Não sabemos com nitidez, de antemão, qual será o resultado desse trabalho. O segredo de minha identidade plena está escondido nele. Só ele pode fazer-me o que sou, ou melhor, quem serei quando, enfi m, começar a ser de fato. Mas, a não ser que eu deseje essa identidade e trabalhe para encontrá-la, nele e com ele, jamais será a obra realizada. A maneira de realizá-la é um segredo que só posso aprender dele e de mais ninguém. Não há outra maneira de conseguir esse segredo a não ser pela fé. Mas a contemplação é o maior e mais precioso dom, pois ela me torna capa de ver e compreender qual o trabalho que Deus quer ver realizado. (Merton, 1999, p. 40-41) Líderes cristãos, especialmente, devem aprender algumas lições importantes dessa refl exão de Merton – afi nal é tarefa deles (nossa) a transmissão dos saberes e do encorajamento às mulheres e homens de fé da comunidade para que realizem esse mesmo trabalho em suas próprias vidas, pois essa é uma responsabilidade de cada um(a) e verdadeiros ministros da cura sabem disso, e, com essa consciência, afastam a pretensão messiânica de controlar o processo de cura na vida de outras pessoas. 47| Teologia Contemporânea | FTSA | A primeira lição é que este é um trabalho que trará alguns sofrimentos, pois “quem aumenta o conhecimento” (sobre si mesmo) “aumenta a dor”, parafraseando Eclesiastes 1:18. A segunda lição é que a realização desse trabalho parte de uma decisão voluntária, como a do Cristo que voluntariamente decidiu percorrer o caminho da cruz, que gera vida. Não desejamos a dor, como o Cristo também não o desejou, mas sabemos que toda cura verdadeira envolve alguma dose de dor. A terceira lição é a de que não existem garantias cósmicas de que os frutos desse trabalho aparecerão aoprimeiro olhar. Faz-se necessário, na maior parte das vezes, um olhar demorado, que é o olhar da contemplação, capaz de nos revelar verdades que a primeira impressão ou olhar normalmente não revela. A quarta lição é a de que esse trabalho só pode ser realizado em e com a ajuda de Deus, por meio da fé e do maravilhoso dom da vida contemplativa, que ajudam a desbancar até mesmo os disfarces religiosos que o falso si-mesmo utiliza para se proteger, como bem lembra Rohr (2015, p. 35, trad. minha): “Não há maneira mais inteligente para o falso eu se esconder do que por trás da máscara da espiritualidade. E quanto mais madura a máscara espiritual aparentar ser, mais perigosa ela será”. Essa é uma das diferenças que a contemplação promove nos ajudando a desconfi ar das aparências, começando sempre em nós mesmos antes que nos outros, como nos ensinou Jesus: Por que você se preocupa com o cisco no olho de seu amigo enquanto há um tronco em seu próprio olho? Como pode dizer a seu amigo: “Deixe-me ajudá-lo a tirar o cisco de seu olho”, se não consegue ver o tronco em seu próprio olho? Hipócrita! Primeiro, livre-se do tronco em seu olho; então você verá o sufi ciente para tirar o cisco do olho de seu amigo. (Mt 7:3-5, NVT) Precisamos, assim, rogar para que o Senhor abra os olhos do nosso coração e nos permita enxergar-nos como Ele nos enxerga, ainda que de relance ou parcialmente, como sugeriu o apóstolo Paulo (1Co 13:12); a fazer o duro, mas necessário trabalho de perscrutar nosso interior e a | Teologia Contemporânea | FTSA48 ter com nossas sombras a fi m de deixar que luz penetre a escuridão de nossos corações muitas vezes empedernidos e secos, embora sedentos de transformação. E, mais do que isso, que nos possibilite aprender a amar-nos como Ele ama – caminho que passa pela redenção de nossa autoimagem, assunto do próximo tópico. 2.2. A pessoa e sua autoimagem O resgate ou a salvação de nossa autoimagem é o primeiro passo quando desejamos assumir o verdadeiro eu e deixá-lo cumprir sua função, conforme criado e abençoado por Deus. Mas, se achamos que a teoria pode ser complicada, a prática pode ser ainda mais. Isto porque, como já vinham advertindo alguns teólogos como Claus Westermann (2004) e Albert Nolan (1987), o afastamento que a humanidade vem tomando do propósito criacional durante sua existência e, mais especifi camente, o descaso que os cristãos apresentam com a narrativa da criação, faria com que os problemas sociais, políticos, humanitários, sanitários e quaisquer outros, se tornassem problemas a serem resolvidos em nível global. O ser humano, por toda parte do planeta, já não sabe mais quem é, tampouco para que é, e todas as fugas possíveis acabam, na verdade, levando-nos ao caos pessoal e comunitário. Diante disso, e considerando que o caos implica na deturpação da autoimagem e na criação do personagem, vivendo constantemente o falso eu, nossa proposta não é apenas oferecer conceitos sobre este tema, acima de tudo a ideia é que este ensino seja apto para se tornar vivência e seja apto, portanto, a oferecer possíveis pontos de partida para que cada um trilhe seu caminho rumo ao verdadeiro eu. Um deles é o reencontro do que chamaremos agora de eu-humano, à imagem e semelhança do criador. Ser totalmente humano é, deste modo, ser totalmente integro enquanto imagem e semelhança de Deus. O outro é a conscientização sobre o que faz esse eu-humano uma pessoa completa e feliz. É por meio deste reencontro e desta conscientização que nos tornamos capazes de enxergar, sem borrões, nossa autoimagem. 49| Teologia Contemporânea | FTSA | Antes de iniciarmos, cabe destacar que vivemos tempos de alto pessimismo em relação à fi gura humana, o que pode atrapalhar muito nossa tarefa de reencontro do eu-humano. A sociedade da saúde, do status, do culto ao corpo, relatada no tópico anterior, é a mesma sociedade que adoece interiormente, com depressões, síndromes, vícios e por aí vai. Não nos aprofundaremos muito neste sentido, pois isso será contemplado no próximo tópico. Mas a ambivalência existente nesse cenário é capaz de demonstrar o quão perdido estamos enquanto seres humanos em nossa existência terrena. E quanto mais buscamos a perfeição do corpo, a perfeição da imagem, a perfeição dos bens materiais, mais vemos destruições, guerras, brigas, indiferença e divisão, e neste ponto em específi co, qual seja o resultado dessa ambivalência, encontramos o alto pessimismo em relação à fi gura humana. A consequência é um repúdio a diversos comportamentos e sentimentos que são naturais e que fazem parte do eu-humano, sendo que muitos desses sentimentos, comportamentos e necessidades são saudáveis para nós e negligenciá- los nos impede de acessar nossas camadas mais profundas. Além disso, podemos perceber que afi rmações como “é fi m dos tempos”, “o ser humano não tem mais jeito”, “o mundo está podre”, “o ser humano não tem nada de bom mesmo”, dentre tantas outras, são afi rmações comuns, principalmente no meio religioso, em que os discursos assumem uma esperança futura que descarta o corpo físico (do qual a alma faz parte) e o tempo presente, renunciando a qualquer redenção do eu, bem como ignorando a visão que o próprio Deus tem de sua criação. O que nos leva a sustentar cada vez mais o personagem criado, o falso eu, numa dinâmica que parece encobrir nossas frustrações e vazios, parece silenciar o caos e o barulho interno, nos fazendo crer que a melhor opção é manter o eu na escuridão. A verdade é que essas dinâmicas não são capazes de curar, salvar, apaziguar e libertar o eu verdadeiro. Pelo contrário, elas nos fazem acreditar que não há nada de bom em nós e, por isso, devemos deixar nosso eu-humano o mais enterrado possível. Diante desse pessimismo em relação ao eu-humano, que se dá ao | Teologia Contemporânea | FTSA50 mesmo tempo em que há uma idolatria do eu-objeto (personagem), torna- se imperiosa uma reconstrução da autoimagem. Para dar início a ela, é indispensável passar pelo tão conhecido texto bíblico de Gênesis 1.26. Todos nós, em nossa vivência cristã, já ouvimos ou já lemos que fomos criados à imagem e semelhança do próprio Deus. Porém, as refl exões e os estudos sobre o que isso signifi ca são poucos. Enquanto, na verdade, essa é uma das declarações mais fundamentais para vida cristã e para vida humana em geral. Isto porque, qualquer teologia que se forme ao redor de um tema, como são as teologias contemporâneas e os temas contemporâneos que demandam respostas teológicas, têm por trás delas problemas existenciais. Melhor dizendo, têm problemas que se formaram quando o ser humano já não mais se enxergou como imagem e semelhança do seu Criador, quando o ser humano preferiu se cobrir, se esconder de Deus, do outro e de si mesmo (Gn 3:7-11). Explicando melhor as consequências desse desconhecimento sobre quem somos, podemos dizer que, conforme os textos de Gênesis 1 e 2, Deus cria um espaço paradisíaco, em que a fauna e fl ora funcionam de forma harmônica e perfeita. Neste espaço tudo está equilibrado e cumprindo plenamente suas funções. O caos, mencionado logo no primeiro versículo do capítulo 1, está agora organizado e o vazio está preenchido. Neste cenário o ser humano é colocado em condição superior às demais criaturas, pois é o ser humano quem deve manter esta organização, quem deve dar continuidade ao trabalho iniciado por Deus. Para que isso fosse possível, Deus espelhou a si mesmo na criação do ser humano, tanto macho quanto fêmea, como diz o texto. Desta forma, “estavam nus, e não se envergonhavam” (Gn 2:25), pois viam-se como iguais, sabiam exatamente quem eram e para que eram. Não havia um padrão a alcançar, não havia um status a buscar, não havia disputa, hierarquia, nem bem, nem mal. Eram apenas humanos, que se aceitavam em suas condições e, portanto, aceitavam o outro em suas condições também. Mas a partir do momento em que a humanidade foi tomada pelo desejo deser Deus, o eu-humano se desencontrou de si, do outro, da criação 51| Teologia Contemporânea | FTSA | e do criador. Gênesis 3 relata bem esse cenário de desarmonia. A busca por cumprir o propósito divino de cuidado e continuidade na harmonia e no bem-estar deu lugar à busca por poder e domínio do outro. O homem passa então a dominar a mulher (Gn 3.16), o trabalho de cuidado e cultivo da criação, que resultaria em alimento necessário e em um habitat equilibrado, passa ser um trabalho pesado e sofrido, pois é um trabalho de quem deseja sempre mais, de quem deseja consumo exagerado, de quem deseja explorar para crescer, de quem deseja disputar para tirar do outro (Gn 3.19). O eu-humano enxergando-se como eu-divino, autossufi ciente, capaz de julgar, determinar e até mesmo recriar, perde-se dentro de si. Muitos leem o texto de Gn 3:14-22 como um texto de castigo. Mas é preciso lembrar que esse texto é escrito a partir de uma realidade religiosa, neste caso judaica, e ganha contornos próprios desta religião. O Deus castigador se faz presente no texto quando editado por seus redatores que assim criam. Mas Jesus já nos mostrou o contrário. Deus, não é um Deus de castigo, mas de amor e compaixão. Além disso, é consenso entre os biblistas, que o texto de Gênesis 1-3 é o texto antigo sobre a criação mais rico em detalhes que existe no antigo oriente e é um texto universal (Kidner, 2001, p. 13). Nele, Deus não cria os hebreus, os israelitas e os judeus, Deus cria a humanidade à imagem e semelhança de si. Por isso, apesar dos contornos que Gênesis 3:14-22 pode trazer, o texto à bem da verdade é apenas um refl exo das consequências naturais do eu-humano perdido, que esqueceu sua autoimagem e criou para si um super-herói, que precisa sempre sustentar o que não é, para esconder-se de quem é. Voltando à questão da universalidade do texto, ela não revela apenas que Deus criou todos os seres humano. A questão é mais profunda e fundamental ao resgate da autoimagem. O texto revela que, sendo imagem e semelhança de Deus, tudo o que contém em nós, antes de tudo, contém em Deus. Portanto, todas as raças, todos gêneros, todos contornos faciais, todas as cores de olhos, todos os tipos de cabelo, todas as alturas, todas as formas de falar, de andar, de cantar, de dançar, todas as vozes, sorrisos, olhares, tudo o que é natural, antes de estar | Teologia Contemporânea | FTSA52 no humano, está nele. Ele é o portador de todas as belezas naturais que existem em nós e isso é o primeiro entendimento necessário para um encontro com o eu-humano, com o mais profundo e verdadeiro eu. Mas não só isso, a imagem e a semelhança não estão somente na forma física. A alma, mencionada no tópico anterior, é parte da imagem e semelhança de Deus. A alma é consciência da nossa capacitação ao cuidado e ao cultivo. Em Gênesis 1:26 Deus cria macho e fêmea e os abençoa para que cuidem e multipliquem aquele estado paradisíaco. Todos, sem exceção, são capazes. Sendo assim, ainda que nossos sentimentos e desejos tenham sido tomados por esse desejo de ser mais, maior, dominador do outro, julgador, independente, de ser conhecedor do bem e do mal como Deus é, ainda assim, dentro de nós existe o eu-humano capaz de controlar tais desejos, capaz de cuidar e multiplicar a harmonia, capaz de se manter dependente do criador, capaz de enxergar o outro e não ver diferença, pois sabe que nus não têm do que se envergonharem. São equivalentes. Existe o eu-humano que sabe que o trabalho equilibrado não sacrifi ca o corpo, o trabalho equilibrado apenas mantém o corpo, e sabe que a plenitude da vida está nos pequenos detalhes das coisas criadas por Deus e não nas fortunas e na beleza das coisas criadas pelas mãos humanas. Mantendo isso em mente, precisamos retornar ao assunto do pessimismo humano. Diante de todo esse relato da criação, acreditar que esse eu-humano não existe mais, e que agora tudo o que há de mais profundo em nós é sujeira e podridão, é assumir que Deus não é Deus e que o mal está acima dele. Nas palavras de Albert Nolan (1987, p. 125) “qualquer um que acredite que o mal vai ter a última palavra, ou que o bem e o mal têm cada um cinquenta por cento de possibilidades de vencer, é ateu”. Segundo ele “acreditar em Deus é acreditar que o bem é mais poderoso que o mal e que a verdade é mais forte que a mentira”. Ou seja, podemos então dizer que acreditar em Deus é acreditar que aquilo que ele nos criou para ser é mais forte do que o que a sociedade nos exige ser, e que o eu-humano escondido atrás do eu-objeto pode ser resgatado, pode ser vivido, tem força sufi ciente para derrotar o personagem. E crendo em 53| Teologia Contemporânea | FTSA | Deus, é preciso crer que o verdadeiro eu é melhor que o personagem, ele é bom, é sufi ciente e capaz, exatamente como ele é. Perceber-se assim, sem toda a capa colocada pelas exigências contemporâneas, e enxergando-se simplesmente como um ser real, dependente daquele que o criou e, portanto, satisfeito com o que é e com o propósito que recebeu, as ambivalências que surgem entre a performance do personagem e o sentimento da alma, começam a se dissipar, dando lugar à razão e à consciência de que assim como o Reino de Deus está em nós, a harmonia e plenitude vista no paraíso do Éden, também está em nós, está no mais profundo do eu, o eu-humano. Ainda usando os ensinamentos de Nolan, aprendemos que: Existe no mundo uma força dirigida para o bem, um poder que se manifesta nos impulsos e forças mais profundos existes no homem e na natureza, poder que é, em última análise, irresistível. Se Jesus não acreditasse nisso, não teria tido nada para dizer. (Nolan, 1987, p. 125) Jesus é sem dúvida o mais belo e vivo exemplo de uma autoimagem imaculada. Ele jamais corrompeu sua autoimagem, eu verdadeiro eu, seu eu-humano – ainda que neste último ponto pudesse fazê-lo já que era divino também – para aceitar o eu-objeto, aquele que precisa ser sustentado e moldado conforme os padrões sociais. Nos tempos de Jesus a religião moldava esse padrão. Em nossos tempos, além da religião, temos as redes-socias, um dos maiores inimigos do verdadeiro eu. Apesar de terem ótimas serventias, as redes sociais também são capazes de se tornar um meio de destruição para aqueles que a utilizam. Mas, assim como Jesus, o bem que há em nós, aquele que é modelo primário de nossa formação, que é o próprio Criador, é mais forte e resistente que todos os outros modelos, e cabe a nós acessá-lo por meio do eu-humano. A partir do momento em que aceitamos nossa imagem, que ressignifi camos nossas buscas e ideais, nossas crenças e valores, a respeito de nós mesmos, do outro e do mundo, alcançamos a salvação, | Teologia Contemporânea | FTSA54 ou seja, a libertação, de uma autoimagem deturpada e corrompida, passando a viver a partir de uma autoimagem segura e bem defi nida. Essa será uma das maiores respostas às grandes temáticas atuais, como a luta pela igualdade de gêneros, a luta contra o racismo, contra a homofonia, a luta contra a desigualdade social, contra a escravidão etc. Essas são as formadoras de algumas das teologias contemporâneas, como a teologia da libertação, teologia feminista, teologia negra e por aí vai. Nelas todas, a primeira resposta teológica necessária é o resgate da autoimagem, tanto daqueles que estão sendo oprimidos e lutando por seus direitos e dignidade, quanto para os seus opressores, que não devem sair da condição de opressores para oprimidos, mas devem sair da condição de opressões, para condição de humanos promotores da harmonia e da dignidade de todos. Afi nal, em Gênesis 1:31 “Deus viu tudo o que havia feito, e tudo era muito bom”. O bom de Deus está acima de qualquer outra coisa e cabe a cada individuo a mudança da mente, a rejeição à imagem maculada imposta pela sociedade, a recusa de maltratar nosso verdadeiro eu, em busca da imagem perfeita do falso eu, pois viver escondendo o eu-humano e sustentandoo eu-objeto resultará, certamente, em uma catástrofe, como veremos no próximo tópico. 2.3. A pessoa e o cansaço contemporâneo As doenças emocionais ou neurais estão na pauta dos temas contemporâneos. Depressão, Transtorno de Défi cit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), Burnout, são palavras conhecidas popularmente e campanhas como por exemplo, “Setembro Amarelo”, que é o mês da prevenção ao suicídio, estão sendo mais divulgadas. Em parte, essas doenças são refl exo do esgotamento e do cansaço do ser humano. De acordo com Byung-Chul Han (2017), vivemos tempos de falta de negatividade e excesso de positividade, que são motivos de uma violência neural. Para entendermos isso de uma forma um pouco mais clara, precisamos recorrer ao que já está sendo bastante falado e discutido atualmente, que 55| Teologia Contemporânea | FTSA | é a questão imunológica. O sistema imunológico atua quando identifi ca algum corpo estranho e então produz algum tipo de defesa contra esse corpo ou recebe a ajuda de algum artifício externo para tal, que é o caso do uso das vacinas. Han (2017) aponta que o século passado foi uma época imunológica, com inimigos bem estabelecidos, divisões claras. O que era estranho era facilmente identifi cável e combatido, por ser algo que vinha de fora, que trazia algum tipo de negatividade. Porém, sobretudo após o fi m da Guerra Fria, o paradigma foi se alterando para o desaparecimento dos inimigos, da estranheza, do outro, dando lugar ao igual – ainda que, nesse momento de nossa história, com a pandemia, estejamos às voltas de novo com a questão imunológica. Em todo caso, a grande questão dessa mudança de paradigma foi a difi culdade de identifi car as ameaças, uma vez que o igual não aparenta representar um perigo para o corpo. Contudo, ele comenta: “A violência não provém apenas da negatividade, mas também da positividade, não apenas do outro ou do estranho, mas também do igual” (Han, 2017, p. 15). O igual traz um excesso de positividade, não há nenhum tipo de resistência ou barreira para combatê-lo. Ele provoca uma situação mais difícil de ser resolver por ser uma batalha travada sem nenhuma interferência externa, isto é, não é um corpo estranho invadindo, é uma batalha interna, contra si mesmo. A causa é relativamente simples de entender: a violência da positividade vai gerando paulatinamente um excesso de cobrança e de exigência tamanhas nas pessoas que logo elas não se sentem mais confortáveis e adequadas em seu próprio corpo e com a suas próprias vidas. E o que pesa, como bem apontou Han, não é apenas o número ou o acúmulo de atividades, mas a pressão do desempenho, em realizá-las sempre bem a partir da lógica de produzir sempre mais e melhor. Invariavelmente as expectativas não são supridas, e daí nasce a frustração proveniente da não fusão entre expectativa e realidade. Trocamos, assim, o processo natural de nos tornarmos quem somos – como vimos no início dessa unidade – pela pressão da conversão de si mesmo em um sujeito do | Teologia Contemporânea | FTSA56 desempenho, de modo que o que nos torna doentes “não é o excesso de responsabilidade e iniciativa, mas o imperativo do desempenho como novo mandato da sociedade pós-moderna do trabalho” (Han, 2017, p. 27). Em diálogo com Alain Ehrenberg, Han explica que a pressão de ter que ser ela mesma é o que provoca a pessoa doente. Contudo, o contrário nos parece ser verdadeiro: a pressão pelo desempenho acaba fazendo essa pessoa perder o ponto arquimédico no qual coincide consigo mesma, gerando uma autoimagem duplicada e, como tal, não condizente com o original. Ou seja, a tendência é que a pessoa tente escapar de quem ela é e não o contrário, como sugere Han. Desse modo, o que Han chama de excesso de positividade pode ser representada pelo slogan “Yes, we can”, que, em um primeiro momento, pode parecer inofensivo ou até mesmo algo excelente, entretanto, suas consequências podem ser catastrófi cas. No excesso de positividade, a ideia difundida é que sempre é possível ter melhor desempenho, produzir mais. Quão tentador é esse discurso! Nos últimos anos, provavelmente você já deve ter ouvido ou até mesmo falado em uma conversa: “A vida está corrida!” ou “Estou super atarefado!”, entre outras frases semelhantes. Nouwen (2019) descreveu bem isso na década de 1980, obra que foi republicada no Brasil pouco tempo atrás: Uma das características mais óbvias da nossa vida diária é o acúmulo de tarefas. Na nossa experiência, os dias são cheios de coisas para fazer, pessoas para encontrar, projetos para terminar, e-mails para escrever, telefonemas para dar e compromissos para honras. Nossa vida muitas vezes parece uma mala abarrotada rebentando nas costuras (Nouwen, 2019, p. 21). Junto com as frases corriqueiras mencionadas acima, muitas vezes está o sentimento de orgulho de parecer alguém que é produtivo. Ainda de acordo com Nouwen, a produtividade traz uma forma de identifi cação, isto é, penso que sou o que faço. Entretanto, isso interfere signifi cativamente 57| Teologia Contemporânea | FTSA | em nossa vida, alimentando um falso eu ou eu-objeto, como vimos. A identidade partindo do desempenho e produtividade nos infl uencia a não aceitar nossa humanidade. Não nos vemos mais como pessoas e sim como máquinas que precisam produzir mais. Com esse pensamento, uma hora o corpo deixa de suportar e o cansaço traz o abatimento junto com outras doenças neurais. É importante destacar, porém, que Han (2017) fala de uma diferença de tipos de cansaço. Nem todo cansaço é prejudicial e causa violência neural, existe o cansaço fundamental e o cansaço profundo. O cansaço fundamental inspira, permite com que as coisas não sejam efi cientes e produtivas, permite o não fazer. Já o cansaço profundo é voraz, incapacita de fazer não por querer, mas por não conseguir mais, é um esgotamento do ser que continua buscando desempenho. Ou como bem ilustrou Nouwen (2019), uma mala abarrotada de coisas rebentando nas costuras. Em algum momento ela não irá suportar mais e romperá. A busca por desempenho e produtividade não se limita somente ao campo do trabalho, podemos perceber essa infl uência em outras esferas da vida. Queiroz (2013) identifi cou alguns tipos de espiritualidades presentes na contemporaneidade brasileira. Destacamos uma espiritualidade classifi cada como gnóstica e sensitiva, que é essencialmente dualista, isto é, o que é material é totalmente ruim e o que “espiritual” é bom, e é fundamentada sobretudo nas experiências emocionais. Essa espiritualidade fomenta uma busca incessante pela experiência com o sobrenatural e, caso não sinta nada de diferente, há algum pecado que precisa ser confessado ou falta fé. Não estamos menosprezando os sentimentos, eles sinalizam nossa humanidade, porém, uma ênfase excessiva pode ser prejudicial, uma vez que os sentimentos passam e o desejo de buscar mais experiências pode se tornar um vício, sempre querendo sentir algo a mais, ser “mais espiritual”. Uma produtividade religiosa que também resulta em fadiga, em esgotamento, em cansaço. Afeta o ser humano e causa uma ausência de sentido. No fundo, a busca por mais em diversas esferas da vida | Teologia Contemporânea | FTSA58 parece ser semelhante a correr atrás do vento, como diria Eclesiastes. Aliás, podemos observar neste livro da Bíblia, um Sábio que parece ser alguém curioso, explorador e que fez de tudo na vida. Vejamos um trecho do capítulo 2: Depois de pensar muito, resolvi me animar com vinho. E, enquanto ainda buscava a sabedoria, apeguei-me à insensatez. Assim, procurei experimentar o que haveria de melhor para as pessoas em sua curta vida debaixo do sol. Dediquei-me a projetos grandiosos, construindo casas enormes e plantando belos vinhedos. Fiz jardins e parques e os enchi de árvores frutíferas de toda espécie. Construí açudes para juntar água e regar meus pomares verdejantes. Comprei escravos e escravas, e outros nasceramem minha casa. Tive muito gado e rebanhos, mais que todos os que viveram em Jerusalém antes de mim. Juntei grande quantidade de prata e ouro, tesouros de muitos reis e províncias. Contratei cantores e cantoras e tive muitas concubinas. Tive tudo que um homem pode desejar! Tornei-me mais importante que todos os que viveram em Jerusalém antes de mim, e nunca me faltou sabedoria. Tudo que desejei, busquei e consegui. Não me neguei prazer algum. No trabalho árduo, encontrei grande prazer, a recompensa por meus esforços. Mas, ao olhar para tudo que havia me esforçado tanto para realizar, vi que nada fazia sentido; era como correr atrás do vento. Não havia nada que valesse a pena debaixo do sol. (Ec 2:3-11, NVT) Apesar de muito distante de nosso tempo, fazendo um pequeno paralelo o Eclesiastes agiu como alguém que tem como lema de vida o “Yes, we can”. Não negou a nada a si mesmo: grandes projetos, propriedades, bens, prazeres, tudo isso ele alcançou, e mesmo assim, com todas as suas conquistas, não satisfez a sua busca. Se o Eclesiastes fosse nosso contemporâneo, é bem possível que seria mais uma pessoa que sofrendo 59| Teologia Contemporânea | FTSA | com a violência neural e com a falta de sentido na vida. Kivitz (2009), aponta que a falta de sentido ocorre porque somos utilitaristas com as pessoas, com as coisas e com as situações, isto é, as utilizamos para satisfazer um desejo pessoal. Ainda que todos sejamos utilitaristas em alguma medida, ele comenta que há um nível que envolve o desejo de uma experiência mágica, ou algo como se fosse um trampolim metafísico para alcançar um signifi cado escondido. As relações com as pessoas e coisas ganham forma utilitarista para chegar ao suposto ápice. No fi m, o que se percebe é ausência de sentido, o enfado, o cansaço. Clément Rosset, em seu livro O real e seu duplo, desenvolve a tese de que, com relação ao real, nossa tendência é a de suprimi-lo numa “atitude de cegueira voluntária”, que nos faz ignorar o real, o singular, e dirigir nosso olhar para outro lugar (seu duplo), onde o real não está. De modo que, aquilo que anunciamos como sendo “real”, é na verdade o “outro”, visto que o real, em si, nos escapa. Ao abordar o mito narcísico, Rosset afi rma que a fragilidade ontológica de Narciso, que o levou à aniquilação de si, não foi a apreciação, o amor ou a grande aceitação pelo seu “eu real”, mas sua fi xação em uma espécie de “duplo psicológico”, ilusório. Ou seja, essa interpretação nos conduz a pensar que aquilo que Narciso contempla embevecido, na verdade, seria a sua não-realidade, uma representação (desejável) de si mesmo, da qual ele necessita para continuar existindo, para além do desespero de não-ser. Assim, de acordo com Rosset (2008, p. 108), “o erro mortal do narcisismo não é querer amar excessivamente a si mesmo, mas, ao contrário, no momento de escolher entre si mesmo e seu duplo, dar preferência à imagem”. Retornando ao diálogo com Ehrenberg e Han, o problema do narcisismo inerente à sociedade do desempenho e da positividade não estaria, assim, na incapacidade de ser quem se é, mas na rejeição de quem se é e na consequente incapacidade de ser o seu duplo. Essa parece ser, aliás, a única negatividade plausível no império da positividade. Tudo isto se dá em um contexto em que “saúde e bem-estar” se tornaram palavras de ordem, objetos da idolatria contemporânea, cedendo, | Teologia Contemporânea | FTSA60 paradoxalmente, à pressão do desempenho ao transmitir a mensagem de que é preciso manter o bem-estar e a saúde a qualquer preço – às vezes, o preço é (eis o paradoxo) a própria saúde. E para este fi m cooperam as igrejas, as academias fi tness e os spas (templos do bem-estar); também as clínicas de estética, os laboratórios de genética, e até os