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Teologia Contemporânea
Agosto / 2021
Professores/autores: Dr. Jonathan Menezes / Me. Felipe Nakamura / Me. Mariana Schietti
Projeto Gráfico e Capa: Mauro Rota - Departamento de desenvolvimento institucional
Todos os direitos em língua portuguesa reservados por:
Rua: Martinho Lutero, 277 - Gleba Palhano - Londrina - PR
86055-670 Tel.: (43) 3371.0200
3| Teologia Contemporânea | FTSA | 
SUMÁRIO
Teologia Contemporânea
UNIDADE I - CONTEMPORANEIDADE
1.0. Introdução........................................................................................................................04
1.1. Repensando a Teologia Contemporânea......................................................................05
1.2. O que signifi ca ser contemporâneo?...............................................................................10
1.3. Resistindo à tirania do contemporâneo.........................................................................24
UNIDADE II - PESSOA
2.0. Introdução........................................................................................................................40
2.1. A pessoa entre o verdadeiro e o falso “eu”....................................................................42
2.2. A pessoa e sua autoimagem...........................................................................................48
2.3. A pessoa e o cansaço contemporâneo.........................................................................54
UNIDADE III - SOCIEDADE
3.0. Introdução........................................................................................................................66
3.1. A justiça do Reino............................................................................................................67
3.2. A questão ecológica.......................................................................................................76
3.3. A cultura do espetáculo..................................................................................................83
UNIDADE IV - IGREJA
4.0. Introdução........................................................................................................................97
4.1. Tradição e contextualização..........................................................................................99
4.2. Caminhos para o diálogo..............................................................................................110
4.3. Uma igreja reimaginada................................................................................................119
Para fazer os exercícios e ver as respostas e reações do professor, acesse o AVA 
(Ambiente Virtual de Aprendizagem).
| Teologia Contemporânea | FTSA4
Unidade I – Contemporaneidade
Introdução
“Um homem inteligente pode odiar seu tempo, mas 
sabe, em todo caso, que lhe pertence irrevogavelmente, 
sabe que não pode fugir ao seu tempo”.
(Giorgio Agamben)
“Contemporâneo” é, de acordo com o entendimento comum, aquilo que é 
próprio ou peculiar de/a uma época. Para ser contemporâneo, conforme 
reza esse entendimento, é preciso, portanto, coincidir, estar de acordo 
com os padrões ou mesmo atualizado com sua época. A tentação em 
questão aqui, então, é: para ser contemporâneo alguém precisa, em 
primeiro lugar, listar quais são os temas e tendências da “ordem do 
dia”, e, em segundo lugar, procurar se adequar ao estilo próprio de ser 
evocado ou sugerido nessas tendências. Ser contemporâneo, nesse 
sentido, confunde-se com as populares expressões “estar na moda”, “ser 
tendência” e “ser relevante”.
Mas será que isso é “ser contemporâneo”? Até que ponto a ânsia pela 
atualização, implícita nessa dada compreensão, está de acordo e/ou entra 
em choque com as “exigências do Espírito” (do Evangelho)? Em outras 
palavras, qual é o preço que estamos dispostos a pagar para conseguir 
uma audiência no mundo chamado contemporâneo? Para responder a 
essas e outras questões, vamos dialogar principalmente com dois textos 
que estão mais ou menos em sintonia: um texto da década de 1960, 
de um místico franco-americano, Thomas Merton; e um texto dos anos 
2000, de um fi lósofo italiano, Giorgio Agamben. 
A ideia central a ser percebida, em diálogo principalmente com esses 
dois textos, é de que a contemporaneidade evocada aqui é a de uma 
coincidência inconformada. Ou seja, o “ser contemporâneo” coincide 
com sua época na medida em que faz parte dela e está envolvido em 
seus dramas, mas, precisamente no meio dela, cria uma distância 
5| Teologia Contemporânea | FTSA | 
contemplativa a fi m de observar criticamente seu entorno podendo, 
assim, destoar de alguns de seus tons e dessoar de alguns de seus 
sons. Indo além na metáfora musical, contemporâneo é aquele/a que se 
recusa a cantar todas as estrofes da canção contemporânea e, enquanto 
a banda toca, ousa recompor alguns versos e acordes. Contemporâneo 
é o cristão que constantemente sofre de metanoia – a transformação 
de seu modo de pensar o que gera, como consequência, uma conduta 
inconformada com os padrões e moldes de seu tempo. Assim, e somente 
assim, torna-se capaz de participar da revolução silenciosa promovida 
pelo Espírito no mundo. Falaremos mais disso ao fi m dessa unidade.
Objetivos da unidade
1. Defi nir “contemporâneo” e “contemporaneidade”;
2. Compreender alguns dos limites e possibilidades de uma teologia 
(que ser quer) contemporânea;
3. Refl etir criticamente sobre o cristão e a igreja em sua busca por 
relevância e adequação aos padrões da tal contemporaneidade. 
1.1. Repensando a Teologia Contemporânea
O que signifi ca fazer teologia contemporaneamente? Digamos que 
essa pergunta resume nosso problema de pesquisa nesse primeiro 
tópico. Queremos, de um modo geral, entender o que signifi ca, afi nal, ser 
contemporâneo para, em seguida, oferecer uma visão possível do que 
seja o fazer teológico do discípulo hoje, bem como o cumprimento da 
vocação messiânica da Igreja. Porque no mundo da teologia, partamos 
dessa ideia, essas – a teologia contemporânea e o fazer teológico 
contemporâneo – podem ser coisas diferentes, embora para nós, como 
você perceberá, elas não são.
Por que no mundo da teologia elas podem ser diferentes? Porque o 
nosso entendimento disciplinar de “teologia contemporânea” está ligado 
| Teologia Contemporânea | FTSA6
à uma interpretação linear da história, que a divide entre a Idade Antiga, 
Medieval, Moderna e Contemporânea. Esta última supostamente teria 
sido inaugurada após a Revolução Francesa, em 1789. Assim, os eventos 
que ocorreram após este marco são, geralmente, considerados parte da 
“história contemporânea”. Agora, pense que sentido de contemporâneo é 
esse que, por exemplo, coloca sob um mesmo guarda-chuva a Revolução 
Francesa, a Semana de Arte Moderna de 1922, A Guerra do Vietnã e o 
Impeachment de Dilma Rousseff no Brasil, em 2016. São todos esses 
eventos contemporâneos? Sabemos que apenas no sentido geral 
anteriormente anunciado, isto é, de que são considerados parte da história 
contemporânea – ou de certo entendimento do que ela seja. Como não 
sabemos o que vem depois dela, nos cursos de história se costuma 
dividir a chamada “História Contemporânea” em duas ou até três partes, 
para cobrir cerca de duzentos anos. Mas isso não ajuda exatamente no 
entendimento do que quer que seja “contemporâneo” (nossa busca aqui). 
Na teologia o cenário não é muito diferente, precisamente porque se parte 
do mesmo paradigma de divisão do tempo. O marco, porém, que dá início 
ao que costumeiramente se entende por “Teologia Contemporânea” é a 
Teologia Liberal do século XIX. A partir daí, concebe-se a teologia dentro 
de um grande movimento, que envolve, sobretudo, teologias europeias 
e norte-atlânticas, em que sucessivas correntes ou são consideradas 
herdeiras da chamada Teologia Liberal, ou surgem como reação a 
ela, seja no contexto católico ou protestante. Vide, por exemplo, o 
Fundamentalismo na América do Norte, ou a chamada Neo-Ortodoxia, 
que ganha1991.
MENEZES, Jonathan. No caminho do bem: sabedoria antiga para uma 
nova humanidade. São Paulo: Recriar, 2021. 
_________. Filosofi a da Religião. Londrina: FTSA Editora, 2015.
MERTON, Thomas. Homem algum é uma ilha. 23ª ed. Rio de Janeiro: 
Petra, 2021.
_________. Contemplação num mundo de ação. Petrópolis, RJ: Vozes, 
2019.
_________. A oração contemplativa. Campinas, SP: Ecclesiae, 2018a. 
_________. A igreja e o mundo sem Deus. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 
2018b.
_________. A experiência interior: notas sobre contemplação. São Paulo: 
Martins Fontes, 2007.
ROHR, Richard. O Cristo universal. Como uma realidade esquecida pode 
mudar tudo o que vemos, esperamos e acreditamos. São Paulo: nVersos, 
2019. 
ZABATIERO, Júlio P. T. M. A noção de Reino de Deus em Paulo e a 
integralidade da missão. In: Práxis Missional, ano 01, n. 2 (2018), pp. 37-52.
39| Teologia Contemporânea | FTSA | 
Discografi a
GABRIEL O Pensador. Palavras Repetidas. Álbum: Cavaleiro Andante. Rio 
de Janeiro: Sony BMG, 2005.
JOHN Mayer. Sob Rock. Album. New York City: Columbia Records, 2021.
Webgrafi a
AGAMBEN, Giorgio. Cristianismo como religião: a vocação messiânica. In: 
IHU On-line, 25 de Maio 2017. Disponível em: . Acesso em 17 Julho 
2021. 
APPLE Music. John Mayer: ‘Sob Rock’ and Implanting False 
Memories. Disponível em: . Acesso em 16 julho 2021.
| Teologia Contemporânea | FTSA40
Unidade II - Pessoa
Introdução
Nós, homens do conhecimento, não nos conhecemos; 
de nós mesmos somos desconhecidos – e não 
sem motivo. Nunca nos procuramos: como poderia 
acontecer que um dia nos encontrássemos?. 
(Friedrich Nietzsche)
Uma vida interior profunda é a base de toda vida 
exterior fecunda. (Maria Clara Bingemer)
Vamos iniciar essa unidade falando sobre a alma, que aqui defi nimos 
como a habitação de nosso ser mais profundo, onde nossos anseios e 
desejos mais primordiais são originados e que, obviamente, se realiza em 
um corpo (para não reforçar dualismos). Corpo que sente, sofre, padece 
e, também, se revitaliza a partir do que acontece no interior ou na alma, 
afi nal, somos um todo interligado. É na e através da alma que sentimos 
e pulsamos Deus com mais vivacidade, como também onde sofremos 
a angústia de seu silêncio e aparente ausência. A alma é o esconderijo 
de nosso verdadeiro ser, de nosso ser destituído das pretensões e das 
ilusões do ego – o que é o ego e o verdadeiro ser será matéria de nossa 
conversa adiante. Então, o que designamos como “alma”, aqui, receberá 
outros nomes ao longo dessa abordagem, tais como “verdadeiro-eu”, 
“verdadeiro si-mesmo”, ou nosso “eu mais profundo”. 
Essa preocupação nasce de uma observação da realidade e da 
constatação de que estamos vivendo neste tempo as consequências 
do alvorecer daquilo que Jesus alertou ser um perigo há dois milênios, 
através da pergunta: “Pois, que adianta ao homem ganhar o mundo 
inteiro e perder a sua alma?” (Mc 8:36). 
A humanidade vem “ganhando o mundo” de modo avassalador nos 
últimos séculos e, até por isso, vem também perdendo o mundo. Já não 
41| Teologia Contemporânea | FTSA | 
estamos mais seguros de por quanto tempo esse mundo vai durar (ou, 
pelo menos, de quanto tempo sobreviveremos nele), porque esgotamos 
cada vez mais irresponsavelmente seus recursos – daí todas as conversas 
importantes, que vêm sendo travadas ultimamente, sobre ecologia e 
sustentabilidade (que, aliás, trataremos na terceira unidade desse curso). 
E, enquanto nos mantivermos sufi cientemente ocupados fazendo isso, 
isto é, dominando o mundo com outras pessoas e, também contra os 
melhores interesses delas mesmas – refi ro-me àquelas pessoas mais 
empobrecidas e vulneráveis –, também vamos nos esquecendo de habitar 
nosso interior e fazer a lição de casa que tem nos esperado ali desde 
que tomamos consciência de nossa existência. De modo que, como 
consequência dessa negligência, o mundo “ganho” é um mundo cada vez 
mais difícil, confl ituoso e menos habitável de um modo saudável. Nos 
esquecemos, como alertou Maria Clara Bingemer (2018, p. 8) na epígrafe 
dessa unidade, que a vida exterior fecunda depende do quão profundo 
resolvemos ir interiormente. 
E porque resolvemos nos manter distantes de nosso interior, já não 
sabemos mais tratar com a devida probidade e profundidade das 
questões da alma. Como diz Nietzsche (2007, p. 7), nos tornamos 
estranhos a nós mesmos porque desistimos de nos procurar. Ou, 
como disse alguns séculos antes Teresa de Ávila (2014, p. 18, grifo 
meu): “Não pequena lástima e confusão é não nos entendermos a nós 
mesmos, por nossa culpa, nem sabermos quem somos”. Exatamente: 
e continua sendo nossa culpa. A sociedade da medicalização, do bem-
estar e do culto à saúde, como entendo ser esta em que estamos nos 
fazendo, oferece assim cuidados para “males” que ela nem sequer tomou 
consciência, pois tampouco se preocupa em compreender suas raízes. 
Como corolário, ela medica, mas não cura; trata, mas não liberta; alivia 
as consequências sem fazer a devida exploração holística das causas. 
Nesse horizonte, não pode ser menos importante perguntar: afi nal, quem 
é a pessoa humana, isto é, quem sou eu, quem é você? Não pretendemos, 
nem nesta unidade dedicada a isso ou mesmo ao longo do curso, dar a 
resposta sobre quem você é, mas compartilhar alguns achados como 
pessoas que também estão em busca.
| Teologia Contemporânea | FTSA42
Objetivos da unidade
1. Reconhecer a importância da noção de “ego” para entendimento da 
pessoa e diferenciar as noções de “verdadeiro” e “falso eu”;
2. Fundamentar biblicamente a importância da construção de uma 
autoimagem redimida ou saudável;
3. Refl etir criticamente sobre seu lugar como pessoa, criada à imagem 
e semelhança de Deus, numa sociedade do cansaço.
2.1. A pessoa entre o verdadeiro e o falso “eu”
Thomas Merton, um dos maiores místicos do século passado, apresenta 
em sua obra uma distinção muito importante para que refl itamos 
sobre nossa identidade ou a questão do “si-mesmo”. É a distinção 
entre o “verdadeiro” e o “falso” si mesmo. Antes, cabe indagar: em que 
contexto Merton apresenta essa ideia? Em seu livro Novas sementes de 
contemplação (1999), Merton pontua que uma dessas “sementes”, que 
nos conduzem à vida contemplativa, está na consideração das coisas a 
partir de sua identidade, ou seja, do que elas são em sua essência em 
contraste com o que são em sua aparência. “Uma árvore”, por exemplo, 
“glorifi ca a Deus sendo uma árvore”, de modo que, “quanto mais uma 
árvore se assemelhar a uma árvore, tanto mais se assemelhará a Deus” 
(Merton, 1999, p. 37). O contrário também é verdadeiro: caso tente se 
assemelhar a outra coisa que não ela mesma, não respeitando e realizando 
sua natureza arbórea, menos glória dará a Deus e mais distante Dele 
permanecerá. Isso é o que Merton chamou de “santidade das coisas”, 
que reside na qualidade delas serem elas mesmas e não outras, de modo 
que não há nada que se iguale a elas nem na terra ou nos céus. Santidade 
é sinônimo de singularidade. 
Ora, sabemos que a mensagem bíblica diz que Deus é Santo: “Mas, assim 
como é santo aquele que os chamou, sejam santos vocês também em 
tudo o que fi zerem, pois está escrito: ‘Sejam santos, porque eu sou santo” 
(1Pe 1.15-16). Dizer, em primeiro lugar, que “Deus é santo” é o mesmo 
43| Teologia Contemporânea | FTSA | 
que dizer que Ele é único: incomparável, está “acima de todo nome”, 
não há outro igual a Ele, que não é e nem pode ser idêntico a outros 
deuses, tampouco às formas, fórmulas ou nomes que tentam descrevê-
lo. E recomendar, em segundo lugar, que “sejamos santos como Deus é” 
signifi ca aceitar este “sim” gratuito de Deus e ser único, singular, como 
é o Deus que nos deu essa vida. Afi nal, não há nenhum outro ser vivente 
ou pessoa que seja idêntica a mim no universo.Por que razão macularei 
a santidade da vida tentando representar um personagem, imitar outro 
alguém ou ser quem não sou? Isto tem nome, chama-se “pecado” ou 
traição à santidade. Na defi nição de Merton (1999, p. 39), portanto, “ser 
santo signifi ca ser eu mesmo”, o que não é possível senão na comunhão 
entre caridade (amor) e graça. Isso, por outro lado, engendra uma dupla 
relação com a minha humanidade: (1) ser santo é assumir-se como ser 
humano: a santidade se realiza na humanidade (como quero discutir mais 
detidamente na próxima aula); e (2) ser santo é também ser mais que 
humano: a santidade é aquilo que a humanidade, sozinha, não realiza.
Mas o que o ser humano, sim, realiza no gozo relativo de suas liberdades 
é o ato de decisão sobre o que ou quem será na vida, o que inclui a 
decisão sobre se deseja ou não se aprofundar no conhecimento de quem 
é, habitando conscientemente seu interior, ou permanecer apenas na 
superfície, como turista em sua própria vida – frequenta seus espaços 
sem nenhum compromisso com a transformação deles; ou gravita 
apenas na “circunferência” da vida sem tomar a jornada que conduz até 
o “centro” da vida, tornando-se pessoas excêntricas (literalmente fora 
do centro) e não centradas, como postulou Richard Rohr (2003, pp. 13-
27). Como salienta Merton (1999, p. 39), “temos a liberdade de ser reais 
ou irreais. Podemos ser verdadeiros ou falsos; a opção nos pertence. 
Podemos usar ora tal máscara, ora outra e nunca, se o desejarmos, 
aparecer com o nosso verdadeiro rosto”. Assim, o problema da santidade, 
para Merton, necessariamente evoca o problema, que vimos enunciando 
desde o início desta unidade, da “procura de quem sou e da descoberta 
de meu verdadeiro ser” (idem). 
| Teologia Contemporânea | FTSA44
Nesse contexto, Merton apresenta suas noções de “eu” verdadeiro e 
falso. Segundo ele, cada um de nós é acompanhado pela “sombra” de 
uma pessoa ilusória ou de um “eu falso” ou “falso si-mesmo”. O eu falso é 
o ser humano que eu quero ser, e todas as suas ornamentações externas 
(identidades, títulos e posições provisórias às quais este “eu” se agarra 
a fim de se afirmar, para si e para os outros), mas que “não pode existir, 
porque Deus não o conhece” (Merton, 1999, p. 42). Rohr (2010, p. 12) 
afi rma que esse “eu” é um “self separado” (de Deus e das outras pessoas), 
pois escolhe viver “a partir da divisão, tem a necessidade de expor-se, 
colocar-se em cena, supervalorizar-se, incensar-se”. Você certamente 
conhece alguém assim ou, se exercitar a coragem da honestidade, talvez 
se reconheça um pouco nesta descrição. Não confundamos, porém, a 
separação aqui em jogo com um mero apartar-se solitário. Para que o 
self-separado seja é necessário que outros (Deus e o próximo) não sejam, 
que é a defi nição que C. S. Lewis (2005, p. 162) deu para orgulho, e por 
isso ele o chamou de “estado mental mais oposto a Deus que existe”. 
A autocontradição evidente desse eu falso é que ele pode aparentar 
autossufi ciência, mas na realidade “é carente e frágil por natureza”, pois 
“depende das coisas externas a si mesmo e delas espera sua felicidade” 
(Rohr, 2010, p. 26). Por isso nunca está contente e sua existência é pura 
ilusão, pois está desligado de si mesmo, uma vez que, de acordo com 
Rohr (2010, p. 22), ela se centra no ego, que é algo que todos temos: 
uma percepção equivocada de quem somos ou “um sentido ilusório da 
identidade”, como o defi niu Eckhart Tolle (2007, p. 30). 
Para não nos estender demais neste ponto, o que une esses três autores 
(Merton, Rohr e Tolle) é a percepção de que existe um “eu” que antecede 
todas essas identifi cações em torno das quais nossa identidade se formou, 
antes que começássemos a interpretar papéis e a desempenhar funções 
e anos aferrar tanto a elas, transformando-as em ídolos muitas vezes. Um 
“eu-infantil”, uma parte de nós “que sempre disse sim a Deus, e sempre 
dirá” (Rohr, 2010, p. 32), é aquela que Merton chamou de “eu” verdadeiro: 
o ser que eu sou em Deus, escondido em seu amor desde a eternidade. 
45| Teologia Contemporânea | FTSA | 
Quando se torna adulto, porém, “o homem abandona o jardim”. Como 
diz Rohr (2010, p. 21), “de forma cada vez mais crescente, o ser humano 
participa nos dramas da existência, desempenha papéis e assume uma 
identidade proposta por seus pais e pelo mundo circundante”. 
Isso não é algo necessariamente ruim, faz parte da experiência humana; 
até porque, como diz Rohr (2010, p. 25), “o verdadeiro e o falso si-mesmos 
dançam mutuamente”. Não podemos querer expulsar ou exorcizar um 
sem prejudicar o outro. O problema maior, a nosso ver, começa quando 
acreditamos que nosso ser se resume a essa identidade exterior, ou 
quando mobilizamos todos os recursos de que dispomos para nos tornar 
“alguém”, e, para isso, precisamos negociar a alma e perder de vista Deus 
e quem realmente somos Nele. 
A libertação do ego começa quando: (1) Tomamos consciência do ego, 
do “eu-falso” e de sua agenda; (2) Identifi camos aquilo que nesta agenda 
se encontra em rota de colisão com a vontade de Deus, expressa em 
sua Palavra; (3) Decidimos não mais viver uma vida “dedicada ao culto 
dessa sombra”, que Merton (1999, p. 42) defi ne como “vida de pecado”; 
e, fi nalmente, (4) buscamos através da vida na fé e da contemplação 
conhecer quem nós realmente somos em Deus, com o auxílio do Espírito.
Grande parte dos problemas da vida espiritual são, portanto, esclarecidos 
com a lenta, porém gradual, libertação do verdadeiro eu das cadeias 
| Teologia Contemporânea | FTSA46
do falso. Chamamos isso de “maturidade cristã”. Isso signifi ca que 
precisamos diariamente fazer o trabalho interior e passar por uma 
kenosis ou o auto-esvaziamento das dimensões superfi cial e identitária 
do “eu”, para encontrar sua dimensão profunda. E aqui vem uma longa e 
importante passagem nas refl exões de Merton:
A tarefa de encontrar a nossa própria identidade em Deus, 
que em linguagem bíblica é “operar a nossa salvação”, 
é um trabalho que requer sacrifício e angústia, risco e 
muitas lágrimas. Exige atenção rigorosa à realidade, 
a cada instante, e grande fi delidade a Deus, tal como 
ele se revela a nós, obscuramente, no mistério de cada 
nova situação. Não sabemos com nitidez, de antemão, 
qual será o resultado desse trabalho. O segredo de 
minha identidade plena está escondido nele. Só ele 
pode fazer-me o que sou, ou melhor, quem serei quando, 
enfi m, começar a ser de fato. Mas, a não ser que eu 
deseje essa identidade e trabalhe para encontrá-la, nele 
e com ele, jamais será a obra realizada. A maneira de 
realizá-la é um segredo que só posso aprender dele e 
de mais ninguém. Não há outra maneira de conseguir 
esse segredo a não ser pela fé. Mas a contemplação é 
o maior e mais precioso dom, pois ela me torna capa 
de ver e compreender qual o trabalho que Deus quer ver 
realizado. (Merton, 1999, p. 40-41)
Líderes cristãos, especialmente, devem aprender algumas lições 
importantes dessa refl exão de Merton – afi nal é tarefa deles (nossa) a 
transmissão dos saberes e do encorajamento às mulheres e homens 
de fé da comunidade para que realizem esse mesmo trabalho em 
suas próprias vidas, pois essa é uma responsabilidade de cada um(a) 
e verdadeiros ministros da cura sabem disso, e, com essa consciência, 
afastam a pretensão messiânica de controlar o processo de cura na vida 
de outras pessoas. 
47| Teologia Contemporânea | FTSA | 
A primeira lição é que este é um trabalho que trará alguns sofrimentos, 
pois “quem aumenta o conhecimento” (sobre si mesmo) “aumenta a 
dor”, parafraseando Eclesiastes 1:18. A segunda lição é que a realização 
desse trabalho parte de uma decisão voluntária, como a do Cristo que 
voluntariamente decidiu percorrer o caminho da cruz, que gera vida. Não 
desejamos a dor, como o Cristo também não o desejou, mas sabemos 
que toda cura verdadeira envolve alguma dose de dor. A terceira lição é a 
de que não existem garantias cósmicas de que os frutos desse trabalho 
aparecerão aoprimeiro olhar. Faz-se necessário, na maior parte das 
vezes, um olhar demorado, que é o olhar da contemplação, capaz de nos 
revelar verdades que a primeira impressão ou olhar normalmente não 
revela. A quarta lição é a de que esse trabalho só pode ser realizado em 
e com a ajuda de Deus, por meio da fé e do maravilhoso dom da vida 
contemplativa, que ajudam a desbancar até mesmo os disfarces religiosos 
que o falso si-mesmo utiliza para se proteger, como bem lembra Rohr 
(2015, p. 35, trad. minha): “Não há maneira mais inteligente para o falso 
eu se esconder do que por trás da máscara da espiritualidade. E quanto 
mais madura a máscara espiritual aparentar ser, mais perigosa ela será”. 
Essa é uma das diferenças que a contemplação promove nos ajudando 
a desconfi ar das aparências, começando sempre em nós mesmos antes 
que nos outros, como nos ensinou Jesus: 
Por que você se preocupa com o cisco no olho de seu 
amigo enquanto há um tronco em seu próprio olho? 
Como pode dizer a seu amigo: “Deixe-me ajudá-lo a tirar 
o cisco de seu olho”, se não consegue ver o tronco em 
seu próprio olho? Hipócrita! Primeiro, livre-se do tronco 
em seu olho; então você verá o sufi ciente para tirar o 
cisco do olho de seu amigo. (Mt 7:3-5, NVT)
Precisamos, assim, rogar para que o Senhor abra os olhos do nosso 
coração e nos permita enxergar-nos como Ele nos enxerga, ainda que 
de relance ou parcialmente, como sugeriu o apóstolo Paulo (1Co 13:12); 
a fazer o duro, mas necessário trabalho de perscrutar nosso interior e a 
| Teologia Contemporânea | FTSA48
ter com nossas sombras a fi m de deixar que luz penetre a escuridão de 
nossos corações muitas vezes empedernidos e secos, embora sedentos 
de transformação. E, mais do que isso, que nos possibilite aprender a 
amar-nos como Ele ama – caminho que passa pela redenção de nossa 
autoimagem, assunto do próximo tópico.
2.2. A pessoa e sua autoimagem
O resgate ou a salvação de nossa autoimagem é o primeiro passo quando 
desejamos assumir o verdadeiro eu e deixá-lo cumprir sua função, 
conforme criado e abençoado por Deus. Mas, se achamos que a teoria 
pode ser complicada, a prática pode ser ainda mais. Isto porque, como 
já vinham advertindo alguns teólogos como Claus Westermann (2004) 
e Albert Nolan (1987), o afastamento que a humanidade vem tomando 
do propósito criacional durante sua existência e, mais especifi camente, 
o descaso que os cristãos apresentam com a narrativa da criação, faria 
com que os problemas sociais, políticos, humanitários, sanitários e 
quaisquer outros, se tornassem problemas a serem resolvidos em nível 
global. O ser humano, por toda parte do planeta, já não sabe mais quem 
é, tampouco para que é, e todas as fugas possíveis acabam, na verdade, 
levando-nos ao caos pessoal e comunitário. 
Diante disso, e considerando que o caos implica na deturpação da 
autoimagem e na criação do personagem, vivendo constantemente o 
falso eu, nossa proposta não é apenas oferecer conceitos sobre este 
tema, acima de tudo a ideia é que este ensino seja apto para se tornar 
vivência e seja apto, portanto, a oferecer possíveis pontos de partida 
para que cada um trilhe seu caminho rumo ao verdadeiro eu. Um deles 
é o reencontro do que chamaremos agora de eu-humano, à imagem 
e semelhança do criador. Ser totalmente humano é, deste modo, ser 
totalmente integro enquanto imagem e semelhança de Deus. O outro é a 
conscientização sobre o que faz esse eu-humano uma pessoa completa 
e feliz. É por meio deste reencontro e desta conscientização que nos 
tornamos capazes de enxergar, sem borrões, nossa autoimagem. 
49| Teologia Contemporânea | FTSA | 
Antes de iniciarmos, cabe destacar que vivemos tempos de alto 
pessimismo em relação à fi gura humana, o que pode atrapalhar muito 
nossa tarefa de reencontro do eu-humano. A sociedade da saúde, do 
status, do culto ao corpo, relatada no tópico anterior, é a mesma sociedade 
que adoece interiormente, com depressões, síndromes, vícios e por aí vai. 
Não nos aprofundaremos muito neste sentido, pois isso será contemplado 
no próximo tópico. Mas a ambivalência existente nesse cenário é capaz 
de demonstrar o quão perdido estamos enquanto seres humanos 
em nossa existência terrena. E quanto mais buscamos a perfeição do 
corpo, a perfeição da imagem, a perfeição dos bens materiais, mais 
vemos destruições, guerras, brigas, indiferença e divisão, e neste ponto 
em específi co, qual seja o resultado dessa ambivalência, encontramos 
o alto pessimismo em relação à fi gura humana. A consequência é um 
repúdio a diversos comportamentos e sentimentos que são naturais e 
que fazem parte do eu-humano, sendo que muitos desses sentimentos, 
comportamentos e necessidades são saudáveis para nós e negligenciá-
los nos impede de acessar nossas camadas mais profundas. 
Além disso, podemos perceber que afi rmações como “é fi m dos tempos”, 
“o ser humano não tem mais jeito”, “o mundo está podre”, “o ser humano 
não tem nada de bom mesmo”, dentre tantas outras, são afi rmações 
comuns, principalmente no meio religioso, em que os discursos 
assumem uma esperança futura que descarta o corpo físico (do qual a 
alma faz parte) e o tempo presente, renunciando a qualquer redenção do 
eu, bem como ignorando a visão que o próprio Deus tem de sua criação. 
O que nos leva a sustentar cada vez mais o personagem criado, o falso 
eu, numa dinâmica que parece encobrir nossas frustrações e vazios, 
parece silenciar o caos e o barulho interno, nos fazendo crer que a melhor 
opção é manter o eu na escuridão. A verdade é que essas dinâmicas não 
são capazes de curar, salvar, apaziguar e libertar o eu verdadeiro. Pelo 
contrário, elas nos fazem acreditar que não há nada de bom em nós e, 
por isso, devemos deixar nosso eu-humano o mais enterrado possível.
Diante desse pessimismo em relação ao eu-humano, que se dá ao 
| Teologia Contemporânea | FTSA50
mesmo tempo em que há uma idolatria do eu-objeto (personagem), torna-
se imperiosa uma reconstrução da autoimagem. Para dar início a ela, é 
indispensável passar pelo tão conhecido texto bíblico de Gênesis 1.26. 
Todos nós, em nossa vivência cristã, já ouvimos ou já lemos que fomos 
criados à imagem e semelhança do próprio Deus. Porém, as refl exões e 
os estudos sobre o que isso signifi ca são poucos. Enquanto, na verdade, 
essa é uma das declarações mais fundamentais para vida cristã e para 
vida humana em geral. Isto porque, qualquer teologia que se forme ao 
redor de um tema, como são as teologias contemporâneas e os temas 
contemporâneos que demandam respostas teológicas, têm por trás 
delas problemas existenciais. Melhor dizendo, têm problemas que se 
formaram quando o ser humano já não mais se enxergou como imagem 
e semelhança do seu Criador, quando o ser humano preferiu se cobrir, se 
esconder de Deus, do outro e de si mesmo (Gn 3:7-11). 
Explicando melhor as consequências desse desconhecimento sobre quem 
somos, podemos dizer que, conforme os textos de Gênesis 1 e 2, Deus 
cria um espaço paradisíaco, em que a fauna e fl ora funcionam de forma 
harmônica e perfeita. Neste espaço tudo está equilibrado e cumprindo 
plenamente suas funções. O caos, mencionado logo no primeiro versículo 
do capítulo 1, está agora organizado e o vazio está preenchido. Neste 
cenário o ser humano é colocado em condição superior às demais 
criaturas, pois é o ser humano quem deve manter esta organização, quem 
deve dar continuidade ao trabalho iniciado por Deus. Para que isso fosse 
possível, Deus espelhou a si mesmo na criação do ser humano, tanto 
macho quanto fêmea, como diz o texto. Desta forma, “estavam nus, e 
não se envergonhavam” (Gn 2:25), pois viam-se como iguais, sabiam 
exatamente quem eram e para que eram. Não havia um padrão a alcançar, 
não havia um status a buscar, não havia disputa, hierarquia, nem bem, 
nem mal. Eram apenas humanos, que se aceitavam em suas condições e, 
portanto, aceitavam o outro em suas condições também. 
Mas a partir do momento em que a humanidade foi tomada pelo desejo 
deser Deus, o eu-humano se desencontrou de si, do outro, da criação 
51| Teologia Contemporânea | FTSA | 
e do criador. Gênesis 3 relata bem esse cenário de desarmonia. A busca 
por cumprir o propósito divino de cuidado e continuidade na harmonia e 
no bem-estar deu lugar à busca por poder e domínio do outro. O homem 
passa então a dominar a mulher (Gn 3.16), o trabalho de cuidado e cultivo 
da criação, que resultaria em alimento necessário e em um habitat 
equilibrado, passa ser um trabalho pesado e sofrido, pois é um trabalho de 
quem deseja sempre mais, de quem deseja consumo exagerado, de quem 
deseja explorar para crescer, de quem deseja disputar para tirar do outro 
(Gn 3.19). O eu-humano enxergando-se como eu-divino, autossufi ciente, 
capaz de julgar, determinar e até mesmo recriar, perde-se dentro de si. 
Muitos leem o texto de Gn 3:14-22 como um texto de castigo. Mas é 
preciso lembrar que esse texto é escrito a partir de uma realidade religiosa, 
neste caso judaica, e ganha contornos próprios desta religião. O Deus 
castigador se faz presente no texto quando editado por seus redatores que 
assim criam. Mas Jesus já nos mostrou o contrário. Deus, não é um Deus 
de castigo, mas de amor e compaixão. Além disso, é consenso entre os 
biblistas, que o texto de Gênesis 1-3 é o texto antigo sobre a criação mais 
rico em detalhes que existe no antigo oriente e é um texto universal (Kidner, 
2001, p. 13). Nele, Deus não cria os hebreus, os israelitas e os judeus, Deus 
cria a humanidade à imagem e semelhança de si. Por isso, apesar dos 
contornos que Gênesis 3:14-22 pode trazer, o texto à bem da verdade é 
apenas um refl exo das consequências naturais do eu-humano perdido, 
que esqueceu sua autoimagem e criou para si um super-herói, que precisa 
sempre sustentar o que não é, para esconder-se de quem é. 
 Voltando à questão da universalidade do texto, ela não revela 
apenas que Deus criou todos os seres humano. A questão é mais 
profunda e fundamental ao resgate da autoimagem. O texto revela que, 
sendo imagem e semelhança de Deus, tudo o que contém em nós, antes 
de tudo, contém em Deus. Portanto, todas as raças, todos gêneros, todos 
contornos faciais, todas as cores de olhos, todos os tipos de cabelo, 
todas as alturas, todas as formas de falar, de andar, de cantar, de dançar, 
todas as vozes, sorrisos, olhares, tudo o que é natural, antes de estar 
| Teologia Contemporânea | FTSA52
no humano, está nele. Ele é o portador de todas as belezas naturais que 
existem em nós e isso é o primeiro entendimento necessário para um 
encontro com o eu-humano, com o mais profundo e verdadeiro eu. Mas 
não só isso, a imagem e a semelhança não estão somente na forma física. 
A alma, mencionada no tópico anterior, é parte da imagem e semelhança 
de Deus. A alma é consciência da nossa capacitação ao cuidado e ao 
cultivo. Em Gênesis 1:26 Deus cria macho e fêmea e os abençoa para que 
cuidem e multipliquem aquele estado paradisíaco. Todos, sem exceção, 
são capazes. Sendo assim, ainda que nossos sentimentos e desejos 
tenham sido tomados por esse desejo de ser mais, maior, dominador do 
outro, julgador, independente, de ser conhecedor do bem e do mal como 
Deus é, ainda assim, dentro de nós existe o eu-humano capaz de controlar 
tais desejos, capaz de cuidar e multiplicar a harmonia, capaz de se manter 
dependente do criador, capaz de enxergar o outro e não ver diferença, pois 
sabe que nus não têm do que se envergonharem. São equivalentes. Existe 
o eu-humano que sabe que o trabalho equilibrado não sacrifi ca o corpo, o 
trabalho equilibrado apenas mantém o corpo, e sabe que a plenitude da 
vida está nos pequenos detalhes das coisas criadas por Deus e não nas 
fortunas e na beleza das coisas criadas pelas mãos humanas. 
 Mantendo isso em mente, precisamos retornar ao assunto do 
pessimismo humano. Diante de todo esse relato da criação, acreditar 
que esse eu-humano não existe mais, e que agora tudo o que há de mais 
profundo em nós é sujeira e podridão, é assumir que Deus não é Deus e 
que o mal está acima dele. Nas palavras de Albert Nolan (1987, p. 125) 
“qualquer um que acredite que o mal vai ter a última palavra, ou que o bem 
e o mal têm cada um cinquenta por cento de possibilidades de vencer, 
é ateu”. Segundo ele “acreditar em Deus é acreditar que o bem é mais 
poderoso que o mal e que a verdade é mais forte que a mentira”. Ou seja, 
podemos então dizer que acreditar em Deus é acreditar que aquilo que ele 
nos criou para ser é mais forte do que o que a sociedade nos exige ser, e 
que o eu-humano escondido atrás do eu-objeto pode ser resgatado, pode 
ser vivido, tem força sufi ciente para derrotar o personagem. E crendo em 
53| Teologia Contemporânea | FTSA | 
Deus, é preciso crer que o verdadeiro eu é melhor que o personagem, ele 
é bom, é sufi ciente e capaz, exatamente como ele é. 
Perceber-se assim, sem toda a capa colocada pelas exigências 
contemporâneas, e enxergando-se simplesmente como um ser real, 
dependente daquele que o criou e, portanto, satisfeito com o que é 
e com o propósito que recebeu, as ambivalências que surgem entre a 
performance do personagem e o sentimento da alma, começam a se 
dissipar, dando lugar à razão e à consciência de que assim como o Reino 
de Deus está em nós, a harmonia e plenitude vista no paraíso do Éden, 
também está em nós, está no mais profundo do eu, o eu-humano. Ainda 
usando os ensinamentos de Nolan, aprendemos que: 
Existe no mundo uma força dirigida para o bem, um poder que se 
manifesta nos impulsos e forças mais profundos existes no homem e 
na natureza, poder que é, em última análise, irresistível. Se Jesus não 
acreditasse nisso, não teria tido nada para dizer. (Nolan, 1987, p. 125)
Jesus é sem dúvida o mais belo e vivo exemplo de uma autoimagem 
imaculada. Ele jamais corrompeu sua autoimagem, eu verdadeiro 
eu, seu eu-humano – ainda que neste último ponto pudesse fazê-lo já 
que era divino também – para aceitar o eu-objeto, aquele que precisa 
ser sustentado e moldado conforme os padrões sociais. Nos tempos 
de Jesus a religião moldava esse padrão. Em nossos tempos, além da 
religião, temos as redes-socias, um dos maiores inimigos do verdadeiro 
eu. Apesar de terem ótimas serventias, as redes sociais também são 
capazes de se tornar um meio de destruição para aqueles que a utilizam. 
Mas, assim como Jesus, o bem que há em nós, aquele que é modelo 
primário de nossa formação, que é o próprio Criador, é mais forte e 
resistente que todos os outros modelos, e cabe a nós acessá-lo por meio 
do eu-humano. 
A partir do momento em que aceitamos nossa imagem, que 
ressignifi camos nossas buscas e ideais, nossas crenças e valores, a 
respeito de nós mesmos, do outro e do mundo, alcançamos a salvação, 
| Teologia Contemporânea | FTSA54
ou seja, a libertação, de uma autoimagem deturpada e corrompida, 
passando a viver a partir de uma autoimagem segura e bem defi nida. 
Essa será uma das maiores respostas às grandes temáticas atuais, 
como a luta pela igualdade de gêneros, a luta contra o racismo, contra a 
homofonia, a luta contra a desigualdade social, contra a escravidão etc. 
Essas são as formadoras de algumas das teologias contemporâneas, 
como a teologia da libertação, teologia feminista, teologia negra e por 
aí vai. Nelas todas, a primeira resposta teológica necessária é o resgate 
da autoimagem, tanto daqueles que estão sendo oprimidos e lutando 
por seus direitos e dignidade, quanto para os seus opressores, que não 
devem sair da condição de opressores para oprimidos, mas devem sair 
da condição de opressões, para condição de humanos promotores da 
harmonia e da dignidade de todos. 
Afi nal, em Gênesis 1:31 “Deus viu tudo o que havia feito, e tudo era muito 
bom”. O bom de Deus está acima de qualquer outra coisa e cabe a cada 
individuo a mudança da mente, a rejeição à imagem maculada imposta 
pela sociedade, a recusa de maltratar nosso verdadeiro eu, em busca 
da imagem perfeita do falso eu, pois viver escondendo o eu-humano e 
sustentandoo eu-objeto resultará, certamente, em uma catástrofe, como 
veremos no próximo tópico. 
2.3. A pessoa e o cansaço contemporâneo
As doenças emocionais ou neurais estão na pauta dos temas contemporâneos. 
Depressão, Transtorno de Défi cit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), 
Burnout, são palavras conhecidas popularmente e campanhas como 
por exemplo, “Setembro Amarelo”, que é o mês da prevenção ao suicídio, 
estão sendo mais divulgadas. Em parte, essas doenças são refl exo do 
esgotamento e do cansaço do ser humano. De acordo com Byung-Chul Han 
(2017), vivemos tempos de falta de negatividade e excesso de positividade, 
que são motivos de uma violência neural. 
Para entendermos isso de uma forma um pouco mais clara, precisamos 
recorrer ao que já está sendo bastante falado e discutido atualmente, que 
55| Teologia Contemporânea | FTSA | 
é a questão imunológica. O sistema imunológico atua quando identifi ca 
algum corpo estranho e então produz algum tipo de defesa contra esse 
corpo ou recebe a ajuda de algum artifício externo para tal, que é o caso do 
uso das vacinas. Han (2017) aponta que o século passado foi uma época 
imunológica, com inimigos bem estabelecidos, divisões claras. O que era 
estranho era facilmente identifi cável e combatido, por ser algo que vinha 
de fora, que trazia algum tipo de negatividade. Porém, sobretudo após o 
fi m da Guerra Fria, o paradigma foi se alterando para o desaparecimento 
dos inimigos, da estranheza, do outro, dando lugar ao igual – ainda que, 
nesse momento de nossa história, com a pandemia, estejamos às voltas 
de novo com a questão imunológica. 
Em todo caso, a grande questão dessa mudança de paradigma foi a 
difi culdade de identifi car as ameaças, uma vez que o igual não aparenta 
representar um perigo para o corpo. Contudo, ele comenta: “A violência 
não provém apenas da negatividade, mas também da positividade, não 
apenas do outro ou do estranho, mas também do igual” (Han, 2017, 
p. 15). O igual traz um excesso de positividade, não há nenhum tipo 
de resistência ou barreira para combatê-lo. Ele provoca uma situação 
mais difícil de ser resolver por ser uma batalha travada sem nenhuma 
interferência externa, isto é, não é um corpo estranho invadindo, é uma 
batalha interna, contra si mesmo.
A causa é relativamente simples de entender: a violência da positividade 
vai gerando paulatinamente um excesso de cobrança e de exigência 
tamanhas nas pessoas que logo elas não se sentem mais confortáveis 
e adequadas em seu próprio corpo e com a suas próprias vidas. E o que 
pesa, como bem apontou Han, não é apenas o número ou o acúmulo de 
atividades, mas a pressão do desempenho, em realizá-las sempre bem 
a partir da lógica de produzir sempre mais e melhor. Invariavelmente as 
expectativas não são supridas, e daí nasce a frustração proveniente da 
não fusão entre expectativa e realidade. Trocamos, assim, o processo 
natural de nos tornarmos quem somos – como vimos no início dessa 
unidade – pela pressão da conversão de si mesmo em um sujeito do 
| Teologia Contemporânea | FTSA56
desempenho, de modo que o que nos torna doentes “não é o excesso 
de responsabilidade e iniciativa, mas o imperativo do desempenho como 
novo mandato da sociedade pós-moderna do trabalho” (Han, 2017, p. 27). 
Em diálogo com Alain Ehrenberg, Han explica que a pressão de ter que 
ser ela mesma é o que provoca a pessoa doente. Contudo, o contrário nos 
parece ser verdadeiro: a pressão pelo desempenho acaba fazendo essa 
pessoa perder o ponto arquimédico no qual coincide consigo mesma, 
gerando uma autoimagem duplicada e, como tal, não condizente com o 
original. Ou seja, a tendência é que a pessoa tente escapar de quem ela é 
e não o contrário, como sugere Han.
Desse modo, o que Han chama de excesso de positividade pode ser 
representada pelo slogan “Yes, we can”, que, em um primeiro momento, 
pode parecer inofensivo ou até mesmo algo excelente, entretanto, suas 
consequências podem ser catastrófi cas. No excesso de positividade, a 
ideia difundida é que sempre é possível ter melhor desempenho, produzir 
mais. Quão tentador é esse discurso! Nos últimos anos, provavelmente 
você já deve ter ouvido ou até mesmo falado em uma conversa: “A 
vida está corrida!” ou “Estou super atarefado!”, entre outras frases 
semelhantes. Nouwen (2019) descreveu bem isso na década de 1980, 
obra que foi republicada no Brasil pouco tempo atrás:
Uma das características mais óbvias da nossa vida 
diária é o acúmulo de tarefas. Na nossa experiência, 
os dias são cheios de coisas para fazer, pessoas para 
encontrar, projetos para terminar, e-mails para escrever, 
telefonemas para dar e compromissos para honras. 
Nossa vida muitas vezes parece uma mala abarrotada 
rebentando nas costuras (Nouwen, 2019, p. 21). 
Junto com as frases corriqueiras mencionadas acima, muitas vezes está 
o sentimento de orgulho de parecer alguém que é produtivo. Ainda de 
acordo com Nouwen, a produtividade traz uma forma de identifi cação, isto 
é, penso que sou o que faço. Entretanto, isso interfere signifi cativamente 
57| Teologia Contemporânea | FTSA | 
em nossa vida, alimentando um falso eu ou eu-objeto, como vimos. A 
identidade partindo do desempenho e produtividade nos infl uencia a não 
aceitar nossa humanidade. Não nos vemos mais como pessoas e sim 
como máquinas que precisam produzir mais. Com esse pensamento, 
uma hora o corpo deixa de suportar e o cansaço traz o abatimento junto 
com outras doenças neurais. 
É importante destacar, porém, que Han (2017) fala de uma diferença 
de tipos de cansaço. Nem todo cansaço é prejudicial e causa violência 
neural, existe o cansaço fundamental e o cansaço profundo. O cansaço 
fundamental inspira, permite com que as coisas não sejam efi cientes 
e produtivas, permite o não fazer. Já o cansaço profundo é voraz, 
incapacita de fazer não por querer, mas por não conseguir mais, é um 
esgotamento do ser que continua buscando desempenho. Ou como bem 
ilustrou Nouwen (2019), uma mala abarrotada de coisas rebentando nas 
costuras. Em algum momento ela não irá suportar mais e romperá. 
 A busca por desempenho e produtividade não se limita somente ao campo 
do trabalho, podemos perceber essa infl uência em outras esferas da vida. 
Queiroz (2013) identifi cou alguns tipos de espiritualidades presentes 
na contemporaneidade brasileira. Destacamos uma espiritualidade 
classifi cada como gnóstica e sensitiva, que é essencialmente dualista, 
isto é, o que é material é totalmente ruim e o que “espiritual” é bom, 
e é fundamentada sobretudo nas experiências emocionais. Essa 
espiritualidade fomenta uma busca incessante pela experiência com o 
sobrenatural e, caso não sinta nada de diferente, há algum pecado que 
precisa ser confessado ou falta fé. 
Não estamos menosprezando os sentimentos, eles sinalizam nossa 
humanidade, porém, uma ênfase excessiva pode ser prejudicial, uma 
vez que os sentimentos passam e o desejo de buscar mais experiências 
pode se tornar um vício, sempre querendo sentir algo a mais, ser “mais 
espiritual”. Uma produtividade religiosa que também resulta em fadiga, 
em esgotamento, em cansaço. Afeta o ser humano e causa uma ausência 
de sentido. No fundo, a busca por mais em diversas esferas da vida 
| Teologia Contemporânea | FTSA58
parece ser semelhante a correr atrás do vento, como diria Eclesiastes. 
Aliás, podemos observar neste livro da Bíblia, um Sábio que parece ser 
alguém curioso, explorador e que fez de tudo na vida. Vejamos um trecho 
do capítulo 2:
Depois de pensar muito, resolvi me animar com vinho. 
E, enquanto ainda buscava a sabedoria, apeguei-me à 
insensatez. Assim, procurei experimentar o que haveria 
de melhor para as pessoas em sua curta vida debaixo 
do sol. Dediquei-me a projetos grandiosos, construindo 
casas enormes e plantando belos vinhedos. Fiz jardins 
e parques e os enchi de árvores frutíferas de toda 
espécie. Construí açudes para juntar água e regar meus 
pomares verdejantes. Comprei escravos e escravas, e 
outros nasceramem minha casa. Tive muito gado e 
rebanhos, mais que todos os que viveram em Jerusalém 
antes de mim. Juntei grande quantidade de prata e ouro, 
tesouros de muitos reis e províncias. Contratei cantores 
e cantoras e tive muitas concubinas. Tive tudo que um 
homem pode desejar! Tornei-me mais importante que 
todos os que viveram em Jerusalém antes de mim, e 
nunca me faltou sabedoria. Tudo que desejei, busquei 
e consegui. Não me neguei prazer algum. No trabalho 
árduo, encontrei grande prazer, a recompensa por 
meus esforços. Mas, ao olhar para tudo que havia me 
esforçado tanto para realizar, vi que nada fazia sentido; 
era como correr atrás do vento. Não havia nada que 
valesse a pena debaixo do sol. (Ec 2:3-11, NVT)
Apesar de muito distante de nosso tempo, fazendo um pequeno paralelo 
o Eclesiastes agiu como alguém que tem como lema de vida o “Yes, we 
can”. Não negou a nada a si mesmo: grandes projetos, propriedades, 
bens, prazeres, tudo isso ele alcançou, e mesmo assim, com todas as 
suas conquistas, não satisfez a sua busca. Se o Eclesiastes fosse nosso 
contemporâneo, é bem possível que seria mais uma pessoa que sofrendo 
59| Teologia Contemporânea | FTSA | 
com a violência neural e com a falta de sentido na vida. Kivitz (2009), 
aponta que a falta de sentido ocorre porque somos utilitaristas com as 
pessoas, com as coisas e com as situações, isto é, as utilizamos para 
satisfazer um desejo pessoal. Ainda que todos sejamos utilitaristas em 
alguma medida, ele comenta que há um nível que envolve o desejo de 
uma experiência mágica, ou algo como se fosse um trampolim metafísico 
para alcançar um signifi cado escondido. As relações com as pessoas e 
coisas ganham forma utilitarista para chegar ao suposto ápice. No fi m, o 
que se percebe é ausência de sentido, o enfado, o cansaço.
Clément Rosset, em seu livro O real e seu duplo, desenvolve a tese de que, 
com relação ao real, nossa tendência é a de suprimi-lo numa “atitude de 
cegueira voluntária”, que nos faz ignorar o real, o singular, e dirigir nosso 
olhar para outro lugar (seu duplo), onde o real não está. De modo que, 
aquilo que anunciamos como sendo “real”, é na verdade o “outro”, visto 
que o real, em si, nos escapa. Ao abordar o mito narcísico, Rosset afi rma 
que a fragilidade ontológica de Narciso, que o levou à aniquilação de si, 
não foi a apreciação, o amor ou a grande aceitação pelo seu “eu real”, mas 
sua fi xação em uma espécie de “duplo psicológico”, ilusório. Ou seja, essa 
interpretação nos conduz a pensar que aquilo que Narciso contempla 
embevecido, na verdade, seria a sua não-realidade, uma representação 
(desejável) de si mesmo, da qual ele necessita para continuar existindo, 
para além do desespero de não-ser. Assim, de acordo com Rosset (2008, 
p. 108), “o erro mortal do narcisismo não é querer amar excessivamente 
a si mesmo, mas, ao contrário, no momento de escolher entre si mesmo 
e seu duplo, dar preferência à imagem”. 
Retornando ao diálogo com Ehrenberg e Han, o problema do narcisismo 
inerente à sociedade do desempenho e da positividade não estaria, 
assim, na incapacidade de ser quem se é, mas na rejeição de quem se é 
e na consequente incapacidade de ser o seu duplo. Essa parece ser, aliás, 
a única negatividade plausível no império da positividade.
Tudo isto se dá em um contexto em que “saúde e bem-estar” se tornaram 
palavras de ordem, objetos da idolatria contemporânea, cedendo, 
| Teologia Contemporânea | FTSA60
paradoxalmente, à pressão do desempenho ao transmitir a mensagem de 
que é preciso manter o bem-estar e a saúde a qualquer preço – às vezes, 
o preço é (eis o paradoxo) a própria saúde. E para este fi m cooperam as 
igrejas, as academias fi tness e os spas (templos do bem-estar); também 
as clínicas de estética, os laboratórios de genética, e até os sujeitos 
da cura, como os psiquiatras, se tornam também agentes do retorno à 
lógica do desempenho ao distribuir remédios contra disfuncionalidades 
provocadas pelo excesso de positividade, às vezes deliberadamente e 
sem um escrutínio cuidadoso (o que, em tese, ajudaria a precisar melhor 
a necessidade ou não do uso de medicamentos). 
Como observa Han (2017, p. 99), “elaborar o confl ito” é um processo lento 
e demorado, além de doloroso demais – e precisamos evitar a dor e a 
frustração de todas as formas! Assim, “é muito mais simples lançar mão 
de antidepressivos que voltam a restabelecer o sujeito funcional e capaz 
de desempenho”. Assim, o homo sacer (o homem sagrado) da sociedade 
do desempenho foi tipifi cado nas fi guras do homem e da mulher 
“saudáveis”, mas não necessariamente cheios de vida; converteram-se 
em “zumbis saudáveis e fi tness, zumbis do desempenho e do botox” 
(Han, 2017, p. 119). 
Como ainda observa Han,
A vida do homo sacer da sociedade de desempenho 
é sagrada e desnudada a partir de outra razão bem 
distinta. É desnuda porque está despida de toda 
transcendência, porque foi reduzida à imanência da 
mera vida, que deve ser prolongada a qualquer custo e 
com todos os meios. A saúde é elevada à nova deusa. 
Por isso, a mera vida se tornou sagrada. Os hominis 
sacri da sociedade de desempenho distinguem-se dos 
da sociedade soberana pela especifi cidade ampla de 
que são absolutamente impassíveis de serem mortos. 
Sua vida equipara-se à de mortos-vivos. Estão por 
demais vivos, para morrer, e por demais mortos para 
viver. (Han, 2017, p. 108-109)
61| Teologia Contemporânea | FTSA | 
No contexto da espiritualidade cristã a vida é, sem dúvidas, sagrada, 
tanto no sentido de que é uma dádiva graciosa do Deus da vida, quanto 
no sentido de que é (e deve ser, cada vez mais) humana. O problema do 
desnudamento sobre o qual fala Han é que ele dessacraliza a vida e o 
humano, não lhes respeitando o limite e a singularidade, de modo que 
o que hoje chamamos de “saúde e bem-estar” pode representar, muitas 
vezes, o seu oposto. E isso acontece quando passamos a acreditar que 
esse binômio consiste no próprio sentido da vida, e não o resultado de 
uma reverente coincidência: consigo, com o próximo, com a natureza e, 
assim, com o Deus da vida. 
Conclusão
Para fi nalizar, o que falta então é a aceitação de que as coisas são como 
são e não precisam necessariamente trazer alguma experiência de êxtase 
como consequência. Voltamos assim ao que comentamos nos tópicos 
anteriores, o conhecimento do verdadeiro eu ou do eu-humano. Uma 
vez que buscamos lidar com o conhecimento e a aceitação da nossa 
humanidade em um nível mais profundo, reconhecemos e buscamos 
aceitar as limitações das outras pessoas e das coisas também. Assim, 
impedimos com que o ciclo vicioso do excesso de positividade, nos 
esgote. Isso é claramente um desafi o, afi nal, estamos tão acostumados 
com isso que não é fácil agir e pensar diferente.