sujeitos da cura, como os psiquiatras, se tornam também agentes do retorno à lógica do desempenho ao distribuir remédios contra disfuncionalidades provocadas pelo excesso de positividade, às vezes deliberadamente e sem um escrutínio cuidadoso (o que, em tese, ajudaria a precisar melhor a necessidade ou não do uso de medicamentos). Como observa Han (2017, p. 99), “elaborar o confl ito” é um processo lento e demorado, além de doloroso demais – e precisamos evitar a dor e a frustração de todas as formas! Assim, “é muito mais simples lançar mão de antidepressivos que voltam a restabelecer o sujeito funcional e capaz de desempenho”. Assim, o homo sacer (o homem sagrado) da sociedade do desempenho foi tipifi cado nas fi guras do homem e da mulher “saudáveis”, mas não necessariamente cheios de vida; converteram-se em “zumbis saudáveis e fi tness, zumbis do desempenho e do botox” (Han, 2017, p. 119). Como ainda observa Han, A vida do homo sacer da sociedade de desempenho é sagrada e desnudada a partir de outra razão bem distinta. É desnuda porque está despida de toda transcendência, porque foi reduzida à imanência da mera vida, que deve ser prolongada a qualquer custo e com todos os meios. A saúde é elevada à nova deusa. Por isso, a mera vida se tornou sagrada. Os hominis sacri da sociedade de desempenho distinguem-se dos da sociedade soberana pela especifi cidade ampla de que são absolutamente impassíveis de serem mortos. Sua vida equipara-se à de mortos-vivos. Estão por demais vivos, para morrer, e por demais mortos para viver. (Han, 2017, p. 108-109) 61| Teologia Contemporânea | FTSA | No contexto da espiritualidade cristã a vida é, sem dúvidas, sagrada, tanto no sentido de que é uma dádiva graciosa do Deus da vida, quanto no sentido de que é (e deve ser, cada vez mais) humana. O problema do desnudamento sobre o qual fala Han é que ele dessacraliza a vida e o humano, não lhes respeitando o limite e a singularidade, de modo que o que hoje chamamos de “saúde e bem-estar” pode representar, muitas vezes, o seu oposto. E isso acontece quando passamos a acreditar que esse binômio consiste no próprio sentido da vida, e não o resultado de uma reverente coincidência: consigo, com o próximo, com a natureza e, assim, com o Deus da vida. Conclusão Para fi nalizar, o que falta então é a aceitação de que as coisas são como são e não precisam necessariamente trazer alguma experiência de êxtase como consequência. Voltamos assim ao que comentamos nos tópicos anteriores, o conhecimento do verdadeiro eu ou do eu-humano. Uma vez que buscamos lidar com o conhecimento e a aceitação da nossa humanidade em um nível mais profundo, reconhecemos e buscamos aceitar as limitações das outras pessoas e das coisas também. Assim, impedimos com que o ciclo vicioso do excesso de positividade, nos esgote. Isso é claramente um desafi o, afi nal, estamos tão acostumados com isso que não é fácil agir e pensar diferente. O problema da sociedade que tem o desempenho como mola-mestra não é propriamente “falta de tempo”, como tendemos a alegar, mas a vivência de um tempo sem aroma, como postulou Han em outro lugar. E o que seria um tempo sem aroma? É um tempo que foi feito para não durar, que perdeu de vista a experiência da durabilidade, da lentidão e da demora sem as quais a vida perde aroma e sabor, pois não pode ser devidamente desfrutada. Comer, rezar, frequentar a igreja, se relacionar, se exercitar, ter prazer, lazer e distração se tornaram práticas fugazes, prestes a se desintegrar em imagens no próximo telegrama instantâneo, mais conhecido como “Instagram”. Com isso, não estamos mais falando de “tempo” propriamente, mas da experiência humana no tempo. | Teologia Contemporânea | FTSA62 Uma experiência na qual se elimina a perspectiva espaço-temporal de perto ou longe, de aqui e lá, de agora, daqui a pouco ou depois, uma vez que nossa redenção aos Instagrams e WhatsApps da vida faz com que os intervalos sejam suprimidos “em benefício de uma proximidade e de uma simultaneidade totais. Elimina-se qualquer distância ou lonjura. Trata-se de fazer com que tudo esteja disponível aqui e agora. A instantaneidadese transforma em paixão. Tudo o que não pode se fazer presente não existe” (Han, 2016, p. 53). O ser, diz Han, é “muito mais do que presença” e empobrece um pouco mais cada vez que suprimimos ou limitamos seus momentos de ausência e distância. O fato interessante, que Han não menciona, mas dá a entender, é que essa necessidade de estar presente em todos os lugares, mesmo que na forma de um avatar, empobrece justamente a experiência da presença real, de estar aqui, de viver esse momento, nesse lugar, com essas pessoas, com meu ser inteiro e entregue ao agora. Que se encerra em um paradoxo espaço- temporal e existencial: estou aqui, mas também em outros lugares, então realmente não estou aqui; conectado com muitos ao redor do globo, mas incapaz de me conectar com a pessoa que está perto ou diante de mim. A suposta “falta de tempo” presente na mui repetida frase “não tenho tempo” é, na refl exão heideggeriana de Han, “sintoma de uma existência imprópria”, pois perdeu a capacidade de discernir a época, a vida e o modo como a gerimos. Uma vida pequena, que tende a se degenerar em uma morte pequena, pois não fez uso da capacidade de gestão do tempo a partir de uma refl exão sobre prioridades; ou que, mesmo fazendo, decidiu priorizar menos a vida, menos relacionamentos signifi cativos; em suma, menos o “verdadeiro eu” e mais a personagem, a representação ou o avatar virtualmente reproduzível. Então, não parece ser “tempo que nos falta pra perceber”, como questiona Lenine na canção “Paciência”. Falta-nos uma percepção transformada do tempo, bem como dos valores que na vida simplesmente não “escorrem pelas mãos”, nem podem ser manipulados sem consequências. O sonambulismo governa os passos de muita gente no tempo dessa sociedade do desempenho. Muitas delas estão acordadas e realizando muitas coisas sem estar realmente despertas. 63| Teologia Contemporânea | FTSA | Entretanto, é possível mudar de perspectiva a partir do momento em que nos permitimos parar. Por mais óbvio que isso seja, vamos ser francos, o quanto realmente levamos isso a sério? Podemos até lembrar e mencionar sobre a importância de parar enquanto princípio para descanso, porém, nosso ritmo continua sendo de ativismo. Na narrativa da criação, o próprio Deus descansa após ver que o que havia feito era bom (Gn 2:2). O tempo de descanso então é uma etapa fundamental em nossa contemporaneidade de violência neural. Esse tempo de descanso, na Bíblia mencionado como sábado, ou o Schabat, é sagrado, é singular. Considerando isso, talvez possamos aprender com o rabino Abraham Joshua Heschel (2014): O judaísmo é uma religião do tempo visando a santifi cação do tempo. Diferentemente do homem propenso para a espacialidade, isto é, aquele para quem o tempo é invariável, iterativo e homogêneo, para quem todas as horas são iguais, desprovidas de qualidade e conchas vazias, a Bíblia percebe o caráter diversifi cado do tempo. Não existem duas horas semelhantes. Cada hora é única e uma só, dada naquele momento, exclusiva e infi nitamente preciosa. (Heschel, 2014, p. 15) Ainda de acordo com Heschel (2014, p. 23), no Schabat é que saímos da tirania das coisas e somos chamados para adentrar nos mistérios da criação, para se preocupar “especialmente com a semente de eternidade plantada na alma”. Se nos outros dias da semana corremos para conseguir dominar as coisas, no Schabat tentamos dominar o eu. É um tempo de repouso, contemplação e meditação. Essa é a sacralidade do tempo tão essencial na contemporaneidade. O parar se torna mais do que recuperar as forças para começar tudo novamente, mas é o momento em que há uma refl exão sobre a existência, um adentrar ao nível profundo de nossa identidade. Diferenciar nossa humanidade da mecanicidade do desempenho e produtividade. | Teologia Contemporânea | FTSA64 Referências bibliográfi cas ÁVILA, Teresa de. Castelo interior ou moradas. Petrópolis: Vozes, 2014. BINGEMER, Maria Clara (Org.). Thomas Merton: a clausura no centro do mundo. Petrópolis: Vozes, 2018. HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017. ___________. O aroma do tempo. Um ensaio fi losófi co sobre a arte da demora. Lisboa: Relógio D’Água, 2016. HESCHEL, Abraham Joshua. O Schabat: seu signifi cado para o homem moderno. 2ed. São Paulo: Perspectiva, 2014. KIVITZ, Ed René. O livro mais mal-humorado da Bíblia: a acidez da vida e a sabedoria do Eclesiastes. São Paulo: Mundo Cristão, 2009. LEWIS, C. S. Cristianismo puro e simples. São Paulo: Martins Fontes, 2005. KIDNER, Derek. Gênesis. Introdução e Comentário. São Paulo: Vida Nova, 2001. MERTON, Thomas. Novas sementes de contemplação. Rio de Janeiro: Fisus, 1999. NIETZSCHE, Friedrich. A genealogia da moral. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. NOLAN, Albert. Jesus antes do cristianismo. São Paulo: Paulus, 1987. NOUWEN, Henri. Espaço para Deus: um convite para a vida espiritual. São Paulo: Impacto, 2019. QUEIROZ, Carlos. Em busca da espiritualidade: o mercado da fé e o evangelho da graça. Viçosa: Editora Ultimato, 2013. 65| Teologia Contemporânea | FTSA | ROHR, Richard. A libertação do ego: a busca do verdadeiro si-mesmo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010. __________. Everything Belongs: The Gift of Contemplative Prayer. New York: Crossroad, 2003. ROSSET, Clément. O real e seu duplo. Ensaio sobre a ilusão. 2ª Ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2008. TOLLE, Eckhart. Um novo mundo: o despertar de uma nova consciência. Rio de Janeiro: Sextante, 2007. WESTERMANN, Claus. Genesis 1-11: A Continental Commentary Hardcover, Minneapolis: Fortress Press, 1994. | Teologia Contemporânea | FTSA66 Unidade III – Sociedade Introdução Quando não estão atuando como auxiliares de economistas, cientistas políticos, sociólogos e assim por diante – e faz parte da responsabilidade deles atuarem dessa maneira – os teólogos deveriam concentrar-se menos em acordos sociais e mais no fomento do tipo de agentes sociais capazes de imaginar e criar sociedades justas, autênticas e pacífi cas, e na concepção de um clima cultural no qual esses agentes possam prosperar. (Miroslav Volf) Como a epígrafe acima, de Miroslav Volf, fala por si mesma, e endereça uma questão importante a ser tratada nessa unidade, digamos sem rodeios: a sociedade que queremos formar passa necessariamente pela refl exão sobre que tipo de pessoa (e de igreja) que queremos ser. Por isso é que nesse curso falamos nessa tríade – pessoa, sociedade e igreja –, sem, porém, imaginar ou pensar que elas formam unidades estanques, separadas uma da outra. Isso signifi ca que nessa unidade prosseguiremos tratando de problemas ou questões concernentes à sociedade e ao que está na agenda pública da teologia contemporânea, mas ainda integrados com a questão da pessoa, e, mais ao fi nal, na transição, também da igreja. Queremos explorar três tópicos em particular: (1) A questão da justiça do Reino: o que ela é e o que signifi ca e implica? (2) A questão ecológica: por que ela é importante e que clamores teológicos evoca? (3) A questão da cultura do espetáculo: em que ela consiste e em que tipo de pessoas em sociedade ela tem nos transformado? A tese básica desse meio de caminho é de que os problemas que afetam a sociedade, afetam antes a pessoa e se mesclam com os da igreja. Elegemos, para essa refl exão, temas que são ao mesmo tempo 67| Teologia Contemporânea | FTSA | atemporais (como a questão da justiça e da ecologia) e do momento (a cultura do espetáculo). Queremos pensar juntos em como podemos criar um clima social e cultural que possa fazer os agentes do Reino de Deus espalhados pelo mundo atual a prosperar e a ser efi cazes. Objetivos da unidade 1. Identifi car os signifi cados teológicos e práticos da justiça do Reino; 2. Reconhecer a importância e os clamores da questão ecológica hoje; 3. Desenvolver uma mentalidade crítica sobre a chamada cultura do espetáculo e seus refl exos na espiritualidade hoje.3.1. A justiça do Reino Há uma questão inerente a todas as esferas da vida, que apesar de não parecer, parte obrigatoriamente da maneira como o eu (verdadeiro ou falso) se encaixa ou atua, respectivamente, na sociedade. Ela também é inerente a todas as causas, lutas, bandeiras, agendas políticas e, claro, todas as teologias. Estamos falando da justiça. Não há pleito que não a invoque, direta ou indiretamente. Não há lei que não a tenha como princípio legal. Não há cidadão que declare não a querer. Da mesma forma, as teologias contemporâneas, como por exemplo: teologia da libertação, teologia feminista, teologia negra, teologia indígena, teologia da prosperidade, teologia universal e por aí vai, são teologias que têm como princípio motor a justiça. Melhor explicando, a base para todos esses discursos está no cumprimento da justiça para um grupo que se sente injustiçado, ou na manutenção e no cultivo da justiça por um grupo que pode vir a ser injustiçado. Mas essa busca por justiça não é nova. Desde quando se tem conhecimento da existência de agrupamentos humanos a justiça faz parte da organização desses grupos. Nas histórias das antigas religiões e | Teologia Contemporânea | FTSA68 acima de tudo, que é de nosso interesse maior, do Antigo Oriente Próximo, a justiça é tema que sempre está em alta. Um Deus justo, mediando por meio de um rei justo (ou que deveria ser justo), fazendo justiça por seu povo, seja abençoando-os pelos bons caminhos ou castigando-os pelos seus erros. Ao menos é assim que parte da história de Israel é contada na bíblia. Os livros bíblicos escritos ou reeditados no período do pós-exílio, principalmente com a reforma política religiosa que Esdras e Neemias organizaram (ver box “Saiba mais” abaixo), partiam deste princípio: Deus é justo e faz justiça a todos. Por isso, aqueles que se mantiverem na Lei (neste sentido, trata-se da Lei judaica já interpretada por seus líderes, com os ritos, as separações, sacrifícios etc.) receberão as justas recompensas. Aqueles que, porém, a descumpriram, também receberão seus justos castigos. SAIBA MAIS É comum lermos os textos bíblicos sem uma preocupação maior com o processo de redação dele. Além disso, também é comum não nos atentamos para o fato de que a história de Israel não foi sempre a história dos judeus. Há um longo processo e um tortuoso caminho na construção da religião judaica como a conhecemos, qual seja, a religião da Palestina do Primeiro Século, nos tempos em que Jesus viveu. Para que o judaísmo e as Escrituras chegassem aonde chegaram e da forma como chegaram, muitos movimentos político-religiosos se estabeleceram. Dentre eles o de Ezequias e Josias por volta dos anos sétimo e, posteriormente, Esdras e Neemias, por volta do século sexto. Segundo estudiosos como Finkelstein e Silberman (2018) o processo de escrita e redação da história e da crença do povo de Israel se inicia por volta dos anos 700 a.C, entre o primeiro e segundo exílio. Mas é após o segundo exílio (Babilônico) que uma nova teologia surge para infl uenciar e consolidar o povo judeu. Era 69| Teologia Contemporânea | FTSA | preciso reorganizar o povo e alinhar o entendimento daqueles que haviam retornado do exílio com suas novas perspectivas e crenças, com aqueles que haviam fi cado em Canaã. Neste momento Esdras e Neemias se tornam peças-chave para compreensão da consciência judaica que se estabelecerá no século I d.C. Para os rabis da Palestina do primeiro século, foi Esdras quem “teve um papel decisivo na implantação das regras que moldaram e consolidaram os rumos do judaísmo da sinagoga até os dias atuais” (SCARDELAI, 2012). Inclusive, para Finkelstein e Silberman (2018, p. 300), o judaísmo justamente nasceu nesse momento da história. A terminologia antes tida como reino de Judá, passa a ser Yehud, em aramaico. Os judaítas, povo proveniente de Judá, tornaram-se conhecidos como os Yehudim, ou seja, os judeus. Scardelai (2012, s.p.) alega: Esdras representa um divisor de águas na formação da literatura das Escrituras. É neste momento que a religião de Israel se torna separatista e que Deus torna-se um juiz castigador ou abençoador, de acordo com as Leis. O Deus dinâmico, se torna estático em seu Templo. O Deus da humanidade, se torna o Deus de Israel. O Deus do amor, se torna o Deus do comércio retributivo, do sacrifício, do privilégio. Mas que, graças aos profetas e ao nosso senhor Jesus, pode manifestar sua verdadeira face. Para mais informações sobre os impactos das reformas na teologia judaica, o livro de Scardelai é uma boa referência. FINKELSTEIN, Israel. SILBELMAN, Neil Asher. A Bíblia desenterrada. A nova visão arqueológica do Antigo Israel e das origens de seus textos sagrados. Petrópolis: Editora Vozes, 2018. SCARDELAI, Donizete. O escriba Esdras e o Judaísmo (Biblioteca de estudos bíblicos). Paulus Editora. Edição do Kindle. | Teologia Contemporânea | FTSA70 Equivocadamente, muitas tradições judaicas e cristãs abraçaram esse princípio, ignorando ensinamentos preciosos de outras partes do texto bíblico. Para os cristãos, o equívoco se agrava, pois ignora- se os ensinamentos de Jesus Cristo sobre a justiça divina. E a boa- nova, passa a ser uma novidade antiga, ou um vinho novo em odres velhos, que acabou por se estragar e não prestar mais para seu fi m. O livro de Jó é um bom panorama para analisarmos que a justiça divina não recompensa o bom, tampouco castiga o mal, como tentaram propor os amigos de Jó. A justiça divina é muito mais profunda do que isso. E, afi nal, se todos estão buscando por justiça, por que é que ainda vivemos em um mundo tão injusto? Talvez seja porque não compreendemos corretamente a justiça pela qual estamos buscando. Justiça e a pessoa Como mencionamos no início deste tópico, a questão da justiça está diretamente ligada ao eu, à autoimagem. Isso porque a forma como o eu enxerga a si mesmo também é determinante para a forma como ele enxerga o outro. Compreender este fato é essencial para a compreensão da justiça divina, ou seja, justiça do Reino, como proposta por Jesus e pelos profetas anteriores. Para essa compreensão iremos utilizar os ensinamentos de Paul Tillich, que em 1952 escreveu a obra Amor, poder e justiça, na qual declarou que um ser (humano) que se excede, ultrapassa seus limites, desejando aumentar o seu poder de ser, de forma que inclua e conquiste aquilo que não é (o não-ser), perde-se, destruindo a forma que lhe foi dada. Ao não conseguir a nova forma (transcendente, do humano-deus), tende ao aniquilamento. A perda da forma, segundo Tillich, é o que poderíamos entender como injustiça. Pois, ao perder a forma, o ser não mais consegue cumprir a sua função. Não é mais capaz de realizar aquilo para o que foi 71| Teologia Contemporânea | FTSA | separado para realizar. Neste sentido, a justiça, como oposição à injustiça, é a capacidade do ser de cumprir sua fi nalidade. De ser dinâmico, dentro do seu espaço, mantendo-se íntegro na composição criada. Assim, lutar por justiça é lutar para poder desempenhar integralmente o papel para o qual foi designado. Ora, se, assim como afi rmado na unidade anterior, fomos criados para sermos humanos e, enquanto totalmente humanos, desenvolver um ambiente de harmonia e cultivo da criação, qualquer reivindicação que impeça a integralidade do eu-verdadeiro, e que implique em ambientes desarmônicos e destrutivos, não é uma reivindicação por justiça. Tillich, por sua vez, utiliza a analogia da árvore como representação para essa afi rmativa. Segundo ele: O fundamento da justiça é a reivindicação intrínseca por justiça de tudo aquilo que existe. A reivindicação intrínseca de uma árvore é diferente da reivindicação intrínseca de uma pessoa. As reivindicações por justiça baseadas nas diferentes formas nas quais o poder de ser se realiza são diferentes. Mas elas são reivindicações justas se são adequadas ao poder de ser sobre o qual estão baseadas.A justiça é, antes de tudo, uma reivindicação suscitada silenciosamente ou oralmente por um ser sobre os fundamentos de seu poder de ser. Ela é uma reivindicação intrínseca, expressando a forma na qual uma coisa ou uma pessoa é instituída. (Tillich, 1952, p. 63) A partir deste entendimento, podemos afi rmar que a justiça está diretamente ligada às questões ontológicas, não sendo uma categoria social apenas, mas é uma categoria necessária para as ontologias. Um ser humano que reivindique ser uma árvore não está reivindicando justamente, assim como não está quando reivindica ser mais do que o outro, melhor do que o outro, dominador do outro. Pois essa função não | Teologia Contemporânea | FTSA72 lhe é intrínseca. Como lembra Thomas Merton (2017, p. 41), “uma árvore imita a Deus sendo o que é: uma árvore”. Da mesma forma, raciocina ele, a minha santidade consiste em reconhecer quem sou e quem fui criado para ser e assumir isso com júbilo. Ou seja, ser santo é ser quem eu sou. Pois sendo quem sou realizo na vida a potencialidade da imago-Dei que em mim habita. Em outro lugar, Merton explica a questão assim: A imagem de Deus é o ponto mais alto da consciência espiritual no ser humano. É o ápice da autorrealização. Isto se alcança não simplesmente pela refl exão sobre o seu real e presente si-mesmo: o nosso verdadeiro si- mesmo pode estar longe de ser “real”, uma vez que pode estar profundamente alienado de nossa identidade espiritual mais profunda. Para alcançar o “si-mesmo verdadeiro” é preciso ser libertado pela graça, virtude e ascese desse ilusório e falso “si-mesmo” que criamos por nossos hábitos de egoísmo e por nossa constante fuga da realidade. (Merton, 2006, p. 34-35). Estudar justiça é estudar o ser. Fazer justiça é fazer o eu se tornar eu- verdadeiro, sem romper injustamente com a fi nalidade do humano. Mas não só isso, é preciso lembrar que o eu-verdadeiro, em sua fi nalidade, precisa estar harmonizado com o outro, com seu criador e com toda a criação. Portanto, é preciso quebrar com todo o comportamento, discurso ou hábito que também impeça o outro de ser o seu eu-verdadeiro. Se nossa teologia, nosso dogma, nossos sentimentos, falas e comportamentos induzem o outro ao cultivo de seu falso eu, ao personagem, a justiça se esvaiu e a injustiça se impôs. Assim também é quando se impede que o outro seja quem é. Quando o outro passa a ser ninguém, passa a ser coisa. Não há personagem, não há ser. Neste cenário, portanto, não há justiça. Pois não há equilibro e harmonia, como deveria haver nas relações. Portanto, “ser justo para consigo mesmo signifi ca realizar tantas quantas potencialidades for possível sem perder-se em rompimentos e caos” (Tillich, 1952, p. 68), fazendo 73| Teologia Contemporânea | FTSA | sobreviver o seu eu e o eu do outro, ambos verdadeiros. Até porque, como propõe os estudos de Platão sobre o tema, a justiça é a união entre o ser individual e os seres sociais. Não há justiça na individualidade, pois não há ser na individualidade. Sem o grupo social o ser não tem razão de ser, e nenhuma defi nição lhe seria útil. A justiça, portanto, é a junção do coletivo em que todos podem ser. É aí que entramos na justiça do Reino de Deus. Justiça e o Reino de Deus neste mundo Não são poucos os textos que falam sobre justiça na bíblia. No Antigo Testamento temos fi guras emblemáticas que clamavam por atos de justiça no lugar de atos de religiosidade, como por exemplo Isaias, Jeremias, Amós, Miqueias, Oséias. No Novo Testamento, os evangelistas reforçam os ensinamentos de Jesus sobre a justiça. Aliás, segundo as palavras do evangelista Mateus, Jesus ordenou que, em primeiro lugar, buscássemos o Reino de Deus e sua justiça (Mt 6.33). Não é primeiro o Reino e depois a justiça, também não é a justiça e depois o Reino. Da mesma forma, não é buscar qualquer justiça, é buscar o Reino de Deus e a sua (do Reino e de Deus) justiça. Por isso, é indispensável a todos quantos creem em Deus e em seu fi lho Jesus Cristo, que busquem a compreensão da justiça (do Reino) como sendo equivalente à vivência no Reino. Para não perdemos o fi o condutor deste tópico, ressaltamos que a justiça, como no tópico anterior, se faz quando o eu-verdadeiro emerge (ou sai das sombras) e permite que os outros sujeitos, em convivência coletiva, também possam viver seus eus-verdadeiros. Agora, o que isso tem a ver com a justiça do Reino de Deus? Absolutamente tudo! A única maneira de viver em justiça é viver sob o Reino de Deus. E a única maneira de viver plenamente sob o Reino de Deus é viver em justiça. Isso acontece quando aceitamos e entendemos a autoimagem. Quando a alma, já não mais cede ao reino humano, não busca mais o status da produtividade, não se permite mais os infartos psíquicos descritos por Han (2017) na obra que estudamos (Sociedade do Cansaço). Isso acontece | Teologia Contemporânea | FTSA74 quando o eu vive tão plenamente que promove e propicia o outro a viver plenamente também. É por isso que reino e justiça não podem andar separados e é por isso que a justiça é também uma questão ontológica. Quando os textos bíblicos falam sobre órfãos, viúvas, estrangeiros, crianças, doentes, cegos, e em tantos outros, não falam sobre vingança, nem em substituição de espaços, falam em justiça. Ou seja, em promover um espaço onde todos os eus-humanos não são coisas, não são objetos, não são um bando de ninguéns. Mas são humanos dos quais dependo para que a minha função inicial se cumpra e assim eu também seja plenamente eu. Para compreender essa lógica é preciso ter em mente a plenitude do ser humano como a da poesia do Éden, de Gênesis 1-2. A justiça portanto é o ser humano, que vendo-se nus, não têm de que se envergonharem. São equivalentes. Tanto diante de Deus, quanto diante do mundo. Portanto, a justiça que se aguarda da parte de Deus é a justiça do Reino de Deus. Não é uma nova justiça. É uma justiça que já está disponível. Que sempre esteve. O que se espera, na verdade, é que ela se cumpra de uma vez por todas. Moltmann (2018, p. 75-76) afi rma que justiça, comumente ligada à julgamento, nada tem a ver com a recompensa. Não se trata, portanto, de Deus recompensar os bons e punir os maus. A justiça de Deus, tem a ver com o estabelecimento da igualdade dos ser humanos qua humanos. Julgar o mundo com justiça é devolver a cada prejudicado a sua integralidade do eu, é retirar de cada homem-deus, a supremacia que não lhe pertence, o excesso e o exagero que também o impede de exercer integralmente o eu. Segundo Moltmann: Julgar não tem nada a ver com punição, mas com o soerguimento da pessoa e sua salvação, com a colocação de todas as coisas em ordem. O rei precisa, portanto, cuidar para que o forte não prejudique o fraco e que as viúvas e os órfãos não deixem de ser socorridos. Ele deve, igualmente, proteger a nação da exploração. Somente quando conhecemos essas 75| Teologia Contemporânea | FTSA | representações do “sol da justiça” poderemos entender que, no Antigo Testamento, o julgamento de Deus não precisa ser temido, mas sim saudado como a salvação para os seres humanos e para a terra: “Ele julgará a terra com justiça”. (Moltmann, 2008, p. 75-76) Concordando com esse entendimento, temos os ensinamentos do biblista Fitzmyer (1987, p. 406), segundo o qual a palavra justiça, no grego κρίσις (krisis) signifi ca, em geral, “juízo” e o juízo no sentido do “direito”. O direito de ser, ser aquilo que foi formado para ser, nem menos nem mais do que isso. Sendo assim, a justiça de Deus não deve ser entendida como aquela que cuida de constatar o bem e o mal, a fi m de dar recompensas a cada um. Antes disso, a justiça de Deus é aquela que cria o direito e o faz se cumprir na vida do injustiçado. Moltmann (2008, p. 75-76) afi rma que essa justiça “pode também ser chamada de misericórdia. Não há qualquer contradição entre justiça e misericórdia”, já que a justiça tira o ser da misériade não ser o que deveria ser. Para Tillich, a justiça divina deve ser entendida como um processo criativo, em que não se pode calcular ou quantifi car seus efeitos. Deus cria situações em que a justiça possa se fazer presente igualmente a todos. Neste sentido, também é o entendimento de Albert Nolan (1987) sobre a justiça do Reino de Deus. Para Nolan, ela pode ser claramente exemplifi cada por meio da parábola dos trabalhadores da vinha em Mt 20.1-15, ou na parábola do fi lho pródigo de Lc 15.11-32. Para os trabalhadores da vinha, assim como para o irmão do fi lho pródigo, a justiça era como vista pelos zelotas e pelos fariseus por exemplo. Era uma justiça retributiva, sem compaixão, sem amor. Mas para o Senhor da vinha e para o pai, o importante é que eles recebessem o que fosse necessário para suas integridades. Aos trabalhadores, independente das horas, era preciso receber algo que os dignifi casse. Ao fi lho, da mesma forma. Naquilo que Tillich chamada de justiça criativa, que Nolan chama de amor e compaixão e que Moltmann chama de salvação, todos os seres humanos são colocados como equivalentes aos olhos divinos. Não há | Teologia Contemporânea | FTSA76 exaltação sobre o outro, nem castigo que o rebaixe sob o outro. A justiça se presentifi ca para que o universo volte a viver o romance do Éden. Por fi m, todas as teologias, discursos, ações, projetos e leis, para que sejam verdadeiramente justas aos olhos de Deus, devem ter por fi nalidade a promoção do verdadeiro eu. E isso signifi ca assumir que: “Leis governando a estrutura familiar de outro período ou suas relações econômicas podem destruir famílias e romperem a unidade da classe desse período” (Tillich, 1952, p. 59), e essas Leis podem ser políticas ou religiosas. Portanto, é preciso aceitar que a justiça não é só criativa, mas ela é dinâmica em todo tempo. E sua base de referência é o amor. Em amor Deus nos criou e em amor ele nos orienta a ser o que fomos criados para ser, dentro do espaço e da sociedade em que estamos inseridos. 3.2. A questão ecológica A partir do proposto acima, podemos agora seguir com uma refl exão da justiça que se aplica aos demais elementos criados para ocupação do cosmos. Entraremos, portanto, nas questões ecológicas, as quais têm impactado diretamente nossa sociedade. De forma resumida, percebe- se que a injustiça econômica e social dos países ricos sobre os países mais pobres resulta naquilo que podemos chamar de injustiça ecológica, a saber: desfl orestamento, latifúndio, poluição e outros problemas. Isso acontece justamente pela noção distorcida do eu, como já mencionado. É a luta pelo poder, pela exploração, por sempre ter mais. E os impactos são vistos não somente na relação com o outro, mas em toda a criação divina. A propósito, nossa base de compreensão da integralidade da vida parte das seguintes dimensões dos relacionamentos: 1) eu com Deus, 2) eu consigo mesmo, 3) eu com o próximo, e 4) eu com o restante da criação. Sendo esta última muitas vezes esquecida ou colocada em um patamar inferior nas discussões teológicas, entretanto, é uma das temáticas mais necessárias e urgentes no que tange à justiça do Reino na sociedade. A crise ambiental se tornou uma das grandes pautas da atualidade, sobretudo da metade do século XIX para cá. Contudo, González (2014) 77| Teologia Contemporânea | FTSA | aponta que ela começou séculos atrás, tendo como dois principais motivos: o “descobrimento” da América pelos europeus, e, o avanço das ciências aplicadas. O “descobrimento” da América, sua conquista e colonização deu uma nova perspectiva aos europeus sobre os recursos naturais com a impressão de que eram inesgotáveis devido sua grandeza. Nós conhecemos bem sobre a exploração histórica que o Brasil sofreu de outros países. Além disso, o avanço científi co no século XIX aprimorou os métodos de exploração. Ainda de acordo com González (2014), os cristãos muitas vezes não questionam os impactos sofridos na natureza em prol do suposto progresso, inclusive, os países que causaram maior dano ambiental, são os em que encontramos uma forte tradição cristã. Essa falta de refl exão pode ser fruto de uma teologia distorcida, na qual o ser humano se compreende como acima do restante da criação, além de, por entender que a volta de Jesus está próxima e o destino é o céu, não importa o que acontece com a terra e a natureza. Claro, é inegável que parte das consequências desses dois pontos foi positiva, houve muito avanço em termos tecnológicos e médicos, por exemplo, o que permitiu melhorar a qualidade de vida em alguns aspectos. Ao mesmo tempo, com o passar dos séculos, o problema ambiental foi se agravando até chegarmos em uma crise sem precedentes na atualidade. Kirk (2006) e Stott (2011) mencionam rapidamente alguns problemas que enfrentamos na contemporaneidade. Você já deve ter ouvido falar deles, mas pare mais uma vez para refl etir sobre esses problemas. O primeiro deles, que, de uma forma ou de outra, acaba infl uenciando os outros, é o crescimento populacional. Estima-se que, em 2050, a população mundial chegará em 9,5 bilhões. Do primeiro ao sexto bilhão houve um intervalo de quase duzentos anos, a previsão agora é de que em cinquenta anos, haja um crescimento de três bilhões. É o paradoxo que podemos encontrar na ordem em Gênesis de “sejam férteis e multipliquem-se!” (Gn 1.28). A multiplicação está acontecendo, mas surgem dúvidas de como será possível alimentar todas as pessoas com os recursos naturais se esgotando. Há crescimento, mas falta sustentabilidade. | Teologia Contemporânea | FTSA78 Como recursos naturais podemos citar as fl orestas desmatadas, os combustíveis fósseis que não podem ser repostos, além da extinção de diversas espécies por causa da caça e pesca desenfreada e das terras férteis que dão lugar às indústrias, estradas, latifúndios. Outro problema claro é a poluição que por causa das fábricas e produção em massa, afetam o clima, prejudicam a vida natural nos mares, rios e fl orestas. Por último, mas não menos importante, a produção de lixo. Quanto mais pessoas vivendo debaixo da lógica da produção para consumo excessivo, maior será a quantidade de lixo que essas pessoas produzirão, lixo esse que não se decompõe facilmente, ao contrário, pode demorar até séculos para que isso ocorra. Observando esses problemas, concordamos com González: Ao tentar nos aproximarmos teologicamente das questões ecológicas, temos de fazê-lo acima de tudo com humildade e confi ssão de pecados. Podemos estar convencidos, como eu estou, de que há na fé cristã os recursos necessários para se enfrentar essa crise. Contudo, ao mesmo tempo temos que reconhecer que a igreja cristã e nós mesmos nem sempre fi zemos uso desses recursos, e que com demasiada frequência nos deixamos levar por nossos interesses, nossa comodidade ou simplesmente por nossa inércia. (González, 2014, p. 37). Quais são esses recursos que a fé cristã pode ter para enfrentar a crise ecológica? Faremos a seguir considerações sobre como então proceder ou pelo menos perceber as questões ambientais. Inicialmente, é necessário revisitarmos o texto de Gênesis, que já estudamos rapidamente na unidade anterior, mas agora será abordado por outras perspectivas. Tanto o primeiro quanto o segundo capítulo, que revelam duas narrativas sobre a criação. Do primeiro capítulo surgiu a interpretação do ser humano como dominante soberano sobre a criação. 79| Teologia Contemporânea | FTSA | Costumeiramente observamos, no verso 28, após a ordem de: “Sejam férteis e multipliquem-se!”, a sequência é: “Encham e subjuguem a terra! Dominem sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os animais que se movem pela terra” (Gn 1.28, NVI). Em outras versões utiliza-se o verbo “sujeitar”, ambas possuem um sentido de dominador na força, violento. De fato, Deus diz para que o ser humano domine sobre a criação, entretanto, González (2014)corpo sobretudo no contexto alemão ainda na primeira metade do século XX. Incluem-se nesse bojo uma série de outras correntes e seus expoentes que surgem ao longo deste século, até a emergência de movimentos teológicos no chamado mundo do dois terços – Teologias Africanas, Latino-Americanas, Asiáticas, de recorte identitário, racial, libertário, de gênero etc. –, a partir de meados do século XX, o que vai tornar um pouco mais complexo e colorido um cenário até então muito centrado no Ocidente. 7| Teologia Contemporânea | FTSA | Saiba mais: Teologia Contemporânea Um bom exemplo dessa discussão pode ser encontrado no livro A teologia do século XX, de Stanley Grenz e Roger Olson (2003). A tese dos autores é interessante, de que “na melhor das hipóteses, a teologia cristã buscou sempre um equilíbrio entre as verdades bíblicas da transcendência e imanência divinas” (p. 9). Grosso modo, teologicamente falando, transcendência signifi ca Deus além do humano e do mundano, enquanto imanência signifi ca Deus presente e encarnado no mundo e no humano. A tese, talvez – até pela própria forma como os autores decidem apresentar a teologia vintecentista –, poderia ser reelaborada assim: a teologia cristã parece ter se desenvolvido a partir de uma tensão entre a transcendência e a imanência divinas, ora pendendo para uma, ora para outra. Porque é precisamente esse quadro que os autores apresentam no livro. Isto é, utilizando os verbos dos quais eles lançam mão, de uma teologia ou de movimentos teológicos que ora buscam reconstituir a transcendência (como a teologia liberal), ora parecem se revoltar contra a imanência (como a teologia neo-ortodoxa), ou propõem um aprofundar da imanência, como no caso de Paul Tillich, ou mesmo um transcender dentro da história, como eles descrevem a “Teologia da esperança” de Moltmann, e assim por diante. A perspectiva de continuidades históricas que conectam os pontos da teologia do século XX (que outros autores chamam de “contemporânea”) aos da do século anterior, fi ca evidente na seguinte explicação: Em vários aspectos, as prioridades teológicas do século 20 foram determinadas pelos resultados desses acontecimentos que mudaram o mundo [como a Primeiro Guerra Mundial, por exemplo | Teologia Contemporânea | FTSA8 (acréscimo nosso)]. A teologia do século 20 teve início com uma tentativa de recomeçar a partir das cinzas da guerra que devastou não apenas a Europa, mas também a teologia cultural europeia. Assim, não é de se surpreender que a teologia do novo século surgiu, antes de tudo, como protesto contra temas centrais de sua predecessora do século 19, incluindo a ênfase à imanência, que era tão importante para a cultura ocidental desde a Renascença. (p. 10) O que basicamente os autores estão dizendo é que a teologia do século XX pode ser mais bem compreendida quando contrastada com a do século XIX. Embora seja uma observação razoável – afi nal, nenhuma teologia surge nem se desenvolve num hiato histórico –, ela também possivelmente revela uma das razões pela qual, ao menos no modo clássico de se conceber a teologia contemporânea, os estudiosos adotaram a perspectiva de uma continuidade e de uma “longa duração”, para usar um termo clássico de F. Braudel. Ao mesmo tempo, pode ser sintomático de uma mudança crítica de mentalidade que Grenz e Olson tenham escolhido a expressão “teologia do século XX” ao invés de “teologia contemporânea” em seu estudo. A mesma pergunta, anteriormente dirigida à história, pode ser feita à teologia: podemos dizer que a teologia de Adolf von Harnack (teólogo alemão do século XIX) é contemporânea da de Gustavo Gutiérrez (teólogo peruano do século XX)? É claro que não, porque elas não coincidem historicamente. Então, como colocar ainda as teologias feitas por ambos como parte da teologia contemporânea? É claro que isso parece não fazer o menor sentido, mas, como vimos, tem sua explicação no modo como os pensadores do contemporâneo encontraram para resolver esse imbróglio entre diferentes épocas e seus movimentos. Como explica Agamben (2009, p. 71), “aqueles que procuraram pensar a contemporaneidade puderam fazê-lo apenas com a condição de cindi-la em mais tempos, 9| Teologia Contemporânea | FTSA | de introduzir no tempo uma essencial desomogeneidade”. Em outras palavras, a solução que esses pensadores encontraram para o problema do contemporâneo foi o de dividi-lo em um número maior de “tempos” diferentes entre si em muitos aspectos, mas igualmente designados como contemporâneos segundo tais ou quais propósitos. Nesta disciplina, porém, partirmos do pressuposto de que precisamos repensar a teologia contemporânea. Há muitos modos de se fazer isso, sem dúvida alguma. Umas das possibilidades – seguindo a maneira tradicional, ainda histórico-linear – seria propor um novo recorte temporal, quem sabe pensando que a teologia contemporânea tenha começado após a década de 1950, na medida em que testemunhamos tentativas de ruptura fi losófi cas e culturais com a modernidade, movimento que recebeu o nome de “pós-moderno”. Um dos problemas disso é que alguns estudiosos do pós-moderno podem argumentar que essas tentativas de ruptura começaram antes mesmo de esse nome aparecer por volta da metade do século XX, talvez com o fi lósofo Friedrich Nietzsche ainda no século XIX. É que os estudiosos, especialmente os historiadores, têm esse vício incorrigível de busca das origens, o que sempre torna difícil analisar um fenômeno por si mesmo, dentro de seu contexto e com suas peculiaridades próprias, sem a tentação de fazer divagações históricas em busca de outras explicações. Deixemos de lado, então, essa opção. Uma possibilidade mais vantajosa, a nosso ver, é a de analisar teologicamente alguns temas contemporâneos a partir de determinados enfoques, como os de pessoa, sociedade e igreja que elegemos nesta disciplina. Alguns desses temas, quem sabe, sejam assim considerados contemporâneos pela persistência de sua importância, isto é, por resistirem à prova do tempo, como o tema da “justiça”, por exemplo. Nesse caso, a temporalidade e o contexto são importantes, sim, mas não necessariamente para a defi nição do que seja o fazer teológico contemporâneo. “Contemporânea”, assim, não é tanto uma era ou época em si quanto o seu possível Zeitgeist (o espírito de uma época), sem que | Teologia Contemporânea | FTSA10 consigamos (ou mesmo precisemos) determinar exatamente quando começa e quando termina. Como captar, porém, aquilo que parece mudar constantemente? Certamente um desafi o a ser pensado enquanto fazemos teologia e tentamos entender o contemporâneo. De todo modo, o que quer que chamemos de “Teologia Contemporânea” precisa passar por determinados crivos de entendimento, e já deixamos claro que a compreensão a ser expressa nessa disciplina não passa nem por essa noção de um período longo que começa no século XIX, tampouco pela análise histórica de uma série de correntes que são mais ou menos enquadradas dentro desse período que abrange quase dois séculos. Entendemos, portanto, que para compreender melhor a expressão “Teologia Contemporânea”, precisamos desmembrá-la, começando por defi nir o que vem a ser o contemporâneo ou que contemporaneidade signifi ca. Vamos a isso nesse momento. 1.2. O que signifi ca ser contemporâneo? Nesse tópico, estabeleceremos um diálogo com Giorgio Agamben em seu ensaio chamado O que é o contemporâneo? (2009). Parte da compreensão a ser explorada aqui, já adiantamos na introdução. A ideia agora é aprofundar e dar alguns exemplos, a partir de três sentidos principais que Agamben oferece nesse ensaio para “ser contemporâneo”. Examinemo-los um a um. É preciso começar dizendo que Agamben inicia suas considerações com Friedrich Nietzsche. Para ele, um princípio de resposta à pergunta “O que é o contemporâneo?” está no termo “intempestivo”, utilizado algumas vezes por Nietzsche para significar uma dissociação,menciona que essa ação deve estar diretamente atrelada com os dois versos anteriores, que dizem que o ser humano foi criado à imagem e semelhança do Criador. Essa percepção muda de forma considerável a ação de domínio, pois ser imagem e semelhança do Criador nesse sentido implica em governar de forma responsável. Inclusive, é interessante ver que a Nova Versão Transformadora traduziu como governar em vez de subjugar ou sujeitar. Essa tradução parece passar uma ideia mais adequada de como o ser humano deve se comportar diante da criação, com responsabilidade e amor, não com domínio e subjugação. Na segunda narrativa da criação, tudo inicia com a formação do homem: “Então o Senhor Deus formou o homem do pó da terra e soprou em suas narinas o fôlego de vida, e o homem se tornou um ser vivente” (Gn 2.7). Diferente do capítulo 1, Deus não faz o ser humano à imagem e semelhança, mas forma o homem do pó da terra. E no verso 2.19, da mesma terra: “O Senhor Deus formou da terra todos os animais selvagens e todas as aves do céu...”. De acordo com González (2014), essa passagem é bastante signifi cativa pois da mesma terra que Deus forma o homem, forma também os animais. De certa forma, isso traz uma certa “irmandade” entre nós. Continuando o verso 2.19, ainda há uma ideia de governo, mesmo que forma mais sutil: “Trouxe-os ao homem para ver como os chamaria, e o homem escolheu um nome para cada um deles.’” Ainda segundo González (2014), nas culturas antigas do Oriente Médio, dar o nome a algo ou alguém signifi ca poder, autoridade sobre, assim, vemos nessa passagem novamente a ideia de domínio do ser humano sobre os outros | Teologia Contemporânea | FTSA80 seres criados, apesar de serem feitos da mesma terra. Porém, o domínio que Deus dá ao ser humano não é ilimitado. O homem e a mulher podiam comer de todas as árvores no jardim, exceto, uma. Um limite foi imposto ali. E como sabemos, foi quebrado. González (2014, p. 45) comenta: “Ao estender a mão e pegar o fruto proibido, o homem e a mulher negam os limites que Deus colocou para seu governo e deleite da natureza”. Essa percepção é bastante interessante, pois revela que a transgressão cometida pelo ser humano no princípio, continua sendo praticada na atualidade. O fruto da árvore em Gênesis era tentador, parecia agradável ao paladar e atraente aos olhos (Gn 3.6). Isso também não acontece quando o lucro é visado de forma excessiva? A natureza parece ser boa, inesgotável para obtenção desse lucro. As consequências desse desrespeito aos limites são problemáticas, fazendo com que o ser humano seja inimigo da natureza, da terra e uns dos outros. Tudo contrário aos propósitos de Deus na criação. Considerando essa a compreensão do texto de Gênesis, algumas atitudes são necessárias. Talvez, a primeira seja um pouco óbvia a partir do que foi dito anteriormente, que é evitar a exploração desenfreada e inconsequente da natureza. Precisamos reconhecer quem somos, saber nosso lugar na criação. Somos imagem e semelhança, mas não somos o próprio Deus. Precisamos respeitar a criação, sermos responsáveis com ela. Porém, esse respeito e responsabilidade não podem ir para o outro extremo que é uma veneração idolátrica da natureza. É muito válido sim, contemplarmos a beleza, mas não devemos confundir a criação com o Criador. Então precisamos ser cooperadores de Deus nessa tarefa de cuidar da criação, bons mordomos que reconhecem a quem pertence a criação (Dt 10.14). Stott (2011) e González (2014) concordam em dizer que o texto da Carta aos Romanos sobre a criação que geme aguardando a manifestação dos fi lhos (Rm 8:18-23), possui implicações ecológicas. A criação sofre pela má mordomia do ser humano. E quando os fi lhos de Deus, que são nova criação, isto é, com um novo entendimento sobre a relação com a natureza, se revelarem, deve haver uma mudança nessa lógica transgressora. Essa é a expectativa da criação. 81| Teologia Contemporânea | FTSA | E isso implica três atitudes, pelo menos, pensando em uma espiritualidade ecológica: 1. No reconhecimento de que nós estamos, junto com toda a criação, submetidos aos ditames de uma “existência fútil” (Rm 8.20-23). Ninguém, nem mesmo os/as fi lhos/as de Deus, têm passe livre em relação a nada. Isso tem um sentido prático e trágico: o que acontece à criação, resvala diretamente em nós. 2. Na manifestação dos sinais de que somos fi lhos/as do Eterno: gememos junto com a criação; aguardamos com confi ança e paciência; persistimos em oração, mesmo quando as palavras cessam e não sabemos mais o que dizer (8.26). Ou seja, aqui encontramos também um sentido escatológico e missiológico: sofrer com a criação é uma maneira de se conformar com o destino do crucifi cado e ser, verdadeiramente, fi lhos e fi lhas do divino. 3. Na afi rmação da obra de Deus, que vem desde a eternidade, que não está alheia ao que nos acontece e pode, assim, criar um bem totalmente inesperado em meio ao caos ecológico, fazendo com que o amor brote em tempos de cólera, e a esperança nasça em meio ao medo e ao obscurantismo. Ao fi m e ao cabo, é possível que fi quemos como o apóstolo Paulo, sem palavras, murmurando: “Que podemos dizer diante de coisas tão maravilhosas? Se Deus é por nós, quem será contra nós” (8.31). Parafraseando, se Deus é por sua criação, quem será contra ela? Se o coração de Deus é ecológico, que coração, que pulsa no compasso do coração divino, também não o será? A partir de uma compreensão do verdadeiro eu, é possível reconhecer o papel de mordomos da criação e assim desenvolvermos ações de cuidado. É necessário repensar as causas de tanta degradação do meio ambiente, e deixar, por exemplo, de seguir o consumismo desenfreado, que personifi ca coisas e coisifi ca pessoas. É preciso, para isso, perceber que o consumo tem sua própria lógica, ou a sua liturgia, que James K. A. Smith (2018) chama de “liturgia do shopping”. Segundo o autor, | Teologia Contemporânea | FTSA82 essa liturgia é uma prática que sobrevive às custas de dois elementos efêmeros: “a emoção da ‘experiência’ ou acontecimento insustentável e o resplendor do original e do novo” (Smith, 2018, p. 102). Ou seja, o que sustenta essa liturgia é justamente a natureza evanescente da satisfação que ela provoca, “exigindo novas experiências e novas aquisições”. E o subproduto de novas aquisições é, segundo o autor, o “descarte necessário do antigo e do tedioso” (ibid.). Ou o que Annie Leonard, no documentário “A história das coisas”, chama de “obsolescência programada”. Para que a liturgia (ou nossa adoração de objetos de consumo) prossiga sem problemas, é necessário que sigamos a sua ordem sem dizer nem perguntar nada. Não devemos nem perguntar “de onde veio isso tudo?”, nem “para onde vai isso tudo?”, pois são duas perguntas que certamente revelarão a injustiça e insustentabilidade que residem nas duas pontas desse sistema: a da produção e a do descarte. É necessário que, como cristãos, filhos e filhas do divino, portadores da imago-Dei, reflitamos nas palavras de Smith (2018, p. 104): A liturgia do consumo faz nascer em nós o desejo de um estilo de vida que destrói a criação; além disso, faz nascer em nós também o desejo de um estilo de vida que não seja facilmente estendido a outros, criando um sistema de privilégios e exploração. Em suma, a única maneira de tornar real essa visão do reino consiste em reservá-la para nós. a liturgia do shopping estimula práticas e hábitos injustos; portanto, faz o que pode para impedir que formulemos tais perguntas. Não pergunte; não diga nada; só consuma. Além disso, é igualmente urgente abandonarmos a espiritualidade gnóstica, como comentado na Unidade 2, pois ela se torna um combustível para a irresponsabilidade ambiental, uma vez que nessa visão, somente o que é “espiritual” é bom. Encerramos esse tópico com a citação de Kirk (2006): É óbvio que a fé cristã, entendida corretamente, não comporta uma abordagemdescuidada e imprudente 83| Teologia Contemporânea | FTSA | ao meio ambiente. Ao contrário, ela advoga uma atitude estritamente compatível com a satisfação as necessidades básicas de cada pessoa, como alimentação, proteção, cuidado com a saúde, trabalho digno e educação. Algumas das questões “verdes” são tão próximas da justiça para com o pobre que muito desse mesmo tipo de ação se torna necessário. (Kirk, 2006, p. 234) 3.3. A cultura do espetáculo Neste último tópico da aula sobre “sociedade”, gostaríamos de destacar um dos perigos que a ênfase excessiva, ou não devidamente refl etida, nesse aspecto do consumo desenfreado, que exploramos no fi m do último tópico, oferece para o espírito humano e para o verdadeiro-eu: a de render esse lugar ao que aqui chamamos de “cultura do espetáculo”, em alusão à abordagem de Mario Vargas Llosa (2013). Nosso diálogo será com Llosa e, por fi m, com a história de Jesus no deserto, contada no Evangelho de Lucas. Descortinando a cultura do espetáculo Mario Vargas Llosa defende a tese de que vivemos na era ou Civilização do espetáculo no livro que leva esse título. Que tipo de civilização é essa? É a civilização que tem o entretenimento e a diversão como valores supremos; “onde divertir-se, escapar do tédio, é a paixão universal” (Llosa, 2013, p. 29). Uma ideia central que ele defende ali é a de que desenvolvemos uma grande necessidade de distração nos últimos tempos. E o que a suscita? Segundo ele, um mecanismo de fuga de nossos dramas. Em suas palavras: Querer fugir ao vazio e à angústia provocada pelo sentimento de ser livre e de ter a obrigação de tomar decisões, como o que fazer de si mesmo e do mundo ao redor – sobretudo se estiver enfrentando desafi os e dramas –, é o que suscita essa necessidade de | Teologia Contemporânea | FTSA84 distração, motor da civilização em que vivemos. (Llosa, 2013, p. 36) E, na opinião do autor, as drogas exercem esse papel de entorpecimento – e, por “drogas”, poderíamos incluir aqui nossas geringonças do mundo digital, como smartphones, por exemplo. Voltaremos ao assunto. Retornando ao autor, ele garante ainda que: Trata-se de uma fi cção, não benigna, mas maligna nesse caso, que isola o indivíduo e só na aparência o livra de problemas, responsabilidades e angústias. Porque no fi nal tudo isso voltará a dominá-lo, exigindo doses cada vez maiores de aturdimento e superexcitação, que aprofundarão seu vazio espiritual. (Llosa, 2013, p. 36-37) Destacamos na citação acima a palavra “vazio espiritual”. Aqui o aspecto religioso entra na conversa. Llosa explica que a laicização (ou o efeito de tornar laico, i.e., não-religioso) tomou conta das sociedades modernas, dando mais liberdade às pessoas para decidir em que acreditar e se devem acreditar em um Deus ou deuses, e praticar uma religião. A opção por uma vida livre da infl uência direta da religião (ou “secular”) se tornou vigente em muitos países, como o Reino Unido.1 Trata-se de um ledo engano, porém, pensar que na civilização ou cultura do espetáculo o laicismo ou o secularismo eliminaram, com sua resistência à religião mais institucionalizada, também a sede por transcendência. Llosa destaca então a proliferação de seitas, cultos e práticas espiritualistas alternativas como sinal, por um lado, de uma sedução pelo sagrado, sim, mas, por outro, por formas “exóticas” e “epidérmicas” (ou superfi ciais) de busca. Isto pois, segundo ele, ainda o entretenimento ou “culto à distração” está no centro dessa busca, e não tanto o relacionamento com a divindade (ou vida comunal) em questão. 1 Sobre isso, recomendamos a leitura do artigo “A Igreja no Reino Unido: o futuro terá uma igreja?”, de Peter Brierley, no livro A igreja do futuro (2011, pp. 57-83), organizado por Antonio Carlos Barro e Manfred Kohl. 85| Teologia Contemporânea | FTSA | O “vazio” sobre o qual ele fala é provocado, segundo entendemos, precisamente pela recusa da vida em sua inteireza, a recusa da integridade, a recusa do sofrimento, a recusa da profundidade. A proliferação das “espiritualidades” no mundo de hoje pode ser sinal, assim, precisamente da ausência de alma, do contato com nosso ser profundo (como temos trabalhado), ou do que o apóstolo Paulo chamou de uma “vida no Espírito”, na qual a manifestação de frutos é central, enquanto as manifestações sobrenaturais – como êxtases ou milagres – são periféricas. Por isso, fazemos aqui uso da defi nição de espiritualidade de Robert Solomon em Espiritualidade para céticos: “Espiritualidade, cheguei a compreender, é nada menos que o amor bem pensado à vida” (Solomon, 2003, p. 18). Para quem é de fé – já que Solomon é outro autor se declara ateu –adicionaríamos: um amor bem pensado a Deus e a vida! Sim, porque o apóstolo João, em sua Primeira Carta, nos ensina que espiritual é quem ama conforme o primeiro e segundo mandamentos: de amor a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. Quando uma dessas dimensões é esquecida, você pode até ter religião – isto é, práticas e discursos que denotam uma crença em Deus ou até deuses –, mas não tem espiritualidade: amor refl etido e que se refl ete em um modo de vida integrado (meu próximo-Deus-eu mesmo). Outro efeito da cultura do espetáculo, segundo Llosa, é o desaparecimento da vida privada. O que é privado e o que é público hoje em dia? A superexposição da vida está na ordem do dia da cultura do espetáculo. Llosa afi rma que uma das consequências involuntárias dessa revolução virtual foi: A volatização das fronteiras que o separavam do público, confundindo-se ambos num hapenning em que todos somos ao mesmo tempo espectadores e atores, em que nos exibimos reciprocamente, ostentamos nossa vida privada e nos divertimos observando a alheia, num strip-tease generalizado no qual nada fi cou salvo da mórbida curiosidade de um público depravado | Teologia Contemporânea | FTSA86 pela necedade [que é a tolice, ignorância crassa ou imbecilidade gigantesca, acréscimo nosso]. (Llosa, 2013, p. 140) Porque ele chama isso de “depravação pela necedade ou tolice”? Porque fazemos isso de modo repetitivo, sem perceber que estamos sendo engolidos por uma gigantesca imbecilidade. Em Provérbios 26.11, o sábio diz: “Como o cão que come o próprio vômito, assim os insensatos reciclam a tolice”. Tornamo-nos tão insensíveis a ponto de não saber diferenciar comida de verdade de vômito? Será que não estamos reciclando vômito, e o que é pior, vômito dos outros, quando curtimos e compartilhamos tantas coisas e de modo tão instantâneo em nossas redes sociais? Isso nada se parece com um “amor bem pensado”, como refl etimos anteriormente. Em outras palavras, em que essa superexposição da vida, como espetáculo, nas redes sociais está nos transformando? Ou ainda, cabe perguntar: o que é que estamos perdendo de valoroso à vida enquanto gastamos nosso tempo vidrados na tela de nossos smartphones e tablets? Uma overdose de postagens não signifi ca que perdemos a noção de quem somos e temos a néscia necessidade de que outros venham e, com suas curtidas, nos afi rmem, e assim nos defi nam? Os escritos de Byung-Chul Han2 têm nos ajudado a perceber que as redes sociais são mais o efeito de um ocultamento que de uma vida transparente. Nossos “perfi s” não revelam a melhor, nem necessariamente a pior faceta de nós mesmos/as. Esta foi reservada para as poucas pessoas que se importam com o que acontece com nossas vidas off-line. Ao lado delas, compartilhar e curtir normalmente não são meras atividades vazias. São o resultado de relacionamentos reais, substanciais e verdadeiros. Ou seja, tudo o que essas redes, que “conectam” sem criar laços, não podem oferecer, por um fator limitador básico: elas são emulações da vida, que nós, porém, insistimos em transmutar em alguma coisa com aparente valor. 