O problema da sociedade que tem o desempenho como mola-mestra 
não é propriamente “falta de tempo”, como tendemos a alegar, mas a 
vivência de um tempo sem aroma, como postulou Han em outro lugar. 
E o que seria um tempo sem aroma? É um tempo que foi feito para não 
durar, que perdeu de vista a experiência da durabilidade, da lentidão e 
da demora sem as quais a vida perde aroma e sabor, pois não pode ser 
devidamente desfrutada. Comer, rezar, frequentar a igreja, se relacionar, 
se exercitar, ter prazer, lazer e distração se tornaram práticas fugazes, 
prestes a se desintegrar em imagens no próximo telegrama instantâneo, 
mais conhecido como “Instagram”. Com isso, não estamos mais falando 
de “tempo” propriamente, mas da experiência humana no tempo. 
| Teologia Contemporânea | FTSA62
Uma experiência na qual se elimina a perspectiva espaço-temporal de 
perto ou longe, de aqui e lá, de agora, daqui a pouco ou depois, uma 
vez que nossa redenção aos Instagrams e WhatsApps da vida faz com 
que os intervalos sejam suprimidos “em benefício de uma proximidade 
e de uma simultaneidade totais. Elimina-se qualquer distância ou 
lonjura. Trata-se de fazer com que tudo esteja disponível aqui e agora. A 
instantaneidadese transforma em paixão. Tudo o que não pode se fazer 
presente não existe” (Han, 2016, p. 53). O ser, diz Han, é “muito mais do 
que presença” e empobrece um pouco mais cada vez que suprimimos ou 
limitamos seus momentos de ausência e distância. O fato interessante, 
que Han não menciona, mas dá a entender, é que essa necessidade de 
estar presente em todos os lugares, mesmo que na forma de um avatar, 
empobrece justamente a experiência da presença real, de estar aqui, 
de viver esse momento, nesse lugar, com essas pessoas, com meu ser 
inteiro e entregue ao agora. Que se encerra em um paradoxo espaço-
temporal e existencial: estou aqui, mas também em outros lugares, então 
realmente não estou aqui; conectado com muitos ao redor do globo, mas 
incapaz de me conectar com a pessoa que está perto ou diante de mim.
A suposta “falta de tempo” presente na mui repetida frase “não tenho 
tempo” é, na refl exão heideggeriana de Han, “sintoma de uma existência 
imprópria”, pois perdeu a capacidade de discernir a época, a vida e o modo 
como a gerimos. Uma vida pequena, que tende a se degenerar em uma 
morte pequena, pois não fez uso da capacidade de gestão do tempo a 
partir de uma refl exão sobre prioridades; ou que, mesmo fazendo, decidiu 
priorizar menos a vida, menos relacionamentos signifi cativos; em suma, 
menos o “verdadeiro eu” e mais a personagem, a representação ou o avatar 
virtualmente reproduzível. Então, não parece ser “tempo que nos falta pra 
perceber”, como questiona Lenine na canção “Paciência”. Falta-nos uma 
percepção transformada do tempo, bem como dos valores que na vida 
simplesmente não “escorrem pelas mãos”, nem podem ser manipulados 
sem consequências. O sonambulismo governa os passos de muita gente 
no tempo dessa sociedade do desempenho. Muitas delas estão acordadas 
e realizando muitas coisas sem estar realmente despertas. 
63| Teologia Contemporânea | FTSA | 
 Entretanto, é possível mudar de perspectiva a partir do momento 
em que nos permitimos parar. Por mais óbvio que isso seja, vamos ser 
francos, o quanto realmente levamos isso a sério? Podemos até lembrar 
e mencionar sobre a importância de parar enquanto princípio para 
descanso, porém, nosso ritmo continua sendo de ativismo. Na narrativa 
da criação, o próprio Deus descansa após ver que o que havia feito era 
bom (Gn 2:2). O tempo de descanso então é uma etapa fundamental em 
nossa contemporaneidade de violência neural. Esse tempo de descanso, 
na Bíblia mencionado como sábado, ou o Schabat, é sagrado, é singular. 
Considerando isso, talvez possamos aprender com o rabino Abraham 
Joshua Heschel (2014): 
O judaísmo é uma religião do tempo visando a 
santifi cação do tempo. Diferentemente do homem 
propenso para a espacialidade, isto é, aquele para quem 
o tempo é invariável, iterativo e homogêneo, para quem 
todas as horas são iguais, desprovidas de qualidade e 
conchas vazias, a Bíblia percebe o caráter diversifi cado 
do tempo. Não existem duas horas semelhantes. Cada 
hora é única e uma só, dada naquele momento, exclusiva 
e infi nitamente preciosa. (Heschel, 2014, p. 15) 
 Ainda de acordo com Heschel (2014, p. 23), no Schabat é que 
saímos da tirania das coisas e somos chamados para adentrar nos 
mistérios da criação, para se preocupar “especialmente com a semente 
de eternidade plantada na alma”. Se nos outros dias da semana corremos 
para conseguir dominar as coisas, no Schabat tentamos dominar o eu. É 
um tempo de repouso, contemplação e meditação. Essa é a sacralidade 
do tempo tão essencial na contemporaneidade. O parar se torna mais 
do que recuperar as forças para começar tudo novamente, mas é o 
momento em que há uma refl exão sobre a existência, um adentrar ao 
nível profundo de nossa identidade. Diferenciar nossa humanidade da 
mecanicidade do desempenho e produtividade.
| Teologia Contemporânea | FTSA64
Referências bibliográfi cas
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Hardcover, Minneapolis: Fortress Press, 1994.
| Teologia Contemporânea | FTSA66
Unidade III – Sociedade
Introdução
Quando não estão atuando como auxiliares de 
economistas, cientistas políticos, sociólogos e assim 
por diante – e faz parte da responsabilidade deles 
atuarem dessa maneira – os teólogos deveriam 
concentrar-se menos em acordos sociais e mais no 
fomento do tipo de agentes sociais capazes de imaginar 
e criar sociedades justas, autênticas e pacífi cas, e na 
concepção de um clima cultural no qual esses agentes 
possam prosperar. (Miroslav Volf)
Como a epígrafe acima, de Miroslav Volf, fala por si mesma, e endereça 
uma questão importante a ser tratada nessa unidade, digamos sem 
rodeios: a sociedade que queremos formar passa necessariamente pela 
refl exão sobre que tipo de pessoa (e de igreja) que queremos ser. Por 
isso é que nesse curso falamos nessa tríade – pessoa, sociedade e igreja 
–, sem, porém, imaginar ou pensar que elas formam unidades estanques, 
separadas uma da outra. 
Isso signifi ca que nessa unidade prosseguiremos tratando de problemas 
ou questões concernentes à sociedade e ao que está na agenda pública 
da teologia contemporânea, mas ainda integrados com a questão da 
pessoa, e, mais ao fi nal, na transição, também da igreja. Queremos 
explorar três tópicos em particular: (1) A questão da justiça do Reino: 
o que ela é e o que signifi ca e implica? (2) A questão ecológica: por que 
ela é importante e que clamores teológicos evoca? (3) A questão da 
cultura do espetáculo: em que ela consiste e em que tipo de pessoas em 
sociedade ela tem nos transformado? 
A tese básica desse meio de caminho é de que os problemas que 
afetam a sociedade, afetam antes a pessoa e se mesclam com os da 
igreja. Elegemos, para essa refl exão, temas que são ao mesmo tempo 
67| Teologia Contemporânea | FTSA | 
atemporais (como a questão da justiça e da ecologia) e do momento (a 
cultura do espetáculo). Queremos pensar juntos em como podemos criar 
um clima social e cultural que possa fazer os agentes do Reino de Deus 
espalhados pelo mundo atual a prosperar e a ser efi cazes. 
Objetivos da unidade
1. Identifi car os signifi cados teológicos e práticos da justiça do Reino;
2. Reconhecer a importância e os clamores da questão ecológica hoje;
3. Desenvolver uma mentalidade crítica sobre a chamada cultura do 
espetáculo e seus refl exos na espiritualidade hoje.3.1. A justiça do Reino
Há uma questão inerente a todas as esferas da vida, que apesar de não 
parecer, parte obrigatoriamente da maneira como o eu (verdadeiro ou 
falso) se encaixa ou atua, respectivamente, na sociedade. Ela também 
é inerente a todas as causas, lutas, bandeiras, agendas políticas e, claro, 
todas as teologias. Estamos falando da justiça. 
Não há pleito que não a invoque, direta ou indiretamente. Não há lei 
que não a tenha como princípio legal. Não há cidadão que declare 
não a querer. Da mesma forma, as teologias contemporâneas, como 
por exemplo: teologia da libertação, teologia feminista, teologia negra, 
teologia indígena, teologia da prosperidade, teologia universal e por aí vai, 
são teologias que têm como princípio motor a justiça. Melhor explicando, 
a base para todos esses discursos está no cumprimento da justiça para 
um grupo que se sente injustiçado, ou na manutenção e no cultivo da 
justiça por um grupo que pode vir a ser injustiçado.
Mas essa busca por justiça não é nova. Desde quando se tem 
conhecimento da existência de agrupamentos humanos a justiça faz 
parte da organização desses grupos. Nas histórias das antigas religiões e 
| Teologia Contemporânea | FTSA68
acima de tudo, que é de nosso interesse maior, do Antigo Oriente Próximo, 
a justiça é tema que sempre está em alta. Um Deus justo, mediando por 
meio de um rei justo (ou que deveria ser justo), fazendo justiça por seu 
povo, seja abençoando-os pelos bons caminhos ou castigando-os pelos 
seus erros. Ao menos é assim que parte da história de Israel é contada na 
bíblia. Os livros bíblicos escritos ou reeditados no período do pós-exílio, 
principalmente com a reforma política religiosa que Esdras e Neemias 
organizaram (ver box “Saiba mais” abaixo), partiam deste princípio: 
Deus é justo e faz justiça a todos. Por isso, aqueles que se mantiverem 
na Lei (neste sentido, trata-se da Lei judaica já interpretada por seus 
líderes, com os ritos, as separações, sacrifícios etc.) receberão as justas 
recompensas. Aqueles que, porém, a descumpriram, também receberão 
seus justos castigos. 
SAIBA MAIS
É comum lermos os textos bíblicos sem uma preocupação maior 
com o processo de redação dele. Além disso, também é comum 
não nos atentamos para o fato de que a história de Israel não foi 
sempre a história dos judeus. Há um longo processo e um tortuoso 
caminho na construção da religião judaica como a conhecemos, 
qual seja, a religião da Palestina do Primeiro Século, nos tempos em 
que Jesus viveu. Para que o judaísmo e as Escrituras chegassem 
aonde chegaram e da forma como chegaram, muitos movimentos 
político-religiosos se estabeleceram. Dentre eles o de Ezequias 
e Josias por volta dos anos sétimo e, posteriormente, Esdras e 
Neemias, por volta do século sexto. 
Segundo estudiosos como Finkelstein e Silberman (2018) o 
processo de escrita e redação da história e da crença do povo 
de Israel se inicia por volta dos anos 700 a.C, entre o primeiro e 
segundo exílio. Mas é após o segundo exílio (Babilônico) que uma 
nova teologia surge para infl uenciar e consolidar o povo judeu. Era 
69| Teologia Contemporânea | FTSA | 
preciso reorganizar o povo e alinhar o entendimento daqueles que 
haviam retornado do exílio com suas novas perspectivas e crenças, 
com aqueles que haviam fi cado em Canaã. Neste momento 
Esdras e Neemias se tornam peças-chave para compreensão da 
consciência judaica que se estabelecerá no século I d.C. Para 
os rabis da Palestina do primeiro século, foi Esdras quem “teve 
um papel decisivo na implantação das regras que moldaram e 
consolidaram os rumos do judaísmo da sinagoga até os dias atuais” 
(SCARDELAI, 2012). Inclusive, para Finkelstein e Silberman (2018, 
p. 300), o judaísmo justamente nasceu nesse momento da história. 
A terminologia antes tida como reino de Judá, passa a ser Yehud, 
em aramaico. Os judaítas, povo proveniente de Judá, tornaram-se 
conhecidos como os Yehudim, ou seja, os judeus. Scardelai (2012, 
s.p.) alega: Esdras representa um divisor de águas na formação da 
literatura das Escrituras.
É neste momento que a religião de Israel se torna separatista e que 
Deus torna-se um juiz castigador ou abençoador, de acordo com as 
Leis. O Deus dinâmico, se torna estático em seu Templo. O Deus da 
humanidade, se torna o Deus de Israel. O Deus do amor, se torna o 
Deus do comércio retributivo, do sacrifício, do privilégio. Mas que, 
graças aos profetas e ao nosso senhor Jesus, pode manifestar sua 
verdadeira face. 
Para mais informações sobre os impactos das reformas na teologia 
judaica, o livro de Scardelai é uma boa referência.
FINKELSTEIN, Israel. SILBELMAN, Neil Asher. A Bíblia desenterrada. 
A nova visão arqueológica do Antigo Israel e das origens de seus 
textos sagrados. Petrópolis: Editora Vozes, 2018.
SCARDELAI, Donizete. O escriba Esdras e o Judaísmo (Biblioteca 
de estudos bíblicos). Paulus Editora. Edição do Kindle.
| Teologia Contemporânea | FTSA70
Equivocadamente, muitas tradições judaicas e cristãs abraçaram 
esse princípio, ignorando ensinamentos preciosos de outras partes 
do texto bíblico. Para os cristãos, o equívoco se agrava, pois ignora-
se os ensinamentos de Jesus Cristo sobre a justiça divina. E a boa-
nova, passa a ser uma novidade antiga, ou um vinho novo em odres 
velhos, que acabou por se estragar e não prestar mais para seu fi m. 
O livro de Jó é um bom panorama para analisarmos que a justiça 
divina não recompensa o bom, tampouco castiga o mal, como 
tentaram propor os amigos de Jó. A justiça divina é muito mais 
profunda do que isso. 
E, afi nal, se todos estão buscando por justiça, por que é que 
ainda vivemos em um mundo tão injusto? Talvez seja porque 
não compreendemos corretamente a justiça pela qual estamos 
buscando. 
Justiça e a pessoa 
Como mencionamos no início deste tópico, a questão da justiça está 
diretamente ligada ao eu, à autoimagem. Isso porque a forma como o 
eu enxerga a si mesmo também é determinante para a forma como ele 
enxerga o outro. Compreender este fato é essencial para a compreensão 
da justiça divina, ou seja, justiça do Reino, como proposta por Jesus e 
pelos profetas anteriores.
Para essa compreensão iremos utilizar os ensinamentos de Paul Tillich, 
que em 1952 escreveu a obra Amor, poder e justiça, na qual declarou 
que um ser (humano) que se excede, ultrapassa seus limites, desejando 
aumentar o seu poder de ser, de forma que inclua e conquiste aquilo 
que não é (o não-ser), perde-se, destruindo a forma que lhe foi dada. Ao 
não conseguir a nova forma (transcendente, do humano-deus), tende ao 
aniquilamento. A perda da forma, segundo Tillich, é o que poderíamos 
entender como injustiça. Pois, ao perder a forma, o ser não mais consegue 
cumprir a sua função. Não é mais capaz de realizar aquilo para o que foi 
71| Teologia Contemporânea | FTSA | 
separado para realizar. Neste sentido, a justiça, como oposição à injustiça, 
é a capacidade do ser de cumprir sua fi nalidade. De ser dinâmico, dentro 
do seu espaço, mantendo-se íntegro na composição criada. 
Assim, lutar por justiça é lutar para poder desempenhar integralmente o 
papel para o qual foi designado. Ora, se, assim como afi rmado na unidade 
anterior, fomos criados para sermos humanos e, enquanto totalmente 
humanos, desenvolver um ambiente de harmonia e cultivo da criação, 
qualquer reivindicação que impeça a integralidade do eu-verdadeiro,
e que implique em ambientes desarmônicos e destrutivos, não é uma 
reivindicação por justiça. 
Tillich, por sua vez, utiliza a analogia da árvore como representação para 
essa afi rmativa. Segundo ele:
O fundamento da justiça é a reivindicação intrínseca 
por justiça de tudo aquilo que existe. A reivindicação 
intrínseca de uma árvore é diferente da reivindicação 
intrínseca de uma pessoa. As reivindicações por 
justiça baseadas nas diferentes formas nas quais o 
poder de ser se realiza são diferentes. Mas elas são 
reivindicações justas se são adequadas ao poder de 
ser sobre o qual estão baseadas.A justiça é, antes de 
tudo, uma reivindicação suscitada silenciosamente 
ou oralmente por um ser sobre os fundamentos de 
seu poder de ser. Ela é uma reivindicação intrínseca, 
expressando a forma na qual uma coisa ou uma pessoa 
é instituída. (Tillich, 1952, p. 63)
A partir deste entendimento, podemos afi rmar que a justiça está 
diretamente ligada às questões ontológicas, não sendo uma categoria 
social apenas, mas é uma categoria necessária para as ontologias. 
Um ser humano que reivindique ser uma árvore não está reivindicando 
justamente, assim como não está quando reivindica ser mais do que o 
outro, melhor do que o outro, dominador do outro. Pois essa função não 
| Teologia Contemporânea | FTSA72
lhe é intrínseca. Como lembra Thomas Merton (2017, p. 41), “uma árvore 
imita a Deus sendo o que é: uma árvore”. Da mesma forma, raciocina ele, 
a minha santidade consiste em reconhecer quem sou e quem fui criado 
para ser e assumir isso com júbilo. Ou seja, ser santo é ser quem eu sou. 
Pois sendo quem sou realizo na vida a potencialidade da imago-Dei que 
em mim habita. Em outro lugar, Merton explica a questão assim:
A imagem de Deus é o ponto mais alto da consciência 
espiritual no ser humano. É o ápice da autorrealização. 
Isto se alcança não simplesmente pela refl exão sobre 
o seu real e presente si-mesmo: o nosso verdadeiro si-
mesmo pode estar longe de ser “real”, uma vez que pode 
estar profundamente alienado de nossa identidade 
espiritual mais profunda. Para alcançar o “si-mesmo 
verdadeiro” é preciso ser libertado pela graça, virtude e 
ascese desse ilusório e falso “si-mesmo” que criamos 
por nossos hábitos de egoísmo e por nossa constante 
fuga da realidade. (Merton, 2006, p. 34-35). 
Estudar justiça é estudar o ser. Fazer justiça é fazer o eu se tornar eu-
verdadeiro, sem romper injustamente com a fi nalidade do humano. Mas 
não só isso, é preciso lembrar que o eu-verdadeiro, em sua fi nalidade, 
precisa estar harmonizado com o outro, com seu criador e com toda a 
criação. Portanto, é preciso quebrar com todo o comportamento, discurso 
ou hábito que também impeça o outro de ser o seu eu-verdadeiro. Se nossa 
teologia, nosso dogma, nossos sentimentos, falas e comportamentos 
induzem o outro ao cultivo de seu falso eu, ao personagem, a justiça se 
esvaiu e a injustiça se impôs. Assim também é quando se impede que 
o outro seja quem é. Quando o outro passa a ser ninguém, passa a ser 
coisa. Não há personagem, não há ser. 
Neste cenário, portanto, não há justiça. Pois não há equilibro e harmonia, 
como deveria haver nas relações. Portanto, “ser justo para consigo 
mesmo signifi ca realizar tantas quantas potencialidades for possível 
sem perder-se em rompimentos e caos” (Tillich, 1952, p. 68), fazendo 
73| Teologia Contemporânea | FTSA | 
sobreviver o seu eu e o eu do outro, ambos verdadeiros. Até porque, como 
propõe os estudos de Platão sobre o tema, a justiça é a união entre o ser 
individual e os seres sociais. Não há justiça na individualidade, pois não 
há ser na individualidade. Sem o grupo social o ser não tem razão de ser, e 
nenhuma defi nição lhe seria útil. A justiça, portanto, é a junção do coletivo 
em que todos podem ser. É aí que entramos na justiça do Reino de Deus. 
Justiça e o Reino de Deus neste mundo
Não são poucos os textos que falam sobre justiça na bíblia. No Antigo 
Testamento temos fi guras emblemáticas que clamavam por atos de 
justiça no lugar de atos de religiosidade, como por exemplo Isaias, 
Jeremias, Amós, Miqueias, Oséias. No Novo Testamento, os evangelistas 
reforçam os ensinamentos de Jesus sobre a justiça. Aliás, segundo as 
palavras do evangelista Mateus, Jesus ordenou que, em primeiro lugar, 
buscássemos o Reino de Deus e sua justiça (Mt 6.33). Não é primeiro 
o Reino e depois a justiça, também não é a justiça e depois o Reino. Da 
mesma forma, não é buscar qualquer justiça, é buscar o Reino de Deus 
e a sua (do Reino e de Deus) justiça. Por isso, é indispensável a todos 
quantos creem em Deus e em seu fi lho Jesus Cristo, que busquem a 
compreensão da justiça (do Reino) como sendo equivalente à vivência 
no Reino. 
Para não perdemos o fi o condutor deste tópico, ressaltamos que a justiça, 
como no tópico anterior, se faz quando o eu-verdadeiro emerge (ou sai 
das sombras) e permite que os outros sujeitos, em convivência coletiva, 
também possam viver seus eus-verdadeiros. Agora, o que isso tem a ver 
com a justiça do Reino de Deus? Absolutamente tudo! 
A única maneira de viver em justiça é viver sob o Reino de Deus. E a única 
maneira de viver plenamente sob o Reino de Deus é viver em justiça. Isso 
acontece quando aceitamos e entendemos a autoimagem. Quando a 
alma, já não mais cede ao reino humano, não busca mais o status da 
produtividade, não se permite mais os infartos psíquicos descritos por Han 
(2017) na obra que estudamos (Sociedade do Cansaço). Isso acontece 
| Teologia Contemporânea | FTSA74
quando o eu vive tão plenamente que promove e propicia o outro a viver 
plenamente também. É por isso que reino e justiça não podem andar 
separados e é por isso que a justiça é também uma questão ontológica. 
Quando os textos bíblicos falam sobre órfãos, viúvas, estrangeiros, 
crianças, doentes, cegos, e em tantos outros, não falam sobre vingança, 
nem em substituição de espaços, falam em justiça. Ou seja, em promover 
um espaço onde todos os eus-humanos não são coisas, não são objetos, 
não são um bando de ninguéns. Mas são humanos dos quais dependo 
para que a minha função inicial se cumpra e assim eu também seja 
plenamente eu. Para compreender essa lógica é preciso ter em mente 
a plenitude do ser humano como a da poesia do Éden, de Gênesis 1-2. 
A justiça portanto é o ser humano, que vendo-se nus, não têm de que se 
envergonharem. São equivalentes. Tanto diante de Deus, quanto diante 
do mundo. 
Portanto, a justiça que se aguarda da parte de Deus é a justiça do Reino de 
Deus. Não é uma nova justiça. É uma justiça que já está disponível. Que 
sempre esteve. O que se espera, na verdade, é que ela se cumpra de uma 
vez por todas. Moltmann (2018, p. 75-76) afi rma que justiça, comumente 
ligada à julgamento, nada tem a ver com a recompensa. Não se trata, 
portanto, de Deus recompensar os bons e punir os maus. A justiça de 
Deus, tem a ver com o estabelecimento da igualdade dos ser humanos
qua humanos. Julgar o mundo com justiça é devolver a cada prejudicado 
a sua integralidade do eu, é retirar de cada homem-deus, a supremacia 
que não lhe pertence, o excesso e o exagero que também o impede de 
exercer integralmente o eu. Segundo Moltmann: 
Julgar não tem nada a ver com punição, mas com 
o soerguimento da pessoa e sua salvação, com a 
colocação de todas as coisas em ordem. O rei precisa, 
portanto, cuidar para que o forte não prejudique o 
fraco e que as viúvas e os órfãos não deixem de ser 
socorridos. Ele deve, igualmente, proteger a nação 
da exploração. Somente quando conhecemos essas 
75| Teologia Contemporânea | FTSA | 
representações do “sol da justiça” poderemos entender 
que, no Antigo Testamento, o julgamento de Deus não 
precisa ser temido, mas sim saudado como a salvação 
para os seres humanos e para a terra: “Ele julgará a 
terra com justiça”. (Moltmann, 2008, p. 75-76)
Concordando com esse entendimento, temos os ensinamentos do 
biblista Fitzmyer (1987, p. 406), segundo o qual a palavra justiça, no grego 
κρίσις (krisis) signifi ca, em geral, “juízo” e o juízo no sentido do “direito”. 
O direito de ser, ser aquilo que foi formado para ser, nem menos nem mais 
do que isso. Sendo assim, a justiça de Deus não deve ser entendida como 
aquela que cuida de constatar o bem e o mal, a fi m de dar recompensas 
a cada um. Antes disso, a justiça de Deus é aquela que cria o direito e o 
faz se cumprir na vida do injustiçado. Moltmann (2008, p. 75-76) afi rma 
que essa justiça “pode também ser chamada de misericórdia. Não há 
qualquer contradição entre justiça e misericórdia”, já que a justiça tira o
ser da misériade não ser o que deveria ser.
Para Tillich, a justiça divina deve ser entendida como um processo criativo, 
em que não se pode calcular ou quantifi car seus efeitos. Deus cria situações 
em que a justiça possa se fazer presente igualmente a todos. Neste sentido, 
também é o entendimento de Albert Nolan (1987) sobre a justiça do Reino 
de Deus. Para Nolan, ela pode ser claramente exemplifi cada por meio da 
parábola dos trabalhadores da vinha em Mt 20.1-15, ou na parábola do 
fi lho pródigo de Lc 15.11-32. Para os trabalhadores da vinha, assim como 
para o irmão do fi lho pródigo, a justiça era como vista pelos zelotas e 
pelos fariseus por exemplo. Era uma justiça retributiva, sem compaixão, 
sem amor. Mas para o Senhor da vinha e para o pai, o importante é que 
eles recebessem o que fosse necessário para suas integridades. Aos 
trabalhadores, independente das horas, era preciso receber algo que os 
dignifi casse. Ao fi lho, da mesma forma. 
Naquilo que Tillich chamada de justiça criativa, que Nolan chama de 
amor e compaixão e que Moltmann chama de salvação, todos os seres 
humanos são colocados como equivalentes aos olhos divinos. Não há 
| Teologia Contemporânea | FTSA76
exaltação sobre o outro, nem castigo que o rebaixe sob o outro. A justiça 
se presentifi ca para que o universo volte a viver o romance do Éden. 
Por fi m, todas as teologias, discursos, ações, projetos e leis, para 
que sejam verdadeiramente justas aos olhos de Deus, devem ter por 
fi nalidade a promoção do verdadeiro eu. E isso signifi ca assumir que: 
“Leis governando a estrutura familiar de outro período ou suas relações 
econômicas podem destruir famílias e romperem a unidade da classe 
desse período” (Tillich, 1952, p. 59), e essas Leis podem ser políticas ou 
religiosas. Portanto, é preciso aceitar que a justiça não é só criativa, mas 
ela é dinâmica em todo tempo. E sua base de referência é o amor. Em 
amor Deus nos criou e em amor ele nos orienta a ser o que fomos criados 
para ser, dentro do espaço e da sociedade em que estamos inseridos. 
3.2. A questão ecológica
A partir do proposto acima, podemos agora seguir com uma refl exão da 
justiça que se aplica aos demais elementos criados para ocupação do 
cosmos. Entraremos, portanto, nas questões ecológicas, as quais têm 
impactado diretamente nossa sociedade. De forma resumida, percebe-
se que a injustiça econômica e social dos países ricos sobre os países 
mais pobres resulta naquilo que podemos chamar de injustiça ecológica, 
a saber: desfl orestamento, latifúndio, poluição e outros problemas. Isso 
acontece justamente pela noção distorcida do eu, como já mencionado. É 
a luta pelo poder, pela exploração, por sempre ter mais. E os impactos são 
vistos não somente na relação com o outro, mas em toda a criação divina. 
A propósito, nossa base de compreensão da integralidade da vida parte 
das seguintes dimensões dos relacionamentos: 1) eu com Deus, 2) eu 
consigo mesmo, 3) eu com o próximo, e 4) eu com o restante da criação. 
Sendo esta última muitas vezes esquecida ou colocada em um patamar 
inferior nas discussões teológicas, entretanto, é uma das temáticas mais 
necessárias e urgentes no que tange à justiça do Reino na sociedade.