2 Dentre eles, sobre esse assunto, destacamos os livros: Sociedade da transparência (2017); No enxame: perspectivas do digital (2018).87| Teologia Contemporânea | FTSA | Uma curtida, porém, jamais poderá dizer nada sobre quem somos, nem sobre a qualidade do que decidimos partilhar, para o bem ou para o mal. Curtidas têm pouca substância. Elas podem ser apenas um signo automatizado de uma alienação na qual todos estamos mais ou menos enredados. Se assim for, elas não fazem sentido. É uma brincadeira nos campos da efemeridade. O remédio – caso você decida não deletar todas as suas redes sociais (por mais tentador e convidativo que isso seja) – talvez seja não levar tão a sério o que “acontece” ali. Algumas implicações (negativas) diretas da cultura do espetáculo, como aqui exposta, à vida e espiritualidade humanas: 1. Nos tornamos incapazes de suportar o tédio, de cultivar o ócio, o silêncio e a simples observação da vida que acontece ao nosso redor. Um exemplo disso está na ânsia de preencher os momentos de ócio em nosso cotidiano pela prática de sacar uma tela do seu bolso e olhar para ela. Espiritualidade, por sua vez, rima com ócio e tempo de qualidade para refl exão, que é de onde brota esse “amor bem pensado”. 2. Perdemos cada vez mais contato com nosso interior – a morada do “verdadeiro-eu”, não este forjado para aparecer em nossas redes –, porque simplesmente paramos de habitá-lo ou porque desperdiçamos qualquer chance que temos com distrações. É duro ter que desmascarar o “falso si-mesmo”, construído pelas abstrações e representações da mente, e encarar o verdadeiro (Merton, 2017). E vamos nos tornando o que Friedrich Nietzsche (1998, p. 7) profetizou há mais de um século: “seres do conhecimento” (ou melhor, da informação), mas desconhecidos de nós mesmos porque nunca nos procuramos. Espiritualidade, por sua vez, rima com profundidade e autoconhecimento. 3. Por valorizar demasiadamente o entretenimento – o culto à distração – e a sua conexão wi-fi ou 4G, que te possibilita estar em diferentes lugares ao mesmo tempo, deixamos de vislumbrar a benção do | Teologia Contemporânea | FTSA88 aqui e agora, de estar nesse local, com estas pessoas, vivendo essa experiência única. Transmitir a experiência – fazendo uma “live”, quem sabe – às vezes se torna mais importante que viver essa experiência, estando inteiramente, de corpo e mente, aqui. Sabe como é? A pessoa está, por exemplo, no show que o Paul MacCartney fez de surpresa para os frequentadores de um bar na cidade de Liverpool, preocupada em fazer uma “live” para os seus amigos fi carem com inveja, assistindo tudo então pela tela. Não estamos, obviamente, demonizando a tecnologia, tampouco o uso das mídias sociais. É realmente maravilhoso que esse aparelho de celular que carregamos no bolso tenha sido inventado e permita que nos conectemos com pessoas do outro lado do mundo. Mas é uma tremenda contradição que alguém esteja conectado com milhares, mas profundamente desconectado de si mesmo e das outras pessoas. O problema, portanto, não reside na tecnologia nem nas mídias sociais, e sim no comportamento dos usuários ou em que temos nos transformado enquanto utilizamos essas ferramentas. Espiritualidade, por outro lado, rima com conexão; conexão rima com intimidade; e intimidade rima com presença. Com estar aqui; com viver o hoje, que é tudo o que temos; enfi m, com estar inteiramente disponível em cada encontro pessoal. Render a vida ao espetáculo é o mesmo que banalizar sua santidade; ou seja, seu caráter singular (ou o que ela tem de único) não é respeitado pela cultura que relega ao efêmero a última palavra. Como Jesus nos ensina a resistir a essa dominação da cultura do espetáculo em sua espiritualidade, e quais são as implicações disso para cristãos vivendo em uma cultura do espetáculo, é o tema do restante dessa unidade Tentações da espiritualidade na cultura do espetáculo Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do rio Jordão e foi conduzido pelo Espírito no deserto, onde foi tentado pelo diabo durante quarenta dias. Não comeu nada durante todo esse tempo, e teve fome. Então o 89| Teologia Contemporânea | FTSA | diabo lhe disse: “Se você é o Filho de Deus, ordene que esta pedra se transforme em pão”. Jesus, porém, respondeu: “As Escrituras dizem: ‘Uma pessoa não vive só de pão’”. Então o diabo o levou a um lugar alto e, num momento, lhe mostrou todos os reinos do mundo. “Eu lhe darei a glória destes reinos e autoridade sobre eles, pois são meus e posso dá-los a quem eu quiser”, disse o diabo. “Eu lhe darei tudo se me adorar.” Jesus respondeu: “As Escrituras dizem: ‘Adore o Senhor, seu Deus, e sirva somente a ele’”. Então o diabo o levou a Jerusalém, até o ponto mais alto do templo, e disse: “Se você é o Filho de Deus, salte daqui. Pois as Escrituras dizem: ‘Ele ordenará a seus anjos que o protejam. Eles o sustentarão com as mãos para que não machuque o pé em alguma pedra’”. Jesus respondeu: “As Escrituras dizem: ‘Não ponha à prova o Senhor, seu Deus’”. Quando o diabo terminou de tentar Jesus, deixou-o até que surgisse outra oportunidade. (Lc 4.1-13, NVT) Jesus, antes de iniciar seu ministério, foi conduzido pelo Espírito ao deserto e ali passou quarenta dias e noites, como relata o evangelista Lucas, em jejum e sendo tentado pelo Diabo, o inimigo ou acusador. O que intentou o acusador contra o fi lho de Deus? Colocar à prova justamente o que ele tinha de mais precioso, que é seu “lugar” junto ao Pai, sua fi liação ao amor incondicional do Pai. Ora, o “símio de Deus”, como o chamou Lutero, ou o “pai da mentira”, como denominou o próprio Jesus (cf. Jo 8.44), estava no deserto com Jesus fazendo o que faz de melhor: incitando Jesus a uma representação, convidando-o a representar a comédia do fi lho de Deus, por assim dizer. Esse é ponto central sob o qual queremos que nossa refl exão gravite nesse tópico. Antes, uma breve incursão sobre a natureza da tentação. Jacques Ellul, em seu livro Se és o fi lho de Deus (2011) – que, aliás, é um dos melhores sobre esta passagem –, procura desmistifi car o lugar da tentação, dizendo | Teologia Contemporânea | FTSA90 que ela nem é um ato propriamente divino (isto é, não é Deus quem tenta), tampouco pode ser visto como que personifi cado pelo Diabo (ou seja, uma fi gura externa que aparece para Jesus e se põe a tentá-lo). “Toda tentação é humana”, afi rma ele. O Shatân – que é o nome grego dado ao “acusador”, de onde extraímos a palavra satã –, segundo Ellul (2011, p. 18), “é apenas o composto, a síntese, a soma de todas as acusações trazidas pelos homens contra os outros homens no mundo”. E o que ele quer dizer com isso é que “não se trata de um ‘espírito’ independente do homem que lhe ‘inspira’ essa acusação. Ela surge tão somente do coração do homem”. Em outras palavras, o que Ellul está sugerindo é que as tentações de Jesus em Lucas são a suma das tentações humanas, que já perpassavam o coração do fi lho do homem, como se autodenominou Jesus, sugestionadas pela “cobiça que está dentro de cada um de nós, cuja outra face se chama espírito de poder/potência” (Ellul, 2011, p. 19). Ora, o próprio Jesus foi quem disse que é “de dentro” do coração (leb, no hebraico), que para os judeus era o centro da volição humana, que procedem todos os maus desígnios. Jesus, como testemunham as Escrituras, não pecou, mas foi tentado como qualquer ser humano. Assim, queremos defender aqui que Jesus passou por uma das provas pelas quais toda a espécie humana tem passado todos os dias: a tentação de representar a comédia do fi lho de Deus. Que é a comédia de Adão e Eva, a comédia da usurpação: de ser mais ou menos do que realmente somos, ou de ter que provar, por meio de performances, pela redenção à cultura do espetáculo, que somos quem dizemos (e os outros dizem) que somos. O “se tu és o fi lho de Deus” dito a Jesus, pela voz de um acusador, é uma voz que tem estado no interior do espírito humano desde sua queda. É a voz tipifi cada na fi gura da serpente. O que nos toca responder agora é: de que modo essas tentaçõesperfazem nossa espiritualidade e como resistir a elas? Faremos isto nomeando cada tentação. A primeira tentação: colocar a espiritualidade à serviço do ego. Já vimos na unidade passada que, dentre inúmeras defi nições existentes, o ego 91| Teologia Contemporânea | FTSA | pode ser entendido como o aparato psíquico que comporta um complexo de identifi cações e representações que formam a autoimagem da pessoa. Dito de outro modo, o ego é quem nós pensamos que somos, e, também, como a gente se projeta para os outros por padrões de comportamento, identifi cações e papéis sociais. Segundo Eckhart Tolle (2007, p. 52), o ego “se estabelece quando o sentido de Existir, do ‘eu sou’, que é uma consciência sem forma, mistura-se com a forma”. Essa é uma das peças pregadas pelo ego humano: a de mensurar a essência pela forma, o que também chamamos de “idolatria”. A adoração da forma que se converte em performance. No caso de Jesus, transformar pedras em pão seria o milagre mais óbvio e, de certo modo, plausível na situação em que ele se encontrava. Após quarenta dias e noites no deserto, Lucas diz que ele “teve fome”. Se pensarmos nesses dias no deserto como um “sacrifício” feito por Jesus (aos moldes da sua religião), é tipicamente humano concluir que, depois de tudo, o mínimo que ele merecia seria se alimentar. E por que não transformar essas pedras em pão? Que mal há nisso, sendo ele o fi lho de Deus? O problema é que, se ele fi zesse isso, estaria utilizando do poder de Deus para satisfazer os caprichos de seu ego. E o ego se vê infl ado pelo sentimento não apenas de que sua performance produziu algo de útil ou transformador, mas especialmente quando sabe que ela causou impacto em outras pessoas. É aquela frase de efeito que guardamos na manga para que, dita no momento certo, possa provocar burburinhos de “nossa! Causou”, “lacrou” ou “mitou” na plateia – expressões que, na era das redes sociais, às vezes substituem os usuais gritos de “aleluia” e “fala Deus!” da cultura evangélica. Mas, parafraseando o que respondeu Jesus, “nem só de pão” – ou de “mitadas” e “lacradas” – vive o ser humano. Podemos ser (e normalmente somos) mais relevantes precisamente quando não estamos tentando “ser relevantes”, que é como Henri Nouwen (2002, p. 18) nomeia essa primeira tentação. A segunda tentação: divorciar a espiritualidade da integridade. No pico de uma alta montanha, o Diabo faz outra oferta sedutora: os reinos da | Teologia Contemporânea | FTSA92 terra são meus e eu posso dar a quem eu quiser, por isso te darei todos eles se você me adorar (v. 5-6). Jacques Ellul (2011, p. 68) a denomina “tentação política”, e Nouwen (2002, p. 47) chama de tentação de “ser poderoso”. A lógica é simples e tem estado conosco (nas diferentes esferas de exercício de poder) há milênios: quem quer fazer política para satisfazer sua vontade de poder deve, antes ou durante o processo, se curvar e adorar à potestade invisível, mas real, que manda nesse pedaço. Imagine que um candidato com boas intenções recebe uma oferta sedutora do dono de uma grande empreiteira: “Me deixa te ajudar a ganhar essa campanha!”. Mas, deixe esse negócio de ética e integridade de lado, porque (como disse um político de Londrina, certa feita): “ética não ganha eleições” (com cada vez mais raras exceções). O problema menor é que “quem fi nancia também quer mandar”. E o problema maior é: além de levar uma fatia do poder, leva também uma fatia da alma de quem aceita negociar! A situação de Jesus é um pouco pior: colocar o poder político à serviço do Evangelho e servir-se dele para o bem, ou depender somente de Deus e desafi ar outros poderes? Afi nal, a sugestão de Satã era para “Jesus realizar justamente aquilo para o qual Deus o enviou! E Jesus recusa. Ele recusa sua própria tentação de exercer esse poder universal, de exercer, ele mesmo, esse poder, tomando-o” (Ellul, 2011, p. 70). No século IV, a igreja constantiniana de então cedeu a essa tentação, contra a própria sabedoria alternativa presente no exemplo de seu nominal Senhor: resolveu dar a César o que é de Deus e a Deus o que é de César. Ou seja, ela (embora nem toda ela) trocou o reino de amor de Jesus pelo reino do poder. Com efeito, como observa Nouwen (2002, p. 50), “a longa e dolorosa história da Igreja é a história de pessoas que vez após vez foram tentadas para escolher o poder no lugar do amor, para controlar ao invés de aceitar a cruz, para ser um líder ao invés de ser liderado”. Não é de se admirar que tantos líderes cristãos sejam incapazes de dar e receber amor no exercício de suas funções, tendo em vista que seu objetivo principal é construir um império para si, e não resistir às forças do Império, como fez Jesus. 93| Teologia Contemporânea | FTSA | A resposta de Jesus, porém, aponta um caminho diferente, que atraiu a tantos outros nessa mesma história até hoje e deve dar o tom de nossa espiritualidade contemporânea: adorar somente a Deus; servi-lo com inteireza de coração. Ser integro é ser inteiro, que é algo que não podemos ser se apartados de Deus. Mas o testemunho de Jesus mostra que isso normalmente conduz à cruz, lugar para onde são conduzidos todos/as aqueles/as que não se curvam à primeira potestade que se apresenta oferecendo poder, dinheiro e fama; lugar daqueles/as que diminuem (mesmo do alto de um púlpito, com microfone nas mãos) para que outros cresçam, bem como daqueles/as que, como Jesus, escolhem o amor ao invés do poder. Difícil, mas libertadora escolha. A terceira tentação: submeter a espiritualidade à espetacularização. A última tentação é “religiosa”, como observa Ellul (2011, p. 72-75). Jesus é levado ao alto do templo em Jerusalém, e o Diabo diz (em outras palavras): “Salta daqui, porque segundo a palavra do teu Pai no Salmo 91, os anjos vão te amparar”. Há detalhes que não podem passar batidos aqui. O “pináculo do templo”, como se diz e alguma traduções, era o local mais alto do templo de Jerusalém, e também o ponto de maior visibilidade para os inúmeros transeuntes que percorriam os arredores do templo diariamente. Saltar dali seria uma demonstração sublime do poder da Palavra, como também uma espetacular confi rmação, o gran fi nale da comédia do fi lho de Deus. Outro detalhe que Lucas faz questão de não ocultar é o de que o Shatan, o acusador, faz uso da Escritura, demonstrando ter um domínio instrumental dela, para tentar convencer Jesus de que aquela era uma alternativa legítima ao fi lho de Deus. E encena, assim, um dos exemplos bíblicos mais convincentes que conhecemos sobre uma artimanha muito comum entre religiosos: retirar um verso bíblico do contexto (do texto e da revelação) para embasar um argumento sem se preocupar com o todo da revelação, apenas com o efeito prático que a citação pode produzir em seus ouvintes. Jacques Ellul defende, em contrapartida, que: “A grande regra é a de que nenhum texto, nenhum versículo, nenhuma declaração, | Teologia Contemporânea | FTSA94 valem por eles mesmos. Separar um texto do conjunto dinâmico da revelação de Deus é inevitavelmente falseá-lo” (Ellul, 2011, p. 72). A tentação aqui é a Deus: faça Deus provar para esse povo todo que Ele é Deus e que você é Filho Dele! Em outras palavras ele está dizendo: banalize o dom de Deus, transformando-o em objeto de espetáculo. Assim, segundo Ellul (2011, p. 75), “o homem tenta Deus quando lhe faz pedidos que não foram inspirados pelo Espírito Santo”. Submeter a espiritualidade ao espetáculo religioso (de cura, êxtase, milagre, etc.) é a forma mais comum de colocar Deus à prova também hoje; lugar comum na cultura do espetáculo. A resposta de Jesus, mais uma vez, é indicativa de um possível caminho a todo crente hoje: não tenha ousadia de colocar Deus à prova (v. 13). Jesus se recusa a trocar o relacionamento de amor com o Pai por provas baratas. Ama a Deus aquele que verdadeiramente se sabe amado por Ele, aceito por Ele, e sufi ciente Nele, e por tudoisso não precisa cair nesse tipo de emboscada diabólica. A vocação espiritual não é para fazer milagres e sim para exprimir o amor. A vocação espiritual não combina com circo exibicionista. Porque exibicionismo espiritual exibe a pessoa, e não o Deus que ela diz amar e servir. Se a igreja e sua liderança quiserem testemunhar com autoridade na era do espetáculo, além de conservar a alma (aspecto tão essencial ao cuidado de si, numa perspectiva cristã), precisarão abandonar “o sofi sma” dos mestres da Lei e passar a viver mais o Evangelho, como Jesus. Começamos essa unidade falando de sociedade. Terminamos falando de igreja, tópico da última unidade desse curso. Referências bibliográfi cas ELLUL, Jacques. Se és o fi lho de Deus – Descubra a verdadeira natureza de Jesus Cristo. Brasília: Palavra, 2011. FITZMYER, Joseph A. El evangelio según Lucas. Madrid: Ediciones Cristiandad, 1987. vol. 4. 95| Teologia Contemporânea | FTSA | GONZÁLEZ, Justo L. Desafi os do Século XXI para o pensamento cristão: esboços teológicos. São Paulo: Hagnos, 2014. HAN, Byung-Chul. No enxame – Perspectivas do digital. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018. ________. Sociedade da transparência. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018. KIRK, J. Andrew. O que é missão? Londrina: Descoberta, 2006. LLOSA, Mario Vargas. A civilização do espetáculo: uma radiografi a do nosso tempo e da nossa cultura. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013. MOLTMANN, Jürgen. Vida, esperança e justiça: um testamento teológico para a América Latina. São Bernardo do Campo: Editeo, 2008. MERTON, Thomas. Novas sementes de contemplação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017. ________. O homem novo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006. NIETZSCHE, Friedrich. A genealogia da moral. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. NOLAN, Albert. Jesus antes do cristianismo. São Paulo: Paulus, 1987. NOUWEN, Henri. O perfi l do líder cristão no século XXI. Belo Horizonte: Atos, 2002. TILLICH, Paul. Amor, poder e justiça. Análises ontológicas e aplicações éticas. São Paulo: Editora Cristã Novo Século. 2004. SMITH, James K. A. Desejando o reino: culto, cosmovisão e formação cultural. São Paulo: Vida Nova, 2018. SOLOMON, Robert. Espiritualidade para céticos. Rio de Janeiro: | Teologia Contemporânea | FTSA96 Civilização Brasileira, 2003. STOTT, John W. R. O discípulo radical. Viçosa: Ultimato, 2011. TOLLE, Eckhart. O novo mundo: o despertar de uma nova consciência. Rio de Janeiro: Sextante, 2007. VOLF, Miroslav. Exclusão & abraço: uma refl exão sobre identidade, alteridade e reconciliação. São Paulo: Mundo Cristão, 2021. 97| Teologia Contemporânea | FTSA | Unidade IV – Igreja Introdução “Na religião, muitos preferem as transações mágicas, externas e imediatas, em vez do padrão universal de crescimento e cura pela perda e renovação. (...) Pessoas acomodadas tendem a ver a Igreja como um exótico antiquário, no qual elas podem cultuar coisas velhas como substitutos de coisas eternas”. (Richard Rohr) Que é a Igreja? O que ela é no mundo contemporâneo? Quem ela é chamada para ser? Que desafi os se interpõem ao “ser da Igreja” neste tempo que ousamos chamar de “nosso”? Perguntas difíceis de responder, pois pressupõem um andar, acompanhado de respostas que não são dadas de uma vez por todas, mas que se constituem provisoriamente e na medida em que aprendemos, antes, a fi car tempo sufi ciente com as perguntas, feitas por nós ou outras pessoas. Como podemos oferecer respostas se não sabemos exatamente a quais perguntas elas devem ser endereçadas? E como saberemos as perguntas se não ouvimos duas vezes, como disse tão propriamente John Stott: ao Espírito e ao mundo? Certa feita, um de nós recebeu um email de um estudante, que perguntava: É teologicamente correto dizer que a Igreja é um tipo de sociedade alternativa? Sem dúvida, em nossa compreensão – que, esperamos, fi que clara ao longo desta última unidade – isso não só está teologicamente “correto”, como historicamente tem marcado a vida da Igreja, daquela que não se rende aos ditames do institucionalismo; sempre que ela resolve ser fi el ao seu chamado de sinalizar o Reino de amor no mundo, ela se constitui como uma “sociedade alternativa”, não no modo hippie “paz e amor” dos anos 1970, ou no sentido de que seria uma “ilha” apartada do resto, onde podemos nos alienar do mundo, mas enquanto se mantém como ponto de esperança divina bem no meio do mundo. | Teologia Contemporânea | FTSA98 “Ali” nossos confl itos não são diminuídos porque somos cristãos – como afi rma essa versão sofi sticada da teologia da prosperidade, anti-crise e sofrimento. Pelo contrário, eles aumentam, à medida que não vivemos de acordo com os termos do mundo e sim do Reino, como o próprio Jesus advertiu aos discípulos (João 15), para que não se admirassem se o mundo os odiasse; é que eles não vivem segundo os meandros do mundo, nem os obedecem; se vivessem de acordo com tais termos, o mundo os amaria e os aprovaria. E, observe bem, tudo isso acontece porque estamos no mundo, porque Deus amou o mundo e porque nos chama a proclamar a reconciliação em nossa vida no mundo. Isso é fundamental para tudo o que já foi e ainda será dito nesta disciplina. Entendemos, assim, que a Igreja deveria atuar como a principal alternativa do Espírito para os cansados, feridos oprimidos e sobrecarregados do mundo; ser agente profético de denúncia à corrupção e injustiça, sob que forma elas apareçam; ser “agente de transformação integral”, como ensinou René Padilla. Por outro lado, sempre que a Igreja deixa, por alguma razão, de exercer esse papel, o Espírito, inadvertidamente, não deixa de agir. Isso signifi ca que o Espírito não é monopólio da Igreja. Não é Ele quem acompanha os movimentos (e patacoadas) dela, mas é exatamente o contrário, ela que, como comunidade dos carismas, deve acompanhar o sopro do Espírito, onde quer que Ele esteja soprando, e ouvir a sua voz, ainda que não saiba dizer de onde vem e nem para onde vai (cf. Jo 3.8). Pois, no fi m das contas, o que interessa não é tanto “para onde”, mas “com Quem” vamos. Que a Igreja seja do Espírito, que ela ouça o Espírito e que ela ande no Espírito, isso é o que importa e sobre isso queremos refl etir nesta unidade. Para tanto, elegemos três tópicos em particular e interligados para a discussão: (1) a relação entre tradição (eclesial, cristã) e contextualização do Evangelho; (2) a questão do diálogo entre as igrejas cristãs e com pessoas de outras religiões; por fi m, (3) sobre como podemos reimaginar a Igreja na contemporaneidade. 99| Teologia Contemporânea | FTSA | Objetivos da unidade 1. Relacionar tradição e contextualização, à luz da relação entre Evangelho e cultura contemporânea; 2. Compreender a importância do diálogo para uma Igreja missional; 3. Desenvolver a arte da imaginação no ato de ser Igreja no e para o mundo. 4.1. Tradição e contextualização Apesar de o tema da tradição ser debatido ao longo da história, parece que criamos uma imagem romântica e saudosista de que, no passado, a tradição era respeitada e não havia quaisquer dúvidas ou questionamentos sobre sua validade – que hoje entendemos ser apenas relativa. Quando olhamos mais atentamente, vemos, porém, que nem sempre foi tão simples assim, uma vez que em vários momentos da história da Igreja, a tradição foi questionada, pessoas foram consideradas hereges, enquanto outras infl uenciaram signifi cativamente a transformação/ renovação da tradição. Já a contextualização – reler criticamente textos à luz de, e em aplicação a, determinados contextos – também sempre ocorreu, até de forma não percebida, uma vez que a forma como a Bíblia era lida e interpretada, dialogava com a vida das pessoas no momento. Nesse tópico faremos refl exões de como lidar com esses assuntos na Igreja dos dias atuais. Começaremos com a defi nição de tradição trazida por González (2015). A palavra no latim é traditio, que signifi ca o ato de passar uma ideia ou algo paraoutra pessoa e, também, signifi ca aquilo que está sendo passado. O que podemos associar com a palavra “transmissão” e traz o sentido para a fé cristã de transmitir ensinamentos para outras pessoas – na forma de doutrinas, formulações e preceitos – bem como praticar a própria tradição. Podemos observar na Bíblia um exemplo desse sentido na primeira carta de Paulo aos Coríntios: “Pois eu lhes transmiti aquilo que recebi do Senhor...” (1Co 11.23, NVT). | Teologia Contemporânea | FTSA100 Pensando nisso, a tradição é peça fundamental na fé cristã, pois foi a forma como ela se propagou nos primeiros anos entre os discípulos. Aliás, uma questão bastante interessante para pensarmos é que na fé cristã, em certo sentido, o antigo é melhor do que o novo. É Claro que, com o avanço das ferramentas científi cas contemporâneas, é possível debater sobre aspectos dos tempos bíblicos, que demonstram como, por exemplo, determinadas regras e afi rmações são peças visivelmente datadas. Porém, não podemos negar que foi mais privilegiado quem esteve mais próximo dos relatos. Se considerarmos os princípios naturais de uma transmissão, como uma simples dinâmica de “telefone sem fi o”, já é possível perceber como as informações são afetadas por cada pessoa que ouve e fala o que entendeu. Apesar disso, os cristãos envolvidos na tradição enredaram-na em formas compreensíveis ao ser humano e o cânon bíblico é um exemplo bastante claro disso. Uma vez que os primeiros discípulos estavam falecendo e Jesus ainda não havia voltado, foi necessário encontrar formas de preservar e compartilhar o que eles viveram, pois não foi um acontecimento qualquer. Conforme comenta González, a tradição cristã não se baseia somente em princípios intuitivos; antes, é a transmissão de ensinos e práticas pautados na vida, morte e ressurreição de Jesus. Essa tradição conseguiu ser preservada até a atualidade, pois: “todos nós ouvimos falar de Jesus quer diretamente pelos lábios de outros quer indiretamente pelos autores do Novo Testamento – ou, mais provavelmente, por ambas as maneiras” (González, 2015, p. 222). Somos privilegiados por poder receber essa tradição de formas diferentes. Porém, ao mesmo tempo, na contemporaneidade a Igreja parece viver certos desafi os relacionados à percepção e cultivo de sua tradição. Crise na tradição? Para conversarmos sobre essa questão é importante, mesmo que de forma breve, considerarmos o contexto no qual vivemos. Grenz (2008) menciona algumas características que encontramos na contemporaneidade chamada também de pós-modernidade, para exemplifi car: pessimismo, 101| Teologia Contemporânea | FTSA | relativismo e pluralismo. Essas três características estão ligadas pelo que François Lyotard batizou de “desconfi ança em relação às metanarrativas”, ou das grandes narrativas universais que foram cultivadas, pelo menos, até a modernidade – embora hoje já não se acredite mais que a incidência delas tenha terminado. O pessimismo se deve à quebra da confiança cega no mito do progresso contínuo da humanidade; o relativismo é fruto da descrença de que é possível a um sistema ou forma de pensamento deter ou mesmo chegar à verdade absoluta; e, juntamente com isso, o pluralismo surge como fruto do relativismo. Essas características não surgiram de repente, mas foram resultantes de transformações no paradigma social e científi co. Não é simples determinar um ponto de partida exato ou delimitar um ano específi co em que isso ocorreu, mas podemos mencionar alguns marcos para fi ns didáticos. Após a propagação dos ideais iluministas houve um grande avanço na ciência no decorrer dos séculos. Inclusive, um dos pensamentos é que o ser humano conseguiria explicar todos os fenômenos da vida a partir do progresso científi co e se emancipar de qualquer tipo de crença fora da racionalidade. Isso gerou uma falsa sensação de solidez, pois, como vimos na situação pandêmica, certas descobertas em laboratório não conseguem ser replicadas em condições naturais e a incerteza acaba afetando a todos. Com o passar do tempo, e a frustração por não conseguir controlar todas as variáveis, o paradigma “sólido”, exato, foi se alterando dentro da ciência e, também, na sociedade. Como aponta Santos (2008), houve o surgimento de um paradigma emergente, no qual, a universalidade deixava a cena para dar lugar à especifi cidade. Isto é, as verdades e valores científi cos antes tidos como absolutos começaram a ser questionados, tendo como um de seus marcos Einstein e a “teoria da relatividade”. Além disso, outro fator importante para essa mudança foi o avanço das ciências sociais, que antes eram colocadas em segundo plano, contribuindo com subjetividade e especifi cidade. Ainda de acordo com Santos (2008), esse paradigma emergente não é dualista, dicotômico | Teologia Contemporânea | FTSA102 e, como todo conhecimento científi co, visa constituir-se em senso comum. Os refl exos disso então puderam ser vistos em diferentes esferas da sociedade. Nesse cenário da pós-modernidade, tudo o que aparentava ser certo, sólido, único, começou a se transformar em incerto, líquido e plural. Claro que isso afetou a Igreja, uma vez que muitos dogmas estavam estabelecidos sobre o paradigma anterior, e, sobretudo, a partir do século XX, certos aspectos passaram a ser questionados. Algumas obras escritas, que traziam críticas aos cristãos, receberam grande atenção e, além disso, o número dos que se consideram ateus, cresceu, principalmente nos países europeus – como vimos na primeira unidade. Tudo isso, em um primeiro momento, aparentou que a tradição da fé cristã iria morrer no Ocidente e daria lugar ao pensamento secular baseado exclusivamente na ciência. Isso causou e ainda causa medo e espécie em muitas pessoas. Porém, caso você esteja atento ao que se diz, por exemplo, nas grandes empresas e entre muitos profi ssionais de saúde, deve ter percebido que o tema espiritualidade, por outro lado, está cada vez mais em alta. Entre pessoas que declaram uma fé em Deus, embora sem religião ou pertencimento, isto é, afi rmam nutrir uma “vida espiritual” longe dos ditames e da “cobertura espiritual” das igrejas e seus líderes. E até mesmo entre pessoas que afi rmam não possuir nem fé, nem religião, mas que almejam uma espécie de transcendência puramente natural ou humana, baseada em uma reverência à natureza, ao cosmos, ao bem- estar na vida e à felicidade e realização humanas. Nessa realidade reluz precisamente o sentido de “secularidade” apresentado por Charles Taylor (2010, p. 29), no qual “passamos de um mundo no qual o lugar de plenitude era compreendido sem problematizações como fora ou ‘além’ da vida humana, para uma era de confl itos na qual essa interpretação é desafi ada por outras que localizam essa plenitude (num amplo espectro de maneiras diferentes) ‘dentro’ da vida humana”. Nesse sentido, é válido considerar o questionamento exposto por Tomás Halík sobre o que muitos chamam de “retorno da religião”: 103| Teologia Contemporânea | FTSA | “A religião está voltando” – ouvimos hoje de todos os confi ns da Terra. Há dissenso apenas em relação à avaliação: se isso deve ser considerado algo bom ou ruim – e talvez também em relação ao que ou quem estaria voltando. Estaria voltando o Deus Uno, “o Deus de Abraão, Isaac, Jacó e Jesus”, no qual acreditam os judeus, cristãos e muçulmanos, ou o “deus dos fi lósofos”, o ser sublime – a descoberta dos pensadores do Iluminismo, o adorno das proclamações políticas e dos preâmbulos das constituições? Estaria voltando um Deus capaz de responder silenciosamente aos corações humanos sedentos e de curar suas feridas ou um Deus da guerra e da vingança, que não cura, mas fere? (Halík, 2016, p.11) É essencial destacar que ele não fala de uma tradição somente, mas de diferentes tradições. Pode parecer estranho, mas nem sempre que falamos sobre Deus estamos nos referindo ao Eterno, por isso é importante questionar:“qual tradição estamos seguindo?” ou “de qual deus estamos falando?”