A crise ambiental se tornou uma das grandes pautas da atualidade, 
sobretudo da metade do século XIX para cá. Contudo, González (2014) 
77| Teologia Contemporânea | FTSA | 
aponta que ela começou séculos atrás, tendo como dois principais 
motivos: o “descobrimento” da América pelos europeus, e, o avanço 
das ciências aplicadas. O “descobrimento” da América, sua conquista e 
colonização deu uma nova perspectiva aos europeus sobre os recursos 
naturais com a impressão de que eram inesgotáveis devido sua grandeza. 
Nós conhecemos bem sobre a exploração histórica que o Brasil sofreu de 
outros países. Além disso, o avanço científi co no século XIX aprimorou 
os métodos de exploração. 
Ainda de acordo com González (2014), os cristãos muitas vezes não 
questionam os impactos sofridos na natureza em prol do suposto 
progresso, inclusive, os países que causaram maior dano ambiental, são 
os em que encontramos uma forte tradição cristã. Essa falta de refl exão 
pode ser fruto de uma teologia distorcida, na qual o ser humano se 
compreende como acima do restante da criação, além de, por entender 
que a volta de Jesus está próxima e o destino é o céu, não importa o que 
acontece com a terra e a natureza. 
Claro, é inegável que parte das consequências desses dois pontos foi 
positiva, houve muito avanço em termos tecnológicos e médicos, por 
exemplo, o que permitiu melhorar a qualidade de vida em alguns aspectos. 
Ao mesmo tempo, com o passar dos séculos, o problema ambiental foi se 
agravando até chegarmos em uma crise sem precedentes na atualidade. 
Kirk (2006) e Stott (2011) mencionam rapidamente alguns problemas que 
enfrentamos na contemporaneidade. Você já deve ter ouvido falar deles, 
mas pare mais uma vez para refl etir sobre esses problemas. O primeiro 
deles, que, de uma forma ou de outra, acaba infl uenciando os outros, é o 
crescimento populacional. Estima-se que, em 2050, a população mundial 
chegará em 9,5 bilhões. Do primeiro ao sexto bilhão houve um intervalo 
de quase duzentos anos, a previsão agora é de que em cinquenta 
anos, haja um crescimento de três bilhões. É o paradoxo que podemos 
encontrar na ordem em Gênesis de “sejam férteis e multipliquem-se!” (Gn 
1.28). A multiplicação está acontecendo, mas surgem dúvidas de como 
será possível alimentar todas as pessoas com os recursos naturais se 
esgotando. Há crescimento, mas falta sustentabilidade.
| Teologia Contemporânea | FTSA78
Como recursos naturais podemos citar as fl orestas desmatadas, os 
combustíveis fósseis que não podem ser repostos, além da extinção de 
diversas espécies por causa da caça e pesca desenfreada e das terras 
férteis que dão lugar às indústrias, estradas, latifúndios. Outro problema 
claro é a poluição que por causa das fábricas e produção em massa, 
afetam o clima, prejudicam a vida natural nos mares, rios e fl orestas. 
Por último, mas não menos importante, a produção de lixo. Quanto mais 
pessoas vivendo debaixo da lógica da produção para consumo excessivo, 
maior será a quantidade de lixo que essas pessoas produzirão, lixo esse 
que não se decompõe facilmente, ao contrário, pode demorar até séculos 
para que isso ocorra. 
Observando esses problemas, concordamos com González:
Ao tentar nos aproximarmos teologicamente das 
questões ecológicas, temos de fazê-lo acima de tudo 
com humildade e confi ssão de pecados. Podemos 
estar convencidos, como eu estou, de que há na fé 
cristã os recursos necessários para se enfrentar essa 
crise. Contudo, ao mesmo tempo temos que reconhecer 
que a igreja cristã e nós mesmos nem sempre fi zemos 
uso desses recursos, e que com demasiada frequência 
nos deixamos levar por nossos interesses, nossa 
comodidade ou simplesmente por nossa inércia. 
(González, 2014, p. 37). 
Quais são esses recursos que a fé cristã pode ter para enfrentar a crise 
ecológica? Faremos a seguir considerações sobre como então proceder 
ou pelo menos perceber as questões ambientais.
 Inicialmente, é necessário revisitarmos o texto de Gênesis, que já 
estudamos rapidamente na unidade anterior, mas agora será abordado 
por outras perspectivas. Tanto o primeiro quanto o segundo capítulo, que 
revelam duas narrativas sobre a criação. Do primeiro capítulo surgiu a 
interpretação do ser humano como dominante soberano sobre a criação. 
79| Teologia Contemporânea | FTSA | 
Costumeiramente observamos, no verso 28, após a ordem de: “Sejam férteis 
e multipliquem-se!”, a sequência é: “Encham e subjuguem a terra! Dominem 
sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os animais que 
se movem pela terra” (Gn 1.28, NVI). Em outras versões utiliza-se o verbo 
“sujeitar”, ambas possuem um sentido de dominador na força, violento. 
De fato, Deus diz para que o ser humano domine sobre a criação, 
entretanto, González (2014)corpo sobretudo no contexto alemão ainda na primeira metade 
do século XX. Incluem-se nesse bojo uma série de outras correntes e 
seus expoentes que surgem ao longo deste século, até a emergência de 
movimentos teológicos no chamado mundo do dois terços – Teologias 
Africanas, Latino-Americanas, Asiáticas, de recorte identitário, racial, 
libertário, de gênero etc. –, a partir de meados do século XX, o que vai 
tornar um pouco mais complexo e colorido um cenário até então muito 
centrado no Ocidente. 
7| Teologia Contemporânea | FTSA | 
Saiba mais: Teologia Contemporânea 
Um bom exemplo dessa discussão pode ser encontrado no livro 
A teologia do século XX, de Stanley Grenz e Roger Olson (2003). A 
tese dos autores é interessante, de que “na melhor das hipóteses, 
a teologia cristã buscou sempre um equilíbrio entre as verdades 
bíblicas da transcendência e imanência divinas” (p. 9). 
Grosso modo, teologicamente falando, transcendência signifi ca 
Deus além do humano e do mundano, enquanto imanência signifi ca 
Deus presente e encarnado no mundo e no humano. 
A tese, talvez – até pela própria forma como os autores decidem 
apresentar a teologia vintecentista –, poderia ser reelaborada 
assim: a teologia cristã parece ter se desenvolvido a partir de uma 
tensão entre a transcendência e a imanência divinas, ora pendendo 
para uma, ora para outra. Porque é precisamente esse quadro 
que os autores apresentam no livro. Isto é, utilizando os verbos 
dos quais eles lançam mão, de uma teologia ou de movimentos 
teológicos que ora buscam reconstituir a transcendência (como a 
teologia liberal), ora parecem se revoltar contra a imanência (como 
a teologia neo-ortodoxa), ou propõem um aprofundar da imanência, 
como no caso de Paul Tillich, ou mesmo um transcender dentro 
da história, como eles descrevem a “Teologia da esperança” de 
Moltmann, e assim por diante.
A perspectiva de continuidades históricas que conectam os 
pontos da teologia do século XX (que outros autores chamam 
de “contemporânea”) aos da do século anterior, fi ca evidente na 
seguinte explicação:
Em vários aspectos, as prioridades teológicas do 
século 20 foram determinadas pelos resultados 
desses acontecimentos que mudaram o mundo 
[como a Primeiro Guerra Mundial, por exemplo 
| Teologia Contemporânea | FTSA8
(acréscimo nosso)]. A teologia do século 20 teve 
início com uma tentativa de recomeçar a partir das 
cinzas da guerra que devastou não apenas a Europa, 
mas também a teologia cultural europeia. Assim, não 
é de se surpreender que a teologia do novo século 
surgiu, antes de tudo, como protesto contra temas 
centrais de sua predecessora do século 19, incluindo 
a ênfase à imanência, que era tão importante para a 
cultura ocidental desde a Renascença. (p. 10)
O que basicamente os autores estão dizendo é que a teologia do 
século XX pode ser mais bem compreendida quando contrastada 
com a do século XIX. Embora seja uma observação razoável – afi nal, 
nenhuma teologia surge nem se desenvolve num hiato histórico –, ela 
também possivelmente revela uma das razões pela qual, ao menos 
no modo clássico de se conceber a teologia contemporânea, os 
estudiosos adotaram a perspectiva de uma continuidade e de uma 
“longa duração”, para usar um termo clássico de F. Braudel. Ao mesmo 
tempo, pode ser sintomático de uma mudança crítica de mentalidade 
que Grenz e Olson tenham escolhido a expressão “teologia do século 
XX” ao invés de “teologia contemporânea” em seu estudo. 
A mesma pergunta, anteriormente dirigida à história, pode ser feita à 
teologia: podemos dizer que a teologia de Adolf von Harnack (teólogo 
alemão do século XIX) é contemporânea da de Gustavo Gutiérrez (teólogo 
peruano do século XX)? É claro que não, porque elas não coincidem 
historicamente. Então, como colocar ainda as teologias feitas por ambos 
como parte da teologia contemporânea? É claro que isso parece não fazer 
o menor sentido, mas, como vimos, tem sua explicação no modo como os 
pensadores do contemporâneo encontraram para resolver esse imbróglio 
entre diferentes épocas e seus movimentos. Como explica Agamben 
(2009, p. 71), “aqueles que procuraram pensar a contemporaneidade 
puderam fazê-lo apenas com a condição de cindi-la em mais tempos, 
9| Teologia Contemporânea | FTSA | 
de introduzir no tempo uma essencial desomogeneidade”. Em outras 
palavras, a solução que esses pensadores encontraram para o problema 
do contemporâneo foi o de dividi-lo em um número maior de “tempos” 
diferentes entre si em muitos aspectos, mas igualmente designados 
como contemporâneos segundo tais ou quais propósitos. 
Nesta disciplina, porém, partirmos do pressuposto de que precisamos 
repensar a teologia contemporânea. Há muitos modos de se fazer isso, 
sem dúvida alguma. Umas das possibilidades – seguindo a maneira 
tradicional, ainda histórico-linear – seria propor um novo recorte temporal, 
quem sabe pensando que a teologia contemporânea tenha começado 
após a década de 1950, na medida em que testemunhamos tentativas 
de ruptura fi losófi cas e culturais com a modernidade, movimento que 
recebeu o nome de “pós-moderno”. Um dos problemas disso é que alguns 
estudiosos do pós-moderno podem argumentar que essas tentativas de 
ruptura começaram antes mesmo de esse nome aparecer por volta da 
metade do século XX, talvez com o fi lósofo Friedrich Nietzsche ainda 
no século XIX. É que os estudiosos, especialmente os historiadores, têm 
esse vício incorrigível de busca das origens, o que sempre torna difícil 
analisar um fenômeno por si mesmo, dentro de seu contexto e com suas 
peculiaridades próprias, sem a tentação de fazer divagações históricas 
em busca de outras explicações. Deixemos de lado, então, essa opção. 
Uma possibilidade mais vantajosa, a nosso ver, é a de analisar 
teologicamente alguns temas contemporâneos a partir de determinados 
enfoques, como os de pessoa, sociedade e igreja que elegemos nesta 
disciplina. Alguns desses temas, quem sabe, sejam assim considerados 
contemporâneos pela persistência de sua importância, isto é, por 
resistirem à prova do tempo, como o tema da “justiça”, por exemplo. 
Nesse caso, a temporalidade e o contexto são importantes, sim, mas 
não necessariamente para a defi nição do que seja o fazer teológico 
contemporâneo. “Contemporânea”, assim, não é tanto uma era ou época 
em si quanto o seu possível Zeitgeist (o espírito de uma época), sem que 
| Teologia Contemporânea | FTSA10
consigamos (ou mesmo precisemos) determinar exatamente quando 
começa e quando termina. Como captar, porém, aquilo que parece 
mudar constantemente? Certamente um desafi o a ser pensado enquanto 
fazemos teologia e tentamos entender o contemporâneo. 
De todo modo, o que quer que chamemos de “Teologia Contemporânea” 
precisa passar por determinados crivos de entendimento, e já deixamos 
claro que a compreensão a ser expressa nessa disciplina não passa nem 
por essa noção de um período longo que começa no século XIX, tampouco 
pela análise histórica de uma série de correntes que são mais ou menos 
enquadradas dentro desse período que abrange quase dois séculos. 
Entendemos, portanto, que para compreender melhor a expressão 
“Teologia Contemporânea”, precisamos desmembrá-la, começando por 
defi nir o que vem a ser o contemporâneo ou que contemporaneidade 
signifi ca. Vamos a isso nesse momento. 
1.2. O que signifi ca ser contemporâneo?
Nesse tópico, estabeleceremos um diálogo com Giorgio Agamben 
em seu ensaio chamado O que é o contemporâneo? (2009). Parte da 
compreensão a ser explorada aqui, já adiantamos na introdução. A ideia 
agora é aprofundar e dar alguns exemplos, a partir de três sentidos 
principais que Agamben oferece nesse ensaio para “ser contemporâneo”. 
Examinemo-los um a um. 
É preciso começar dizendo que Agamben inicia suas considerações com 
Friedrich Nietzsche. Para ele, um princípio de resposta à pergunta “O que 
é o contemporâneo?” está no termo “intempestivo”, utilizado algumas 
vezes por Nietzsche para significar uma dissociação,menciona que essa ação deve estar 
diretamente atrelada com os dois versos anteriores, que dizem que 
o ser humano foi criado à imagem e semelhança do Criador. Essa 
percepção muda de forma considerável a ação de domínio, pois ser 
imagem e semelhança do Criador nesse sentido implica em governar 
de forma responsável. Inclusive, é interessante ver que a Nova Versão 
Transformadora traduziu como governar em vez de subjugar ou sujeitar. 
Essa tradução parece passar uma ideia mais adequada de como o ser 
humano deve se comportar diante da criação, com responsabilidade e 
amor, não com domínio e subjugação.
Na segunda narrativa da criação, tudo inicia com a formação do homem: 
“Então o Senhor Deus formou o homem do pó da terra e soprou em 
suas narinas o fôlego de vida, e o homem se tornou um ser vivente” 
(Gn 2.7). Diferente do capítulo 1, Deus não faz o ser humano à imagem 
e semelhança, mas forma o homem do pó da terra. E no verso 2.19, 
da mesma terra: “O Senhor Deus formou da terra todos os animais 
selvagens e todas as aves do céu...”. De acordo com González (2014), 
essa passagem é bastante signifi cativa pois da mesma terra que Deus 
forma o homem, forma também os animais. De certa forma, isso traz 
uma certa “irmandade” entre nós. 
Continuando o verso 2.19, ainda há uma ideia de governo, mesmo que 
forma mais sutil: “Trouxe-os ao homem para ver como os chamaria, e 
o homem escolheu um nome para cada um deles.’” Ainda segundo 
González (2014), nas culturas antigas do Oriente Médio, dar o nome a 
algo ou alguém signifi ca poder, autoridade sobre, assim, vemos nessa 
passagem novamente a ideia de domínio do ser humano sobre os outros 
| Teologia Contemporânea | FTSA80
seres criados, apesar de serem feitos da mesma terra. Porém, o domínio 
que Deus dá ao ser humano não é ilimitado. 
O homem e a mulher podiam comer de todas as árvores no jardim, exceto, 
uma. Um limite foi imposto ali. E como sabemos, foi quebrado. González 
(2014, p. 45) comenta: “Ao estender a mão e pegar o fruto proibido, o 
homem e a mulher negam os limites que Deus colocou para seu governo e 
deleite da natureza”. Essa percepção é bastante interessante, pois revela 
que a transgressão cometida pelo ser humano no princípio, continua 
sendo praticada na atualidade. O fruto da árvore em Gênesis era tentador, 
parecia agradável ao paladar e atraente aos olhos (Gn 3.6). Isso também 
não acontece quando o lucro é visado de forma excessiva? A natureza 
parece ser boa, inesgotável para obtenção desse lucro. As consequências 
desse desrespeito aos limites são problemáticas, fazendo com que o 
ser humano seja inimigo da natureza, da terra e uns dos outros. Tudo 
contrário aos propósitos de Deus na criação.
Considerando essa a compreensão do texto de Gênesis, algumas atitudes 
são necessárias. Talvez, a primeira seja um pouco óbvia a partir do que foi 
dito anteriormente, que é evitar a exploração desenfreada e inconsequente 
da natureza. Precisamos reconhecer quem somos, saber nosso lugar na 
criação. Somos imagem e semelhança, mas não somos o próprio Deus. 
Precisamos respeitar a criação, sermos responsáveis com ela. Porém, 
esse respeito e responsabilidade não podem ir para o outro extremo que é 
uma veneração idolátrica da natureza. É muito válido sim, contemplarmos 
a beleza, mas não devemos confundir a criação com o Criador. 
Então precisamos ser cooperadores de Deus nessa tarefa de cuidar da 
criação, bons mordomos que reconhecem a quem pertence a criação 
(Dt 10.14). Stott (2011) e González (2014) concordam em dizer que o 
texto da Carta aos Romanos sobre a criação que geme aguardando a 
manifestação dos fi lhos (Rm 8:18-23), possui implicações ecológicas. A 
criação sofre pela má mordomia do ser humano. E quando os fi lhos de 
Deus, que são nova criação, isto é, com um novo entendimento sobre a 
relação com a natureza, se revelarem, deve haver uma mudança nessa 
lógica transgressora. Essa é a expectativa da criação. 
81| Teologia Contemporânea | FTSA | 
E isso implica três atitudes, pelo menos, pensando em uma espiritualidade 
ecológica:
1. No reconhecimento de que nós estamos, junto com toda a criação, 
submetidos aos ditames de uma “existência fútil” (Rm 8.20-23). 
Ninguém, nem mesmo os/as fi lhos/as de Deus, têm passe livre em 
relação a nada. Isso tem um sentido prático e trágico: o que acontece 
à criação, resvala diretamente em nós. 
2. Na manifestação dos sinais de que somos fi lhos/as do Eterno: 
gememos junto com a criação; aguardamos com confi ança e 
paciência; persistimos em oração, mesmo quando as palavras cessam 
e não sabemos mais o que dizer (8.26). Ou seja, aqui encontramos 
também um sentido escatológico e missiológico: sofrer com a 
criação é uma maneira de se conformar com o destino do crucifi cado 
e ser, verdadeiramente, fi lhos e fi lhas do divino.
3. Na afi rmação da obra de Deus, que vem desde a eternidade, que 
não está alheia ao que nos acontece e pode, assim, criar um bem 
totalmente inesperado em meio ao caos ecológico, fazendo com que 
o amor brote em tempos de cólera, e a esperança nasça em meio ao 
medo e ao obscurantismo. Ao fi m e ao cabo, é possível que fi quemos 
como o apóstolo Paulo, sem palavras, murmurando: “Que podemos 
dizer diante de coisas tão maravilhosas? Se Deus é por nós, quem será 
contra nós” (8.31). Parafraseando, se Deus é por sua criação, quem 
será contra ela? Se o coração de Deus é ecológico, que coração, que 
pulsa no compasso do coração divino, também não o será? 
A partir de uma compreensão do verdadeiro eu, é possível reconhecer 
o papel de mordomos da criação e assim desenvolvermos ações de 
cuidado. É necessário repensar as causas de tanta degradação do meio 
ambiente, e deixar, por exemplo, de seguir o consumismo desenfreado, 
que personifi ca coisas e coisifi ca pessoas. É preciso, para isso, perceber 
que o consumo tem sua própria lógica, ou a sua liturgia, que James 
K. A. Smith (2018) chama de “liturgia do shopping”. Segundo o autor, 
| Teologia Contemporânea | FTSA82
essa liturgia é uma prática que sobrevive às custas de dois elementos 
efêmeros: “a emoção da ‘experiência’ ou acontecimento insustentável e 
o resplendor do original e do novo” (Smith, 2018, p. 102). Ou seja, o que 
sustenta essa liturgia é justamente a natureza evanescente da satisfação 
que ela provoca, “exigindo novas experiências e novas aquisições”. 
E o subproduto de novas aquisições é, segundo o autor, o “descarte 
necessário do antigo e do tedioso” (ibid.). Ou o que Annie Leonard, 
no documentário “A história das coisas”, chama de “obsolescência 
programada”. Para que a liturgia (ou nossa adoração de objetos de 
consumo) prossiga sem problemas, é necessário que sigamos a sua 
ordem sem dizer nem perguntar nada. Não devemos nem perguntar “de 
onde veio isso tudo?”, nem “para onde vai isso tudo?”, pois são duas 
perguntas que certamente revelarão a injustiça e insustentabilidade que 
residem nas duas pontas desse sistema: a da produção e a do descarte. 
É necessário que, como cristãos, filhos e filhas do divino, portadores da 
imago-Dei, reflitamos nas palavras de Smith (2018, p. 104): 
A liturgia do consumo faz nascer em nós o desejo de 
um estilo de vida que destrói a criação; além disso, faz 
nascer em nós também o desejo de um estilo de vida 
que não seja facilmente estendido a outros, criando um 
sistema de privilégios e exploração. Em suma, a única 
maneira de tornar real essa visão do reino consiste em 
reservá-la para nós. a liturgia do shopping estimula 
práticas e hábitos injustos; portanto, faz o que pode 
para impedir que formulemos tais perguntas. Não 
pergunte; não diga nada; só consuma. 
Além disso, é igualmente urgente abandonarmos a espiritualidade gnóstica, 
como comentado na Unidade 2, pois ela se torna um combustível para a 
irresponsabilidade ambiental, uma vez que nessa visão, somente o que é 
“espiritual” é bom. Encerramos esse tópico com a citação de Kirk (2006): 
É óbvio que a fé cristã, entendida corretamente, não 
comporta uma abordagemdescuidada e imprudente 
83| Teologia Contemporânea | FTSA | 
ao meio ambiente. Ao contrário, ela advoga uma atitude 
estritamente compatível com a satisfação as necessidades 
básicas de cada pessoa, como alimentação, proteção, 
cuidado com a saúde, trabalho digno e educação. 
Algumas das questões “verdes” são tão próximas da 
justiça para com o pobre que muito desse mesmo tipo de 
ação se torna necessário. (Kirk, 2006, p. 234)
3.3. A cultura do espetáculo
Neste último tópico da aula sobre “sociedade”, gostaríamos de destacar 
um dos perigos que a ênfase excessiva, ou não devidamente refl etida, 
nesse aspecto do consumo desenfreado, que exploramos no fi m do 
último tópico, oferece para o espírito humano e para o verdadeiro-eu: a 
de render esse lugar ao que aqui chamamos de “cultura do espetáculo”, 
em alusão à abordagem de Mario Vargas Llosa (2013). Nosso diálogo 
será com Llosa e, por fi m, com a história de Jesus no deserto, contada no 
Evangelho de Lucas.
Descortinando a cultura do espetáculo
Mario Vargas Llosa defende a tese de que vivemos na era ou Civilização 
do espetáculo no livro que leva esse título. Que tipo de civilização é essa? 
É a civilização que tem o entretenimento e a diversão como valores 
supremos; “onde divertir-se, escapar do tédio, é a paixão universal” 
(Llosa, 2013, p. 29). Uma ideia central que ele defende ali é a de que 
desenvolvemos uma grande necessidade de distração nos últimos 
tempos. E o que a suscita? Segundo ele, um mecanismo de fuga de 
nossos dramas. Em suas palavras:
Querer fugir ao vazio e à angústia provocada pelo 
sentimento de ser livre e de ter a obrigação de tomar 
decisões, como o que fazer de si mesmo e do mundo 
ao redor – sobretudo se estiver enfrentando desafi os 
e dramas –, é o que suscita essa necessidade de 
| Teologia Contemporânea | FTSA84
distração, motor da civilização em que vivemos. (Llosa, 
2013, p. 36)
E, na opinião do autor, as drogas exercem esse papel de entorpecimento 
– e, por “drogas”, poderíamos incluir aqui nossas geringonças do mundo 
digital, como smartphones, por exemplo. Voltaremos ao assunto. 
Retornando ao autor, ele garante ainda que:
Trata-se de uma fi cção, não benigna, mas maligna nesse 
caso, que isola o indivíduo e só na aparência o livra 
de problemas, responsabilidades e angústias. Porque 
no fi nal tudo isso voltará a dominá-lo, exigindo doses 
cada vez maiores de aturdimento e superexcitação, que 
aprofundarão seu vazio espiritual. (Llosa, 2013, p. 36-37)
Destacamos na citação acima a palavra “vazio espiritual”. Aqui o aspecto 
religioso entra na conversa. Llosa explica que a laicização (ou o efeito de 
tornar laico, i.e., não-religioso) tomou conta das sociedades modernas, 
dando mais liberdade às pessoas para decidir em que acreditar e se 
devem acreditar em um Deus ou deuses, e praticar uma religião. A opção 
por uma vida livre da infl uência direta da religião (ou “secular”) se tornou 
vigente em muitos países, como o Reino Unido.1
Trata-se de um ledo engano, porém, pensar que na civilização ou 
cultura do espetáculo o laicismo ou o secularismo eliminaram, com 
sua resistência à religião mais institucionalizada, também a sede por 
transcendência. Llosa destaca então a proliferação de seitas, cultos e 
práticas espiritualistas alternativas como sinal, por um lado, de uma 
sedução pelo sagrado, sim, mas, por outro, por formas “exóticas” e 
“epidérmicas” (ou superfi ciais) de busca. Isto pois, segundo ele, ainda o 
entretenimento ou “culto à distração” está no centro dessa busca, e não 
tanto o relacionamento com a divindade (ou vida comunal) em questão.
1 Sobre isso, recomendamos a leitura do artigo “A Igreja no Reino Unido: o futuro terá 
uma igreja?”, de Peter Brierley, no livro A igreja do futuro (2011, pp. 57-83), organizado 
por Antonio Carlos Barro e Manfred Kohl. 
85| Teologia Contemporânea | FTSA | 
O “vazio” sobre o qual ele fala é provocado, segundo entendemos, 
precisamente pela recusa da vida em sua inteireza, a recusa da integridade, 
a recusa do sofrimento, a recusa da profundidade. A proliferação das 
“espiritualidades” no mundo de hoje pode ser sinal, assim, precisamente 
da ausência de alma, do contato com nosso ser profundo (como temos 
trabalhado), ou do que o apóstolo Paulo chamou de uma “vida no Espírito”, 
na qual a manifestação de frutos é central, enquanto as manifestações 
sobrenaturais – como êxtases ou milagres – são periféricas. 
Por isso, fazemos aqui uso da defi nição de espiritualidade de Robert 
Solomon em Espiritualidade para céticos: “Espiritualidade, cheguei a 
compreender, é nada menos que o amor bem pensado à vida” (Solomon, 
2003, p. 18). Para quem é de fé – já que Solomon é outro autor se declara 
ateu –adicionaríamos: um amor bem pensado a Deus e a vida!
Sim, porque o apóstolo João, em sua Primeira Carta, nos ensina que 
espiritual é quem ama conforme o primeiro e segundo mandamentos: 
de amor a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. 
Quando uma dessas dimensões é esquecida, você pode até ter religião 
– isto é, práticas e discursos que denotam uma crença em Deus ou até 
deuses –, mas não tem espiritualidade: amor refl etido e que se refl ete em 
um modo de vida integrado (meu próximo-Deus-eu mesmo).
Outro efeito da cultura do espetáculo, segundo Llosa, é o desaparecimento 
da vida privada. O que é privado e o que é público hoje em dia? A 
superexposição da vida está na ordem do dia da cultura do espetáculo. 
Llosa afi rma que uma das consequências involuntárias dessa revolução 
virtual foi:
A volatização das fronteiras que o separavam do 
público, confundindo-se ambos num hapenning em que 
todos somos ao mesmo tempo espectadores e atores, 
em que nos exibimos reciprocamente, ostentamos 
nossa vida privada e nos divertimos observando a 
alheia, num strip-tease generalizado no qual nada fi cou 
salvo da mórbida curiosidade de um público depravado 
| Teologia Contemporânea | FTSA86
pela necedade [que é a tolice, ignorância crassa ou 
imbecilidade gigantesca, acréscimo nosso]. (Llosa, 
2013, p. 140)
Porque ele chama isso de “depravação pela necedade ou tolice”? Porque 
fazemos isso de modo repetitivo, sem perceber que estamos sendo 
engolidos por uma gigantesca imbecilidade. Em Provérbios 26.11, o 
sábio diz: “Como o cão que come o próprio vômito, assim os insensatos 
reciclam a tolice”. Tornamo-nos tão insensíveis a ponto de não saber 
diferenciar comida de verdade de vômito? Será que não estamos 
reciclando vômito, e o que é pior, vômito dos outros, quando curtimos 
e compartilhamos tantas coisas e de modo tão instantâneo em nossas 
redes sociais? Isso nada se parece com um “amor bem pensado”, como 
refl etimos anteriormente. 