. Para não cairmos no erro de pensarmos que isso é somente uma questão contemporânea, González (2015) percorre outros momentos da história em que ocorreram debates acerca da tradição cristã: Tertuliano, Agostinho, Vicente de Lérins, entre outros. Para os protestantes, o exemplo mais signifi cativo desses debates foi Martinho Lutero, que questionou práticas da tradição que estavam se colocando acima da autoridade das Escrituras, sendo uma das principais, a venda de indulgências. (Sobre isso, é quase impossível não pensarmos no que acontece na atualidade e compararmos à época Medieval. Se antes as indulgências eram vendidas para alcançar a salvação, hoje são para alcançar a prosperidade, o que é extremamente tentador – para não dizer promissor – em um mundo consumista). Então, discutir sobre a tradição não é uma deturpação da contemporaneidade ou sinal dos fi ns dos tempos, ao contrário, é uma | Teologia Contemporânea | FTSA104 prática necessária para que a fé mantenha sua vivacidade e traga algum tipo de transformação. Hoje há quem prefi ra se fechar e se apegar à literalidade das Escrituras em nome da “sã doutrina”, bem como há quem postule um diálogo entre a tradição e a cultura. Como já indicamos, seguiremos o segundo caminho, que entendemos ser o melhor caminho, pois, como diz Merton (2017, p. 137): “Todas as tradições humanas tendem à estagnação e à desintegração. Tentam perpetuar coisas que não podem ser perpetuadas. Aferram-se a objetivos e valores que o tempo destrói sem piedade”. O tradicionalismo e o conservadorismo – que não conserva, mas mata, como diria John Caputo – não deveriam, porém, fazer desaparecer nosso apreço pela tradição cristã, que é boa e necessária e “inteiramente oposta ao tradicionalismo humano” (Merton, 2017, p. 137). O interessante na análise crítica de Merton é o parentesco que ele observa entre tradição e revolução. A tradição viva, que manteve a fé cristã em movimento há mais de dois mil anos – a despeito de tentativas de encerramento dela na cela do tradicionalismo – é, como exemplifi ca Merton, “como a respiração de um corpo físico: renova a vida repelindo a estagnação. É uma revolução constante, pacífi ca e silenciosa contra a morte” (Merton, 2017, p. 137). Nesse sentido, os fi lhos/as mais fi éis de uma tradição não são aqueles que se consideram paladinos ou guardiães dela – tentando protegê-la e conservá-la a todo custo –, mas são aqueles e aquelas que, à luz de sua conexão com o sopro do Espírito e leitura perspicaz do espírito da época (Zeitgeist), resistem a seu engessamento e procuram renová-la por dentro, tanto em termos de linguagem como de conteúdo. Como fez Jesus de Nazaré ao dizer que não veio revogar a lei de Moisés ou os escritos dos profetas, mas cumpri-los (Mt 5.17). O que, na prática, signifi cou, para desespero dos paladinos de seu tempo, revisar aquilo que “foi dito aos antigos”, mas que precisava ser revisto e redito de outra forma (“eu, porém, lhes digo”), aprofundando, assim, o sentido da lei, tirando-a dos escombros do conservadorismo e demonstrando, por obras de justiça, que ela estava a serviço da vida e não o contrário (cf. Mc 105| Teologia Contemporânea | FTSA | 2.27). Aqui está o princípio da contextualização, sobre a qual trataremos mais detidamente a seguir. O desafi o da contextualização Para ilustrar a ideia de Merton de que as tradições humanas tendem à estagnação, sigamos pensando a partir dos evangelhos. Os fariseus, mestres da lei e escribas deixaram a tradição estagnada tentando perpetuá-la, mas o resultado foi uma religiosidade vazia e morta. Jesus mostrou como a Lei de Moisés deveria ser interpretada naquele tempo e trouxe vida e esperança com seus ensinamentos. Como Ele mesmo afi rmou, não veio para abolir a Lei ou os Profetas, mas para cumprir (Mt 5.17). Então, a relação com a tradição é um paradoxo, pois que não se pode jogar toda a tradição fora, ao mesmo tempo, não é possível mantê-la inerte. O desafi o é buscar identifi car quais elementos da tradição trazem a força do Evangelho de Jesus e pensar no diálogo e contextualização. Vamos agora, em primeiro lugar, falar sobre um termo conhecido, mas que González (2014) apresenta uma perspectiva no mínimo interessante. O termo é catolicidade. Talvez, a maioria das pessoas entenda esse termo como universal, no sentido de que é uniforme para todos. Contudo, segundo o autor, a palavra católica pode ser compreendida como: “segundo o todo”. A palavra katholicos no grego é composta por katá, que signifi ca “segundo”, no sentido “de acordo com” e hólos, que signifi ca “todo”. Considerando isso, vamos aplicar a palavra catolicidade em duas perspectivas: na Bíblia e na Igreja. Algo que pode trazer um certo incomodo, dependendo da forma como lemos e interpretamos a Bíblia, é que, diante de uma mesma situação, encontramos diferenças nos textos. Na unidade passada já apresentamos um exemplo quando falamos sobre as duas narrativas da criação, em Gênesis 1 e 2. Também podemos mencionar os evangelhos como um grande local de discussões e até mesmo fonte de argumentos para quem quer tentar desqualifi car a Bíblia falando de suas incongruências, como: o que Jesus falou quando estava sendo crucifi cado? Ou então, por que | Teologia Contemporânea | FTSA106 Mateus e Lucas apresentam genealogias diferentes da vida de Jesus? Algumas Bíblias possuem anotações de passagens que remetem à mesma ocasião nos evangelhos e, aos curiosos que leem atentamente, pode-se perceber que há divergências entre elas. Como lidar com isso? Seria muito mais prático para convencer outras pessoas se os relatos fossem iguais ou com diferenças quase não perceptíveis! É nesse sentido que é preciso considerar a catolicidade da Bíblia. Ela é abrangente, não é somente a narrativa de um autor, mas é plural, como o próprio nome diz, Bíblia, coleção de livros, e deve ser compreendida “segundo o todo”. Para continuar no exemplo dos evangelhos, apesar de suas divergências, os autores foram coerentes ao falar sobre a vida, os ensinamentos, a morte e a ressurreição de Jesus. Assim, ao contrário do que podemos pensar, uma das grandes riquezas da Bíblia reside precisamente em sua pluralidade, isto é, em relatos diversos entre si, mas contados “segundo o todo”, apontando para o Deus Criador e Senhor. Por isso, estaríamos equivocados se esperássemos que ela fosse como uma obra totalmente coesa, ditada por Deus palavra por palavra, pois se isso acontecesse deixaria de revelar a multiforme sabedoria de Deus. Conforme diz Jean Louis Ska: A Bíblia não é um jornal, mas uma banca. Não encontramos uma opinião única, nítida, simples, unilateral e incontestável, mas diversas opiniões que se completam em certos casos, mas que podem também se contradizer em outros... A voz de Deus se faz ouvir através de todas as vozes humanas que ressoam na Bíblia, em um concerto algumas vezes harmonioso, em outras desarmônico, porque o caminho que conduz à verdade sinfônica fi nal é longo e pode passar por momentos de quase cacofonia (Ska, 2005, p.133). Se a Bíblia possui essa força da pluralidade, a Igreja também pode e deve seguir por esse caminho. E um alerta importante feito por González (2014), 107| Teologia Contemporânea | FTSA | é que como nenhuma perspectiva humana é completa, precisamos cuidar para não confundirmos uma particularidade de interpretação relacionada à uma questão de poder na sociedade com uma forma universal de interpretação. O próprio termo é contraditório: formas de interpretação não podem ser, por sua própria natureza, universais. Elas são aproximações da verdade, mas não a verdade mesma. E, como salientou Merton (2017, p. 142), “a luz da verdade não é algo que existe para nosso intelecto, mas é alguém em quem e para quem todas as mentes e espíritos existem”. Nesse sentido, como completa ele, “a teologia só começa realmente a serteologia quando transcendemos a linguagem e os conceitos distintos dos teólogos”. Esse alerta profético de González e Merton se faz necessário para que não consideremos como correto o único modelo de ser igreja herdada de países anglo-saxões, por exemplo, uma vez que essa é nossa principal infl uência. Porém, isso não signifi ca que não haja uma verdade única. O que existem são perspectivas diferentes, mas que, no fi m, direcionam para o mesmo Jesus Cristo, Filho do Deus vivo. Uma comparação simples para compreender essa ideia é pedir para que pessoas diferentes destaquem um aspecto de um grande quadro. Todas elas podem falar de partes diferentes, mas o quadro é o mesmo. Diante disso, precisamos pensar em como uma Igreja “segundo o todo” pode cumprir com a Grande Comissão de Jesus, o que envolve diretamente o fator cultura. Durante séculos algumas culturas foram consideradas superiores às outras e não é difícil perceber isso quando falamos de países colonizadores e colonizados. Isso está ligado ao paradigma de que o progresso seria contínuo por conta do avanço das ciências. Os países que tiveram maior acesso à ciência empírica, como estamos habituados, se tornaram o padrão a ser alcançado. E até hoje, em muitos lugares, esse pensamento que faz acepção entre culturas superiores e inferiores existe. Para dar um simples exemplo, por parte de quem vive nas grandes cidades, não é incomum pensar nos indígenas como atrasados, sem modos ou intelectualmente limitados. Porém, ao conhecer melhor a | Teologia Contemporânea | FTSA108 cultura de um povo indígena é possível perceber que isso é apenas um estereótipo muito limitado. Mas justamente por esse pensamento existir é que algumas “missões” tentam pregar aos indígenas o mesmo “Jesus europeu” do século XVI ou outro mais próximo da cosmovisão ocidental. Sobre esse aspecto das culturas, no Pacto de Lausanne de 1974, está uma declaração muito importante de que todas as culturas expressam, de alguma forma, a beleza e a bondade de Deus, pois o ser humano foi criado à Sua imagem e semelhança. Por outro lado, as culturas também revelam o pecado do ser humano. Por isso, é necessário que as Escrituras sejam o parâmetro para avaliar uma cultura. Então, antes de demonizar uma cultura, é preciso pensar nela “segundo o todo”, isto é, como essa cultura revela a bondade de Deus? Como ela expressa a Sua glória? Isso seria, como afi rma González (2014), parte da Grande Comissão, na qual Jesus já recebeu autoridade e, por isso, os discípulos devem ir às nações, descobrir como se manifesta ali o poder de Deus e pensar em como fazê- las ver esse poder que já está lá no meio delas. Nesse sentido, o aspecto fundamental é a contextualização. Para uma mensagem contextualizada, é essencial, primeiro, reconhecer nossa própria contextualização, partindo do pressuposto de que nossa perspectiva do Evangelho – por ser perspectiva, modo de ver a partir de um ponto – já é parcial, mas ainda assim, ela pode contribuir com o todo. Isso vai exigir um tempo para estudar sobre a história da comunidade de fé a qual pertencemos, além de refl etir sobre onde ela está no meio do contexto atual. Apesar do trabalho histórico, esse exercício pode auxiliar muito na contextualização para outras culturas na contemporaneidade. Aliás, essas outras culturas podem ser parte inclusive do mesmo país, estado e, às vezes, da mesma cidade. A diversidade cultural no mesmo espaço corresponde à pluralidade, que é um fator importante na contextualização – isto é, a contextualização permite com que a mensagem do Evangelho seja propagada para os mais diversos grupos –, mas também aumenta o nível de complexidade para que essa propagação aconteça, o que demanda maior criatividade 109| Teologia Contemporânea | FTSA | e empenho. Porém, isso vai ao encontro do conceito de catolicidade. Consideremos o texto de Apocalipse 7.9 (NVT): “Depois disso, vi uma imensa multidão, grande demais para ser contada, de todas as nações, tribos, povos e línguas, em pé diante do trono e diante do Cordeiro. Usavam vestes brancas e seguravam ramos de palmeiras”. A visão de João envolve a ideia de “segundo o todo”, de que pessoas das mais diversas localidades e culturas estariam diante do Cordeiro. E essa visão é concretizada quando cada pessoa consegue fazer conexões do Evangelho com sua própria cultura. Diante disso, não há como não seguir o que John Stott recomenda. Apesar da nossa difi culdade, precisamos ouvir duplamente: a voz de Deus e a voz das pessoas que estão ao nosso redor, como é o título do seu livro Ouça o Espírito, ouça o mundo (Stott, 2005). A tarefa não é tão simples quanto parece, pois exige uma renúncia do próprio egocentrismo, já que primeiro a fala dá lugar ao ouvir. E o ato de ouvir não foi uma prática adotada pela tradição cristã nos últimos séculos. Quando falamos de evangelização, logo pensamos nas pessoas com grande eloquência, capazes de convencer multidões com suas pregações. Mas, nos tempos em que vivemos isso precisa ser diferente. Se quisermos uma mensagem contextualizada, precisamos aprender a dialogar com aqueles que possuem pontos de vista diferentes dos nossos e romper a barreira dos guetos. Além disso, é necessário reconsiderar a concepção de que uma mensagem contextualizada é necessariamente uma mensagem falada. Em vez disso, deve ser uma mensagem encarnada. As pessoas da contemporaneidade parecem estar cansadas de discurso, querem ações. E Jesus de Nazaré persiste sendo o melhor exemplo dessa simbiose, pois foi que encarnou o Verbo Divino e inaugurou o Reino de Deus. Concluindo esse tópico, apesar das transformações pelas quais o mundo sempre passa, e o desconforto que isso traz, nossa postura não pode ser de medo, retração, mas deve ser de diálogo, pois só assim conseguiremos transmitir a tradição que revoluciona de forma contextual. Precisamos ouvir o clamor do mundo e ouvir o que dizem as Escrituras, iluminados | Teologia Contemporânea | FTSA110 pelo Espírito, e essa tarefa pode ser realizada com maior efetividade a partir do momento em que estabelecemos pontes, nosso segundo tópico nesta unidade. 4.2. Caminhos para o diálogo A partir das questões mencionadas acima surge-nos uma dúvida: como dialogar com o diferente, se tudo o que quero é que o diferente seja como eu? Ou, talvez, como dialogar com o diferente sem perder a minha essência e defender minha verdade? É comum que, ao falar em dialogar, respeitar e aceitar, surjam em conjunto expressões como concordar, apoiar, tornar subjetivo. Há uma grande confusão, de fato, quando essas palavras são invocadas em um contexto religioso. Principalmente, quando se trata de uma religião presa aos tradicionalismo, como explicado no tópico anterior. Para iniciarmos esse assunto, portanto, é importante tratarmos do tema “verdade”, diferenciando-a do que seja a minha verdade. O maior impedimento entre o diálogo dos diferentes é a defesa de uma verdade que cada um dos interlocutores possui. Ao falarmos de Jesus é preciso reconhecer, antes de tudo, que nenhum cristão detém a verdade, pois nenhum cristão tem propriedade sobre Jesus. Jesus é a verdade. Jesus como único Cristo/Messias é a única verdade suprema. A qual podemos conhecer por meio dos relatos a seu respeito (Evangelhos), e os quais são claros em demonstrar a presença contínua de diferentes seres humanos a seu redor, diferentes locais, diferentes maneiras de agir, falar, curar, orar etc. Portanto, a afi rmação mais correta sobre a verdade, enquanto cristãos, é de que não existe “minha verdade”, e a única verdade que existe não cabe em um único padrão, em uma única definição, e que palavras não dão conta do tamanho alcance dela. Aqui está a diferença fundamental, que os cristãos custam a compreender: do ponto de vista da fé bíblica, a verdade existe e ela tem nome: é Jesus. Tudo o que temos, porém, são relances, aproximações, gestos graciosos e amorosos da própria verdade em nossadireção que asseguram, ao nosso ser todo, que estamos nela e dela somos. A verdade, nesse 111| Teologia Contemporânea | FTSA | sentido estrito, “dá testemunho de si mesma”, como disse Michel Henry (2015). Podemos falar dela – afi nal, “a linguagem ainda é seu meio de comunicação por excelência” (emprestando de novo palavras de Henry), desde que for, ou se for, necessário comunicar. Mas a questão é: o que alguém, de fato, comunica quando pretende anunciar a verdade: ela mesma ou uma versão possível, mas sempre diferente, parcial, dela? E essa verdade comunicada nas palavras, pode até convencer, mas de que forma ela liberta (como também diz João): pelo poder das palavras, ou pelo misterioso poder do Cristo, que está além delas? No fi m das contas, a verdade só “é” para quem se vê capturado por ela, uma vez que a verdade, em si, não pode ser capturada por ninguém. Por isso, tentar defender qualquer tradição, religião, nomenclatura, e fazê-lo em nome de Jesus o Cristo, é vão. É descaracterizar a essência do movimento cristão primitivo. Jesus, enquanto verdade, era o Cristo das Marias, dos Josés, dos Pedros, dos Tiagos, dos samaritanos, das prostitutas, dos publicanos, dos pagãos, assim como, era Cristo dos fariseus, mestres da lei, sacerdotes do Templo, ofi ciais romanos, imperadores etc., ainda que esses não quisessem ouvi-lo. Isso não é subjetividade, isso é a Boa-Nova pregada por Jesus como salvação de todo aquele que andar como ele andou. Ser cristão, assim, signifi ca viver no limiar entre o anseio pela dádiva de ser cada vez mais possuído e capturado pela verdade na vida, e a boa-nova libertadora de não poder apreendê-la ou possuí-la no discurso, mas de vivê-la como “evidência muda”. Entretanto, que toda fala, todo discurso, toda comunicação, argumentação, raciocínio, narrativa ou teo-logização sejam benditos e bem-vindos, desde que se assumam jubilosamente como meios, e não como fi ns, como contingentes, e não absolutos. A tendência à literalidade bíblica e ao legalismo pode ser um outro grande fator de empecilho ao diálogo e à união entre os próprios cristãos e, também, os não cristãos. Isto porque, se analisarmos bem, aquele que está sendo literal e legalista com a bíblia traduzida, não está levando na literalidade as Escrituras e a Palavra de Deus. Tente acompanhar nosso | Teologia Contemporânea | FTSA112 raciocínio: a bíblia foi escrita em Hebraico e Grego, com vocabulários bem diferentes que comportam diversas traduções; sendo assim, a única maneira de seguir fi elmente o que está escrito nela, levando a ferro e fogo versículos isolados e palavra por palavra, seria reencontrando seus autores e perguntando a eles qual seria a correta tradução do texto original para o português, emitindo, assim, exatamente o que eles pretendiam com aquele escrito. Por estes motivos é que juntamos esforços para aprender o que está ao nosso alcance sobre os tempos passados, sobre a história, sobre a geografi a e fazemos maior esforço ainda para aplicar esses ensinamentos em nossos tempos atuais, de forma que Jesus, o único que é caminho, verdade e vida, possa ser acessível a todos os seres humanos, por meio daqueles que já o encontraram. Além disso, é preciso diferenciar dois caminhos a serem percorridos na temática do diálogo: (1) O diálogo entre cristãos de diferentes seguimentos, e (2) o diálogo entre cristãos e não cristãos. Falaremos de ambos. E, para ambos os casos, encontramos interlocutores lutando pela defesa da sua verdade real, da sua crença e da sua própria interpretação sobre a vida humana em relação ao divino – neste caso nos reservaremos aos discursos dos cristãos, pois esse é nosso “lugar de fala”. Vamos começar tratando da intolerância entre os próprios declarantes da fé cristã, sejam evangélicos, católicos, e assim por diante. Elias Wolff, professor de Teologia Sistemática e especialista em Ecumenismo, já em 2015 alertou: Mas há um drama no mundo cristão que todos sentem: a divisão nas formas de compreender e viver os ensinamentos do Evangelho. Muitas dessas formas surgem e se fortalecem num espírito de proselitismo e concorrência, com pouco, ou nenhum, espaço para a convivência e a interação das diferenças, o amor e a comunhão. A divisão cristã é uma realidade dramática. (Wolff, 2015, p. 382) 113| Teologia Contemporânea | FTSA | O que impede a união entre os cristãos de diferentes seguimentos, não é exatamente a forma diferente com que se relacionam com Deus. Não é desejo de gritar, pular, dançar, manter-se em silêncio no escuro ou na claridade, na manhã ou na noite, em casa ou no templo, de camisa ou camiseta, calça ou saia. O que impede essa união é a disputa de poder e domínio sobre a verdade. É o desejo de dizer “essa é a forma correta”, ou “é assim que Deus quer ser chamado, invocado e adorado”. É a concorrência pela arregimentação de fi éis em torno de uma forma, não ao Cristo. Concordamos com Merton (2017, p. 139) quando ele afi rma que é um dom divino ser ensinado e ensinar “a diferença entre o formalismo da casca externa, ressequida, que as naturezas humanas que compõem a Igreja às vezes lhe emprestam, e a corrente interior, viva, de vida divina, que é a única verdadeira tradição católica” (ou universal). Vemos nos dias de hoje um ataque inter e intra eclesiástico. Fiéis que radicalizaram seus ritos e tornaram a Palavra maior do que aquele a quem ela se refere. Tornaram a letra mais forte do que seu próprio conteúdo. Entretanto, como adverte Wolff (2015, p. 283), muitos deles sequer conseguem notar que suas diferenças não são contradições, e poderiam ser uma fonte de enriquecimento uma à outra, na compreensão e na vivência do Evangelho. Ao contrário, os detentores da “minha verdade” afastam de si o que há de mais rico no Evangelho ensinado por Jesus, em que todos, absolutamente, são fi lhos/as de Deus e, por isso, onde quer e como quer que o adorem, fazem parte dessa grande família. Esse é o caminho de retorno à harmonia da criação, mencionado na unidade II. Jesus é claro ao ensinar seus discípulos que nem todo o que diz “Senhor, Senhor”, nem todo aquele que profetizar em nome dele, nem todo aquele que expulsar demônios em seu nome, ou qualquer que fi zer muitas outras coisas, serão reconhecidos como participantes do Reino, reconhecidos por Jesus como próximos dele (Mt 7.21-24), pois existem outras coisas mais importantes. Mateus, em seu evangelho, inclusive relata Jesus ensinando que aqueles que não sabem seu “nome” e que não serviam com os dons dos religiosos, mas ao faminto derem de comer, ao nu | Teologia Contemporânea | FTSA114 derem de vestir e ao preso foram visitar, estes sim Jesus diz reconhecer, ser próximo deles, ser integrantes do Reino (Mt 25.34-46). Isso não quer dizer que exercer os dons, estar numa comunidade, praticar ritos sagrados não seja importante. Quer dizer que não são sufi cientes. Em Lucas 11.34 em diante, Jesus vai à casa do fariseu para uma refeição, e se assenta à mesa sem cumprir o rito do batismo, que para os fariseus era sagrado. Era necessário, conforme a tradição, purifi car-se do contágio recebido pelos pecadores nas ruas, para que pudessem compartilhar de forma santa a refeição. Mas Jesus ignora o rito e lança uma séria de Ais contra os fariseus. Os Ais são advertências, denúncias proféticas, oráculos de justiça, contra aquele grupo de fariseus e mestres da Lei. Mas Jesus é incisivo, após mencionar diversos ritos por eles praticados em comparação à falta de misericórdia, amor e piedade para com os outros, diz: “Vocês deveriam fazer estas coisas, sem omitir aquelas” (Lc 11:42b), referindo-se à omissão das práticas de justiça em detrimento de sacrifícios. Portanto, todos os ritos são bem-vindos, quando promovem plenitude de vida por meio da companhia de boas-obras. Diante desses ensinamentos bíblicos, e percebendo que a cada minuto novas comunidades surgem, com pensamentos diversos, com práticas e vivênciasdiferentes, precisamos focar naquilo que é importante. Renunciar à disputa, ao orgulho, ao egoísmo, à vaidade, à falta de caridade e de fé Naquele que realmente é Justo Juiz, e deixar que a prática do amor e da piedade fale por nós. Vivemos tempos de polarização política e religiosa; tempos em que milhares de novas opiniões são publicadas a cada segundo nas redes sociais. E o acesso à informação é tão livre que acaba produzindo uma constante desinformação. Nossa melhor escolha nesse momento é acessar o Evangelho puro e simples de Jesus. Esta escolha irá, automaticamente, refl etir em nosso comportamento diante do embate encontrado no segundo caminho: o diálogo entre cristãos e não cristãos. Emil Brunner, um dos maiores teólogos do século XX, nos lembra que “a tolerância das religiões indianas – incluindo o budismo – e do misticismo em geral, frequentemente é exaltada às 115| Teologia Contemporânea | FTSA | expensas da “intolerância” do Cristianismo”. Em contrapartida, segundo ele, “o Deus que deu seu próprio Filho para a redenção do mundo, e cuja glória foi revelada na Cruz de seu Filho, não deseja que a mensagem do Seu Nome seja propagada pela confl agelação e espada, pela queimada dos hereges, ou pelo batismo compulsório” (Brunner, 2010, p. 235). Por mais que em nosso cenário brasileiro/latino-americano/ocidental, as crucifi cações, queimadas, decapitações, apedrejamentos e outros meios extremamente agressivos e desumanos não sejam mais utilizados, ainda assim encontramos muita violência praticada em nome de Deus. Violências físicas de menor intensidade, mas ainda desumanas, violências psicológicas, verbais e econômicas continuam acontecendo. Em nome de Cristo se destroem templos de outras religiões; em nome de Cristo deixa-se de dar o pão àquele que não confessa o nome “Jesus”; em nome de Cristo se excluí grupos minoritários, oprime-se escolhas, lança-se ao fogo do inferno os que rejeitam se fi liar à “minha igreja”. Entretanto, como alerta Richard Rohr, o ser que chamamos de Deus e sua encarnação, que chamamos de Jesus, não está preocupado com nomes. Desde o início de sua revelação ao ser humano, e sua busca por uma recuperação dessa aliança em Moisés, o divino não se preocupou com nome. O que é lógico, já que sendo Ele indefi nível, nome é o que não importa. “Lembre-se de que Deus disse a Moisés: ‘Eu SOU quem Eu SOU’ (Êx 3.14). Deus não está claramente ligado a um nome e, também, não parece querer que liguemos a divindade a qualquer outro nome” (Rohr, 2019, p. 41). O autor complementa: É por isso que no judaísmo, na declaração de Deus a Moisés, ele se tornou o Deus indizível e inominado. Alguns dirão que o nome de Deus literalmente não pode ser “dito”. Isso foi muito sábio, e mais necessário do que supúnhamos! Essa tradição apenas deveria nos dizer que praticássemos uma humanidade profunda em relação a Deus, que não nos dá um nome, mas apenas | Teologia Contemporânea | FTSA116 a pura presença – não uma manipulação que poderia permitir-nos pensar que “sabemos” quem é Deus, ou tê- lo como nossa posse privada. (Rohr, 2019, p. 41) Por mais que tenhamos desejo de exercer o evangelismo por meio da defesa do nome de Deus, ou da defesa do nome que demos à nossa religião (ou à forma como nos religamos a Deus), essa não é nossa tarefa. Nossa tarefa é seguir os caminhos de Jesus, carregando nossa cruz dia após dia, nos tornando dignos dele. Nossa tarefa, acima de tudo, como mencionado na unidade III, é buscar o Reino de Deus e a sua justiça. Brunner (2020, p. 393) destaca que “a tarefa com a qual Deus tinha confi ado a Ele (Jesus) não foi a de proclamar o Cristo, mas de ser o Cristo”. Da mesma forma, nós também precisamos nos concentrar em nossas tarefas e parar tentar defender aquele que não precisa de defesa alguma. Muitas vezes nós tomamos a postura de parakkletos de Deus, porém, essa tarefa de intercessor, defensor, conselheiro, não é nossa para com Deus, e sim do Espírito Santo para conosco. Nós podemos até tentar buscar um relato de Jesus defendendo a si mesmo, defendendo sua versão do judaísmo, defendendo o nome de seu Pai como sendo Yahweh, Elohim, ou qualquer outro. Mas simplesmente não encontraremos. Não há nem mesmo um mínimo indício dessa tentativa. Jesus não chama ninguém para simplesmente acreditar em Deus, seguindo um credo religioso. Não chama ninguém a uma nova religião, a um rito, nem uma fi losofi a. É impossível encontrar textos bíblicos nesse sentido. Jesus chama pessoas a seguirem com ele, assistirem sua vida, acompanharem seus passos, sem pedir nada em troca e, também, sem oferecer qualquer sucesso, dinheiro, aceitação, e assim por diante. O ministério do Cristo é promover a salvação por meio do retorno ao plano original do criador. E é isso que nós, enquanto imitadores dele, também devemos fazer. Portanto, saber conviver com o diferente é um dos maiores desafi os para aqueles que desejam amadurecer em Cristo e se tornar cada vez mais parecidos com ele. A diferença não signifi ca divergência, tampouco 117| Teologia Contemporânea | FTSA | inimizade. A diferença nos leva a admitir que Deus está em tudo e em todos e não apenas em mim. Todos os seres humanos carregam em si a imagem e a semelhança daquele que É. E nós não podemos ignorar esse fato. Por isso, na diversidade contemporânea, a luz de Jesus pode brilhar de diversas maneiras e não é preciso que tenhamos medo de suas cores. Como diz Rohr (2019, p. 23): “Lembre-se, a luz não é tanto o que você vê diretamente, mas algo pelo qual você vê todo o resto”. Essa frase tão simples pode nos revelar muito sobre a sabedoria do diálogo. Quando acendemos a luz em nossas casas, quartos, salas, escritórios, ou qualquer outro lugar que esteja escuro, não o fazemos para fi carmos parados olhando para ela e não fazemos para que outros venham olhar conosco. Acendemos as luzes para nos guiarmos até onde precisamos, para enxergar os objetos, os cômodos e o que mais for necessário. A iluminação nos deixa seguros de que se houver um obstáculo poderemos desviar. Nas muitas afi rmações sobre a luz que encontramos na Bíblia, principalmente nos relatos do evangelista João, fi ca fácil perceber que a luz ilumina nossa maneira de olhar o mundo, de olhar o outro, de olhar a criação divina, com os mesmos olhos de amor do criador. É preciso que essa luz resplandeça nas relações, no diálogo, na convivência. Não podemos esconder que “muitas pessoas de outras crenças, como mestres sufi s, os profetas judeus, muitos fi lósofos, e místicos hindus viveram à luz do encontro divino, melhor do que muitos cristãos”, pois muitos cristãos encontram-se com uma regra e uma Lei, mas não se encontram com a essência divina do Criador. Não se encontram com o verdadeiro eu, que não deseja ser aquilo que não é. Brunner (2019, p. 236), inclusive comenta que “o homem pecador acredita que ele deveria ajudar a verdade de Deus por meios coercitivos”, também que “esta falsa ‘teocracia’ está em oposição ao Evangelho do Lava-pés e da Cruz”. Sob esta perspectiva, o diálogo das religiões ou das vertentes cristãs, precisa se tornar o que Wolff (2016) chama de diálogo das espiritualidades. De forma que tais espiritualidades, enquanto forma como se vive a motivação do existir, possam se somar e levar todos ao Espírito, que é | Teologia Contemporânea | FTSA118 a fonte de todas as espiritualidades. Quando reconhecemos o domínio do Espírito Criador sobre toda a criação e sobre todo o ser humano, percebemos que este Espírito, de alguma forma, está presente nas muitas espiritualidades humanas. O diálogo permite essa busca. Não tem a ver com concordar, não tem a ver com convencer, não tem a ver com apoiar ou não apoiar, mas tem a ver com buscar incansavelmente a presença do Espírito de forma que ela se torne cada vez mais visível para todos. Dessa forma, o outro, em busca do Espírito nas nossas vidas também o tornará (o Espírito) mais visível para si e para nósinatualidade ou não união perfeita com seu próprio tempo. Ou seja, ao contrário do que talvez estejamos acostumados a conceber, ser uma pessoa contemporânea signifi ca andar em dissincronia com sua própria época. Como lembrou Agamben na epígrafe (a frase com a qual abrimos esta unidade), podemos 11| Teologia Contemporânea | FTSA | até odiar nosso tempo, mas a sabedoria nos lembra que sabemos que lhe pertencemos “irrevogavelmente” e que dele não podemos fugir. Mas se dele não fugimos, nem tampouco deixamos facilmente nos amoldar, como nos tornamos propriamente contemporâneos? Desse modo é que Agamben apresenta seu primeiro signifi cado para “contemporâneo”: A contemporaneidade, portanto, é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais precisamente, essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e um anacronismo. Aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fi xo o olhar sobre ela. (Agamben, 2009, p. 59, grifo nosso) Há uma série de elementos importantes nesta primeira defi nição, mas queremos comentar os que mais nos saltam aos olhos: (a) ser contemporâneo é aderir ao tempo tomando dele distância – isto, aliás, é o que chamamos propriamente de um paradoxo; (b) e toma-se distância dele por meio de uma “dissociação” (o oposto de associação, simples assim) e de um “anacronismo”. É isto mesmo? Dizemos que alguém ou uma concepção de mundo é “anacrônica”, normalmente em tom crítico, para inferir que ele/a não está em sintonia com a sua própria época. Nesse sentido, talvez este fosse o último predicado que imaginaríamos sendo atribuído a alguém que consideramos um contemporâneo. Mas esta forma de ser contemporâneo pode tornar esta pessoa livre ao ponto de poder circular pela “sabedoria antiga” presente em diferentes eras, por exemplo, extraindo delas signifi cativos insights para interpretar e viver seu próprio mundo. | Teologia Contemporânea | FTSA12 Glossário Sabedoria antiga. O uso do termo aqui parte do pressuposto (presente no livro de Provérbios, ver: Pv 8.22-31) de que a sabedoria está presente desde o princípio das eras e do próprio universo; nasceu do Verbo Divino na Criação, vem antes do próprio conhecimento e é mais fundamental que ele – ou seja, ela é a guia do conhecimento, por assim dizer. E que, portanto, recorrer ao que chamamos aqui de “sabedoria antiga” é o ato mais útil e revolucionário que um contemporâneo pode fazer, a fi m de que seja de fato um contemporâneo, ao menos no sentido empreendido por Nietzsche e Agamben. Esta, aliás, a proposta do livro No caminho do bem: sabedoria antiga para uma nova humanidade (2021), de autoria de Jonathan Menezes. E é precisamente esta inversão – do contemporâneo como quem pertence a uma época específi ca, sem a esta aderir plenamente, e circula livremente por outras épocas, buscando uma sabedoria atemporal presente ali –, tão interessante em Agamben, que proporciona o terceiro elemento que gostaríamos de destacar: (c) a possibilidade de “ver” a nossa época, coisa que não é possível a quem não ocupa seu próprio interior, mas “vive ingenuamente no mundo”, parafraseando Arthur Danto. E, assim, enxerga as coisas sem “vê-las” propriamente. Em outras palavras, o contemporâneo pode ser descrito como um “contemplativo”, no sentido que Thomas Merton deu à palavra, uma vez que o contemplativo é aquele/a que contempla o mundo contemplando, antes, a si mesmo. Observa-o do interior, por assim dizer, e observa-o, diga-se de passagem, 13| Teologia Contemporânea | FTSA | ativamente, isto é, como quem participa do mundo, como quem faz parte dele, mas nem por isso toma parte de todos os seus negócios. “O segredo da vida contemplativa”, disse Merton (2019, p. 487), “está na capacidade de percepção (ou conscientização) ativa”. Esta observação não é menos importante, porque o distanciamento enunciado por Agamben não deve ser entendido como uma fuga ou abandono do mundo, tampouco o é a chamada vida contemplativa. A mudança na vida do contemplativo, a partir desse despertar consciente que a luz de Cristo nele promove, não redunda propriamente em um afastamento do mundo e de seus objetos, mas na quebra de sua dependência em relação a eles, que Merton chama noutro lugar de “desapego essencial”. Em suas palavras, O contemplativo não deixa de conhecer os objetos exteriores. Mas deixa de ser guiado por eles; deixa de depender deles. deixa de tratá-los como a realidade suprema e agora os avalia segundo um novo modo, no qual não são mais objetos de desejo ou medo, permanecem neutros e como que vazios, até que sejam preenchidos pela luz de Deus. (...) Fora desse desapego essencial, o homem não pode ter a esperança de adentrar sua mais interior profundidade e experimentar o despertar do eu interior que é a morada de Deus, Seu lugar oculto, Seu templo, Sua fortaleza e Sua imagem. (Merton, 2007, p. 26) E o que vale para nossa relação com os objetos, vale também para nossa relação com as pessoas. Uma ambiguidade deve ser notada aqui: se, por um lado, deve-se dizer que relacionamentos nos humanizam e nos aproximam desse “despertar do eu” sobre o qual fala Merton, por outro, há que se ponderar que o efeito oposto às vezes também é produzido nas relações, quando não nos treinamos a reconhecer e a respeitar limites. Relações maduras, contudo, pressupõem o respeito mútuo pela | Teologia Contemporânea | FTSA14 individualidade, os limites e a solidão, minha e a do outro, do contrário perde-se a intimidade fundada na caridade, que cuida sem sufocar. Como bem coloca Merton em seu livro Homem algum é uma ilha: Mas não há verdadeira intimidade entre almas que não sabem respeitar a sua mútua solidão. Não posso unir-me a outra pessoa, cuja personalidade o meu amor tende a ofuscar, absorver e destruir. Nem posso despertar o verdadeiro amor numa pessoa a quem o meu amor convida a afogar-se no próprio ato com que ela me cumula. (Merton, 2021, p. 153) Jesus de Nazaré, por exemplo, persiste como melhor exemplo de pessoa contemplativa, porque participava ativamente do mundo, desenvolvendo tanto uma escuta quanto uma sensibilidade ativas, no sentido de que se convertiam em ações libertadoras, de solidariedade e compaixão para com a vida humana, quanto também tinha uma vida e missão autônomas em relação aos imperativos externos, mesmo aqueles vindos de seu núcleo mais íntimo. A questão fundamental é: de onde procedia essa sensibilidade e capacidade de escuta de Jesus, combinada com uma autonomia e reverência à sua vocação particular? A resposta mais simples e óbvia é: de sua vida de oração, de seus momentos de silêncio, no deserto, em comunhão com seu Pai. Deixe-nos dar um exemplo. No Evangelho de Marcos, relata-se que, depois de uma noite atribulada em que Jesus seu doou de muitas formas a pessoas que necessitavam de seu toque curador – como a sogra de Simão Pedro, além de outros enfermos e endemoninhados –, na manhã do dia seguinte, “Jesus se levantou e foi a um lugar isolado para orar”. Passado um tempo, o relato prossegue dizendo que “Simão e os outros saíram para procurá- lo. Quando o encontraram, disseram: ‘Todos estão à sua procura!’. Jesus respondeu: Devemos prosseguir para outras cidades e lá também anunciar minha mensagem. Foi para isso que vim’” (Mc 1.35-37, NVT). Observe os destaques que fi zemos no texto, primeiro: “Todos estão à 15| Teologia Contemporânea | FTSA | sua procura!”. Há uma exclamação aí, um senso de urgência na voz dos discípulos, sinal de que as pessoas precisavam de Jesus, uma convocação para que ele viesse de novo e fi zesse a sua costumeira mágica, a fi m de que todos fi cassem contentes. Agora, segundo, veja o contraste na resposta de Jesus: “Devemos prosseguir”, ir a outros lugares,mesmos. Esse tipo de diálogo é um diálogo missionário. Como Wolff (2016, p. 103) coloca: “O missionário cristão não ‘leva’ Deus aos membros das outras religiões, partilha com eles sua experiência. Para ser verdadeira ‘partilha’, é preciso saber também receber algo da experiência que o outro faz de Deus. Para isso, há que se admitir que Deus já está presente na vida das pessoas a quem o Evangelho é anunciado. Elas devem sua existência ao mesmo Deus que é autor de toda a criação”. O que Wolff está falando não está relacionado com tentar purifi car e elevar algo de bom nas outras religiões e nas diferentes formas de viver e, assim, compreender o cristianismo, mas de reconhecer a verdadeira natureza do bom (tov) que está nessas pessoas, as quais são imagem e semelhança do Criador tanto quanto nós, e reconhecer suas formas de se conectarem ao Criador, contribuindo, se possível, para que suas experiências sejam melhores ainda, as levando para mais perto ainda do plano original. Ou, se preciso, também aprendendo com elas e reconhecendo o quanto também precisamos nos aproximar mais deste plano divino. Se toda a igreja estivesse focada na missão que nos foi dada e renunciasse aos sentimentos que não pertencem ao Espírito, como relatado por Paulo na carta aos Gálatas (cap. 6), então poderíamos ter uma Igreja diferente. Um corpo unido, que não pode ser vencido. Um corpo que move montanhas com fé e esperança. É preciso pensar e repensar, como uma verdadeira transformação da mente pode alcançar a igreja. No próximo tópico iremos falar sobre essa possível versão da Igreja Cristã. 119| Teologia Contemporânea | FTSA | 4.3. Uma igreja reimaginada Por meio de uma refl exão sobre o papel e importância da igreja no mundo e na cultura contemporâneos ultimamente – o que precisa incluir o período pós-pandemia; através da convivência e conversas com muitas pessoas diferentes, crentes e descrentes, podemos chegar à conclusão de que estamos em um processo de transição, de revisão de modelos, de reorientação de práticas. Que papel a Igreja tem a desempenhar, por exemplo, numa fatia de cultura – e aqui preferimos falar em “fatia” ao invés de cultura no geral – como a urbana, pós-moderna ou líquido moderna (como preferiu Zygmunt Bauman), pós-paradigmática, de posicionamentos, “desideologias” e religiosidades fl uidas, de espiritualidade ao invés de religião, de encantamento com o sagrado, com o transcendente, e menos com suas expressões doutrinárias e/ ou institucionalizadas; de menos certezas, dogmas e posturas rígidas ou sólidas (ainda que ela subsistam e tenham lugar), e mais incertezas, dúvidas, paradoxos, liquidez; de saturação do individualismo e da autossufi ciência modernos, de renascimento das tribos, dos ajuntamentos por gostos, como tem dito Michel Maffesoli. Que lugar e papel as igrejas ainda podem desempenhar para inúmeras pessoas que não escutam mais o que ela diz (ou escutam e detestam) e não querem saber dela, pois a consideram uma voz tacanha, ultrapassada, anacrônica – isso quando não intolerante, mesquinha, pretensiosa à verdade universal? Quem tem sido e será igreja especialmente para os “sem igreja”, “sem religião”, “sem instituição”, para os desencantados com os modelos religiosos e institucionais vigentes; que Igreja existirá para quem está sedento não de ser convencido, por vias lógicas e argumentativas, de que a fé faz sentido, mas de relacionamentos que indiquem como e onde podem encontrar sentido de vida, experiência, amor, amizade e comunidade; o que ela tem a propor para pessoas que não dão a mínima para quantidade, pirotecnia espiritual e entretenimento, e, portanto, jamais entrariam em muitos dos templos cristãos existentes, mas ainda assim parecem encantadas pela mensagem de Jesus e dos evangelhos? Será que a mesma Igreja, que sabe muito bem como | Teologia Contemporânea | FTSA120 ser Igreja para os “convertidos”, poderá ser igreja para os “peregrinos” (usando aqui as terminologias de Danièle Hervieu-Léger), os andarilhos, que não se encaixam em lugar ou sistema tradicional algum, não se veem contemplados pelos invólucros de Deus existentes? Pensamos “nesses jeitos particulares de ser gente” hoje (que é como Rubem Alves defi niu cultura certa vez), porque temos uma ligeira suspeita de que não tem tanta gente nas igrejas pensando e agindo ao encontro dessas pessoas. Se aqui estamos pensando em uma fatia de necessidades dentro de uma fatia de cultura, pode-se dizer que a missão aqui implicada se quer integral, mas não oniabrangente; isto porque fazer missão holisticamente é também admitir fazê-la parcialmente (ninguém pensa ou cumpre a missão toda sozinho). Por isso, investiremos menos tempo em diagnósticos ou críticas neste último tópico de nossa conversa, e mais em proposição, ou melhor, em imaginação: que Igreja imaginamos que precisa existir em meio a essa fatia de cultura contemporânea? E ao dizer “imaginamos” não signifi ca inventamos do nada, mas imaginamos biblicamente. Para isso, queremos explorar uma das consequências da aplicação da kenosis de Paulo (cf. Fp 2.5-11) e do pensamento fraco de Gianni Vattimo à Igreja cristã, presente e atuante especialmente em culturas líquido-modernas (BAUMAN, 2013) ou pós-modernas: a de levar a sério e a assumir sua condição frágil e irrelevante no mundo. Glossário Kenosis: Palavra grega que designa o esvaziamento do poder ou da vontade de alguém em favor da de outrem. O uso desta palavra geralmente vem atrelado ao texto da carta de Paulo aos Filipenses, no capítulo 2, quando o apóstolo fala do movimento descendente do Cristo que, abandonando sua glória, esvaziou-se do poder de sua divindade, e humilhou-se, assumindo a forma humana. Na fi losofi a de Vattimo, kenosis é utilizada para se referir à humilhação, encarnação e humanização de Deus, ponto fundamental em 121| Teologia Contemporânea | FTSA | sua teoria da secularização, que para ele brota exatamente do esvaziamento do falar de Deus a partir da metafísica. A partir de então, o chão da história em que Deus se encarnou torna-se o referente para se falar de Deus. Pensamento fraco: Nos escritos de Vattimo (2004, p. 30), pensamento fraco designa “o reconhecimento nietzschiano de que não podemos evitar que se fale em termos metafóricos, isto é, em termos que não são objetivos nem descritivos, que não espelham o estado de coisas”. Na maioria dos livros e conferências sobre Igreja, a ideia de relevância está presente como sendo um alvo imprescindível para a Igreja no mundo. Para muitos, Igreja boa é Igreja relevante; igreja boa é Igreja forte. A questão é: “o que é ser relevante”? E mais que isso: o que a Igreja precisa “fazer” para ser relevante? Se nossa defi nição de relevância está muito condicionada ou à visão de “sucesso” e “pujança” de nossa sociedade, qual seria então uma perspectiva do Evangelho sobre isso? E de que modo essa perspectiva aparentemente estranha pode servir como norte para uma Igreja que queira ser, de fato, “evangélica” e “contemporânea” – de acordo com o sentido que designamos na unidade I –, embora nem sempre “relevante” ou “de sucesso” dentro de tal ou qual perspectiva? Sabemos que a Igreja, diante dos dilemas culturais, vive numa tensão dinâmica (às vezes confl itante, às vezes amigável) entre ser uma expressão desta e (relevante) para esta época, e sua razão de ser, que é encarnar diante do mundo a boa nova do reino revelada na pessoa de Jesus. Ou seja, o que move a Igreja, primordialmente, não são os ditames do que impera na sociedade em que ela coexiste, mas o exemplo de seu Senhor – cuja existência não foi apenas relevante, mas revolucionária, em conformidade com o querer do Pai e não de acordo com os modos e moldes deste mundo. E o exemplo do Cristo, suas prioridades, sua missão se desenham desde seus primeiros passos na vida e ministério. | Teologia Contemporânea | FTSA122 A narrativa de Lucas no capítulo 4, Jesus não inicia seu ministérioem ação, mas em silêncio, oração e na total dependência do Espírito no deserto. É um excelente exemplo do que queremos dizer aqui. Na tentação, ele rejeita o caminho do poder e abraça a partir dali uma vocação despossuída de pretensões grandiosas neste mundo e desejosa apenas de fazer a vontade do Pai de reconciliação de cada ser humano consigo mesmo, com seu próximo e com Deus. O caráter dessa vocação e mensagem se confi rma no momento seguinte da narrativa, quando Jesus se dirige à sinagoga de Cafarnaum e arruma uma grande confusão com o pessoal do templo, ao evocar sobre si a palavra do profeta Isaías. Naquele momento, fi ca claro que ele encarna a fi gura indigesta do profeta (o profeta sem honra), que não tem amor ao próprio pescoço, não tem “rabo preso” com ninguém e que estabelece uma relação crítica com o poder e suas “estruturas”. Quase todo/a líder ou ministro/a cristã/o em nossos dias, naturalmente, imagina poder iniciar seu ministério bem, realizando boas e grandes coisas para se estabelecer, sendo notado e respeitado a fi m de conquistar seu espaço. O mestre, porém, tem um início subversivo até nisso, pois esse primeiro ato ministerial, segundo esse relato, foi um fracasso total: todos na sinagoga fi caram enraivecidos com seu discurso, o expulsaram da cidade e tentaram jogá-lo do precipício, o que só não aconteceu porque ainda não era o momento. Mas era o indício de um caminho, um caminho de cruz. O que a Igreja contemporânea – aquela que leva a sério sua vocação na mesma medida em que tenta ouvir atentamente às questões plantadas em seu tempo – pode aprender com isso? Dentre tantas lições que daqui poderíamos extrair, diríamos que a Igreja precisa aprender com Jesus a não temer a rejeição, o escárnio e o insucesso (aos olhos do “mercado”) no instante em que ela decide viver com integridade sua vocação para ser um frágil instrumento da missão do Reino neste mundo. Henri Nouwen (2002, p. 21) vai além, e afi rma algo arrojado em relação aos líderes cristãos (que aqui reaplicamos à igreja): “O líder cristão do futuro 123| Teologia Contemporânea | FTSA | será aquele que ousa afi rmar sua irrelevância no mundo contemporâneo como uma vocação divina. Ela permite que ele esteja em profunda solidariedade com a angústia atrás de todo aquele esplendor do sucesso. E leve a luz de Jesus para brilhar ali”. Por isso, momentos atrás utilizamos os termos “frágil e irrelevante,” referindo-nos à Igreja, não porque ela abraça o espírito de vítima ou de derrotada, tampouco porque não faça e não vá fazer diferença, mas porque é irreverente aos caminhos de sucesso mundanos, e porque encarna o espírito de sua fragilidade humana na dependência do Espírito, como Jesus no deserto, e admite não precisar nem desejar viver sob a égide e em busca de outro poder que não esse; e mais, assume que todo exercício legítimo de poder (passa pela fragilização de quem o exerce, no momento em que se coloca tanto na dependência do mesmo Espírito no serviço, como na mútua e fraterna dependência da própria comunidade. Em suma: olhar para Jesus torna mais claro o tipo de opção que a Igreja de Cristo precisa fazer ao lidar com poder, cultura e instituições neste mundo: qual seja, não a de rejeitá-los como quem os demoniza, mas de abandonar o modo como se valoriza poder e instituição por aí, tantas vezes colocando- os acima das pessoas às quais deveríamos amar e servir. Instituições são instrumentos úteis, não objetos de amor, cultivo ou veneração! Não há um mal inerente às instituições em si, mas no que fazemos delas. Instituições existem para servir as pessoas; tornam- se um problema quando passam a existir para servir a si mesmas, esquecendo-se das pessoas. Então o processo passa ser inverso: ao invés de pormenorizar a instituição em si e amar as pessoas, amamos instituições e pormenorizamos pessoas e suas necessidades. Em suma: quando a comunidade é organismo vivo e pulsante, instituição não é razão de ser, mas instrumento; mas tem vezes, muitas vezes, em que a organização mata, aos poucos, o organismo. Logo, o que existe e o que sobra é apenas instituição: inoperante, incapaz de transformar, sem vida. Mas o organismo normalmente renasce, fora dali, e continua espalhando vida enquanto o valor maior for a vida, e não as coisas; as | Teologia Contemporânea | FTSA124 pessoas, e não os objetos e bens culturais, materiais e de consumo que tanto valorizamos. Não nos parece biblicamente plausível dizer que a Igreja de Cristo se limita a uma “comunidade local”, que atenda às necessidades específi cas de pessoas – pensando, por exemplo, naquelas que mencionamos no começo deste tópico. Concordamos que é preciso comunidade. Mas talvez o local, para muitos, seja algo muito limitado, pois dá a ideia de que as pessoas é que têm de se descolar até lá. Uma Igreja missional, porém, vai até as pessoas, encontra pessoas, reúne pessoas onde quer que estejam, toca e transforma a vida de pessoas, pois, no fi m das contas, ser Igreja é um modo alternativo e radical de ser gente, como salientamos na refl exão proposta na introdução desta unidade. Logo, o ser precede o ir: isto é, não vamos à Igreja, mas somos e nos fazemos Igreja onde quer que estejamos, e onde quer que uma necessidade humana se apresente. Mas essa Igreja (essa que aqui imaginamos), por assim dizer, é (ou deveria ser) uma metáfora viva do amor de Deus ao mundo. Como metáfora, ela jamais deveria pretender falar de Deus em termos absolutos ou compreensivos, mas apenas por meio de aproximações e possibilidades; como metáfora, seu chamado é para anunciar as boas novas do reino ao mundo, podendo ser ouvida e aceita não pelo caminho do poder (físico ou simbólico), mas do esvaziamento do poder e da vontade, pela humildade e integridade (isto é, através do exemplo de vida e humanidade, tal como vimos e aprendemos em Jesus Cristo). É uma Igreja que atrai mais pela vivência muda e marginal e menos pelas palavras mágicas e de poder ditas diante dos holofotes e das mídias. Dessa forma, a vocação primária da Igreja faz com que ela não esteja neste mundo para estabelecer coisas – como que monumentos só dela, porém supostamente erigidos “para a glória de Deus” (resta saber qual deus) –, mas para peregrinar na liberdade do Espírito, seguindo seus rastros e obedecendo unicamente a um Senhor. Que outras facetas teria essa Igreja, frágil e irrelevante, que o convidamos 125| Teologia Contemporânea | FTSA | aqui a imaginar? Aqui vão algumas, como um resumo estendido que foi dito até aqui: • É uma Igreja voltada para pessoas, e não negócios, programas, agendas, questões. • É uma Igreja contracultural, no sentido de ser irreverente aos meandros de sucesso e relevância que respondem mais aos apelos do status quo, que à sua vocação radicada no evangelho do nosso Senhor. • É a Igreja da dispersão, dos peregrinos, e não somente dos e para os convertidos; uma igreja que se reúne senão para se fortalecer na e para a dispersão. • É uma Igreja que não quer ter a última palavra sobre nada, mas se coloca como uma parceira possível na busca por respostas aos problemas e às perguntas diversas da humanidade, como alguém que sonha, imagina e anseia ao lado das pessoas, e não acima delas. • É uma Igreja que revê sua teologia do sofrimento e abraça o trágico não apenas como posição eventual, mas como atitude de fé, de empatia para com a vida, de resistência às forças de morte, sem renegá-las ou sublimá-las em si mesma; afi nal, onde houver trigo sempre haverá joio. Adotar o trágico signifi ca afi rmar a vida com tudo o que ela implica, seus sabores, dissabores, êxitos e fracassos a fi m de que mais humanos nos tornemos, como humano foi e é o Senhor Jesus. Só pode abraçar e acolher aquele que padece quem não tem pavor do padecer. A dor e a cura, nesse sentido, não são inimigas, mas parceiras de jornada. • É uma Igreja