Em outras palavras, em que essa superexposição da vida, como 
espetáculo, nas redes sociais está nos transformando? Ou ainda, cabe 
perguntar: o que é que estamos perdendo de valoroso à vida enquanto 
gastamos nosso tempo vidrados na tela de nossos smartphones e 
tablets? Uma overdose de postagens não signifi ca que perdemos a noção 
de quem somos e temos a néscia necessidade de que outros venham e, 
com suas curtidas, nos afi rmem, e assim nos defi nam? 
Os escritos de Byung-Chul Han2 têm nos ajudado a perceber que as redes 
sociais são mais o efeito de um ocultamento que de uma vida transparente. 
Nossos “perfi s” não revelam a melhor, nem necessariamente a pior faceta 
de nós mesmos/as. Esta foi reservada para as poucas pessoas que se 
importam com o que acontece com nossas vidas off-line. Ao lado delas, 
compartilhar e curtir normalmente não são meras atividades vazias. São o 
resultado de relacionamentos reais, substanciais e verdadeiros. Ou seja, tudo 
o que essas redes, que “conectam” sem criar laços, não podem oferecer, 
por um fator limitador básico: elas são emulações da vida, que nós, porém, 
insistimos em transmutar em alguma coisa com aparente valor. 
2 Dentre eles, sobre esse assunto, destacamos os livros: Sociedade da transparência
(2017); No enxame: perspectivas do digital (2018).87| Teologia Contemporânea | FTSA | 
Uma curtida, porém, jamais poderá dizer nada sobre quem somos, nem 
sobre a qualidade do que decidimos partilhar, para o bem ou para o 
mal. Curtidas têm pouca substância. Elas podem ser apenas um signo 
automatizado de uma alienação na qual todos estamos mais ou menos 
enredados. Se assim for, elas não fazem sentido. É uma brincadeira nos 
campos da efemeridade. O remédio – caso você decida não deletar todas 
as suas redes sociais (por mais tentador e convidativo que isso seja) – 
talvez seja não levar tão a sério o que “acontece” ali.
Algumas implicações (negativas) diretas da cultura do espetáculo, como 
aqui exposta, à vida e espiritualidade humanas:
1. Nos tornamos incapazes de suportar o tédio, de cultivar o ócio, 
o silêncio e a simples observação da vida que acontece ao nosso 
redor. Um exemplo disso está na ânsia de preencher os momentos 
de ócio em nosso cotidiano pela prática de sacar uma tela do seu 
bolso e olhar para ela. Espiritualidade, por sua vez, rima com ócio e 
tempo de qualidade para refl exão, que é de onde brota esse “amor 
bem pensado”.
2. Perdemos cada vez mais contato com nosso interior – a morada 
do “verdadeiro-eu”, não este forjado para aparecer em nossas 
redes –, porque simplesmente paramos de habitá-lo ou porque 
desperdiçamos qualquer chance que temos com distrações. É duro 
ter que desmascarar o “falso si-mesmo”, construído pelas abstrações 
e representações da mente, e encarar o verdadeiro (Merton, 2017). E 
vamos nos tornando o que Friedrich Nietzsche (1998, p. 7) profetizou 
há mais de um século: “seres do conhecimento” (ou melhor, da 
informação), mas desconhecidos de nós mesmos porque nunca nos 
procuramos. Espiritualidade, por sua vez, rima com profundidade e 
autoconhecimento. 
3. Por valorizar demasiadamente o entretenimento – o culto à distração 
– e a sua conexão wi-fi ou 4G, que te possibilita estar em diferentes 
lugares ao mesmo tempo, deixamos de vislumbrar a benção do 
| Teologia Contemporânea | FTSA88
aqui e agora, de estar nesse local, com estas pessoas, vivendo essa 
experiência única. Transmitir a experiência – fazendo uma “live”, 
quem sabe – às vezes se torna mais importante que viver essa 
experiência, estando inteiramente, de corpo e mente, aqui. Sabe como 
é? A pessoa está, por exemplo, no show que o Paul MacCartney fez 
de surpresa para os frequentadores de um bar na cidade de Liverpool, 
preocupada em fazer uma “live” para os seus amigos fi carem com 
inveja, assistindo tudo então pela tela.
Não estamos, obviamente, demonizando a tecnologia, tampouco o 
uso das mídias sociais. É realmente maravilhoso que esse aparelho de 
celular que carregamos no bolso tenha sido inventado e permita que 
nos conectemos com pessoas do outro lado do mundo. Mas é uma 
tremenda contradição que alguém esteja conectado com milhares, mas 
profundamente desconectado de si mesmo e das outras pessoas. O 
problema, portanto, não reside na tecnologia nem nas mídias sociais, e 
sim no comportamento dos usuários ou em que temos nos transformado 
enquanto utilizamos essas ferramentas. Espiritualidade, por outro lado, 
rima com conexão; conexão rima com intimidade; e intimidade rima com 
presença. Com estar aqui; com viver o hoje, que é tudo o que temos; 
enfi m, com estar inteiramente disponível em cada encontro pessoal. 
Render a vida ao espetáculo é o mesmo que banalizar sua santidade; ou 
seja, seu caráter singular (ou o que ela tem de único) não é respeitado 
pela cultura que relega ao efêmero a última palavra. Como Jesus nos 
ensina a resistir a essa dominação da cultura do espetáculo em sua 
espiritualidade, e quais são as implicações disso para cristãos vivendo 
em uma cultura do espetáculo, é o tema do restante dessa unidade
Tentações da espiritualidade na cultura do espetáculo
Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do rio Jordão 
e foi conduzido pelo Espírito no deserto, onde foi 
tentado pelo diabo durante quarenta dias. Não comeu 
nada durante todo esse tempo, e teve fome. Então o 
89| Teologia Contemporânea | FTSA | 
diabo lhe disse: “Se você é o Filho de Deus, ordene 
que esta pedra se transforme em pão”. Jesus, porém, 
respondeu: “As Escrituras dizem: ‘Uma pessoa não vive 
só de pão’”. Então o diabo o levou a um lugar alto e, 
num momento, lhe mostrou todos os reinos do mundo. 
“Eu lhe darei a glória destes reinos e autoridade sobre 
eles, pois são meus e posso dá-los a quem eu quiser”, 
disse o diabo. “Eu lhe darei tudo se me adorar.” Jesus 
respondeu: “As Escrituras dizem: ‘Adore o Senhor, seu 
Deus, e sirva somente a ele’”. Então o diabo o levou a 
Jerusalém, até o ponto mais alto do templo, e disse: “Se 
você é o Filho de Deus, salte daqui. Pois as Escrituras 
dizem: ‘Ele ordenará a seus anjos que o protejam. Eles 
o sustentarão com as mãos para que não machuque o 
pé em alguma pedra’”. Jesus respondeu: “As Escrituras 
dizem: ‘Não ponha à prova o Senhor, seu Deus’”. Quando 
o diabo terminou de tentar Jesus, deixou-o até que 
surgisse outra oportunidade. (Lc 4.1-13, NVT)
Jesus, antes de iniciar seu ministério, foi conduzido pelo Espírito ao 
deserto e ali passou quarenta dias e noites, como relata o evangelista 
Lucas, em jejum e sendo tentado pelo Diabo, o inimigo ou acusador. O que 
intentou o acusador contra o fi lho de Deus? Colocar à prova justamente 
o que ele tinha de mais precioso, que é seu “lugar” junto ao Pai, sua 
fi liação ao amor incondicional do Pai. Ora, o “símio de Deus”, como o 
chamou Lutero, ou o “pai da mentira”, como denominou o próprio Jesus 
(cf. Jo 8.44), estava no deserto com Jesus fazendo o que faz de melhor: 
incitando Jesus a uma representação, convidando-o a representar a 
comédia do fi lho de Deus, por assim dizer. Esse é ponto central sob o 
qual queremos que nossa refl exão gravite nesse tópico.
Antes, uma breve incursão sobre a natureza da tentação. Jacques Ellul, 
em seu livro Se és o fi lho de Deus (2011) – que, aliás, é um dos melhores 
sobre esta passagem –, procura desmistifi car o lugar da tentação, dizendo 
| Teologia Contemporânea | FTSA90
que ela nem é um ato propriamente divino (isto é, não é Deus quem tenta), 
tampouco pode ser visto como que personifi cado pelo Diabo (ou seja, 
uma fi gura externa que aparece para Jesus e se põe a tentá-lo). “Toda 
tentação é humana”, afi rma ele. O Shatân – que é o nome grego dado 
ao “acusador”, de onde extraímos a palavra satã –, segundo Ellul (2011, 
p. 18), “é apenas o composto, a síntese, a soma de todas as acusações 
trazidas pelos homens contra os outros homens no mundo”. E o que ele 
quer dizer com isso é que “não se trata de um ‘espírito’ independente 
do homem que lhe ‘inspira’ essa acusação. Ela surge tão somente do 
coração do homem”. 
Em outras palavras, o que Ellul está sugerindo é que as tentações 
de Jesus em Lucas são a suma das tentações humanas, que já 
perpassavam o coração do fi lho do homem, como se autodenominou 
Jesus, sugestionadas pela “cobiça que está dentro de cada um de nós, 
cuja outra face se chama espírito de poder/potência” (Ellul, 2011, p. 
19). Ora, o próprio Jesus foi quem disse que é “de dentro” do coração 
(leb, no hebraico), que para os judeus era o centro da volição humana, 
que procedem todos os maus desígnios. Jesus, como testemunham as 
Escrituras, não pecou, mas foi tentado como qualquer ser humano. 
Assim, queremos defender aqui que Jesus passou por uma das provas 
pelas quais toda a espécie humana tem passado todos os dias: a tentação 
de representar a comédia do fi lho de Deus. Que é a comédia de Adão e 
Eva, a comédia da usurpação: de ser mais ou menos do que realmente 
somos, ou de ter que provar, por meio de performances, pela redenção à 
cultura do espetáculo, que somos quem dizemos (e os outros dizem) que 
somos. O “se tu és o fi lho de Deus” dito a Jesus, pela voz de um acusador, 
é uma voz que tem estado no interior do espírito humano desde sua 
queda. É a voz tipifi cada na fi gura da serpente. O que nos toca responder 
agora é: de que modo essas tentaçõesperfazem nossa espiritualidade e 
como resistir a elas? Faremos isto nomeando cada tentação.
A primeira tentação: colocar a espiritualidade à serviço do ego. Já vimos 
na unidade passada que, dentre inúmeras defi nições existentes, o ego 
91| Teologia Contemporânea | FTSA | 
pode ser entendido como o aparato psíquico que comporta um complexo 
de identifi cações e representações que formam a autoimagem da pessoa. 
Dito de outro modo, o ego é quem nós pensamos que somos, e, também, 
como a gente se projeta para os outros por padrões de comportamento, 
identifi cações e papéis sociais. Segundo Eckhart Tolle (2007, p. 52), o 
ego “se estabelece quando o sentido de Existir, do ‘eu sou’, que é uma 
consciência sem forma, mistura-se com a forma”. Essa é uma das peças 
pregadas pelo ego humano: a de mensurar a essência pela forma, o que 
também chamamos de “idolatria”. 
A adoração da forma que se converte em performance. No caso de 
Jesus, transformar pedras em pão seria o milagre mais óbvio e, de certo 
modo, plausível na situação em que ele se encontrava. Após quarenta 
dias e noites no deserto, Lucas diz que ele “teve fome”. Se pensarmos 
nesses dias no deserto como um “sacrifício” feito por Jesus (aos moldes 
da sua religião), é tipicamente humano concluir que, depois de tudo, o 
mínimo que ele merecia seria se alimentar. E por que não transformar 
essas pedras em pão? Que mal há nisso, sendo ele o fi lho de Deus?
O problema é que, se ele fi zesse isso, estaria utilizando do poder de 
Deus para satisfazer os caprichos de seu ego. E o ego se vê infl ado pelo 
sentimento não apenas de que sua performance produziu algo de útil ou 
transformador, mas especialmente quando sabe que ela causou impacto 
em outras pessoas. É aquela frase de efeito que guardamos na manga 
para que, dita no momento certo, possa provocar burburinhos de “nossa! 
Causou”, “lacrou” ou “mitou” na plateia – expressões que, na era das redes 
sociais, às vezes substituem os usuais gritos de “aleluia” e “fala Deus!” 
da cultura evangélica. Mas, parafraseando o que respondeu Jesus, “nem 
só de pão” – ou de “mitadas” e “lacradas” – vive o ser humano. Podemos 
ser (e normalmente somos) mais relevantes precisamente quando não 
estamos tentando “ser relevantes”, que é como Henri Nouwen (2002, p. 
18) nomeia essa primeira tentação. 
A segunda tentação: divorciar a espiritualidade da integridade. No pico 
de uma alta montanha, o Diabo faz outra oferta sedutora: os reinos da 
| Teologia Contemporânea | FTSA92
terra são meus e eu posso dar a quem eu quiser, por isso te darei todos 
eles se você me adorar (v. 5-6). Jacques Ellul (2011, p. 68) a denomina 
“tentação política”, e Nouwen (2002, p. 47) chama de tentação de “ser 
poderoso”. A lógica é simples e tem estado conosco (nas diferentes 
esferas de exercício de poder) há milênios: quem quer fazer política para 
satisfazer sua vontade de poder deve, antes ou durante o processo, se 
curvar e adorar à potestade invisível, mas real, que manda nesse pedaço. 
Imagine que um candidato com boas intenções recebe uma oferta 
sedutora do dono de uma grande empreiteira: “Me deixa te ajudar a ganhar 
essa campanha!”. Mas, deixe esse negócio de ética e integridade de lado, 
porque (como disse um político de Londrina, certa feita): “ética não ganha 
eleições” (com cada vez mais raras exceções). O problema menor é que 
“quem fi nancia também quer mandar”. E o problema maior é: além de 
levar uma fatia do poder, leva também uma fatia da alma de quem aceita 
negociar! A situação de Jesus é um pouco pior: colocar o poder político à 
serviço do Evangelho e servir-se dele para o bem, ou depender somente de 
Deus e desafi ar outros poderes? Afi nal, a sugestão de Satã era para “Jesus 
realizar justamente aquilo para o qual Deus o enviou! E Jesus recusa. Ele 
recusa sua própria tentação de exercer esse poder universal, de exercer, 
ele mesmo, esse poder, tomando-o” (Ellul, 2011, p. 70). 
No século IV, a igreja constantiniana de então cedeu a essa tentação, 
contra a própria sabedoria alternativa presente no exemplo de seu nominal 
Senhor: resolveu dar a César o que é de Deus e a Deus o que é de César. 
Ou seja, ela (embora nem toda ela) trocou o reino de amor de Jesus pelo 
reino do poder. Com efeito, como observa Nouwen (2002, p. 50), “a longa 
e dolorosa história da Igreja é a história de pessoas que vez após vez 
foram tentadas para escolher o poder no lugar do amor, para controlar 
ao invés de aceitar a cruz, para ser um líder ao invés de ser liderado”. 
Não é de se admirar que tantos líderes cristãos sejam incapazes de dar 
e receber amor no exercício de suas funções, tendo em vista que seu 
objetivo principal é construir um império para si, e não resistir às forças 
do Império, como fez Jesus.
93| Teologia Contemporânea | FTSA | 
A resposta de Jesus, porém, aponta um caminho diferente, que atraiu 
a tantos outros nessa mesma história até hoje e deve dar o tom de 
nossa espiritualidade contemporânea: adorar somente a Deus; servi-lo 
com inteireza de coração. Ser integro é ser inteiro, que é algo que não 
podemos ser se apartados de Deus. Mas o testemunho de Jesus mostra 
que isso normalmente conduz à cruz, lugar para onde são conduzidos 
todos/as aqueles/as que não se curvam à primeira potestade que se 
apresenta oferecendo poder, dinheiro e fama; lugar daqueles/as que 
diminuem (mesmo do alto de um púlpito, com microfone nas mãos) para 
que outros cresçam, bem como daqueles/as que, como Jesus, escolhem 
o amor ao invés do poder. Difícil, mas libertadora escolha.
A terceira tentação: submeter a espiritualidade à espetacularização. A 
última tentação é “religiosa”, como observa Ellul (2011, p. 72-75). Jesus 
é levado ao alto do templo em Jerusalém, e o Diabo diz (em outras 
palavras): “Salta daqui, porque segundo a palavra do teu Pai no Salmo 
91, os anjos vão te amparar”. Há detalhes que não podem passar batidos 
aqui. O “pináculo do templo”, como se diz e alguma traduções, era o 
local mais alto do templo de Jerusalém, e também o ponto de maior 
visibilidade para os inúmeros transeuntes que percorriam os arredores 
do templo diariamente. Saltar dali seria uma demonstração sublime do 
poder da Palavra, como também uma espetacular confi rmação, o gran 
fi nale da comédia do fi lho de Deus.
Outro detalhe que Lucas faz questão de não ocultar é o de que o 
Shatan, o acusador, faz uso da Escritura, demonstrando ter um domínio 
instrumental dela, para tentar convencer Jesus de que aquela era uma 
alternativa legítima ao fi lho de Deus. E encena, assim, um dos exemplos 
bíblicos mais convincentes que conhecemos sobre uma artimanha muito 
comum entre religiosos: retirar um verso bíblico do contexto (do texto e 
da revelação) para embasar um argumento sem se preocupar com o todo 
da revelação, apenas com o efeito prático que a citação pode produzir em 
seus ouvintes. Jacques Ellul defende, em contrapartida, que: “A grande 
regra é a de que nenhum texto, nenhum versículo, nenhuma declaração, 
| Teologia Contemporânea | FTSA94
valem por eles mesmos. Separar um texto do conjunto dinâmico da 
revelação de Deus é inevitavelmente falseá-lo” (Ellul, 2011, p. 72). 
A tentação aqui é a Deus: faça Deus provar para esse povo todo que 
Ele é Deus e que você é Filho Dele! Em outras palavras ele está dizendo: 
banalize o dom de Deus, transformando-o em objeto de espetáculo. 
Assim, segundo Ellul (2011, p. 75), “o homem tenta Deus quando lhe 
faz pedidos que não foram inspirados pelo Espírito Santo”. Submeter a 
espiritualidade ao espetáculo religioso (de cura, êxtase, milagre, etc.) é a 
forma mais comum de colocar Deus à prova também hoje; lugar comum 
na cultura do espetáculo. A resposta de Jesus, mais uma vez, é indicativa 
de um possível caminho a todo crente hoje: não tenha ousadia de colocar 
Deus à prova (v. 13). Jesus se recusa a trocar o relacionamento de amor 
com o Pai por provas baratas. Ama a Deus aquele que verdadeiramente 
se sabe amado por Ele, aceito por Ele, e sufi ciente Nele, e por tudoisso 
não precisa cair nesse tipo de emboscada diabólica.
A vocação espiritual não é para fazer milagres e sim para exprimir o 
amor. A vocação espiritual não combina com circo exibicionista. Porque 
exibicionismo espiritual exibe a pessoa, e não o Deus que ela diz amar e 
servir. Se a igreja e sua liderança quiserem testemunhar com autoridade 
na era do espetáculo, além de conservar a alma (aspecto tão essencial 
ao cuidado de si, numa perspectiva cristã), precisarão abandonar “o 
sofi sma” dos mestres da Lei e passar a viver mais o Evangelho, como 
Jesus. Começamos essa unidade falando de sociedade. Terminamos 
falando de igreja, tópico da última unidade desse curso.
Referências bibliográfi cas
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de Jesus Cristo. Brasília: Palavra, 2011.
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KIRK, J. Andrew. O que é missão? Londrina: Descoberta, 2006.
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TOLLE, Eckhart. O novo mundo: o despertar de uma nova consciência. 
Rio de Janeiro: Sextante, 2007.
VOLF, Miroslav. Exclusão & abraço: uma refl exão sobre identidade, 
alteridade e reconciliação. São Paulo: Mundo Cristão, 2021. 
97| Teologia Contemporânea | FTSA | 
Unidade IV – Igreja
Introdução
“Na religião, muitos preferem as transações mágicas, 
externas e imediatas, em vez do padrão universal de 
crescimento e cura pela perda e renovação. (...) Pessoas 
acomodadas tendem a ver a Igreja como um exótico 
antiquário, no qual elas podem cultuar coisas velhas 
como substitutos de coisas eternas”. (Richard Rohr)
Que é a Igreja? O que ela é no mundo contemporâneo? Quem ela é 
chamada para ser? Que desafi os se interpõem ao “ser da Igreja” neste 
tempo que ousamos chamar de “nosso”? Perguntas difíceis de responder, 
pois pressupõem um andar, acompanhado de respostas que não são 
dadas de uma vez por todas, mas que se constituem provisoriamente e 
na medida em que aprendemos, antes, a fi car tempo sufi ciente com as 
perguntas, feitas por nós ou outras pessoas. Como podemos oferecer 
respostas se não sabemos exatamente a quais perguntas elas devem 
ser endereçadas? E como saberemos as perguntas se não ouvimos duas 
vezes, como disse tão propriamente John Stott: ao Espírito e ao mundo? 
Certa feita, um de nós recebeu um email de um estudante, que perguntava: 
É teologicamente correto dizer que a Igreja é um tipo de sociedade 
alternativa?
Sem dúvida, em nossa compreensão – que, esperamos, fi que clara ao 
longo desta última unidade – isso não só está teologicamente “correto”, 
como historicamente tem marcado a vida da Igreja, daquela que não se 
rende aos ditames do institucionalismo; sempre que ela resolve ser fi el 
ao seu chamado de sinalizar o Reino de amor no mundo, ela se constitui 
como uma “sociedade alternativa”, não no modo hippie “paz e amor” dos 
anos 1970, ou no sentido de que seria uma “ilha” apartada do resto, onde 
podemos nos alienar do mundo, mas enquanto se mantém como ponto 
de esperança divina bem no meio do mundo. 
| Teologia Contemporânea | FTSA98
“Ali” nossos confl itos não são diminuídos porque somos cristãos – como 
afi rma essa versão sofi sticada da teologia da prosperidade, anti-crise e 
sofrimento. Pelo contrário, eles aumentam, à medida que não vivemos 
de acordo com os termos do mundo e sim do Reino, como o próprio 
Jesus advertiu aos discípulos (João 15), para que não se admirassem 
se o mundo os odiasse; é que eles não vivem segundo os meandros do 
mundo, nem os obedecem; se vivessem de acordo com tais termos, o 
mundo os amaria e os aprovaria. E, observe bem, tudo isso acontece 
porque estamos no mundo, porque Deus amou o mundo e porque nos 
chama a proclamar a reconciliação em nossa vida no mundo. Isso é 
fundamental para tudo o que já foi e ainda será dito nesta disciplina.
Entendemos, assim, que a Igreja deveria atuar como a principal alternativa 
do Espírito para os cansados, feridos oprimidos  e sobrecarregados 
do mundo; ser agente profético de denúncia à corrupção e injustiça, 
sob que forma elas apareçam; ser “agente de transformação integral”, 
como ensinou René Padilla. Por outro lado, sempre que a Igreja deixa, 
por alguma razão, de exercer esse papel, o Espírito, inadvertidamente, 
não deixa de agir. Isso signifi ca que o Espírito não é monopólio da Igreja. 
Não é Ele quem acompanha os movimentos (e patacoadas) dela, mas é 
exatamente o contrário, ela que, como comunidade dos carismas, deve 
acompanhar o sopro do Espírito, onde quer que Ele esteja soprando, e 
ouvir a sua voz, ainda que não saiba dizer de onde vem e nem para onde 
vai (cf. Jo 3.8). Pois, no fi m das contas, o que interessa não é tanto “para 
onde”, mas “com Quem” vamos. 
Que a Igreja seja do Espírito, que ela ouça o Espírito e que ela ande no
Espírito, isso é o que importa e sobre isso queremos refl etir nesta unidade. 
Para tanto, elegemos três tópicos em particular e interligados para a 
discussão: (1) a relação entre tradição (eclesial, cristã) e contextualização 
do Evangelho; (2) a questão do diálogo entre as igrejas cristãs e com 
pessoas de outras religiões; por fi m, (3) sobre como podemos reimaginar 
a Igreja na contemporaneidade.
99| Teologia Contemporânea | FTSA | 
Objetivos da unidade
1. Relacionar tradição e contextualização, à luz da relação entre 
Evangelho e cultura contemporânea;
2. Compreender a importância do diálogo para uma Igreja missional;
3. Desenvolver a arte da imaginação no ato de ser Igreja no e para o 
mundo.
4.1. Tradição e contextualização
Apesar de o tema da tradição ser debatido ao longo da história, parece 
que criamos uma imagem romântica e saudosista de que, no passado, a 
tradição era respeitada e não havia quaisquer dúvidas ou questionamentos 
sobre sua validade – que hoje entendemos ser apenas relativa. Quando 
olhamos mais atentamente, vemos, porém, que nem sempre foi tão 
simples assim, uma vez que em vários momentos da história da Igreja, a 
tradição foi questionada, pessoas foram consideradas hereges, enquanto 
outras infl uenciaram signifi cativamente a transformação/ renovação 
da tradição. Já a contextualização – reler criticamente textos à luz de, 
e em aplicação a, determinados contextos – também sempre ocorreu, 
até de forma não percebida, uma vez que a forma como a Bíblia era lida 
e interpretada, dialogava com a vida das pessoas no momento. Nesse 
tópico faremos refl exões de como lidar com esses assuntos na Igreja 
dos dias atuais. 
Começaremos com a defi nição de tradição trazida por González (2015). 
A palavra no latim é traditio, que signifi ca o ato de passar uma ideia 
ou algo paraoutra pessoa e, também, signifi ca aquilo que está sendo 
passado. O que podemos associar com a palavra “transmissão” e traz o 
sentido para a fé cristã de transmitir ensinamentos para outras pessoas 
– na forma de doutrinas, formulações e preceitos – bem como praticar a 
própria tradição. Podemos observar na Bíblia um exemplo desse sentido 
na primeira carta de Paulo aos Coríntios: “Pois eu lhes transmiti aquilo 
que recebi do Senhor...” (1Co 11.23, NVT).
| Teologia Contemporânea | FTSA100
Pensando nisso, a tradição é peça fundamental na fé cristã, pois foi a 
forma como ela se propagou nos primeiros anos entre os discípulos. 
Aliás, uma questão bastante interessante para pensarmos é que na fé 
cristã, em certo sentido, o antigo é melhor do que o novo. É Claro que, 
com o avanço das ferramentas científi cas contemporâneas, é possível 
debater sobre aspectos dos tempos bíblicos, que demonstram como, 
por exemplo, determinadas regras e afi rmações são peças visivelmente 
datadas. Porém, não podemos negar que foi mais privilegiado quem 
esteve mais próximo dos relatos. Se considerarmos os princípios 
naturais de uma transmissão, como uma simples dinâmica de “telefone 
sem fi o”, já é possível perceber como as informações são afetadas por 
cada pessoa que ouve e fala o que entendeu. 
Apesar disso, os cristãos envolvidos na tradição enredaram-na em 
formas compreensíveis ao ser humano e o cânon bíblico é um exemplo 
bastante claro disso. Uma vez que os primeiros discípulos estavam 
falecendo e Jesus ainda não havia voltado, foi necessário encontrar 
formas de preservar e compartilhar o que eles viveram, pois não foi um 
acontecimento qualquer. Conforme comenta González, a tradição cristã 
não se baseia somente em princípios intuitivos; antes, é a transmissão 
de ensinos e práticas pautados na vida, morte e ressurreição de Jesus. 
Essa tradição conseguiu ser preservada até a atualidade, pois: “todos 
nós ouvimos falar de Jesus quer diretamente pelos lábios de outros 
quer indiretamente pelos autores do Novo Testamento – ou, mais 
provavelmente, por ambas as maneiras” (González, 2015, p. 222). Somos 
privilegiados por poder receber essa tradição de formas diferentes. 
Porém, ao mesmo tempo, na contemporaneidade a Igreja parece viver 
certos desafi os relacionados à percepção e cultivo de sua tradição. 
Crise na tradição?
Para conversarmos sobre essa questão é importante, mesmo que de forma 
breve, considerarmos o contexto no qual vivemos. Grenz (2008) menciona 
algumas características que encontramos na contemporaneidade 
chamada também de pós-modernidade, para exemplifi car: pessimismo, 
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relativismo e pluralismo. Essas três características estão ligadas pelo que 
François Lyotard batizou de “desconfi ança em relação às metanarrativas”, 
ou das grandes narrativas universais que foram cultivadas, pelo menos, 
até a modernidade – embora hoje já não se acredite mais que a incidência 
delas tenha terminado. O pessimismo se deve à quebra da confiança 
cega no mito do progresso contínuo da humanidade; o relativismo é fruto 
da descrença de que é possível a um sistema ou forma de pensamento 
deter ou mesmo chegar à verdade absoluta; e, juntamente com isso, o 
pluralismo surge como fruto do relativismo. Essas características não 
surgiram de repente, mas foram resultantes de transformações no 
paradigma social e científi co. 
Não é simples determinar um ponto de partida exato ou delimitar um 
ano específi co em que isso ocorreu, mas podemos mencionar alguns 
marcos para fi ns didáticos. Após a propagação dos ideais iluministas 
houve um grande avanço na ciência no decorrer dos séculos. Inclusive, 
um dos pensamentos é que o ser humano conseguiria explicar todos 
os fenômenos da vida a partir do progresso científi co e se emancipar 
de qualquer tipo de crença fora da racionalidade. Isso gerou uma falsa 
sensação de solidez, pois, como vimos na situação pandêmica, certas 
descobertas em laboratório não conseguem ser replicadas em condições 
naturais e a incerteza acaba afetando a todos.
Com o passar do tempo, e a frustração por não conseguir controlar 
todas as variáveis, o paradigma “sólido”, exato, foi se alterando dentro 
da ciência e, também, na sociedade. Como aponta Santos (2008), houve 
o surgimento de um paradigma emergente, no qual, a universalidade 
deixava a cena para dar lugar à especifi cidade. Isto é, as verdades 
e valores científi cos antes tidos como absolutos começaram a ser 
questionados, tendo como um de seus marcos Einstein e a “teoria da 
relatividade”. Além disso, outro fator importante para essa mudança foi 
o avanço das ciências sociais, que antes eram colocadas em segundo 
plano, contribuindo com subjetividade e especifi cidade. Ainda de acordo 
com Santos (2008), esse paradigma emergente não é dualista, dicotômico 
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e, como todo conhecimento científi co, visa constituir-se em senso comum. 
Os refl exos disso então puderam ser vistos em diferentes esferas da 
sociedade. Nesse cenário da pós-modernidade, tudo o que aparentava ser 
certo, sólido, único, começou a se transformar em incerto, líquido e plural.
Claro que isso afetou a Igreja, uma vez que muitos dogmas estavam 
estabelecidos sobre o paradigma anterior, e, sobretudo, a partir do 
século XX, certos aspectos passaram a ser questionados. Algumas 
obras escritas, que traziam críticas aos cristãos, receberam grande 
atenção e, além disso, o número dos que se consideram ateus, cresceu, 
principalmente nos países europeus – como vimos na primeira unidade. 
Tudo isso, em um primeiro momento, aparentou que a tradição da fé cristã 
iria morrer no Ocidente e daria lugar ao pensamento secular baseado 
exclusivamente na ciência. Isso causou e ainda causa medo e espécie 
em muitas pessoas. Porém, caso você esteja atento ao que se diz, por 
exemplo, nas grandes empresas e entre muitos profi ssionais de saúde, 
deve ter percebido que o tema espiritualidade, por outro lado, está cada 
vez mais em alta. Entre pessoas que declaram uma fé em Deus, embora 
sem religião ou pertencimento, isto é, afi rmam nutrir uma “vida espiritual” 
longe dos ditames e da “cobertura espiritual” das igrejas e seus líderes. E 
até mesmo entre pessoas que afi rmam não possuir nem fé, nem religião, 
mas que almejam uma espécie de transcendência puramente natural ou 
humana, baseada em uma reverência à natureza, ao cosmos, ao bem-
estar na vida e à felicidade e realização humanas. 
Nessa realidade reluz precisamente o sentido de “secularidade” apresentado 
por Charles Taylor (2010, p. 29), no qual “passamos de um mundo no qual o 
lugar de plenitude era compreendido sem problematizações como fora ou 
‘além’ da vida humana, para uma era de confl itos na qual essa interpretação 
é desafi ada por outras que localizam essa plenitude (num amplo espectro 
de maneiras diferentes) ‘dentro’ da vida humana”. Nesse sentido, é válido 
considerar o questionamento exposto por Tomás Halík sobre o que muitos 
chamam de “retorno da religião”: 
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“A religião está voltando” – ouvimos hoje de todos os 
confi ns da Terra. Há dissenso apenas em relação à 
avaliação: se isso deve ser considerado algo bom ou 
ruim – e talvez também em relação ao que ou quem 
estaria voltando. Estaria voltando o Deus Uno, “o Deus 
de Abraão, Isaac, Jacó e Jesus”, no qual acreditam 
os judeus, cristãos e muçulmanos, ou o “deus dos 
fi lósofos”, o ser sublime – a descoberta dos pensadores 
do Iluminismo, o adorno das proclamações políticas e 
dos preâmbulos das constituições? Estaria voltando 
um Deus capaz de responder silenciosamente aos 
corações humanos sedentos e de curar suas feridas ou 
um Deus da guerra e da vingança, que não cura, mas 
fere? (Halík, 2016, p.11) 
É essencial destacar que ele não fala de uma tradição somente, mas 
de diferentes tradições. Pode parecer estranho, mas nem sempre 
que falamos sobre Deus estamos nos referindo ao Eterno, por isso é 
importante questionar:“qual tradição estamos seguindo?” ou “de qual 
deus estamos falando?”. Para não cairmos no erro de pensarmos que 
isso é somente uma questão contemporânea, González (2015) percorre 
outros momentos da história em que ocorreram debates acerca da 
tradição cristã: Tertuliano, Agostinho, Vicente de Lérins, entre outros. 
Para os protestantes, o exemplo mais signifi cativo desses debates foi 
Martinho Lutero, que questionou práticas da tradição que estavam se 
colocando acima da autoridade das Escrituras, sendo uma das principais, 
a venda de indulgências. (Sobre isso, é quase impossível não pensarmos 
no que acontece na atualidade e compararmos à época Medieval. Se 
antes as indulgências eram vendidas para alcançar a salvação, hoje são 
para alcançar a prosperidade, o que é extremamente tentador – para não 
dizer promissor – em um mundo consumista).
Então, discutir sobre a tradição não é uma deturpação da 
contemporaneidade ou sinal dos fi ns dos tempos, ao contrário, é uma 
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prática necessária para que a fé mantenha sua vivacidade e traga algum 
tipo de transformação. Hoje há quem prefi ra se fechar e se apegar à 
literalidade das Escrituras em nome da “sã doutrina”, bem como há quem 
postule um diálogo entre a tradição e a cultura. Como já indicamos, 
seguiremos o segundo caminho, que entendemos ser o melhor caminho, 
pois, como diz Merton (2017, p. 137): “Todas as tradições humanas 
tendem à estagnação e à desintegração. Tentam perpetuar coisas que 
não podem ser perpetuadas. Aferram-se a objetivos e valores que o 
tempo destrói sem piedade”. 
O tradicionalismo e o conservadorismo – que não conserva, mas mata, 
como diria John Caputo – não deveriam, porém, fazer desaparecer 
nosso apreço pela tradição cristã, que é boa e necessária e “inteiramente 
oposta ao tradicionalismo humano” (Merton, 2017, p. 137). O interessante 
na análise crítica de Merton é o parentesco que ele observa entre tradição 
e revolução. A tradição viva, que manteve a fé cristã em movimento há 
mais de dois mil anos – a despeito de tentativas de encerramento dela na 
cela do tradicionalismo – é, como exemplifi ca Merton, “como a respiração 
de um corpo físico: renova a vida repelindo a estagnação. É uma revolução 
constante, pacífi ca e silenciosa contra a morte” (Merton, 2017, p. 137). 
Nesse sentido, os fi lhos/as mais fi éis de uma tradição não são aqueles 
que se consideram paladinos ou guardiães dela – tentando protegê-la 
e conservá-la a todo custo –, mas são aqueles e aquelas que, à luz de 
sua conexão com o sopro do Espírito e leitura perspicaz do espírito da 
época (Zeitgeist), resistem a seu engessamento e procuram renová-la 
por dentro, tanto em termos de linguagem como de conteúdo. Como 
fez Jesus de Nazaré ao dizer que não veio revogar a lei de Moisés ou 
os escritos dos profetas, mas cumpri-los (Mt 5.17). O que, na prática, 
signifi cou, para desespero dos paladinos de seu tempo, revisar aquilo 
que “foi dito aos antigos”, mas que precisava ser revisto e redito de 
outra forma (“eu, porém, lhes digo”), aprofundando, assim, o sentido da 
lei, tirando-a dos escombros do conservadorismo e demonstrando, por 
obras de justiça, que ela estava a serviço da vida e não o contrário (cf. Mc 
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2.27). Aqui está o princípio da contextualização, sobre a qual trataremos 
mais detidamente a seguir.
O desafi o da contextualização
Para ilustrar a ideia de Merton de que as tradições humanas tendem à 
estagnação, sigamos pensando a partir dos evangelhos. Os fariseus, 
mestres da lei e escribas deixaram a tradição estagnada tentando 
perpetuá-la, mas o resultado foi uma religiosidade vazia e morta. Jesus 
mostrou como a Lei de Moisés deveria ser interpretada naquele tempo 
e trouxe vida e esperança com seus ensinamentos. Como Ele mesmo 
afi rmou, não veio para abolir a Lei ou os Profetas, mas para cumprir (Mt 
5.17). Então, a relação com a tradição é um paradoxo, pois que não se 
pode jogar toda a tradição fora, ao mesmo tempo, não é possível mantê-la 
inerte. O desafi o é buscar identifi car quais elementos da tradição trazem 
a força do Evangelho de Jesus e pensar no diálogo e contextualização.
Vamos agora, em primeiro lugar, falar sobre um termo conhecido, mas 
que González (2014) apresenta uma perspectiva no mínimo interessante. 
O termo é catolicidade. Talvez, a maioria das pessoas entenda esse 
termo como universal, no sentido de que é uniforme para todos. Contudo, 
segundo o autor, a palavra católica pode ser compreendida como: 
“segundo o todo”. A palavra katholicos no grego é composta por katá,
que signifi ca “segundo”, no sentido “de acordo com” e hólos, que signifi ca 
“todo”. Considerando isso, vamos aplicar a palavra catolicidade em duas 
perspectivas: na Bíblia e na Igreja. 
Algo que pode trazer um certo incomodo, dependendo da forma como 
lemos e interpretamos a Bíblia, é que, diante de uma mesma situação, 
encontramos diferenças nos textos. Na unidade passada já apresentamos 
um exemplo quando falamos sobre as duas narrativas da criação, em 
Gênesis 1 e 2. Também podemos mencionar os evangelhos como um 
grande local de discussões e até mesmo fonte de argumentos para quem 
quer tentar desqualifi car a Bíblia falando de suas incongruências, como: 
o que Jesus falou quando estava sendo crucifi cado? Ou então, por que 
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Mateus e Lucas apresentam genealogias diferentes da vida de Jesus?
Algumas Bíblias possuem anotações de passagens que remetem à 
mesma ocasião nos evangelhos e, aos curiosos que leem atentamente, 
pode-se perceber que há divergências entre elas. Como lidar com isso? 
Seria muito mais prático para convencer outras pessoas se os relatos 
fossem iguais ou com diferenças quase não perceptíveis! É nesse sentido 
que é preciso considerar a catolicidade da Bíblia. Ela é abrangente, não é 
somente a narrativa de um autor, mas é plural, como o próprio nome diz, 
Bíblia, coleção de livros, e deve ser compreendida “segundo o todo”. Para 
continuar no exemplo dos evangelhos, apesar de suas divergências, os 
autores foram coerentes ao falar sobre a vida, os ensinamentos, a morte 
e a ressurreição de Jesus. 
Assim, ao contrário do que podemos pensar, uma das grandes riquezas 
da Bíblia reside precisamente em sua pluralidade, isto é, em relatos 
diversos entre si, mas contados “segundo o todo”, apontando para o Deus 
Criador e Senhor. Por isso, estaríamos equivocados se esperássemos 
que ela fosse como uma obra totalmente coesa, ditada por Deus palavra 
por palavra, pois se isso acontecesse deixaria de revelar a multiforme 
sabedoria de Deus. Conforme diz Jean Louis Ska:
A Bíblia não é um jornal, mas uma banca. Não 
encontramos uma opinião única, nítida, simples, 
unilateral e incontestável, mas diversas opiniões que se 
completam em certos casos, mas que podem também 
se contradizer em outros... A voz de Deus se faz ouvir 
através de todas as vozes humanas que ressoam na 
Bíblia, em um concerto algumas vezes harmonioso, 
em outras desarmônico, porque o caminho que conduz 
à verdade sinfônica fi nal é longo e pode passar por 
momentos de quase cacofonia (Ska, 2005, p.133). 
Se a Bíblia possui essa força da pluralidade, a Igreja também pode e deve 
seguir por esse caminho. E um alerta importante feito por González (2014), 
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é que como nenhuma perspectiva humana é completa, precisamos cuidar 
para não confundirmos uma particularidade de interpretação relacionada 
à uma questão de poder na sociedade com uma forma universal de 
interpretação. O próprio termo é contraditório: formas de interpretação não 
podem ser, por sua própria natureza, universais. Elas são aproximações 
da verdade, mas não a verdade mesma. E, como salientou Merton (2017, 
p. 142), “a luz da verdade não é algo que existe para nosso intelecto, mas 
é alguém em quem e para quem todas as mentes e espíritos existem”. 
Nesse sentido, como completa ele, “a teologia só começa realmente a 
serteologia quando transcendemos a linguagem e os conceitos distintos 
dos teólogos”. 
Esse alerta profético de González e Merton se faz necessário para que 
não consideremos como correto o único modelo de ser igreja herdada de 
países anglo-saxões, por exemplo, uma vez que essa é nossa principal 
infl uência. Porém, isso não signifi ca que não haja uma verdade única. 
O que existem são perspectivas diferentes, mas que, no fi m, direcionam 
para o mesmo Jesus Cristo, Filho do Deus vivo. Uma comparação 
simples para compreender essa ideia é pedir para que pessoas diferentes 
destaquem um aspecto de um grande quadro. Todas elas podem falar de 
partes diferentes, mas o quadro é o mesmo. Diante disso, precisamos 
pensar em como uma Igreja “segundo o todo” pode cumprir com a Grande 
Comissão de Jesus, o que envolve diretamente o fator cultura.
Durante séculos algumas culturas foram consideradas superiores 
às outras e não é difícil perceber isso quando falamos de países 
colonizadores e colonizados. Isso está ligado ao paradigma de que o 
progresso seria contínuo por conta do avanço das ciências. Os países 
que tiveram maior acesso à ciência empírica, como estamos habituados, 
se tornaram o padrão a ser alcançado. E até hoje, em muitos lugares, 
esse pensamento que faz acepção entre culturas superiores e inferiores 
existe. Para dar um simples exemplo, por parte de quem vive nas grandes 
cidades, não é incomum pensar nos indígenas como atrasados, sem 
modos ou intelectualmente limitados. Porém, ao conhecer melhor a 
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cultura de um povo indígena é possível perceber que isso é apenas um 
estereótipo muito limitado. Mas justamente por esse pensamento existir 
é que algumas “missões” tentam pregar aos indígenas o mesmo “Jesus 
europeu” do século XVI ou outro mais próximo da cosmovisão ocidental.
Sobre esse aspecto das culturas, no Pacto de Lausanne de 1974, está 
uma declaração muito importante de que todas as culturas expressam, 
de alguma forma, a beleza e a bondade de Deus, pois o ser humano foi 
criado à Sua imagem e semelhança. Por outro lado, as culturas também 
revelam o pecado do ser humano. Por isso, é necessário que as Escrituras 
sejam o parâmetro para avaliar uma cultura. Então, antes de demonizar 
uma cultura, é preciso pensar nela “segundo o todo”, isto é, como essa 
cultura revela a bondade de Deus? Como ela expressa a Sua glória? Isso 
seria, como afi rma González (2014), parte da Grande Comissão, na qual 
Jesus já recebeu autoridade e, por isso, os discípulos devem ir às nações, 
descobrir como se manifesta ali o poder de Deus e pensar em como fazê-
las ver esse poder que já está lá no meio delas. 
Nesse sentido, o aspecto fundamental é a contextualização. Para 
uma mensagem contextualizada, é essencial, primeiro, reconhecer 
nossa própria contextualização, partindo do pressuposto de que nossa 
perspectiva do Evangelho – por ser perspectiva, modo de ver a partir de 
um ponto – já é parcial, mas ainda assim, ela pode contribuir com o todo. 
Isso vai exigir um tempo para estudar sobre a história da comunidade de 
fé a qual pertencemos, além de refl etir sobre onde ela está no meio do 
contexto atual. Apesar do trabalho histórico, esse exercício pode auxiliar 
muito na contextualização para outras culturas na contemporaneidade. 
Aliás, essas outras culturas podem ser parte inclusive do mesmo país, 
estado e, às vezes, da mesma cidade. 
A diversidade cultural no mesmo espaço corresponde à pluralidade, que 
é um fator importante na contextualização – isto é, a contextualização 
permite com que a mensagem do Evangelho seja propagada para os 
mais diversos grupos –, mas também aumenta o nível de complexidade 
para que essa propagação aconteça, o que demanda maior criatividade 
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e empenho. Porém, isso vai ao encontro do conceito de catolicidade. 
Consideremos o texto de Apocalipse 7.9 (NVT): “Depois disso, vi uma 
imensa multidão, grande demais para ser contada, de todas as nações, 
tribos, povos e línguas, em pé diante do trono e diante do Cordeiro. 
Usavam vestes brancas e seguravam ramos de palmeiras”. A visão de 
João envolve a ideia de “segundo o todo”, de que pessoas das mais 
diversas localidades e culturas estariam diante do Cordeiro. E essa 
visão é concretizada quando cada pessoa consegue fazer conexões do 
Evangelho com sua própria cultura. 
Diante disso, não há como não seguir o que John Stott recomenda. Apesar 
da nossa difi culdade, precisamos ouvir duplamente: a voz de Deus e a 
voz das pessoas que estão ao nosso redor, como é o título do seu livro 
Ouça o Espírito, ouça o mundo (Stott, 2005). A tarefa não é tão simples 
quanto parece, pois exige uma renúncia do próprio egocentrismo, já que 
primeiro a fala dá lugar ao ouvir. E o ato de ouvir não foi uma prática 
adotada pela tradição cristã nos últimos séculos. Quando falamos de 
evangelização, logo pensamos nas pessoas com grande eloquência, 
capazes de convencer multidões com suas pregações. Mas, nos tempos 
em que vivemos isso precisa ser diferente. Se quisermos uma mensagem 
contextualizada, precisamos aprender a dialogar com aqueles que 
possuem pontos de vista diferentes dos nossos e romper a barreira dos 
guetos. Além disso, é necessário reconsiderar a concepção de que uma 
mensagem contextualizada é necessariamente uma mensagem falada. 
Em vez disso, deve ser uma mensagem encarnada. As pessoas da 
contemporaneidade parecem estar cansadas de discurso, querem ações. 
E Jesus de Nazaré persiste sendo o melhor exemplo dessa simbiose, 
pois foi que encarnou o Verbo Divino e inaugurou o Reino de Deus.
Concluindo esse tópico, apesar das transformações pelas quais o mundo 
sempre passa, e o desconforto que isso traz, nossa postura não pode ser 
de medo, retração, mas deve ser de diálogo, pois só assim conseguiremos 
transmitir a tradição que revoluciona de forma contextual. Precisamos 
ouvir o clamor do mundo e ouvir o que dizem as Escrituras, iluminados 
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pelo Espírito, e essa tarefa pode ser realizada com maior efetividade a 
partir do momento em que estabelecemos pontes, nosso segundo tópico 
nesta unidade.
4.2. Caminhos para o diálogo
A partir das questões mencionadas acima surge-nos uma dúvida: como 
dialogar com o diferente, se tudo o que quero é que o diferente seja como 
eu? Ou, talvez, como dialogar com o diferente sem perder a minha essência 
e defender minha verdade? É comum que, ao falar em dialogar, respeitar 
e aceitar, surjam em conjunto expressões como concordar, apoiar, tornar 
subjetivo. Há uma grande confusão, de fato, quando essas palavras são 
invocadas em um contexto religioso. Principalmente, quando se trata de 
uma religião presa aos tradicionalismo, como explicado no tópico anterior. 
Para iniciarmos esse assunto, portanto, é importante tratarmos do 
tema “verdade”, diferenciando-a do que seja a minha verdade. O maior 
impedimento entre o diálogo dos diferentes é a defesa de uma verdade 
que cada um dos interlocutores possui. Ao falarmos de Jesus é preciso 
reconhecer, antes de tudo, que nenhum cristão detém a verdade, pois 
nenhum cristão tem propriedade sobre Jesus. Jesus é a verdade. Jesus 
como único Cristo/Messias é a única verdade suprema. A qual podemos 
conhecer por meio dos relatos a seu respeito (Evangelhos), e os quais são 
claros em demonstrar a presença contínua de diferentes seres humanos 
a seu redor, diferentes locais, diferentes maneiras de agir, falar, curar, 
orar etc. Portanto, a afi rmação mais correta sobre a verdade, enquanto 
cristãos, é de que não existe “minha verdade”, e a única verdade que 
existe não cabe em um único padrão, em uma única definição, e que 
palavras não dão conta do tamanho alcance dela. 
Aqui está a diferença fundamental, que os cristãos custam a compreender: 
do ponto de vista da fé bíblica, a verdade existe e ela tem nome: é Jesus. 
Tudo o que temos, porém, são relances, aproximações, gestos graciosos 
e amorosos da própria verdade em nossadireção que asseguram, 
ao nosso ser todo, que estamos nela e dela somos. A verdade, nesse 
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sentido estrito, “dá testemunho de si mesma”, como disse Michel Henry 
(2015). Podemos falar dela – afi nal, “a linguagem ainda é seu meio de 
comunicação por excelência” (emprestando de novo palavras de Henry), 
desde que for, ou se for, necessário comunicar. Mas a questão é: o que 
alguém, de fato, comunica quando pretende anunciar a verdade: ela 
mesma ou uma versão possível, mas sempre diferente, parcial, dela? 
E essa verdade comunicada nas palavras, pode até convencer, mas de 
que forma ela liberta (como também diz João): pelo poder das palavras, 
ou pelo misterioso poder do Cristo, que está além delas? No fi m das 
contas, a verdade só “é” para quem se vê capturado por ela, uma vez que 
a verdade, em si, não pode ser capturada por ninguém. 
Por isso, tentar defender qualquer tradição, religião, nomenclatura, e 
fazê-lo em nome de Jesus o Cristo, é vão. É descaracterizar a essência 
do movimento cristão primitivo. Jesus, enquanto verdade, era o Cristo 
das Marias, dos Josés, dos Pedros, dos Tiagos, dos samaritanos, das 
prostitutas, dos publicanos, dos pagãos, assim como, era Cristo dos 
fariseus, mestres da lei, sacerdotes do Templo, ofi ciais romanos, 
imperadores etc., ainda que esses não quisessem ouvi-lo. Isso não é 
subjetividade, isso é a Boa-Nova pregada por Jesus como salvação de 
todo aquele que andar como ele andou. Ser cristão, assim, signifi ca viver 
no limiar entre o anseio pela dádiva de ser cada vez mais possuído e 
capturado pela verdade na vida, e a boa-nova libertadora de não poder 
apreendê-la ou possuí-la no discurso, mas de vivê-la como “evidência 
muda”. Entretanto, que toda fala, todo discurso, toda comunicação, 
argumentação, raciocínio, narrativa ou teo-logização sejam benditos e 
bem-vindos, desde que se assumam jubilosamente como meios, e não 
como fi ns, como contingentes, e não absolutos. 
A tendência à literalidade bíblica e ao legalismo pode ser um outro 
grande fator de empecilho ao diálogo e à união entre os próprios cristãos 
e, também, os não cristãos. Isto porque, se analisarmos bem, aquele que 
está sendo literal e legalista com a bíblia traduzida, não está levando na 
literalidade as Escrituras e a Palavra de Deus. Tente acompanhar nosso 
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raciocínio: a bíblia foi escrita em Hebraico e Grego, com vocabulários 
bem diferentes que comportam diversas traduções; sendo assim, a única 
maneira de seguir fi elmente o que está escrito nela, levando a ferro e 
fogo versículos isolados e palavra por palavra, seria reencontrando seus 
autores e perguntando a eles qual seria a correta tradução do texto original 
para o português, emitindo, assim, exatamente o que eles pretendiam 
com aquele escrito. Por estes motivos é que juntamos esforços para 
aprender o que está ao nosso alcance sobre os tempos passados, sobre 
a história, sobre a geografi a e fazemos maior esforço ainda para aplicar 
esses ensinamentos em nossos tempos atuais, de forma que Jesus, o 
único que é caminho, verdade e vida, possa ser acessível a todos os 
seres humanos, por meio daqueles que já o encontraram. 
Além disso, é preciso diferenciar dois caminhos a serem percorridos 
na temática do diálogo: (1) O diálogo entre cristãos de diferentes 
seguimentos, e (2) o diálogo entre cristãos e não cristãos. Falaremos de 
ambos. E, para ambos os casos, encontramos interlocutores lutando pela 
defesa da sua verdade real, da sua crença e da sua própria interpretação 
sobre a vida humana em relação ao divino – neste caso nos reservaremos 
aos discursos dos cristãos, pois esse é nosso “lugar de fala”. 
Vamos começar tratando da intolerância entre os próprios declarantes 
da fé cristã, sejam evangélicos, católicos, e assim por diante. Elias Wolff, 
professor de Teologia Sistemática e especialista em Ecumenismo, já em 
2015 alertou:
Mas há um drama no mundo cristão que todos sentem: 
a divisão nas formas de compreender e viver os 
ensinamentos do Evangelho. Muitas dessas formas 
surgem e se fortalecem num espírito de proselitismo 
e concorrência, com pouco, ou nenhum, espaço para 
a convivência e a interação das diferenças, o amor e a 
comunhão. A divisão cristã é uma realidade dramática. 
(Wolff, 2015, p. 382)
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O que impede a união entre os cristãos de diferentes seguimentos, não 
é exatamente a forma diferente com que se relacionam com Deus. Não 
é desejo de gritar, pular, dançar, manter-se em silêncio no escuro ou na 
claridade, na manhã ou na noite, em casa ou no templo, de camisa ou 
camiseta, calça ou saia. O que impede essa união é a disputa de poder 
e domínio sobre a verdade. É o desejo de dizer “essa é a forma correta”, 
ou “é assim que Deus quer ser chamado, invocado e adorado”. É a 
concorrência pela arregimentação de fi éis em torno de uma forma, não ao 
Cristo. Concordamos com Merton (2017, p. 139) quando ele afi rma que 
é um dom divino ser ensinado e ensinar “a diferença entre o formalismo 
da casca externa, ressequida, que as naturezas humanas que compõem 
a Igreja às vezes lhe emprestam, e a corrente interior, viva, de vida divina, 
que é a única verdadeira tradição católica” (ou universal).
Vemos nos dias de hoje um ataque inter e intra eclesiástico. Fiéis que 
radicalizaram seus ritos e tornaram a Palavra maior do que aquele a quem 
ela se refere. Tornaram a letra mais forte do que seu próprio conteúdo. 
Entretanto, como adverte Wolff (2015, p. 283), muitos deles sequer 
conseguem notar que suas diferenças não são contradições, e poderiam 
ser uma fonte de enriquecimento uma à outra, na compreensão e na 
vivência do Evangelho. Ao contrário, os detentores da “minha verdade” 
afastam de si o que há de mais rico no Evangelho ensinado por Jesus, em 
que todos, absolutamente, são fi lhos/as de Deus e, por isso, onde quer 
e como quer que o adorem, fazem parte dessa grande família. Esse é o 
caminho de retorno à harmonia da criação, mencionado na unidade II. 
Jesus é claro ao ensinar seus discípulos que nem todo o que diz “Senhor, 
Senhor”, nem todo aquele que profetizar em nome dele, nem todo aquele 
que expulsar demônios em seu nome, ou qualquer que fi zer muitas outras 
coisas, serão reconhecidos como participantes do Reino, reconhecidos 
por Jesus como próximos dele (Mt 7.21-24), pois existem outras coisas 
mais importantes. Mateus, em seu evangelho, inclusive relata Jesus 
ensinando que aqueles que não sabem seu “nome” e que não serviam 
com os dons dos religiosos, mas ao faminto derem de comer, ao nu 
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derem de vestir e ao preso foram visitar, estes sim Jesus diz reconhecer, 
ser próximo deles, ser integrantes do Reino (Mt 25.34-46). 
Isso não quer dizer que exercer os dons, estar numa comunidade, praticar 
ritos sagrados não seja importante. Quer dizer que não são sufi cientes. 