que não mete sua cumbuca em assuntos de Estado a não ser como cidadã,como lutadora pelos direitos, sobretudo, dos menos assistidos e dos oprimidos na esfera do político: os pobres, os negros, as mulheres, os homossexuais, os indígenas e assim por diante. | Teologia Contemporânea | FTSA126 • É uma Igreja que fala em nome de Jesus, mas que não ousa falar por ele; prefere que as pessoas enxerguem a Jesus mais no espelho de suas práticas, e menos no poder persuasivo das palavras, a exemplo de Paulo, que disse: “Minha mensagem e minha pregação não consistiram de palavras persuasivas de sabedoria, mas consistiram de demonstração do poder do Espírito, para que a fé que vocês têm não se baseasse na sabedoria humana, mas no poder de Deus” (1Co 2.4-5). • Por fi m, mas não fi nalmente, é uma Igreja que retoma sua vocação protestante, e assim não teme relativizar estruturas, poder e hierarquia por um único absoluto: a Mensagem. Quanto mais fi el somos ao evangelho e à verdade revelada na pessoa de Jesus, mais procuraremos resguardá-lo do aprisionamento da linguagem. Há somente um evangelho! E este não é seu, nem da Igreja, nem de Paulo, Barnabé ou Pedro: mas de Jesus. Conclusão Quais são as (possíveis) consequências diretas disso sobre a missão dessa igreja aqui imaginada? Gostaríamos de nomear (e na verdade reforçar) principalmente um: a importância e o desafi o de assumirmos e lidarmos com nossas fraquezas enquanto caminhamos pela vida em missão, especialmente hoje. David Bosch (1979, p. 76) disse: “A verdadeira missão é a mais fraca e menos impressionante atividade humana que se pode imaginar, a própria antítese de uma teologia da glória”. Ora, quando olhamos para o caminho (missionário) de Jesus, a imagem não é de triunfo, glória ou conquista, mas de submissão, fragilidade e sofrimento. Com isso não queremos dizer que, em Jesus, Deus foi derrotado, e sim que nele vemos o sentido de que perder nem sempre é signo de derrota; pode ser caminho para uma vitória não triunfal, mas signifi cativa. Assim é a relação entre a cruz e a ressurreição. A mensagem da cruz carrega o gene da morte, que gera vida, como no paradoxo do Cristo: tentar salvar a vida é, na verdade, 127| Teologia Contemporânea | FTSA | perdê-la; já perder a vida, pela causa certa, é achá-la (cf. Mt 17.25). Jesus também falou em Mateus sobre negar a si mesmo: “Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome sua cruz e siga-me”. O paradoxo, porém, é que negar-se é uma forma de declarar a morte de algo dentro de si (o que Paulo chama de “velho homem”), a fi m de fazer brotar e fl orescer da própria vida um novo ser humano. Não, Deus não é sádico; não quer que a gente morra apenas pelo prazer mórbido de nos ver morrendo; não nos criou para rejeitar a vida, mas para afi rmá-la. No entanto, segundo Jesus, negando-se a si mesmo, desfazendo-se de todo orgulho de ser, abraçando a própria fragilidade, reconhecendo-se como ser codependente, é que podemos afi rmar a vida e a liberdade humanas. Jesus caminhou à margem da religião e da cultura dominantes; abraçou não apenas as vulnerabilidades humanas como escolheu ser humilde entre os humildes e desgraçados; não primava por demonstrações sobrenaturais de poder, pelo contrário, em muitos milagres que realizou pedia total sigilo daquele(a) que o recebeu; não partiu para o caminho da apologética ou defesa da fé, cercando-se de argumentos fortes para “defender” a perspectiva do Reino de Deus, de modo que, em Jesus, não se faz ninguém se achegar ao Reino pelo poder do argumento, mas pelo caminho da fragilidade, da infantilidade espiritual, do diálogo, do arrependimento, do perdão e da graça. Como lembra José Comblin (1983, p. 58), “os homens são vulneráveis. A possibilidade de mudança radica justamente nessa vulnerabilidade”. Além disso, Jesus não se aliou às estruturas e poderes de seu tempo, ao mesmo tempo em que rejeitou o caminho da usurpação de ser “igual a Deus” (cf. Fp 2.6); apresentou a boa nova do reino em obediência à sua missão, sem se preocupar em agradar a ninguém ou mesmo com o possível insucesso, rejeição ou má reputação. Jesus foi um profeta, e profeta que é profeta não esconde sua fragilidade nem teme perder a própria cabeça. Por essa razão é que as perspectivas de que a missão não tem nada de impressionante, de que é antítese de uma teologia da glória (Bosch), e da fraqueza como condição prévia de uma missão autêntica (Comblin), fazem jus à visão bíblica e primitiva de missão. Isto | Teologia Contemporânea | FTSA128 porque, conforme analisa Comblin (1983, p. 60), a tentação pela qual passa o cristão e a cristã que desejam dar testemunho de sua fé hoje, é parecida com aquela enfrentada por Jesus: “a tentação de messianismo, a tentação da força, do poder, do dinheiro e da cultura”. Como ainda hoje podemos resistir a essas tentações? Pensando naquelas pessoas e naqueles perfi s um tanto genéricos do começo, naquela fatia de cultura inicialmente pontuada, e nos direcionando não apenas, mas principalmente, às gerações mais jovens, queremos terminar levantando algumas pistas de como ser essa Igreja “frágil e irrelevante” ao modo de Jesus – imaginando que ela pode ser sinal da esperança viva do Evangelho para essa fatia de cultura, e quem sabe para outras também: (1) Ofereçam seus dons e talentos ao mundo e à cultura a que pertencem, e não somente à subcultura evangélica ou ao “mundinho da Igreja” e dos crentes; ninguém verá a luz que brilha em nós se essa luz não brilhar em tantos ambientes quantos for possível – chega dessa besteira de que a gente não é do mundo! Como bem expressou Pierre Teilhard de Chardin há quase cem anos: Repitamo-lo: em virtude da criação e, mais ainda, da Encarnação, nada é profano, aqui embaixo, para quem sabe ver. Pelo contrário, tudo é sagrado para quem distingue, em cada criatura, a parcela de ser eleito, submissa à atração do Cristo em via de consumação. Reconheçam, com a ajuda de Deus, a conexão, mesmo física e natural, que liga o trabalho de vocês à edifi cação do reino celeste; vejam o próprio céu sorrir para vocês e atraí-los através das obras que vocês realizam; e vocês só terão, ao deixar a Igreja pela cidade barulhenta, o sentimento de continuar a imergir-se em Deus”. (De Chardin, 2014, p. 33, grifos nossos) (2) Usem a criatividade que Deus deu para cada um de vocês, de nós, e a liberdade no Espírito para arriscar novos passos, para ser Igreja onde e para quem ninguém quer ser; não precisa necessariamente fundar novas 129| Teologia Contemporânea | FTSA | congregações, mas inventar novos modos de ser Igreja, bastando, para começo de tudo, estar disponível às pessoas e atento/a ao que o Espírito sopra. (3) Estejam abertos/as a “novos diálogos”, novas possibilidades de interface entre a fé que há em vocês, e sobre a qual são chamados a dar razão, e as outras formas de crença e cosmovisões, sejam elas religiosas ou não, expressando convicções com fi rmeza e ao mesmo tempo generosidade, e, de preferência, renunciando à tentação de ter “a última palavra”, aquela que deve convencer e prevalecer. (4) Envolvam-se em relacionamentos de vida, companheirismo e amizade, onde há fé e há não fé, onde os diferentes gêneros, as diferentes posições políticas, opções sexuais e ideológicas, as diferentes concepções éticas, possam conviver em paz e, sobretudo, com respeito mútuo mesmo em meio a diferenças aparentemente inconciliáveis; lembrando que o maior dom que temos a oferecer ao mundo não são nossas palavras, nossa inteligência, nossos títulos, ou nosso trabalho; o maior dom somos nós mesmos. E Jesus disse que não havia maior dom, ou melhor, maior amor que esse: o de dar a vida por seus amigos. 5) Por fi m, tenham a “coragem de ser” (Tillich): de ser quem são, com o muito ou o pouco que lhes foi dado, de ser humanos, de ser gente: que assume suas fragilidades, que reconhece suas dúvidas, que divide suas dores com o mundo. Muitos desses nossos amigos/as aí fora não estão tão interessados em campeões(no discurso, nas ideias, na espiritualidade), em religiosos de espírito cruzado, mas em pessoas “demasiadamente humanas” (Nietzsche) assim como elas. É um refrigério saber que o outro também dores de parto semelhantes às minhas. O que não pode ser assumido também não pode ser redimido, lembrando aqui do que bem disse Segundo Galilea. Terminamos com uma frase de David Bosch (1979, p. 77), daquelas que precisamos lembrar não apenas na mente, mas gravar com lança pontiaguda no coração: “A Igreja não é composta de gigantes; apenas | Teologia Contemporânea | FTSA130 seres humanos feridos podem guiar outros até a cruz”. Que Ele nos ajude nessa tarefa! Referências bibliográfi cas BAUMAN, Zygmunt. A cultura no mundo líquido moderno. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. BOSCH, David. A spirituality of the road. Scottdale, Pennsylvania: Herald Press, 1979. BRUNNER, Emil. Doutrina Cristã de Deus. 2ª Ed. São Paulo: Fonte Editorial, 2010. Vol.1. ________. Dogmática: a doutrina cristã da criação e da redenção. São Paulo: Fonte Editorial, 2020. V.2. COMBLIN, José. Teologia da missão. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1983. DE CHARDIN, Pierre Teilhard. O meio divino. Ensaio de vida interior. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. HERVIÈU-LÉGER, Daniéle. O peregrino e o convertido. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. GONZÁLEZ, Justo L. Desafi os do Século XXI para o pensamento cristão: esboços teológicos. São Paulo: Hagnos, 2014. ________. Uma breve história das doutrinas cristãs. São Paulo: Hagnos, 2015. GRENZ, Stanley J. Pós-modernismo: um guia para entender a fi losofi a do nosso tempo. São Paulo: Vida Nova, 2008. HALÍK, Tomáš. Toque as feridas: sobre sofrimento, confi ança e a arte de transformação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016. 131| Teologia Contemporânea | FTSA | HENRY. Michel. Eu sou a verdade. Por uma fi losofi a do cristianismo. São Paulo: É Realizações, 2015. MAFFESOLI, Michel. O tempo retorna: formas elementares da pós- modernidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012. MERTON, Thomas. Novas sementes de contemplação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017. NOUWEN, Henri. O perfi l do líder cristão no século XXI. Belo Horizonte, MG: Atos, 2002. ROHR, Richard. O Cristo Universal: Como uma realidade esquecida pode mudar tudo o que vemos, esperamos e acreditamos. São Paulo, nVersos, 2019. SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2008. SKA, Jean Louis. A Palavra de Deus nas narrativas dos homens. São Paulo: Edições Loyola, 2005. STOTT, John. Ouça o Espírito, ouça o mundo. 2. ed. São Paulo: ABU Editora, 2005. TAYLOR, Charles. Uma era secular. São Leopoldo, RS: Unisinos, 2010. VATTIMO, Gianni. Depois da cristandade. São Paulo: Record, 2004. WOLFF, Elias. Divisões na Igreja: desafi os para o ecumenismo hoje. In: Theol. Xave., vol. 65, n. 180. Bogotá: 2015. ________. Espiritualidade do diálogo inter-religioso: Contribuições na perspectiva cristã. São Paulo: Paulinas, 2016. Rua: Martinho Lutero, 277 - Gleba Palhano - Londrina - PR 86055-670 Tel.: (43) 3371.0200encontrar outras pessoas, anunciar a elas a Mensagem, pois “foi para isso que eu vim”. O espírito de Jesus não foi abalado e nem movido pelo senso de urgência dos discípulos, uma vez que ele tinha um senso de propósito claro em seu coração, uma missão a realizar para além dali. E esse senso nasceu não do barulho, mas do silêncio; não dos impulsos da mente, mas da solidão do coração; não de um olhar circunstancial e enviesado, mas de um “ver-além”; não de uma vontade humana, mas da divina. Retornaremos ao tema da contemplação em mais conversas com Merton no último tópico desta unidade. Agora é preciso falar do segundo signifi cado de Agamben para contemporâneo: “Contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro” (Agamben, 2009, p. 62). Para este autor, contemporânea é a pessoa que reconhece essa obscuridade e, assim, escreve “mergulhando a pena nas trevas do presente”. Mas o que signifi ca esse mergulho nas trevas para “ver” a obscuridade do presente? Agamben recorre à neurofi siologia da visão em busca de uma resposta. Segundo ele, “os neurofi siologistas da visão nos dizem que a ausência de luz desinibe uma série de células periféricas da retina, ditas precisamente off-cells, que entram em atividade e produzem aquela espécie particular de visão que chamamos de escuro” (Agamben, 2009, p. 63). Ou seja, “ver” as trevas ou a escuridão não é, cientifi camente falando, propriamente uma contradição de termos. Se entendermos o escuro meramente como um estado privativo, como ausência de luz e, por isso, também de visão, perdemos o sentido aqui de que a atividade dessas off-cells, “um produto de nossa retina”, conduzem não a uma cegueira momentânea, mas a um modo diferente de ver. | Teologia Contemporânea | FTSA16 Voltando à contemporaneidade, Agamben então diz que o que faz de alguém contemporâneo é justamente a ativação de uma “habilidade particular”, que possibilita a esta pessoa “neutralizar as luzes que provêm da época para descobrir as suas trevas, o seu escuro especial, que não é, no entanto, separável daquelas luzes” (Agamben, 2009, p. 63). Em outras palavras, luz e trevas são ambas, ao mesmo tempo, modalidades de ser e de visão que coexistem não apenas no interior de uma determinada época, mas também – para avançar na argumentação de Agamben – no interior de cada pessoa. E essa, ao que nos parece, é a parte mais interessante do insight desse autor, a parte que nos diz respeito – já que exploraremos, nesta primeira parte da disciplina, uma visão sobre a pessoa na contemporaneidade. Ao contemplar a obscuridade de seu tempo, tem-se na mira não apenas as trevas do mundo propriamente ditas, mas também as nossas. Nas palavras de Agamben, O contemporâneo é aquele que percebe o escuro do seu tempo como algo que lhe concerne e não cessa de interpelá-lo, algo que, mais do que toda luz, dirige-se direta e singularmente a ele. Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provém de seu tempo. (Agamben, 2009, p. 64) A poesia de Gabriel O Pensador, “Palavras repetidas” (2005), ilustra essa questão da escuridão do mundo como algo que nos concerne: A Terra tá soterrada de violência, De guerra, de sofrimento, de desespero A gente tá vendo tudo, tá vendo a gente Tá vendo, no nosso espelho, na nossa frente Tá vendo, na nossa frente, aberração Tá vendo, tá sendo visto, querendo ou não Tá vendo, no fim do túnel, escuridão Tá vendo no fim do túnel escuridão. (Grifos nossos) 17| Teologia Contemporânea | FTSA | A ênfase nas expressões “tá vendo tudo, tá vendo a gente” e “no nosso espelho” é para ressaltar a consciência do poeta de que não apenas as luzes, mas as trevas de nossa época são traços que nos concernem, independente se temos participação direta naquilo ou não. A violência com a qual ele diz que a terra está “soterrada”, por exemplo, e que é parte integrante do cotidiano de brasileiros/as, pode ser algo que não emerge propriamente nos atos de alguém (um/a pacifista, por exemplo), mas que seguramente está soterrado em seu interior, como uma potência. Que esta pessoa, por sua vez, decidiu canalizar de outras formas, não violentas, sem poder, no entanto, afirmar – sem o peso de uma hipocrisia velada – que esta não lhe concerne de modo algum. Essa hipocrisia, contudo, está estampada na face desse mundo polarizado, e que assim se fez – dentre inúmeras razões, que não cabe aqui explorar – precisamente por nossa incapacidade de nos enxergar em nosso próximo, especialmente em suas trevas. É que em raríssimos momentos – exceto, talvez, quando um grande sofrimento bate à porta – as pessoas param para ser testemunhas de sua própria escuridão. Não deve ser de admirar seu estranhamento em relação à escuridão das outras pessoas. Mais duro ainda é quando nas sombras do outro – tais como o ódio incontido, o orgulho ferido, a chaga aberta, o desejo proibido, a inveja disfarçada, a angústia, o medo, a opressão, a fragilidade, o narcisismo, e assim por diante –, vemos as nossas sendo inexoravelmente projetadas. Por isso é mais difícil lidar com a própria escuridão. Sobretudo porque dela não há como se livrar; esconder talvez, mas não arrancar, apagar, não a sentir penetrando-nos a alma. Mesmo quando conscientemente a gente anda pelo “vale da sombra da morte”, no fundo a gente anda sozinho. Pessoas têm pavor da escuridão. Ainda bem que Deus não tem. Por isso, no clássico Noite escura, de João da Cruz (1542-1591), é possível encontrar uma percepção parecida com a proposta de Agamben, com algumas diferenças (vejamos a seguir). “Noite escura” é o nome que João da Cruz dá ao estado da alma diante da infusão de luz divina. Para explicar essa ideia, ele compara-a à situação de alguém | Teologia Contemporânea | FTSA18 olhando diretamente para o sol do meio-dia. A sensação é de que, quanto mais nosso olhar é exposto aquela luz, menos nós vemos. E esse é um estado desejável para a pessoa contemplativa. Ela abandona o sentido normal de conhecimento e de visão, quando se trata de Deus. Em termos propostos por Thomas Merton, o “ver” da contemplação é, assim, um ver sem ver, um reconhecimento de que nosso olhar “natural” é por demais afetado por outras formas de iluminação – veja o contraste aqui com o iluminismo do século XVIII, e sua obsessão pelo conhecimento apenas pela via da razão, ou mesmo a questão do excesso de luminosidade de uma época, tal como expresso por Agamben. Portanto, a única forma de conhecer a Deus é sendo purifi cado desse desejo e conduzido a uma forma purifi cada de união. Nas palavras de João da Cruz: Podemos então declarar como segue, em que a alma diz: em pobreza, desamparo e desarrimo de todas as minhas apreensões, isto é, em obscuridade do meu entendimento, angústia de minha vontade, e em afl ição e agonia quanto à minha memória, permanecendo na obscuridade da pura fé, — que é na verdade noite escura para as mesmas potências naturais — só com a vontade tocada de dor e afl ições, cheia de ânsias amorosas por Deus, saí de mim mesma. Saí, quero dizer, do meu baixo modo de entender, de minha fraca maneira de amar, e de meu pobre e escasso modo de gozar de Deus, sem que a sensualidade nem o demônio me tenham podido estorvar. (Cruz, 2014, p. 81) Dentre os benefícios dessa “noite escura da alma”, que, como se pode ver pela passagem acima, é uma noite que envolve dor, afl ições e agonia, podemos destacar duas principais: 1. “O principal e primeiro proveito causado na alma por esta seca e escura noite de contemplação é o conhecimento de si mesmo e de sua miséria” (Cruz, 2014, p. 65). No tempo de prosperidade não chegamos 19| Teologia Contemporânea | FTSA | a ver nossa própria miséria e baixeza, diz João. Ou seja, quando tudo vai bem e somos sucesso em tudo menos chance temos de saber quem somos de verdade – e assim nos vemos incapazes também de enxergar a escuridão de nosso tempo e nos identifi car com ela. 2.Na noite escura “Deus iluminará a alma, dando-lhe a conhecer não somente a própria miséria e vileza, mas também sua grandeza e excelência” (Cruz, 2014, p. 67). Ou seja, do mesmo processo em que vamos conhecendo melhor a nós mesmos por meio da queda das máscaras e das escamas que nos mantinham enredados em nossa ilusão, também vamos conhecendo a Deus. Por isso, diz ele, “é necessário à alma permanecer neste sepulcro de escura morte, para chegar à ressurreição espiritual que espera” (Cruz, 2014, p. 95). No caminhar às escuras da noite escura, a alma está segura. A refl exão aqui é que nossa vida, a maior parte do tempo, é sustentada em falsas seguranças, a maioria delas ligadas às nossas conquistas no mundo material. João da Cruz demonstra que é nessas falsas seguranças (e nossos desejos, anseios e raciocínios em torno delas) que nós nos perdemos, cometemos desatinos, vendemos a alma ao Diabo. Na noite escura, porém, nossas faculdades ou capacidades, e a segurança nelas fundadas, são destronadas. Paradoxalmente, João diz que é nesse momento que a alma não mais caminha de modo errante, mas segura. Esse obscurecimento, como salienta Merton (2018a, p. 68), “é, portanto, uma iluminação. Deus obscurece a mente apenas a fi m de dar maior e mais perfeita luz”. Eis-nos, agora sim, diante do paradoxo da iluminação, em que a luz só pode ser infundida na medida em que deliberadamente escolhemos permanecer na escuridão por certo tempo, admitindo nossa cegueira total ou parcial sobre tais ou quais aspectos da realidade, sem estranhá-la ou dissipá-la com formas artifi ciais de iluminação. Esse é o paradoxo anunciado por Jesus aos fariseus que interrogavam ao cego de nascença, curado pelo nazareno, e acusavam a Jesus de ser pecador: “Eu vim a este mundo para julgar, para dar visão aos cegos e para fazer que os que veem se tornem cegos”. No que os fariseus o indagaram se ele os | Teologia Contemporânea | FTSA20 estava chamando de “cegos”, então Jesus respondeu: “Se vocês fossem cegos, não seriam culpados (...). Mas a culpa de vocês permanece pois afi rmam que podem ver” (Jo 9.39-41, grifos nossos). Ora, uma das premissas desse segundo signifi cado de contemporâneo está em poder “ver as trevas” de seu tempo e, contemplando-as, enxergar as suas próprias como em espelho. Entretanto, à luz da refl exão proposta por João da Cruz e pela tradição mística cristã, perguntamos: O que vemos ou percebemos, afi nal, de nosso tempo ou de nossa realidade? Uma porção ou uma fração? No máximo isso. E não é nossa suposta iluminação – em oposição às trevas do presente – que nos permite atingir tal ou qual nível percepção, mas uma modéstia competente, inerente à toda busca, curiosidade, investigação e contemplação. Assim, concordamos com Agamben que ser contemporâneo é uma questão de coragem, pois isto signifi ca não apenas “manter fi xo o olhar no escuro da época, mas também perceber nesse escuro uma luz que, dirigida para nós, distancia-se infi nitamente de nós. Ou ainda: ser pontual num compromisso ao qual se pode apenas faltar” (Agamben, 2009, p. 65). Assim chegamos ao terceiro signifi cado de “ser contemporâneo” no texto de Agamben, e este é o que mais se aproxima da teologia: O contemporâneo não é apenas aquele que, percebendo o escuro do presente, nele apreende a resoluta luz; é também aquele que, dividindo e interpolando o tempo, está à altura de transformá-lo e de colocá-lo em relação com outros tempos, de nele ler de modo inédito a história, de “citá-la” segundo uma necessidade que não provém de maneira nenhuma do seu arbítrio, mas de uma exigência à qual ele não pode responder. É como se aquela invisível luz, que é o escuro do presente, projetasse a sua sombra sobre o passado, e este, tocado por esse facho de sombra, adquirisse a capacidade de responder às trevas do agora. (Agamben, 2009, p. 72) 21| Teologia Contemporânea | FTSA | Digamos que esta é a conclusão de Agamben neste ensaio. Para entendê- la melhor, separemos os seus elementos. Por que falar em “escuro do presente”? Em parte, porque, como vimos, ser contemporâneo signifi ca manter seus olhos fi xos em seu próprio tempo a fi m de, anulando sua artifi cial luminosidade, enxergar suas trevas. Mas, ao mesmo tempo, pode-se perguntar: que tempo é esse que ousamos chamar de “nosso”? Para Agamben, trata-se do tempo presente. O problema é que “o presente não é outra coisa senão a parte de não-vivido em todo vivido” (Agamben, 2009, p. 70). O presente não cessa de desaparecer diante de nós como fumaça; quando nos damos conta de nossas experiências presentes, já se tornaram passado. Daí a ideia de um “não-vivido” ao qual, como contemporâneos, sempre tornamos nossa atenção. Perceba, então, como um elemento do tópico anterior, sobre a estreita relação entre o que costumeiramente chamamos de contemporâneo com uma dada compreensão histórica (linear, das eras), retorna agora com outra roupagem: isto é, segundo Agamben (2009, p. 71), de todo modo precisamos da história para ler a contemporaneidade, “colocando uma relação especial entre os tempos”, e suas diferentes “gerações”. Não se trata, por exemplo, de chamar Nietzsche (autor do século XIX) e você (uma pessoa vivendo no século XXI) de contemporâneos. E sim poder supor que Nietzsche, como qualquer outro pensador da história ou mesmo qualquer evento passado, possa adquirir a “capacidade de responder às trevas do agora” na medida em que você se põe a lê- lo de uma forma inédita ou inaudita. Isto é o que Agamben chama de “interpolação do tempo”, ou que poderíamos chamar de dança entre as épocas, que só um contemporâneo pode fazer sem a preocupação de parecer démodé. Para dar um exemplo, enquanto escrevemos estas linhas, John Mayer acaba de lançar seu oitavo álbum de estúdio chamado Sob Rock (2021). Como ele próprio admitiu em entrevista a Zane Lowe, trata-se de um álbum inspirado na música pop, ou soft-rock, dos anos 1980. Entretanto, engana-se quem pensa que o álbum foi produzido com a intenção de | Teologia Contemporânea | FTSA22 ser um mero retorno ao passado ou a um lugar conhecido. Como Mayer explica, na medida em que se escuta o álbum tem-se a sensação de que “poderia ter sido algo que já aconteceu” – uma espécie de deja vu musical ou existencial –, mas, quando se presta atenção, na verdade não se pode encontrar um similar em lugar algum. Como o músico completa: “A ideia de Sob Rock é a de implantar falsas memórias em seu cérebro (...). Mas, a questão é: você pode ter memórias de coisas que nunca aconteceram?” (Apple Music, 2021, tradução nossa). Parece-nos que o que Mayer se propôs a fazer nesta obra-prima é precisamente o que Agamben afi rma ser a arte do contemporâneo: a de transformar o escuro de seu presente através de uma “leitura inédita da história”, ou de uma releitura altamente criativa. Aqui também se insere a relação deste signifi cado com a teologia. Para Agamben (2009, p. 71), “é o contemporâneo que fraturou as vértebras de seu tempo”, e, desse modo, “faz dessa fratura o lugar de um compromisso e de um encontro entre os tempos e as gerações”. Tentando explicar o que Agamben quer dizer, seria como quebrar um osso do tempo presente e, nesse ponto de ruptura, fazer conexões com outros tempos, outras formas de pensar do passado. Nesse sentido, o apóstolo Paulo (segundo o próprio Agamben) foi exemplar, pois introduziu a noção de “tempo messiânico” (cronologicamente indeterminado) que se encontra em ponto de tensão com “o tempo que resta”, que, por sua vez, “é muito curto” (1Co 7.29). Com isso, promoveu não apenas uma interpolação entre tempos (toda a história se torna, para ele, uma prefi guração do tempo messiânico, inaugurado com a Ressurreição de Jesus Cristo), mas nos convidou a repensar nossa relação com o tempo. Como explica Júlio Zabatiero, a partir de então o tempo passa a ser visto não mais do modo linear, como uma “sucessão de épocas”, mas da perspectiva “de uma superposiçãode modos de viver: segundo a carne (a vida do tempo presente), segundo o Messias, ou segundo o Espírito (a vida do tempo futuro)”. O “tempo messiânico”, segundo Agamben (2017), seria o tempo que “pulsa dentro do tempo cronológico” (o tempo que resta), trabalhando-o ou moldando-o a partir de dentro a fi m de nos auxiliar 23| Teologia Contemporânea | FTSA | a “atingir a meta”, que seria a de nos libertar de nossa “representação ordinária do tempo”. Em diálogo com Agamben, Zabatiero explica que: As temporalidades em questão são as temporalidades expressas nos contrastantes estilos de vida não- messiânico e messiânico. O tempo presente, que é o tempo em que vivemos, é tempo que resta, ou seja, é tempo de tensão, de desafi o, de vocação – é neste tempo não-messiânico que somos chamados e empoderados (pelo Espírito) a viver o tempo messiânico. O tempo messiânico não é cronológico, ou seja, não é um tempo que está no futuro e virá substituir o tempo presente. É uma temporalidade imanente à atual e (única) temporalidade cronológica, que a subverte internamente, que, em certo sentido, de fato a perverte, posto que contra todas as possibilidades, neste tempo cronológico é possível viver como o Messias viveu. (Zabatiero, 2018, p. 43-44, grifos do autor) Em outras palavras, aprendemos com Paulo que vivemos uma vida na carne (temporalidade não-messiânica), mas, ao mesmo tempo, fomos libertos da escravidão em relação a este modo de vida, sendo chamados para uma vida no espírito (temporalidade messiânica). E que, para libertar- nos de nossa representação ordinária do tempo – ou pelo menos, livrar- nos de ser engolidos pelo deus chronos –, precisamos nos apropriar desse batismo pelo Espírito pelo qual “morremos e fomos sepultados com Cristo”, e, “assim como ele foi ressuscitado dos mortos pelo poder glorioso do Pai”, agora também possamos viver como o Messias viveu, em “novidade de vida” (cf. Rm 6.3-4). Fazendo, portanto, não apenas as mesmas obras que o Messias realizou, mas outras “até maiores”, como ele mesmo prometeu antes de retornar ao Pai (Jo 14.12). | Teologia Contemporânea | FTSA24 Não se trata mais, portanto, de viver na antiga tensão binária e eminentemente cronológica entre um já e um ainda-não – como postulou Oscar Cullmann no século passado –, mas em apropriar-se da noção neotestamentária de que o eschaton (fi m ou últimas coisas) do discípulo contemporâneo se realiza, pelo poder do Espírito, no eterno- agora, que é uma espécie de ainda-não-já. O discípulo contemporâneo pode fazer livre e diligentemente a interpolação criativa entre os tempos precisamente porque é movido pelo Eterno. Porém, que fi que bem claro: estamos pensando nesse “discípulo contemporâneo” a partir de um diálogo com a noção apresentada por Agamben, que interessa a nossos propósitos teológicos aqui – que fi carão, esperamos, mais claros no próximo tópico. E não para dizer que as outras pessoas, que pensam e fazem diferente, não sejam contemporâneas segundo outro modo ou outra concepção vigente. 