Em Lucas 11.34 em diante, Jesus vai à casa do fariseu para uma refeição, 
e se assenta à mesa sem cumprir o rito do batismo, que para os fariseus 
era sagrado. Era necessário, conforme a tradição, purifi car-se do contágio 
recebido pelos pecadores nas ruas, para que pudessem compartilhar de 
forma santa a refeição. Mas Jesus ignora o rito e lança uma séria de 
Ais contra os fariseus. Os Ais são advertências, denúncias proféticas, 
oráculos de justiça, contra aquele grupo de fariseus e mestres da Lei. 
Mas Jesus é incisivo, após mencionar diversos ritos por eles praticados 
em comparação à falta de misericórdia, amor e piedade para com os 
outros, diz: “Vocês deveriam fazer estas coisas, sem omitir aquelas” (Lc 
11:42b), referindo-se à omissão das práticas de justiça em detrimento de 
sacrifícios. Portanto, todos os ritos são bem-vindos, quando promovem 
plenitude de vida por meio da companhia de boas-obras. 
Diante desses ensinamentos bíblicos, e percebendo que a cada minuto 
novas comunidades surgem, com pensamentos diversos, com práticas 
e vivênciasdiferentes, precisamos focar naquilo que é importante. 
Renunciar à disputa, ao orgulho, ao egoísmo, à vaidade, à falta de caridade 
e de fé Naquele que realmente é Justo Juiz, e deixar que a prática do 
amor e da piedade fale por nós. Vivemos tempos de polarização política 
e religiosa; tempos em que milhares de novas opiniões são publicadas a 
cada segundo nas redes sociais. E o acesso à informação é tão livre que 
acaba produzindo uma constante desinformação. Nossa melhor escolha 
nesse momento é acessar o Evangelho puro e simples de Jesus. 
Esta escolha irá, automaticamente, refl etir em nosso comportamento 
diante do embate encontrado no segundo caminho: o diálogo entre 
cristãos e não cristãos. Emil Brunner, um dos maiores teólogos do 
século XX, nos lembra que “a tolerância das religiões indianas – incluindo 
o budismo – e do misticismo em geral, frequentemente é exaltada às 
115| Teologia Contemporânea | FTSA | 
expensas da “intolerância” do Cristianismo”. Em contrapartida, segundo 
ele, “o Deus que deu seu próprio Filho para a redenção do mundo, e cuja 
glória foi revelada na Cruz de seu Filho, não deseja que a mensagem do 
Seu Nome seja propagada pela confl agelação e espada, pela queimada 
dos hereges, ou pelo batismo compulsório” (Brunner, 2010, p. 235). 
Por mais que em nosso cenário brasileiro/latino-americano/ocidental, as 
crucifi cações, queimadas, decapitações, apedrejamentos e outros meios 
extremamente agressivos e desumanos não sejam mais utilizados, 
ainda assim encontramos muita violência praticada em nome de 
Deus. Violências físicas de menor intensidade, mas ainda desumanas, 
violências psicológicas, verbais e econômicas continuam acontecendo. 
Em nome de Cristo se destroem templos de outras religiões; em nome de 
Cristo deixa-se de dar o pão àquele que não confessa o nome “Jesus”; 
em nome de Cristo se excluí grupos minoritários, oprime-se escolhas, 
lança-se ao fogo do inferno os que rejeitam se fi liar à “minha igreja”.
Entretanto, como alerta Richard Rohr, o ser que chamamos de Deus e sua 
encarnação, que chamamos de Jesus, não está preocupado com nomes. 
Desde o início de sua revelação ao ser humano, e sua busca por uma 
recuperação dessa aliança em Moisés, o divino não se preocupou com 
nome. O que é lógico, já que sendo Ele indefi nível, nome é o que não 
importa. “Lembre-se de que Deus disse a Moisés: ‘Eu SOU quem Eu SOU’ 
(Êx 3.14). Deus não está claramente ligado a um nome e, também, não 
parece querer que liguemos a divindade a qualquer outro nome” (Rohr, 
2019, p. 41). O autor complementa: 
É por isso que no judaísmo, na declaração de Deus a 
Moisés, ele se tornou o Deus indizível e inominado. 
Alguns dirão que o nome de Deus literalmente não pode 
ser “dito”. Isso foi muito sábio, e mais necessário do 
que supúnhamos! Essa tradição apenas deveria nos 
dizer que praticássemos uma humanidade profunda em 
relação a Deus, que não nos dá um nome, mas apenas 
| Teologia Contemporânea | FTSA116
a pura presença – não uma manipulação que poderia 
permitir-nos pensar que “sabemos” quem é Deus, ou tê-
lo como nossa posse privada. (Rohr, 2019, p. 41)
Por mais que tenhamos desejo de exercer o evangelismo por meio da 
defesa do nome de Deus, ou da defesa do nome que demos à nossa 
religião (ou à forma como nos religamos a Deus), essa não é nossa 
tarefa. Nossa tarefa é seguir os caminhos de Jesus, carregando nossa 
cruz dia após dia, nos tornando dignos dele. Nossa tarefa, acima de 
tudo, como mencionado na unidade III, é buscar o Reino de Deus e a sua 
justiça. Brunner (2020, p. 393) destaca que “a tarefa com a qual Deus 
tinha confi ado a Ele (Jesus) não foi a de proclamar o Cristo, mas de ser
o Cristo”. Da mesma forma, nós também precisamos nos concentrar em 
nossas tarefas e parar tentar defender aquele que não precisa de defesa 
alguma. Muitas vezes nós tomamos a postura de parakkletos de Deus, 
porém, essa tarefa de intercessor, defensor, conselheiro, não é nossa 
para com Deus, e sim do Espírito Santo para conosco.
Nós podemos até tentar buscar um relato de Jesus defendendo a si 
mesmo, defendendo sua versão do judaísmo, defendendo o nome de seu 
Pai como sendo Yahweh, Elohim, ou qualquer outro. Mas simplesmente 
não encontraremos. Não há nem mesmo um mínimo indício dessa 
tentativa. Jesus não chama ninguém para simplesmente acreditar em 
Deus, seguindo um credo religioso. Não chama ninguém a uma nova 
religião, a um rito, nem uma fi losofi a. É impossível encontrar textos 
bíblicos nesse sentido. Jesus chama pessoas a seguirem com ele, 
assistirem sua vida, acompanharem seus passos, sem pedir nada em 
troca e, também, sem oferecer qualquer sucesso, dinheiro, aceitação, 
e assim por diante. O ministério do Cristo é promover a salvação por 
meio do retorno ao plano original do criador. E é isso que nós, enquanto 
imitadores dele, também devemos fazer. 
Portanto, saber conviver com o diferente é um dos maiores desafi os 
para aqueles que desejam amadurecer em Cristo e se tornar cada vez 
mais parecidos com ele. A diferença não signifi ca divergência, tampouco 
117| Teologia Contemporânea | FTSA | 
inimizade. A diferença nos leva a admitir que Deus está em tudo e em 
todos e não apenas em mim. Todos os seres humanos carregam em si 
a imagem e a semelhança daquele que É. E nós não podemos ignorar 
esse fato. Por isso, na diversidade contemporânea, a luz de Jesus pode 
brilhar de diversas maneiras e não é preciso que tenhamos medo de 
suas cores. Como diz Rohr (2019, p. 23): “Lembre-se, a luz não é tanto o 
que você vê diretamente, mas algo pelo qual você vê todo o resto”. Essa 
frase tão simples pode nos revelar muito sobre a sabedoria do diálogo. 
Quando acendemos a luz em nossas casas, quartos, salas, escritórios, 
ou qualquer outro lugar que esteja escuro, não o fazemos para fi carmos 
parados olhando para ela e não fazemos para que outros venham olhar 
conosco. Acendemos as luzes para nos guiarmos até onde precisamos, 
para enxergar os objetos, os cômodos e o que mais for necessário. A 
iluminação nos deixa seguros de que se houver um obstáculo poderemos 
desviar. Nas muitas afi rmações sobre a luz que encontramos na Bíblia, 
principalmente nos relatos do evangelista João, fi ca fácil perceber que a 
luz ilumina nossa maneira de olhar o mundo, de olhar o outro, de olhar a 
criação divina, com os mesmos olhos de amor do criador. É preciso que 
essa luz resplandeça nas relações, no diálogo, na convivência. 
Não podemos esconder que “muitas pessoas de outras crenças, como 
mestres sufi s, os profetas judeus, muitos fi lósofos, e místicos hindus 
viveram à luz do encontro divino, melhor do que muitos cristãos”, pois 
muitos cristãos encontram-se com uma regra e uma Lei, mas não se 
encontram com a essência divina do Criador. Não se encontram com o 
verdadeiro eu, que não deseja ser aquilo que não é. Brunner (2019, p. 
236), inclusive comenta que “o homem pecador acredita que ele deveria 
ajudar a verdade de Deus por meios coercitivos”, também que “esta falsa 
‘teocracia’ está em oposição ao Evangelho do Lava-pés e da Cruz”.
Sob esta perspectiva, o diálogo das religiões ou das vertentes cristãs, 
precisa se tornar o que Wolff (2016) chama de diálogo das espiritualidades. 
De forma que tais espiritualidades, enquanto forma como se vive a 
motivação do existir, possam se somar e levar todos ao Espírito, que é 
| Teologia Contemporânea | FTSA118
a fonte de todas as espiritualidades. Quando reconhecemos o domínio 
do Espírito Criador sobre toda a criação e sobre todo o ser humano, 
percebemos que este Espírito, de alguma forma, está presente nas muitas 
espiritualidades humanas. O diálogo permite essa busca. Não tem a ver 
com concordar, não tem a ver com convencer, não tem a ver com apoiar 
ou não apoiar, mas tem a ver com buscar incansavelmente a presença 
do Espírito de forma que ela se torne cada vez mais visível para todos. 
Dessa forma, o outro, em busca do Espírito nas nossas vidas também o 
tornará (o Espírito) mais visível para si e para nósinatualidade ou não 
união perfeita com seu próprio tempo. Ou seja, ao contrário do que talvez 
estejamos acostumados a conceber, ser uma pessoa contemporânea 
signifi ca andar em dissincronia com sua própria época. Como lembrou 
Agamben na epígrafe (a frase com a qual abrimos esta unidade), podemos 
11| Teologia Contemporânea | FTSA | 
até odiar nosso tempo, mas a sabedoria nos lembra que sabemos que 
lhe pertencemos “irrevogavelmente” e que dele não podemos fugir. Mas 
se dele não fugimos, nem tampouco deixamos facilmente nos amoldar, 
como nos tornamos propriamente contemporâneos?
Desse modo é que Agamben apresenta seu primeiro signifi cado para 
“contemporâneo”: 
A contemporaneidade, portanto, é uma singular relação 
com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo 
tempo, dele toma distâncias; mais precisamente, essa 
é a relação com o tempo que a este adere através de 
uma dissociação e um anacronismo. Aqueles que 
coincidem muito plenamente com a época, que em 
todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não 
são contemporâneos porque, exatamente por isso, não 
conseguem vê-la, não podem manter fi xo o olhar sobre 
ela. (Agamben, 2009, p. 59, grifo nosso)
Há uma série de elementos importantes nesta primeira defi nição, 
mas queremos comentar os que mais nos saltam aos olhos: (a) ser 
contemporâneo é aderir ao tempo tomando dele distância – isto, aliás, é 
o que chamamos propriamente de um paradoxo; (b) e toma-se distância 
dele por meio de uma “dissociação” (o oposto de associação, simples 
assim) e de um “anacronismo”. É isto mesmo? Dizemos que alguém ou 
uma concepção de mundo é “anacrônica”, normalmente em tom crítico, 
para inferir que ele/a não está em sintonia com a sua própria época. 
Nesse sentido, talvez este fosse o último predicado que imaginaríamos 
sendo atribuído a alguém que consideramos um contemporâneo. Mas 
esta forma de ser contemporâneo pode tornar esta pessoa livre ao ponto 
de poder circular pela “sabedoria antiga” presente em diferentes eras, por 
exemplo, extraindo delas signifi cativos insights para interpretar e viver 
seu próprio mundo. 
| Teologia Contemporânea | FTSA12
Glossário
Sabedoria antiga. O uso do termo 
aqui parte do pressuposto (presente no 
livro de Provérbios, ver: Pv 8.22-31) de 
que a sabedoria está presente desde o 
princípio das eras e do próprio universo; 
nasceu do Verbo Divino na Criação, vem 
antes do próprio conhecimento e é mais 
fundamental que ele – ou seja, ela é a 
guia do conhecimento, por assim dizer. E 
que, portanto, recorrer ao que chamamos 
aqui de “sabedoria antiga” é o ato mais útil 
e revolucionário que um contemporâneo 
pode fazer, a fi m de que seja de fato um 
contemporâneo, ao menos no sentido empreendido por Nietzsche 
e Agamben. Esta, aliás, a proposta do livro No caminho do bem: 
sabedoria antiga para uma nova humanidade (2021), de autoria 
de Jonathan Menezes.
E é precisamente esta inversão – do contemporâneo como quem pertence 
a uma época específi ca, sem a esta aderir plenamente, e circula livremente 
por outras épocas, buscando uma sabedoria atemporal presente ali –, 
tão interessante em Agamben, que proporciona o terceiro elemento que 
gostaríamos de destacar: (c) a possibilidade de “ver” a nossa época, 
coisa que não é possível a quem não ocupa seu próprio interior, mas 
“vive ingenuamente no mundo”, parafraseando Arthur Danto. E, assim, 
enxerga as coisas sem “vê-las” propriamente. Em outras palavras, o 
contemporâneo pode ser descrito como um “contemplativo”, no sentido 
que Thomas Merton deu à palavra, uma vez que o contemplativo é 
aquele/a que contempla o mundo contemplando, antes, a si mesmo. 
Observa-o do interior, por assim dizer, e observa-o, diga-se de passagem, 
13| Teologia Contemporânea | FTSA | 
ativamente, isto é, como quem participa do mundo, como quem faz parte 
dele, mas nem por isso toma parte de todos os seus negócios. “O segredo 
da vida contemplativa”, disse Merton (2019, p. 487), “está na capacidade 
de percepção (ou conscientização) ativa”. 
Esta observação não é menos importante, porque o distanciamento 
enunciado por Agamben não deve ser entendido como uma fuga ou 
abandono do mundo, tampouco o é a chamada vida contemplativa. A 
mudança na vida do contemplativo, a partir desse despertar consciente 
que a luz de Cristo nele promove, não redunda propriamente em 
um afastamento do mundo e de seus objetos, mas na quebra de sua 
dependência em relação a eles, que Merton chama noutro lugar de 
“desapego essencial”. Em suas palavras, 
O contemplativo não deixa de conhecer os objetos 
exteriores. Mas deixa de ser guiado por eles; deixa de 
depender deles. deixa de tratá-los como a realidade 
suprema e agora os avalia segundo um novo modo, 
no qual não são mais objetos de desejo ou medo, 
permanecem neutros e como que vazios, até que sejam 
preenchidos pela luz de Deus. (...) Fora desse desapego 
essencial, o homem não pode ter a esperança de 
adentrar sua mais interior profundidade e experimentar 
o despertar do eu interior que é a morada de Deus, Seu 
lugar oculto, Seu templo, Sua fortaleza e Sua imagem. 
(Merton, 2007, p. 26)
E o que vale para nossa relação com os objetos, vale também para nossa 
relação com as pessoas. Uma ambiguidade deve ser notada aqui: se, 
por um lado, deve-se dizer que relacionamentos nos humanizam e nos 
aproximam desse “despertar do eu” sobre o qual fala Merton, por outro, 
há que se ponderar que o efeito oposto às vezes também é produzido 
nas relações, quando não nos treinamos a reconhecer e a respeitar 
limites. Relações maduras, contudo, pressupõem o respeito mútuo pela 
| Teologia Contemporânea | FTSA14
individualidade, os limites e a solidão, minha e a do outro, do contrário 
perde-se a intimidade fundada na caridade, que cuida sem sufocar. Como 
bem coloca Merton em seu livro Homem algum é uma ilha:
Mas não há verdadeira intimidade entre almas que 
não sabem respeitar a sua mútua solidão. Não posso 
unir-me a outra pessoa, cuja personalidade o meu 
amor tende a ofuscar, absorver e destruir. Nem posso 
despertar o verdadeiro amor numa pessoa a quem o 
meu amor convida a afogar-se no próprio ato com que 
ela me cumula. (Merton, 2021, p. 153)
Jesus de Nazaré, por exemplo, persiste como melhor exemplo de pessoa 
contemplativa, porque participava ativamente do mundo, desenvolvendo 
tanto uma escuta quanto uma sensibilidade ativas, no sentido de que 
se convertiam em ações libertadoras, de solidariedade e compaixão 
para com a vida humana, quanto também tinha uma vida e missão 
autônomas em relação aos imperativos externos, mesmo aqueles vindos 
de seu núcleo mais íntimo. A questão fundamental é: de onde procedia 
essa sensibilidade e capacidade de escuta de Jesus, combinada com 
uma autonomia e reverência à sua vocação particular? A resposta mais 
simples e óbvia é: de sua vida de oração, de seus momentos de silêncio, 
no deserto, em comunhão com seu Pai. Deixe-nos dar um exemplo.
No Evangelho de Marcos, relata-se que, depois de uma noite atribulada 
em que Jesus seu doou de muitas formas a pessoas que necessitavam 
de seu toque curador – como a sogra de Simão Pedro, além de outros 
enfermos e endemoninhados –, na manhã do dia seguinte, “Jesus 
se levantou e foi a um lugar isolado para orar”. Passado um tempo, o 
relato prossegue dizendo que “Simão e os outros saíram para procurá-
lo.  Quando o encontraram, disseram: ‘Todos estão à sua procura!’. 
Jesus respondeu: Devemos prosseguir para outras cidades e lá também 
anunciar minha mensagem. Foi para isso que vim’” (Mc 1.35-37, NVT). 
Observe os destaques que fi zemos no texto, primeiro: “Todos estão à 
15| Teologia Contemporânea | FTSA | 
sua procura!”. Há uma exclamação aí, um senso de urgência na voz dos 
discípulos, sinal de que as pessoas precisavam de Jesus, uma convocação 
para que ele viesse de novo e fi zesse a sua costumeira mágica, a fi m 
de que todos fi cassem contentes. Agora, segundo, veja o contraste na 
resposta de Jesus: “Devemos prosseguir”, ir a outros lugares,mesmos. 
Esse tipo de diálogo é um diálogo missionário. Como Wolff (2016, p. 103) 
coloca: “O missionário cristão não ‘leva’ Deus aos membros das outras 
religiões, partilha com eles sua experiência. Para ser verdadeira ‘partilha’, 
é preciso saber também receber algo da experiência que o outro faz de 
Deus. Para isso, há que se admitir que Deus já está presente na vida das 
pessoas a quem o Evangelho é anunciado. Elas devem sua existência ao 
mesmo Deus que é autor de toda a criação”. O que Wolff está falando 
não está relacionado com tentar purifi car e elevar algo de bom nas 
outras religiões e nas diferentes formas de viver e, assim, compreender 
o cristianismo, mas de reconhecer a verdadeira natureza do bom (tov)
que está nessas pessoas, as quais são imagem e semelhança do 
Criador tanto quanto nós, e reconhecer suas formas de se conectarem 
ao Criador, contribuindo, se possível, para que suas experiências sejam 
melhores ainda, as levando para mais perto ainda do plano original. Ou, 
se preciso, também aprendendo com elas e reconhecendo o quanto 
também precisamos nos aproximar mais deste plano divino. 
Se toda a igreja estivesse focada na missão que nos foi dada e renunciasse 
aos sentimentos que não pertencem ao Espírito, como relatado por 
Paulo na carta aos Gálatas (cap. 6), então poderíamos ter uma Igreja 
diferente. Um corpo unido, que não pode ser vencido. Um corpo que move 
montanhas com fé e esperança. É preciso pensar e repensar, como uma 
verdadeira transformação da mente pode alcançar a igreja. No próximo 
tópico iremos falar sobre essa possível versão da Igreja Cristã.
119| Teologia Contemporânea | FTSA | 
4.3. Uma igreja reimaginada
Por meio de uma refl exão sobre o papel e importância da igreja no 
mundo e na cultura contemporâneos ultimamente – o que precisa incluir 
o período pós-pandemia; através da convivência e conversas com muitas 
pessoas diferentes, crentes e descrentes, podemos chegar à conclusão 
de que estamos em um processo de transição, de revisão de modelos, 
de reorientação de práticas. Que papel a Igreja tem a desempenhar, 
por exemplo, numa fatia de cultura – e aqui preferimos falar em 
“fatia” ao invés de cultura no geral – como a urbana, pós-moderna ou 
líquido moderna (como preferiu Zygmunt Bauman), pós-paradigmática, 
de posicionamentos, “desideologias” e religiosidades fl uidas, de 
espiritualidade ao invés de religião, de encantamento com o sagrado, 
com o transcendente, e menos com suas expressões doutrinárias e/
ou institucionalizadas; de menos certezas, dogmas e posturas rígidas 
ou sólidas (ainda que ela subsistam e tenham lugar), e mais incertezas, 
dúvidas, paradoxos, liquidez; de saturação do individualismo e da 
autossufi ciência modernos, de renascimento das tribos, dos ajuntamentos 
por gostos, como tem dito Michel Maffesoli.
Que lugar e papel as igrejas ainda podem desempenhar para inúmeras 
pessoas que não escutam mais o que ela diz (ou escutam e detestam) e 
não querem saber dela, pois a consideram uma voz tacanha, ultrapassada, 
anacrônica – isso quando não intolerante, mesquinha, pretensiosa à 
verdade universal? Quem tem sido e será igreja especialmente para os 
“sem igreja”, “sem religião”, “sem instituição”, para os desencantados 
com os modelos religiosos e institucionais vigentes; que Igreja existirá 
para quem está sedento não de ser convencido, por vias lógicas e 
argumentativas, de que a fé faz sentido, mas de relacionamentos que 
indiquem como e onde podem encontrar sentido de vida, experiência, 
amor, amizade e comunidade; o que ela tem a propor para pessoas que 
não dão a mínima para quantidade, pirotecnia espiritual e entretenimento, 
e, portanto, jamais entrariam em muitos dos templos cristãos existentes, 
mas ainda assim parecem encantadas pela mensagem de Jesus e 
dos evangelhos? Será que a mesma Igreja, que sabe muito bem como 
| Teologia Contemporânea | FTSA120
ser Igreja para os “convertidos”, poderá ser igreja para os “peregrinos” 
(usando aqui as terminologias de Danièle Hervieu-Léger), os andarilhos, 
que não se encaixam em lugar ou sistema tradicional algum, não se veem 
contemplados pelos invólucros de Deus existentes? 
Pensamos “nesses jeitos particulares de ser gente” hoje (que é como 
Rubem Alves defi niu cultura certa vez), porque temos uma ligeira 
suspeita de que não tem tanta gente nas igrejas pensando e agindo ao 
encontro dessas pessoas. Se aqui estamos pensando em uma fatia de 
necessidades dentro de uma fatia de cultura, pode-se dizer que a missão 
aqui implicada se quer integral, mas não oniabrangente; isto porque fazer 
missão holisticamente é também admitir fazê-la parcialmente (ninguém 
pensa ou cumpre a missão toda sozinho). Por isso, investiremos menos 
tempo em diagnósticos ou críticas neste último tópico de nossa conversa, 
e mais em proposição, ou melhor, em imaginação: que Igreja imaginamos 
que precisa existir em meio a essa fatia de cultura contemporânea? E ao 
dizer “imaginamos” não signifi ca inventamos do nada, mas imaginamos 
biblicamente. Para isso, queremos explorar uma das consequências da 
aplicação da kenosis de Paulo (cf. Fp 2.5-11) e do pensamento fraco
de Gianni Vattimo à Igreja cristã, presente e atuante especialmente em 
culturas líquido-modernas (BAUMAN, 2013) ou pós-modernas: a de levar 
a sério e a assumir sua condição frágil e irrelevante no mundo. 
Glossário
Kenosis: Palavra grega que designa o esvaziamento do poder ou 
da vontade de alguém em favor da de outrem. O uso desta palavra 
geralmente vem atrelado ao texto da carta de Paulo aos Filipenses, 
no capítulo 2, quando o apóstolo fala do movimento descendente 
do Cristo que, abandonando sua glória, esvaziou-se do poder de 
sua divindade, e humilhou-se, assumindo a forma humana. Na 
fi losofi a de Vattimo, kenosis é utilizada para se referir à humilhação, 
encarnação e humanização de Deus, ponto fundamental em 
121| Teologia Contemporânea | FTSA | 
sua teoria da secularização, que para ele brota exatamente do 
esvaziamento do falar de Deus a partir da metafísica. A partir de 
então, o chão da história em que Deus se encarnou torna-se o 
referente para se falar de Deus.
Pensamento fraco: Nos escritos de Vattimo (2004, p. 30), 
pensamento fraco designa “o reconhecimento nietzschiano de que 
não podemos evitar que se fale em termos metafóricos, isto é, em 
termos que não são objetivos nem descritivos, que não espelham 
o estado de coisas”.
Na maioria dos livros e conferências sobre Igreja, a ideia de relevância 
está presente como sendo um alvo imprescindível para a Igreja no mundo. 
Para muitos, Igreja boa é Igreja relevante; igreja boa é Igreja forte. A 
questão é: “o que é ser relevante”? E mais que isso: o que a Igreja precisa 
“fazer” para ser relevante? Se nossa defi nição de relevância está muito 
condicionada ou à visão de “sucesso” e “pujança” de nossa sociedade, 
qual seria então uma perspectiva do Evangelho sobre isso? E de que 
modo essa perspectiva aparentemente estranha pode servir como norte 
para uma Igreja que queira ser, de fato, “evangélica” e “contemporânea” 
– de acordo com o sentido que designamos na unidade I –, embora nem 
sempre “relevante” ou “de sucesso” dentro de tal ou qual perspectiva? 
Sabemos que a Igreja, diante dos dilemas culturais, vive numa tensão 
dinâmica (às vezes confl itante, às vezes amigável) entre ser uma 
expressão desta e (relevante) para esta época, e sua razão de ser, que 
é encarnar diante do mundo a boa nova do reino revelada na pessoa de 
Jesus. Ou seja, o que move a Igreja, primordialmente, não são os ditames 
do que impera na sociedade em que ela coexiste, mas o exemplo de seu 
Senhor – cuja existência não foi apenas relevante, mas revolucionária, 
em conformidade com o querer do Pai e não de acordo com os modos 
e moldes deste mundo. E o exemplo do Cristo, suas prioridades, sua 
missão se desenham desde seus primeiros passos na vida e ministério. 
| Teologia Contemporânea | FTSA122
A narrativa de Lucas no capítulo 4, Jesus não inicia seu ministérioem 
ação, mas em silêncio, oração e na total dependência do Espírito no 
deserto. É um excelente exemplo do que queremos dizer aqui. Na 
tentação, ele rejeita o caminho do poder e abraça a partir dali uma 
vocação despossuída de pretensões grandiosas neste mundo e desejosa 
apenas de fazer a vontade do Pai de reconciliação de cada ser humano 
consigo mesmo, com seu próximo e com Deus. O caráter dessa vocação 
e mensagem se confi rma no momento seguinte da narrativa, quando 
Jesus se dirige à sinagoga de Cafarnaum e arruma uma grande confusão 
com o pessoal do templo, ao evocar sobre si a palavra do profeta Isaías. 
Naquele momento, fi ca claro que ele encarna a fi gura indigesta do profeta 
(o profeta sem honra), que não tem amor ao próprio pescoço, não tem 
“rabo preso” com ninguém e que estabelece uma relação crítica com o 
poder e suas “estruturas”. 
Quase todo/a líder ou ministro/a cristã/o em nossos dias, naturalmente, 
imagina poder iniciar seu ministério bem, realizando boas e grandes 
coisas para se estabelecer, sendo notado e respeitado a fi m de conquistar 
seu espaço. O mestre, porém, tem um início subversivo até nisso, pois 
esse primeiro ato ministerial, segundo esse relato, foi um fracasso total: 
todos na sinagoga fi caram enraivecidos com seu discurso, o expulsaram 
da cidade e tentaram jogá-lo do precipício, o que só não aconteceu 
porque ainda não era o momento. Mas era o indício de um caminho, um 
caminho de cruz. 