1.3. Resistindo à tirania do contemporâneo Embora a última parte desta disciplina seja dedicada à igreja, é preciso falar dela já aqui, conectando o tópico anterior a esse – até porque, não é possível falar de Igreja sem falar de Pessoa, uma vez que não existem igrejas sem pessoas, ou mesmo Igreja fora da Pessoa de Cristo. No último tópico nossa conversa foi, sobretudo, com Giorgio Agamben, e neste avançaremos conversando mais com Thomas Merton. Mas, antes, gostaríamos de trazer aqui uma admoestação (se assim podemos dizer) de Agamben à Igreja em Paris certa feita em uma palestra. Para ele, a crise da Igreja tem raízes no abandono de sua “vocação messiânica”, qual seja, a de viver segundo a vontade (divina) que emerge da temporalidade messiânica (tempo-do-fi m) e não segundo as urgências e tentações, por assim dizer, da temporalidade cronológica (tempo-que-resta). Ao fi m da conferência, ele assim se expressa: A Igreja pode ser uma instituição viva apenas na medida em que mantém uma imediata relação com o seu fi m. E – um ponto do qual não deveríamos nos esquecer –, de acordo com a teologia Cristã, há apenas uma 25| Teologia Contemporânea | FTSA | instituição legal que não conhece nem interrupção, nem fi m: o inferno. O modelo da política contemporânea – que almeja fazer do mundo uma infi nita economia – é, assim, verdadeiramente infernal. E se a Igreja restringe sua relação original com a paroikia [ou peregrinação], ela não poderá nada senão perder a si mesma no tempo. (...) Será que a igreja fi nalmente compreenderá a ocasião histórica e recuperará sua vocação messiânica? Se não o fi zer, o risco é claro: ela será varrida pelo desastre que ameaça todos os governos e todas as instituições da terra. (Agamben, 2012, p. 41, trad. nossa) A vocação messiânica da Igreja não é defi nida pelo meio (o “tempo- que-resta” ou o próprio mundo), mas pelo fi m (o tempo escatológico ou messiânico). Não ser defi nida pelo meio não signifi ca, porém, dar de ombros para um envolvimento direto com o meio; signifi ca ler, interpretar e viver o meio a partir do fi m. E o fi m (Ômega) é Cristo, como também o princípio (Alfa). A Igreja, portanto, não pode demonizar ou desprezar o meio – como tantas vezes o fez na história, e ainda o faz, embora se utilizando estrategicamente do que serve a seus interesses –, porque, como bem observou Teilhard de Chardin (2014), ela tem consciência de que não há meio algum fora de Cristo, o que o transforma, na consciência de cada discípulo, em “meio divino”. A Igreja, assim, ama o meio sem a ele aderir, sem dele depender exclusivamente, nem nele fazer sua profi ssão de fé. Como bem explica e diferencia De Chardin: O pagão ama a Terra para usufruir dela e nela se confi nar. O cristão ama-a para torná-la pura e tirar dela a força para dela escapar. (...) O pagão pensa que o homem se diviniza, fechando-se em si mesmo; o gesto fi nal da evolução humana é, para cada um ou para todo o conjunto, o de se constituir em si mesmo. O cristão só vê a divinização na assimilação, por um Outro, de seu acabamento: o auge da vida, a seus olhos, é a morte na união. Para o pagão, a realidade universal só existe por | Teologia Contemporânea | FTSA26 projeção no plano do tangível: ela é imediata e múltipla. O cristão toma exatamente os mesmos elementos: mas ele os prolonga segundo o eixo comum que os religa a Deus; e, ao mesmo tempo, o universo se unifi ca para ele, sendo tudo atingível somente no Centro fi nal de sua consumação. (De Chardin, 2014, p. 91) Fica evidente, pela exposição acima, que não é mais um binarismo do tipo sagrado versus profano, matéria versus espírito, ou espiritual versus mundano que diferencia a presença do discípulo e do não-discípulo (“cristão” e “pagão”, em De Chardin) no meio, mas o modo como uns e outros se relacionam com e se apropriam do meio, pela adesão irrestrita ou por uma coincidência inconformada, como nomeamos aqui. Enquanto para o segundo tudo se “confi na”, se explica e se resume pelo e no meio, para o primeiro o meio é apenas um modo de encarnação de uma realidade muito maior e universal: a do Cristo. Assim, relaciona-se com o meio não apenas porque dele é parte, senão para se religar ao “Centro fi nal de sua consumação”, isto é, Cristo. Como admoestou Paulo, o apóstolo, aos Coríntios: “Portanto, não se orgulhem de seguir líderes humanos, pois tudo lhes pertence: Paulo, Apolo ou Pedro, o mundo, a vida e a morte, o presente e o futuro. Tudo é de vocês, e vocês são de Cristo, e Cristo é de Deus” (1Co 3.21-23, grifo nosso). Desse modo, podemos apresentar nossa própria defi nição de pessoa contemporânea, segundo a trilha até aqui percorrida – cientes, porém, de suas contingências próprias –, conforme o que segue: Contemporânea parece ser a pessoa ou a Igreja que está ocupada em ser o que é (em Cristo) e viver de acordo com a força de sua própria vocação, do modo mais autênticopossível, mais do que ansiosa por “ser contemporânea”, conforme os sentidos normalmente aceitos para a palavra. Para tanto, ela precisa desenvolver uma atenção e postura tais em sua própria época de tomar parte nos meandros do mundo sem deixar-se 27| Teologia Contemporânea | FTSA | prejudicar ou perder-se por seus feitiços. Como isso é possível? Isto é, como ser contemporâneo e, ao mesmo tempo, resistir às pressões ou tiranias do contemporâneo? Pode parecer que a resposta já está embutida na última pergunta – quer dizer, basta resistir à tirania do contemporâneo para ser, de fato, um contemporâneo –, mas não é tão simples assim. Pois a linha que separa uma presença efetiva de uma busca angustiada por relevância e aprovação do mundo é mais tênue do que parece. Por isso, convidamos Thomas Merton para esta última parte da conversa, pois nele vemos um exemplo prático de um contemporâneo – dentro de sua própria época e lugar, Estados Unidos da América, em meados do século XX – exercendo o direito de falar e de ser ouvido sem seguir aos imperativos aparentemente necessários à época para conquistar a audiência da pessoa moderna – conduta que ele mesmo critica. As ideias a serem discutidas a seguir foram desenvolvidas no livro A igreja e o mundo sem Deus (Merton, 2018b), especialmente nos três primeiros capítulos. Neles, primeiro, Merton discute a ideia de “mundo”. Nele, Merton basicamente segue a intuição, já presente em autores como De Chardin, de que o discípulo não deve renegar o mundo, mas aprender a como participar dele de maneira crítica, crística e criativa. O que quer que defi namos como “mundo”, deve passar longe da ideia de uma entidade separada da vida e do humano. É, como ele defendeu noutro lugar, “um complexo de responsabilidades e de opções feitas por amores, ódios, medos, alegrias, esperanças, inveja, crueldade, bondade, fé, confiança e de desconfiança de tudo” (Merton, 2019, p. 224). Em outras palavras, mundo não é o globo terrestre, mas é o amálgama dos seres vivos que habitam o globo, com suas luzes e suas trevas – pensando nesse caso mais no mundo dos humanos. E as trevas do mundo – e da contemporaneidade, lembrando aqui da ideia de Agamben de “ver as trevas” – não se encontram em sua superfície ou em sua materialidade, mas, segundo Merton (2018b, p. 16), “no pecado de vontades egoístas que rejeitaram o amor de Deus”, muitas vezes agindo em nome do próprio | Teologia Contemporânea | FTSA28 Deus. O mundo em trevas, completa Merton, “é o mundo sem amor, o mundo sem Cristo – um mundo de indivíduos fechados sobre si ou sobre os interesses comuns de um grupo social ou nacional”. O nó, que muitas vezes tentamos desatar de modo simplista, é que esse mesmo mundo “tenebroso” e “decaído” (expressões que Merton usa), também é parte da criação divina e objeto de seu amor, redenção e reconciliação. O mundo é tudo isso e, como lembra Merton (2018b, p. 18), “é também o Reino de Deus no qual Cristo já reina e no qual a história se dirige à sua conclusão fi nal”. Em linguagem agambeniana, é o lugar no qual se realiza o “tempo- que-resta” e onde emerge silenciosamente o “tempo messiânico”. Assim como não é possível pensar numa Igreja fora da pessoa, também não se pode pensar numa Igreja fora do mundo, já que tanto a Igreja quanto o mundo são instituições pessoais, por assim dizer. As mesmas pessoas que compõem e fazem pulsar a Igreja, também compõem e fazem pulsar o mundo. Os mesmos ódios, medos, esperanças, alegrias, tristezas, bondade e crueldade que fazem do mundo um mundo, também habitam no interior da Igreja de Cristo. O mesmo Cristo, universalmente presente nas entranhas do mundo, é o “Cabeça da Igreja” (1 Co 12.27), que é seu corpo. Que diferença há, portanto, entre mundo e Igreja? A consciência, no caso da Igreja, de sua existência somente em Cristo – o que seria do corpo sem a cabeça? –, e assunção de uma vocação, de uma tarefa, de uma missão reconciliadora no mundo, a partir de uma experiência profundamente revolucionária de vida que ela tem em e com o “Cristo Universal” (De Chardin, 2014; Rohr, 2019). Seu comprometimento primordial, portanto, não é com qualquer agenda oriunda do mundo e seus modos de operar, mas (para evocar de novo Agamben) com o seu “fi m”, com a sua “vocação messiânica”, com o reinado de Deus tal como inaugurado em Jesus Cristo. Partindo dessa premissa, Merton elege um exemplo do tempo em que ele escreve o mencionado opúsculo (meados da década de 1960), para fazer algumas considerações críticas ao que ele chamou de “escola do ser contemporâneo”. A crítica de Merton, diga-se de passagem, não se 29| Teologia Contemporânea | FTSA | dirige tanto aos motivos concretos que deram origem a essa escola – crise da religião tradicional e do teísmo –, mas aos métodos escolhidos para responder a esta suposta crise. Destina-se aos assim chamados teólogos da morte de Deus e adeptos de uma forma de cristianismo secular ou “sem religião”. Esse caminho, como descreve Merton (2018b, p. 24), “pode ser resumido no kenosismo absoluto religioso [completo esvaziamento da religião no mundo (acréscimo nosso)], um cristianismo esvaziado de tudo, mesmo do próprio Deus”. Tanto Deus, como a religião cristã e sua pregação, haviam se tornado (segundo esta visão) uma afronta à “maioridade” do mundo, agora entregue à sua própria sorte – ou melhor, guiada pela ideologia moderna, do progresso e da ciência. Não se torna, portanto, livre de qualquer profissão de fé, como comentaremos adiante. Saiba mais: O Teísmo e os “Teólogos da Morte de Deus” Em 8 de abril de 1966, a revista norte-americana Time, uma das mais conhecidas e lidas do mundo, trazia na matéria da capa a pergunta: “Deus morreu?” (Is God dead?). John T. Elson assinou o artigo da capa, que ele levou cerca de um ano para terminar, tempo que passou entrevistando líderes religiosos e teólogos do momento. O artigo sinalizava mudanças signifi cativas que vinham ocorrendo no Ocidente cristão (especialmente Europa e EUA), e revelou ao grande público um movimento teológico que fi cou conhecido por endossar a tese da secularização – que postulava, dentre outras coisas, que a humanidade havia atingido uma maioridade, e, portanto, não necessitava mais nem de Deus (que estaria morto) nem da religião nos moldes tradicionais –, por isso foi chamado, dentre outros nomes, de “teologia secular” e/ou “da morte de Deus”. Esses teólogos – dentre os quais fi guram nomes como Thomas J. Altizer e William Hamilton, além do britânico John A. T. Robinson –, inspirados pelas ideias de Dietrich Bonhoeffer (esboçadas em suas cartas do período da prisão em um campo de concentração | Teologia Contemporânea | FTSA30 nazista), defendiam uma teologia desintoxicada das imagens e ideias de Deus provenientes do teísmo e da prática cristã tradicional, que queria falar de Deus em outros termos, de uma maneira nova, menos transcendente e mais imanente, e que pudesse aproximar esse Deus propagado pelo “teísmo” – o Deus da providência, que de longe governa o mundo e dita como as coisas são e têm que ser aqui embaixo – das mentes e corações de homens e mulheres vivendo em uma situação secular. Não se tratava propriamente de mudar quem Deus é, mas de transfi gurar sua imagem de modo que fi zesse sentido a esse ser humano moderno e secular. O quanto dos intentos desses teólogos dos anos 1960 estava realmente em Bonhoeffer é, no mínimo, discutível. Em todo caso, a teologia da morte de Deus causou grande burburinho no meio teológico e algum impacto na cultura, bastante difícil de mensurar na verdade, mas até o fi nal dos anos 1960 já havia perdido muito de seu vigor original, graças ao surgimento de novos movimentos de espiritualidade ao estilo “nova era”, mostrando que Deus até podia estar morto para alguns acadêmicos, teólogos e fi lósofos, mas difi cilmente morreria na experiência religiosa de pessoas comuns. Tanto que, em 1969, a mesma Time, seguindoas tendências do momento (afi nal, o objetivo é vender revista tanto quanto, ou menos que, formar opinião), lançou um número cujo título de capa era “Is God coming back to life?” (Deus está voltando à vida?). O editor à época fez referência ao sucesso da capa de 1966 sobre a morte de Deus, mas que, naquele instante, ela se encontrava em declínio uma vez que seus ideólogos haviam caído em silêncio, enquanto ministros de todas as denominações embarcavam em novas e dinâmicas maneiras, trazendo o divino de volta à cena. Emplacar o secularismo nunca foi tarefa fácil, mesmo depois da “morte de Deus”. Ver mais em: MENEZES, Jonathan. Filosofi a da Religião. Londrina: FTSA Editora, 2016, pp. 157-169. 31| Teologia Contemporânea | FTSA | Quanto à Bonhoeffer, Merton faz a concessão de que suas declarações não devem ser extraídas do contexto em que foram escritas – a experiência de evolução de seu gênio teológico enquanto preso pelo regime nazista (prisão da qual, aliás, ele infelizmente não saiu vivo) –, com vistas à justifi car todo um movimento que, segundo ele, pode ter nascido de um lugar honesto (vide o famoso livro do bispo Robinson, chamado Honesto com Deus), mas que conduziu a conclusões (ou soluções) generalistas e enganadoras. Como se o “mundo sem Deus” representasse, de fato, o mundo de todos os contemporâneos, e não apenas um nicho, cada vez maior naquele contexto, é verdade, de pessoas decepcionadas com Deus e com a religião e, ao mesmo tempo, encantadas pelas possibilidades de respirar um ar puramente secular, livre dos constrangimentos da transcendência. A mesma concessão não foi feita por Merton ao bispo Robinson e seus ímpetos de honestidade com Deus e o mundo. Gostaríamos de apontar três razões, presentes em seu texto (formuladas por nossa apreensão do que ele apresenta nestas linhas), que denotam isto e explicam sua polêmica com esta escola do ser contemporâneo, identifi cada com Bonhoeffer e Robinson. Em primeiro lugar, sua premissa de origem não é nova, nem original. Qual seja, a de dizer que nossos símbolos, linguagens e imagens de Deus não dão conta de quem Deus é, ou não comunicam plenamente a realidade dos mistérios que “nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem jamais penetrou em coração humano” (1Co 2.9). A tradição da teologia apofática, também conhecida como “via negativa”, que vem do Pseudo-Dionísio e dos padres capadócios do século IV, até místicos como o já citado João da Cruz, De Chardin e o próprio Merton, dentre outros, sempre ensinou que, “se dizemos que ‘Deus é’, signifi cando que nele há plenitude de tudo que podemos conceber como Ser, devemos completar dizendo também ‘Deus não é’” (Merton, 2018b, p. 27). Ora, o “Ser” está ao mesmo tempo além de tudo o que podemos considerar como existindo e é a base de toda existência. Desta feita, é irrelevante dizer que se acredita ou não na existência de Deus, pois, de fato, Deus não existe, Deus é. | Teologia Contemporânea | FTSA32 Entretanto, como explica Merton (2018b, p. 27): Devemos lembrar-nos que esta tradição da negação mística sempre coexiste, no cristianismo, com a tradição da teologia simbólica na qual aceitam-se os símbolos positivos e analogias do ensino teológico tais como são: aproximações verdadeiras, mas imperfeitas, que nos levam gradativamente àquilo que não pode ser propriamente expresso em linguagem humana. O que acontece, neste caso – e o que, muitas vezes, gerou tanta rejeição secular a certas teologias e expressões de fé –, é que fórmulas, símbolos religiosos e artigos de fé são essas formas de acercamento do incognoscível, que por vezes se esquecem de que são apenas “aproximações” e não o espelho do divino ou da verdade. Por isso é que Merton resiste em aceitar a solução proposta por Robinson e outros, de abandonar os símbolos em razão de seu desgaste – lançando o bebê fora com a água do banho –, pois é óbvio, para uma fé madura ou adulta, que símbolos ou fórmulas são “os termos seguros” por meio dos quais nossa fé no incompreensível se expressa, e não o objeto mesmo dessa fé. Como completa Merton (2018b, p. 28), “o objeto de nossa fé não é uma afi rmação sobre Deus, mas o próprio Deus a quem a afi rmação designa e que está infi nitamente além de qualquer coisa que a afi rmação nos pode levar a compreender ou imaginar”. Podemos revisar, eventualmente, certas formulações ou afi rmações na base da crença, o que não signifi ca abandonar o caminho da fé. Como reconheceu Merton em outro texto da mesma época, “sem dúvida, já é tempo de a consciência cristã se expressar em linguagem contemporânea”, mas a realidade do Eterno, que transcende a linguagem e os conceitos, “não é em si modifi cada pelas mudanças de cultura” (Merton, 2019, p. 266). Em segundo lugar, não é garantido que tornar-se um cristão “sem Deus” aproximará os ateístas de Deus, nem é tão óbvio que todos os contemporâneos sejam incapazes de crer. (Recordemos aqui que Merton está falando a contemporâneos de outra época e contexto, 33| Teologia Contemporânea | FTSA | embora algumas afi rmações ainda possam ser válidas à nossa época). Merton expressa aqui uma dúvida sobre aquilo que alguns de seus contemporâneos mais ansiosos por “ser contemporâneos” pareciam tomar como óbvio. A dúvida é, por assim dizer, metodológica, e pode ser endereçada pela pergunta: o que garante que juntar-se aos modernos no abandono da linguagem tradicional sobre Deus, porém, mantendo uma crença secreta nele, efetivamente servirá para “religar” (sem nenhuma forma de religião) essas pessoas a Deus? Merton nos leva a supor com ele a situação em que essas pessoas agora conseguiram uma audiência no mundo contemporâneo – e, por um curto período, isso não deixou de ser verdade, pela relativa popularidade do livro Honesto com Deus, de Robinson, no Reino Unido, ou pelo rebuliço causado em 1966 pela capa da Times, já citada –, segue-se então a pergunta: “uma vez que o cristão ganha audiência, o que prega ele senão Deus, Cristo e a Igreja?” (Merton, 2018b, p. 34). A difi culdade de Merton (um homem da Igreja) estava em imaginar o que esses teólogos pregariam depois da constatação da “morte de Deus”. Desta maneira, em seguida ele expressa o que considera o ponto mais crítico: Do ponto de vista católico, então, a crítica mais séria deste admitidamente sincero, caridoso e solícito cristianismo “sem religião” é que não parece ser cristão. Não que “religião”, no sentido paulino dos “elementos” do ritual e adoração humanos, seja necessária ao cristianismo, mas um certo fundamento ontológico e teológico é necessário. Para ganhar uma audiência no mundo moderno, para “ser contemporâneo”, esse cristianismo dispensa a revelação cristã de Deus, em Cristo, e aceita o que é, na realidade, um conceito materialista do homem. (Merton, 2018b, p. 34-35) Eliminando-se os resquícios da transcendência na cultura a fi m de legitimar de vez a “maioridade” desse ser humano, que nos resta senão a pura materialidade e a visão científi ca que a justifi ca? Isso, porém, não basta, e os humanismos não nos deixam mentir. É necessária uma | Teologia Contemporânea | FTSA34 base ética que sustente a vida societária a partir de valores humanos, na medida em que a “nostalgia de Deus” vai sumindo de vista (mas nunca de vez, como vimos no caso da Revista Times). Onde encontramos essa base? Ao responder esta pergunta, Merton salienta que “a própria ‘religião- sem-religião’ ainda se apega a algo que constitui uma ‘mensagem’ – não é uma religião, não prega Deus, nem a redenção, mas ainda tem um querigma de amor” (Merton, 2018b, p. 35). Algumas perguntas surgem daí: “Se podemos dispensar Deus, por que não o amor? Por que a lógica de kenosis para exatamente onde para? Não podemos dizer que a fé num Deus vivo, que se revela como amor, não é mais consistente, afi nal?” (Merton, 2018b, p. 35-36). O paradoxo se faz evidente, na visão de Merton: ao rejeitar a crença em Deus sob a premissa de umaconfi ança em si mesmo (maioridade), os modernos acabaram forjando outro tipo de credulidade, materialista e secular, mas ainda assim uma forma de crença. E o problema todo, para ele, é que os cristãos estavam usando “a linguagem dessa ‘crença’ para tornar sua fé compreensível ao homem moderno” (Merton, 2018b, p. 36), e com isso abandonando sua “vocação messiânica”, para usar de novo o termo de Agamben. O que nos conduz à terceira e última razão... Em terceiro lugar, quando a contemporaneidade, segundo tais ou quais padrões, se torna um imperativo, “ser contemporâneo” não passa de mito. A visão de Merton é sufi cientemente sofi sticada para não confundir “mito” com “mentira”. Como ele explica em nota: “Mito é uma síntese imaginária de dados e intuições sobre estes, que formam um complexo interpretativo de ideias e imagens. Esse complexo de ‘valores’ então se torna central numa visão de mundo, uma norma de julgamento e prática” (Merton, 2018b, p. 32). Em outras palavras, o mito é o que proporciona que contemos histórias, que se querem verdadeiras, sobre como determinadas coisas ou modos de ser vieram à origem. E o ponto é: cremos tanto em nossos mitos que nem sequer nos lembramos de que são mitos, isto é, não a própria realidade, mas as lentes que utilizamos para conferir sentido a ela. E, por serem “sínteses imaginárias”, sem 35| Teologia Contemporânea | FTSA | necessariamente que reconheçamos que o são, esses mitos têm o poder de promover urgências e criar necessidades como se fossem realidades últimas ou absolutos. Uma dessas necessidades, consideradas míticas por Merton, é justamente a de ser contemporâneo, que para muitos signifi ca “estar em dia” a fi m de não sentir que, de algum modo, sua existência está sendo diminuída e que “sua imagem começou a desbotar” (Merton, 2018b, p. 33). Vimos no tópico anterior alguns signifi cados de contemporâneo a partir de um diálogo com Agamben. Merton, porém, oferece uma defi nição que, segundo ele, justifi ca o caráter mítico do “ser contemporâneo” em sua época, motivado, sobretudo, por um incômodo gerado pela pergunta do bispo Robinson: “Pode uma pessoa verdadeiramente contemporânea não ser ateia?”. A ansiedade presente nesta frase é o que parece conduzir Merton à seguinte refl exão: Ser contemporâneo é ser reconhecido “em dia” num mundo em rápida aceleração, onde não só os gostos, mas toda a visão da arte, da ciência, da fi losofi a, da literatura e da religião é revolucionada cada três ou cinco anos [hoje, em pleno século XXI, muitas destas “revoluções” ocorrem em menos tempo, vide, por exemplo, o que acontece com a tecnologia em questão de meses (acréscimo nosso)]. Ser contemporâneo é manter o seu lugar, sobreviver num altamente organizado e trepidante dinamismo do efêmero. É um tipo de existencialismo da moda, em que não há fundamento fi rme e ontológico do ser, mas só o constante e imprevisível fl uxo da existência. O que importa é estar bem harmonizado com os sinais mais leves que indicam a próxima revolução de ideias, para que se possa continuar a fazer a opção certa, isto é, contemporânea – no momento exato. Basta um pequeno erro de tempo, e alguém não é mais perfeitamente contemporâneo. Naufraga-se no fl uxo de | Teologia Contemporânea | FTSA36 decisões efêmeras e se é superado por outros que têm a habilidade de permanecer contemporâneos. (Merton, 2018b, p. 33) À luz da passagem acima, as perguntas de Merton continuam ecoando ainda hoje: Que preço precisamos pagar para conseguir uma audiência em nossa época, em nosso contexto, contemporâneos? O que é necessário sacrificar para “estar em dia”, para ser considerado relevante e “verdadeiramente contemporâneo”? E o que garante que decisões tomadas no ímpeto da urgência, da necessidade e sob o signo da efemeridade nos levarão ao topo hoje e nos protegerão de não sucumbir, por um pequeno deslize cronológico, à próxima “revolução” que emergirá amanhã? Esse parece ser precisamente o “calcanhar de Aquiles” dessa escola do ser contemporâneo: quando ser contemporâneo – segundo os ditames desta escola – é a motivação primeira para o que fazemos, pode ser que em breve percamos o rumo de nossa vocação em incessantes tentativas de seguir o que é tendência ou o que está na “ordem do dia”. Porque “estar na moda” ou “ser relevante” são condições tão fugazes quanto à própria moda ou a defi nição de relevância – a fama do movimento da “teologia da morte de Deus” nos anos 1960 que o diga. Ademais, como ressalta Merton (2018b, p. 36), “quando alguém está por demais preocupado em ‘ser verdadeiramente contemporâneo’, pode talvez desviar-se em seu julgamento ‘do que é e do que não é contemporâneo’” – como ele acredita ter sido o caso do bispo Robinson. Numa primeira instância, porque há muito mais gente dentro desse “contemporâneo” do que muitos daqueles que são movidos pela urgência de ser contemporâneos estão aptos a reconhecer. Merton, no caso, não estava disposto a admitir em seu leque de opções vocacionais o requisito de que, para ser “verdadeiramente contemporâneo”, era necessário aderir à morte de Deus ou a uma “religião-sem-religião”. Mais do que isso, ele acreditava que muitas pessoas inteligentes de sua época, incluindo cientistas e formadores de opinião, haviam recebido o dom da fé e percebido a sabedoria escondida no velho dito: “creia e 37| Teologia Contemporânea | FTSA | compreenderá”. Isso não fez delas pessoas menos contemporâneas. A fé pode ser revestida de uma “linguagem contemporânea” a fi m de se tornar comunicável? Merton admite que sim. Mas, para isso, ainda é preciso crer. Numa segunda instância, porque são justamente os pequenos traços de desarmonia, esses “pequenos erros de tempo”, e uma evidente dessintonia com os ditames de sua época que podem fazer emergir em nós o “ser contemporâneo” como ser intempestivo – tal como vimos pelos signifi cados para “contemporâneo” apresentados por Agamben. Nesse sentido, o diálogo com Merton neste último tópico foi interessante não tanto pelos exemplos por ele escolhidos como objeto de sua crítica – não negamos aqui, por sinal, o mérito e a importância da obra do bispo Robinson, muito menos a de Bonhoeffer –, mas pela exemplifi cação na prática, isto é, por meio da práxis de Merton como monge contemplativo e escritor do século XX, das teses sobre o que signifi ca ser contemporâneo apresentadas por Agamben. Sua trajetória, aliás, não somente suas ideias, perfaz o que chamamos aqui de uma “coincidência inconformada”: desempenhar sua vocação no mundo coincidindo (isto é, incidindo junto, encontrando-se) com as questões candentes de sua época sem, no entanto, conformar-se com todos os seus meandros. Voltando a um tema que vimos em Agamben, somos todos habitados pelas “trevas” de nossa época, mas (biblicamente falando) tão somente para nela “manifestar a glória dos fi lhos de Deus” (Rm 8.19). E, já que trouxemos o apóstolo Paulo de novo à conversa, convém terminar com suas conhecidas palavras em Romanos, que indiretamente inspiraram toda a refl exão sobre “ser contemporâneo” apresentada aqui do princípio ao fi m: Não imitem o comportamento e os costumes deste mundo, mas deixem que Deus os transforme por meio de uma mudança em seu modo de pensar, a fi m de que experimentem a boa, agradável e perfeita vontade de Deus para vocês. (Rm 12.2, NVT) | Teologia Contemporânea | FTSA38 Referências bibliográfi cas AGAMBEN, Giorgio. The Church and the Kingdom. London: Seagull Books, 2012. _________. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó, SC: Argos, 2009. CRUZ, João da. Noite escura. 6ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. DE CHARDIN, Pierre Teilhard. O meio divino. 2ª ed. Petrópolis, RJ: vozes, 2014. GRENZ, Stanley; OLSON, Roger. A teologia do século XX: Deus e o mundo numa era de transição. São Paulo: Cultura Cristã, 2003. MCNAMARA, William. The Human Adventure: The Art of Contemplative Living. Rockport, Massachusetts: Element,