O que a Igreja contemporânea – aquela que leva a sério sua vocação na 
mesma medida em que tenta ouvir atentamente às questões plantadas 
em seu tempo – pode aprender com isso? Dentre tantas lições que daqui 
poderíamos extrair, diríamos que a Igreja precisa aprender com Jesus a 
não temer a rejeição, o escárnio e o insucesso (aos olhos do “mercado”) 
no instante em que ela decide viver com integridade sua vocação para 
ser um frágil instrumento da missão do Reino neste mundo. Henri 
Nouwen (2002, p. 21) vai além, e afi rma algo arrojado em relação aos 
líderes cristãos (que aqui reaplicamos à igreja): “O líder cristão do futuro 
123| Teologia Contemporânea | FTSA | 
será aquele que ousa afi rmar sua irrelevância no mundo contemporâneo 
como uma vocação divina. Ela permite que ele esteja em profunda 
solidariedade com a angústia atrás de todo aquele esplendor do sucesso. 
E leve a luz de Jesus para brilhar ali”. 
Por isso, momentos atrás utilizamos os termos “frágil e irrelevante,” 
referindo-nos à Igreja, não porque ela abraça o espírito de vítima ou de 
derrotada, tampouco porque não faça e não vá fazer diferença, mas porque 
é irreverente aos caminhos de sucesso mundanos, e porque encarna 
o espírito de sua fragilidade humana na dependência do Espírito, como 
Jesus no deserto, e admite não precisar nem desejar viver sob a égide e 
em busca de outro poder que não esse; e mais, assume que todo exercício 
legítimo de poder (passa pela fragilização de quem o exerce, no momento 
em que se coloca tanto na dependência do mesmo Espírito no serviço, 
como na mútua e fraterna dependência da própria comunidade. Em suma: 
olhar para Jesus torna mais claro o tipo de opção que a Igreja de Cristo 
precisa fazer ao lidar com poder, cultura e instituições neste mundo: qual 
seja, não a de rejeitá-los como quem os demoniza, mas de abandonar o 
modo como se valoriza poder e instituição por aí, tantas vezes colocando-
os acima das pessoas às quais deveríamos amar e servir. 
Instituições são instrumentos úteis, não objetos de amor, cultivo ou 
veneração! Não há um mal inerente às instituições em si, mas no que 
fazemos delas. Instituições existem para servir as pessoas; tornam-
se um problema quando passam a existir para servir a si mesmas, 
esquecendo-se das pessoas. Então o processo passa ser inverso: ao 
invés de pormenorizar a instituição em si e amar as pessoas, amamos 
instituições e pormenorizamos pessoas e suas necessidades. Em 
suma: quando a comunidade é organismo vivo e pulsante, instituição 
não é razão de ser, mas instrumento; mas tem vezes, muitas vezes, em 
que a organização mata, aos poucos, o organismo. Logo, o que existe 
e o que sobra é apenas instituição: inoperante, incapaz de transformar, 
sem vida. Mas o organismo normalmente renasce, fora dali, e continua 
espalhando vida enquanto o valor maior for a vida, e não as coisas; as 
| Teologia Contemporânea | FTSA124
pessoas, e não os objetos e bens culturais, materiais e de consumo que 
tanto valorizamos. 
Não nos parece biblicamente plausível dizer que a Igreja de Cristo se 
limita a uma “comunidade local”, que atenda às necessidades específi cas 
de pessoas – pensando, por exemplo, naquelas que mencionamos no 
começo deste tópico. Concordamos que é preciso comunidade. Mas 
talvez o local, para muitos, seja algo muito limitado, pois dá a ideia de que 
as pessoas é que têm de se descolar até lá. Uma Igreja missional, porém, 
vai até as pessoas, encontra pessoas, reúne pessoas onde quer que 
estejam, toca e transforma a vida de pessoas, pois, no fi m das contas, ser 
Igreja é um modo alternativo e radical de ser gente, como salientamos na 
refl exão proposta na introdução desta unidade. Logo, o ser precede o ir: 
isto é, não vamos à Igreja, mas somos e nos fazemos Igreja onde quer 
que estejamos, e onde quer que uma necessidade humana se apresente. 
Mas essa Igreja (essa que aqui imaginamos), por assim dizer, é (ou deveria 
ser) uma metáfora viva do amor de Deus ao mundo. Como metáfora, 
ela jamais deveria pretender falar de Deus em termos absolutos ou 
compreensivos, mas apenas por meio de aproximações e possibilidades; 
como metáfora, seu chamado é para anunciar as boas novas do reino ao 
mundo, podendo ser ouvida e aceita não pelo caminho do poder (físico ou 
simbólico), mas do esvaziamento do poder e da vontade, pela humildade 
e integridade (isto é, através do exemplo de vida e humanidade, tal como 
vimos e aprendemos em Jesus Cristo). É uma Igreja que atrai mais pela 
vivência muda e marginal e menos pelas palavras mágicas e de poder 
ditas diante dos holofotes e das mídias. 
Dessa forma, a vocação primária da Igreja faz com que ela não esteja 
neste mundo para estabelecer coisas – como que monumentos só dela, 
porém supostamente erigidos “para a glória de Deus” (resta saber qual 
deus) –, mas para peregrinar na liberdade do Espírito, seguindo seus 
rastros e obedecendo unicamente a um Senhor.
Que outras facetas teria essa Igreja, frágil e irrelevante, que o convidamos 
125| Teologia Contemporânea | FTSA | 
aqui a imaginar? Aqui vão algumas, como um resumo estendido que foi 
dito até aqui:
• É uma Igreja voltada para pessoas, e não negócios, programas, 
agendas, questões.
• É uma Igreja contracultural, no sentido de ser irreverente aos meandros 
de sucesso e relevância que respondem mais aos apelos do status 
quo, que à sua vocação radicada no evangelho do nosso Senhor.
• É a Igreja da dispersão, dos peregrinos, e não somente dos e para os 
convertidos; uma igreja que se reúne senão para se fortalecer na e 
para a dispersão.
• É uma Igreja que não quer ter a última palavra sobre nada, mas se 
coloca como uma parceira possível na busca por respostas aos 
problemas e às perguntas diversas da humanidade, como alguém 
que sonha, imagina e anseia ao lado das pessoas, e não acima delas.
• É uma Igreja que revê sua teologia do sofrimento e abraça o trágico 
não apenas como posição eventual, mas como atitude de fé, de 
empatia para com a vida, de resistência às forças de morte, sem 
renegá-las ou sublimá-las em si mesma; afi nal, onde houver trigo 
sempre haverá joio. Adotar o trágico signifi ca afi rmar a vida com tudo 
o que ela implica, seus sabores, dissabores, êxitos e fracassos a fi m 
de que mais humanos nos tornemos, como humano foi e é o Senhor 
Jesus. Só pode abraçar e acolher aquele que padece quem não tem 
pavor do padecer. A dor e a cura, nesse sentido, não são inimigas, 
mas parceiras de jornada.
• É uma Igreja que não mete sua cumbuca em assuntos de Estado a 
não ser como cidadã,como lutadora pelos direitos, sobretudo, dos 
menos assistidos e dos oprimidos na esfera do político: os pobres, 
os negros, as mulheres, os homossexuais, os indígenas e assim por 
diante.
| Teologia Contemporânea | FTSA126
• É uma Igreja que fala em nome de Jesus, mas que não ousa falar por 
ele; prefere que as pessoas enxerguem a Jesus mais no espelho de 
suas práticas, e menos no poder persuasivo das palavras, a exemplo 
de Paulo, que disse: “Minha mensagem e minha pregação não 
consistiram de palavras persuasivas de sabedoria, mas consistiram 
de demonstração do poder do Espírito, para que a fé que vocês têm 
não se baseasse na sabedoria humana, mas no poder de Deus” (1Co 
2.4-5).
• Por fi m, mas não fi nalmente, é uma Igreja que retoma sua vocação 
protestante, e assim não teme relativizar estruturas, poder e 
hierarquia por um único absoluto: a Mensagem. Quanto mais fi el 
somos ao evangelho e à verdade revelada na pessoa de Jesus, mais 
procuraremos resguardá-lo do aprisionamento da linguagem. Há 
somente um evangelho! E este não é seu, nem da Igreja, nem de 
Paulo, Barnabé ou Pedro: mas de Jesus.
Conclusão
Quais são as (possíveis) consequências diretas disso sobre a missão 
dessa igreja aqui imaginada? 
Gostaríamos de nomear (e na verdade reforçar) principalmente um: 
a importância e o desafi o de assumirmos e lidarmos com nossas 
fraquezas enquanto caminhamos pela vida em missão, especialmente 
hoje. David Bosch (1979, p. 76) disse: “A verdadeira missão é a mais 
fraca e menos impressionante atividade humana que se pode imaginar, 
a própria antítese de uma teologia da glória”. Ora, quando olhamos para 
o caminho (missionário) de Jesus, a imagem não é de triunfo, glória ou 
conquista, mas de submissão, fragilidade e sofrimento. Com isso não 
queremos dizer que, em Jesus, Deus foi derrotado, e sim que nele vemos 
o sentido de que perder nem sempre é signo de derrota; pode ser caminho 
para uma vitória não triunfal, mas signifi cativa. Assim é a relação entre a 
cruz e a ressurreição. A mensagem da cruz carrega o gene da morte, que 
gera vida, como no paradoxo do Cristo: tentar salvar a vida é, na verdade, 
127| Teologia Contemporânea | FTSA | 
perdê-la; já perder a vida, pela causa certa, é achá-la (cf. Mt 17.25). 
Jesus também falou em Mateus sobre negar a si mesmo: “Se alguém 
quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome sua cruz e siga-me”. O 
paradoxo, porém, é que negar-se é uma forma de declarar a morte de 
algo dentro de si (o que Paulo chama de “velho homem”), a fi m de fazer 
brotar e fl orescer da própria vida um novo ser humano. Não, Deus não é 
sádico; não quer que a gente morra apenas pelo prazer mórbido de nos 
ver morrendo; não nos criou para rejeitar a vida, mas para afi rmá-la. No 
entanto, segundo Jesus, negando-se a si mesmo, desfazendo-se de todo 
orgulho de ser, abraçando a própria fragilidade, reconhecendo-se como 
ser codependente, é que podemos afi rmar a vida e a liberdade humanas. 
Jesus caminhou à margem da religião e da cultura dominantes; abraçou 
não apenas as vulnerabilidades humanas como escolheu ser humilde 
entre os humildes e desgraçados; não primava por demonstrações 
sobrenaturais de poder, pelo contrário, em muitos milagres que realizou 
pedia total sigilo daquele(a) que o recebeu; não partiu para o caminho 
da apologética ou defesa da fé, cercando-se de argumentos fortes para 
“defender” a perspectiva do Reino de Deus, de modo que, em Jesus, 
não se faz ninguém se achegar ao Reino pelo poder do argumento, 
mas pelo caminho da fragilidade, da infantilidade espiritual, do diálogo, 
do arrependimento, do perdão e da graça. Como lembra José Comblin 
(1983, p. 58), “os homens são vulneráveis. A possibilidade de mudança 
radica justamente nessa vulnerabilidade”. 
Além disso, Jesus não se aliou às estruturas e poderes de seu tempo, 
ao mesmo tempo em que rejeitou o caminho da usurpação de ser “igual 
a Deus” (cf. Fp 2.6); apresentou a boa nova do reino em obediência à 
sua missão, sem se preocupar em agradar a ninguém ou mesmo com 
o possível insucesso, rejeição ou má reputação. Jesus foi um profeta, 
e profeta que é profeta não esconde sua fragilidade nem teme perder a 
própria cabeça. Por essa razão é que as perspectivas de que a missão 
não tem nada de impressionante, de que é antítese de uma teologia 
da glória (Bosch), e da fraqueza como condição prévia de uma missão 
autêntica (Comblin), fazem jus à visão bíblica e primitiva de missão. Isto 
| Teologia Contemporânea | FTSA128
porque, conforme analisa Comblin (1983, p. 60), a tentação pela qual 
passa o cristão e a cristã que desejam dar testemunho de sua fé hoje, é 
parecida com aquela enfrentada por Jesus: “a tentação de messianismo, 
a tentação da força, do poder, do dinheiro e da cultura”. 
Como ainda hoje podemos resistir a essas tentações? Pensando naquelas 
pessoas e naqueles perfi s um tanto genéricos do começo, naquela fatia 
de cultura inicialmente pontuada, e nos direcionando não apenas, mas 
principalmente, às gerações mais jovens, queremos terminar levantando 
algumas pistas de como ser essa Igreja “frágil e irrelevante” ao modo 
de Jesus – imaginando que ela pode ser sinal da esperança viva do 
Evangelho para essa fatia de cultura, e quem sabe para outras também: 
(1) Ofereçam seus dons e talentos ao mundo e à cultura a que pertencem, 
e não somente à subcultura evangélica ou ao “mundinho da Igreja” e dos 
crentes; ninguém verá a luz que brilha em nós se essa luz não brilhar em 
tantos ambientes quantos for possível – chega dessa besteira de que a 
gente não é do mundo! Como bem expressou Pierre Teilhard de Chardin 
há quase cem anos:
Repitamo-lo: em virtude da criação e, mais ainda, da 
Encarnação, nada é profano, aqui embaixo, para quem 
sabe ver. Pelo contrário, tudo é sagrado para quem 
distingue, em cada criatura, a parcela de ser eleito, 
submissa à atração do Cristo em via de consumação. 
Reconheçam, com a ajuda de Deus, a conexão, mesmo 
física e natural, que liga o trabalho de vocês à edifi cação 
do reino celeste; vejam o próprio céu sorrir para vocês e 
atraí-los através das obras que vocês realizam; e vocês 
só terão, ao deixar a Igreja pela cidade barulhenta, o 
sentimento de continuar a imergir-se em Deus”. (De 
Chardin, 2014, p. 33, grifos nossos)
(2) Usem a criatividade que Deus deu para cada um de vocês, de nós, e 
a liberdade no Espírito para arriscar novos passos, para ser Igreja onde e 
para quem ninguém quer ser; não precisa necessariamente fundar novas 
129| Teologia Contemporânea | FTSA | 
congregações, mas inventar novos modos de ser Igreja, bastando, para 
começo de tudo, estar disponível às pessoas e atento/a ao que o Espírito 
sopra.
(3) Estejam abertos/as a “novos diálogos”, novas possibilidades de 
interface entre a fé que há em vocês, e sobre a qual são chamados a 
dar razão, e as outras formas de crença e cosmovisões, sejam elas 
religiosas ou não, expressando convicções com fi rmeza e ao mesmo 
tempo generosidade, e, de preferência, renunciando à tentação de ter “a 
última palavra”, aquela que deve convencer e prevalecer.
(4) Envolvam-se em relacionamentos de vida, companheirismo e amizade, 
onde há fé e há não fé, onde os diferentes gêneros, as diferentes posições 
políticas, opções sexuais e ideológicas, as diferentes concepções éticas, 
possam conviver em paz e, sobretudo, com respeito mútuo mesmo em 
meio a diferenças aparentemente inconciliáveis; lembrando que o maior 
dom que temos a oferecer ao mundo não são nossas palavras, nossa 
inteligência, nossos títulos, ou nosso trabalho; o maior dom somos nós 
mesmos. E Jesus disse que não havia maior dom, ou melhor, maior amor 
que esse: o de dar a vida por seus amigos. 
5) Por fi m, tenham a “coragem de ser” (Tillich): de ser quem são, com 
o muito ou o pouco que lhes foi dado, de ser humanos, de ser gente: 
que assume suas fragilidades, que reconhece suas dúvidas, que divide 
suas dores com o mundo. Muitos desses nossos amigos/as aí fora 
não estão tão interessados em campeões(no discurso, nas ideias, na 
espiritualidade), em religiosos de espírito cruzado, mas em pessoas 
“demasiadamente humanas” (Nietzsche) assim como elas. É um refrigério 
saber que o outro também dores de parto semelhantes às minhas. O que 
não pode ser assumido também não pode ser redimido, lembrando aqui 
do que bem disse Segundo Galilea. 
Terminamos com uma frase de David Bosch (1979, p. 77), daquelas 
que precisamos lembrar não apenas na mente, mas gravar com lança 
pontiaguda no coração: “A Igreja não é composta de gigantes; apenas 
| Teologia Contemporânea | FTSA130
seres humanos feridos podem guiar outros até a cruz”. Que Ele nos ajude 
nessa tarefa!
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perspectiva cristã. São Paulo: Paulinas, 2016. 
Rua: Martinho Lutero, 277 - Gleba Palhano - Londrina - PR
86055-670 Tel.: (43) 3371.0200encontrar 
outras pessoas, anunciar a elas a Mensagem, pois “foi para isso que eu 
vim”. O espírito de Jesus não foi abalado e nem movido pelo senso de 
urgência dos discípulos, uma vez que ele tinha um senso de propósito
claro em seu coração, uma missão a realizar para além dali. E esse senso 
nasceu não do barulho, mas do silêncio; não dos impulsos da mente, mas 
da solidão do coração; não de um olhar circunstancial e enviesado, mas 
de um “ver-além”; não de uma vontade humana, mas da divina.
Retornaremos ao tema da contemplação em mais conversas com 
Merton no último tópico desta unidade. Agora é preciso falar do segundo 
signifi cado de Agamben para contemporâneo: “Contemporâneo é aquele 
que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, 
mas o escuro” (Agamben, 2009, p. 62). Para este autor, contemporânea é a 
pessoa que reconhece essa obscuridade e, assim, escreve “mergulhando 
a pena nas trevas do presente”. Mas o que signifi ca esse mergulho 
nas trevas para “ver” a obscuridade do presente? Agamben recorre à 
neurofi siologia da visão em busca de uma resposta. Segundo ele, “os 
neurofi siologistas da visão nos dizem que a ausência de luz desinibe 
uma série de células periféricas da retina, ditas precisamente off-cells, 
que entram em atividade e produzem aquela espécie particular de visão 
que chamamos de escuro” (Agamben, 2009, p. 63). Ou seja, “ver” as 
trevas ou a escuridão não é, cientifi camente falando, propriamente uma 
contradição de termos. Se entendermos o escuro meramente como um 
estado privativo, como ausência de luz e, por isso, também de visão, 
perdemos o sentido aqui de que a atividade dessas off-cells, “um produto 
de nossa retina”, conduzem não a uma cegueira momentânea, mas a um 
modo diferente de ver.
| Teologia Contemporânea | FTSA16
Voltando à contemporaneidade, Agamben então diz que o que faz de 
alguém contemporâneo é justamente a ativação de uma “habilidade 
particular”, que possibilita a esta pessoa “neutralizar as luzes que provêm 
da época para descobrir as suas trevas, o seu escuro especial, que não é, 
no entanto, separável daquelas luzes” (Agamben, 2009, p. 63). Em outras 
palavras, luz e trevas são ambas, ao mesmo tempo, modalidades de ser 
e de visão que coexistem não apenas no interior de uma determinada 
época, mas também – para avançar na argumentação de Agamben – 
no interior de cada pessoa. E essa, ao que nos parece, é a parte mais 
interessante do insight desse autor, a parte que nos diz respeito – já 
que exploraremos, nesta primeira parte da disciplina, uma visão sobre 
a pessoa na contemporaneidade. Ao contemplar a obscuridade de seu 
tempo, tem-se na mira não apenas as trevas do mundo propriamente 
ditas, mas também as nossas. Nas palavras de Agamben,
O contemporâneo é aquele que percebe o escuro do 
seu tempo como algo que lhe concerne e não cessa 
de interpelá-lo, algo que, mais do que toda luz, dirige-se 
direta e singularmente a ele. Contemporâneo é aquele 
que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provém 
de seu tempo. (Agamben, 2009, p. 64)
A poesia de Gabriel O Pensador, “Palavras repetidas” (2005), ilustra essa 
questão da escuridão do mundo como algo que nos concerne:
A Terra tá soterrada de violência, 
De guerra, de sofrimento, de desespero
A gente tá vendo tudo, tá vendo a gente
Tá vendo, no nosso espelho, na nossa frente
Tá vendo, na nossa frente, aberração
Tá vendo, tá sendo visto, querendo ou não
Tá vendo, no fim do túnel, escuridão
Tá vendo no fim do túnel escuridão. (Grifos nossos)
17| Teologia Contemporânea | FTSA | 
A ênfase nas expressões “tá vendo tudo, tá vendo a gente” e “no nosso 
espelho” é para ressaltar a consciência do poeta de que não apenas as 
luzes, mas as trevas de nossa época são traços que nos concernem, 
independente se temos participação direta naquilo ou não. A violência 
com a qual ele diz que a terra está “soterrada”, por exemplo, e que é parte 
integrante do cotidiano de brasileiros/as, pode ser algo que não emerge 
propriamente nos atos de alguém (um/a pacifista, por exemplo), mas 
que seguramente está soterrado em seu interior, como uma potência. 
Que esta pessoa, por sua vez, decidiu canalizar de outras formas, não 
violentas, sem poder, no entanto, afirmar – sem o peso de uma hipocrisia 
velada – que esta não lhe concerne de modo algum. 
Essa hipocrisia, contudo, está estampada na face desse mundo 
polarizado, e que assim se fez – dentre inúmeras razões, que não cabe 
aqui explorar – precisamente por nossa incapacidade de nos enxergar 
em nosso próximo, especialmente em suas trevas. É que em raríssimos 
momentos – exceto, talvez, quando um grande sofrimento bate à porta – 
as pessoas param para ser testemunhas de sua própria escuridão. Não 
deve ser de admirar seu estranhamento em relação à escuridão das outras 
pessoas. Mais duro ainda é quando nas sombras do outro – tais como o 
ódio incontido, o orgulho ferido, a chaga aberta, o desejo proibido, a inveja 
disfarçada, a angústia, o medo, a opressão, a fragilidade, o narcisismo, e 
assim por diante –, vemos as nossas sendo inexoravelmente projetadas. 
Por isso é mais difícil lidar com a própria escuridão. Sobretudo porque 
dela não há como se livrar; esconder talvez, mas não arrancar, apagar, 
não a sentir penetrando-nos a alma. Mesmo quando conscientemente 
a gente anda pelo “vale da sombra da morte”, no fundo a gente anda 
sozinho. Pessoas têm pavor da escuridão. Ainda bem que Deus não tem.
Por isso, no clássico Noite escura, de João da Cruz (1542-1591), 
é possível encontrar uma percepção parecida com a proposta de 
Agamben, com algumas diferenças (vejamos a seguir). “Noite escura” 
é o nome que João da Cruz dá ao estado da alma diante da infusão de 
luz divina. Para explicar essa ideia, ele compara-a à situação de alguém 
| Teologia Contemporânea | FTSA18
olhando diretamente para o sol do meio-dia. A sensação é de que, quanto 
mais nosso olhar é exposto aquela luz, menos nós vemos. E esse é um 
estado desejável para a pessoa contemplativa. Ela abandona o sentido 
normal de conhecimento e de visão, quando se trata de Deus. Em termos 
propostos por Thomas Merton, o “ver” da contemplação é, assim, um ver 
sem ver, um reconhecimento de que nosso olhar “natural” é por demais 
afetado por outras formas de iluminação – veja o contraste aqui com o 
iluminismo do século XVIII, e sua obsessão pelo conhecimento apenas 
pela via da razão, ou mesmo a questão do excesso de luminosidade de 
uma época, tal como expresso por Agamben. Portanto, a única forma 
de conhecer a Deus é sendo purifi cado desse desejo e conduzido a uma 
forma purifi cada de união. Nas palavras de João da Cruz:
Podemos então declarar como segue, em que a alma 
diz: em pobreza, desamparo e desarrimo de todas as 
minhas apreensões, isto é, em obscuridade do meu 
entendimento, angústia de minha vontade, e em afl ição 
e agonia quanto à minha memória, permanecendo na 
obscuridade da pura fé, — que é na verdade noite escura 
para as mesmas potências naturais — só com a vontade 
tocada de dor e afl ições, cheia de ânsias amorosas por 
Deus, saí de mim mesma. Saí, quero dizer, do meu baixo 
modo de entender, de minha fraca maneira de amar, e 
de meu pobre e escasso modo de gozar de Deus, sem 
que a sensualidade nem o demônio me tenham podido 
estorvar. (Cruz, 2014, p. 81)
Dentre os benefícios dessa “noite escura da alma”, que, como se pode 
ver pela passagem acima, é uma noite que envolve dor, afl ições e agonia, 
podemos destacar duas principais:
1. “O principal e primeiro proveito causado na alma por esta seca e 
escura noite de contemplação é o conhecimento de si mesmo e de sua 
miséria” (Cruz, 2014, p. 65). No tempo de prosperidade não chegamos 
19| Teologia Contemporânea | FTSA | 
a ver nossa própria miséria e baixeza, diz João. Ou seja, quando tudo 
vai bem e somos sucesso em tudo menos chance temos de saber 
quem somos de verdade – e assim nos vemos incapazes também de 
enxergar a escuridão de nosso tempo e nos identifi car com ela.
2.Na noite escura “Deus iluminará a alma, dando-lhe a conhecer não 
somente a própria miséria e vileza, mas também sua grandeza e 
excelência” (Cruz, 2014, p. 67). Ou seja, do mesmo processo em 
que vamos conhecendo melhor a nós mesmos por meio da queda 
das máscaras e das escamas que nos mantinham enredados em 
nossa ilusão, também vamos conhecendo a Deus. Por isso, diz ele, “é 
necessário à alma permanecer neste sepulcro de escura morte, para 
chegar à ressurreição espiritual que espera” (Cruz, 2014, p. 95). 
No caminhar às escuras da noite escura, a alma está segura. A refl exão 
aqui é que nossa vida, a maior parte do tempo, é sustentada em falsas 
seguranças, a maioria delas ligadas às nossas conquistas no mundo 
material. João da Cruz demonstra que é nessas falsas seguranças (e 
nossos desejos, anseios e raciocínios em torno delas) que nós nos 
perdemos, cometemos desatinos, vendemos a alma ao Diabo. Na noite 
escura, porém, nossas faculdades ou capacidades, e a segurança nelas 
fundadas, são destronadas. Paradoxalmente, João diz que é nesse 
momento que a alma não mais caminha de modo errante, mas segura.
Esse obscurecimento, como salienta Merton (2018a, p. 68), “é, portanto, 
uma iluminação. Deus obscurece a mente apenas a fi m de dar maior e 
mais perfeita luz”. Eis-nos, agora sim, diante do paradoxo da iluminação, 
em que a luz só pode ser infundida na medida em que deliberadamente 
escolhemos permanecer na escuridão por certo tempo, admitindo nossa 
cegueira total ou parcial sobre tais ou quais aspectos da realidade, sem 
estranhá-la ou dissipá-la com formas artifi ciais de iluminação. Esse é o 
paradoxo anunciado por Jesus aos fariseus que interrogavam ao cego de 
nascença, curado pelo nazareno, e acusavam a Jesus de ser pecador: “Eu 
vim a este mundo para julgar, para dar visão aos cegos e para fazer que 
os que veem se tornem cegos”. No que os fariseus o indagaram se ele os 
| Teologia Contemporânea | FTSA20
estava chamando de “cegos”, então Jesus respondeu: “Se vocês fossem 
cegos, não seriam culpados (...). Mas a culpa de vocês permanece pois 
afi rmam que podem ver” (Jo 9.39-41, grifos nossos). 
Ora, uma das premissas desse segundo signifi cado de contemporâneo 
está em poder “ver as trevas” de seu tempo e, contemplando-as, enxergar 
as suas próprias como em espelho. Entretanto, à luz da refl exão proposta 
por João da Cruz e pela tradição mística cristã, perguntamos: O que 
vemos ou percebemos, afi nal, de nosso tempo ou de nossa realidade? 
Uma porção ou uma fração? No máximo isso. E não é nossa suposta 
iluminação – em oposição às trevas do presente – que nos permite 
atingir tal ou qual nível percepção, mas uma modéstia competente, 
inerente à toda busca, curiosidade, investigação e contemplação. Assim, 
concordamos com Agamben que ser contemporâneo é uma questão de 
coragem, pois isto signifi ca não apenas “manter fi xo o olhar no escuro 
da época, mas também perceber nesse escuro uma luz que, dirigida 
para nós, distancia-se infi nitamente de nós. Ou ainda: ser pontual num 
compromisso ao qual se pode apenas faltar” (Agamben, 2009, p. 65).
Assim chegamos ao terceiro signifi cado de “ser contemporâneo” no texto 
de Agamben, e este é o que mais se aproxima da teologia:
O contemporâneo não é apenas aquele que, percebendo 
o escuro do presente, nele apreende a resoluta luz; é 
também aquele que, dividindo e interpolando o tempo, 
está à altura de transformá-lo e de colocá-lo em relação 
com outros tempos, de nele ler de modo inédito a 
história, de “citá-la” segundo uma necessidade que não 
provém de maneira nenhuma do seu arbítrio, mas de 
uma exigência à qual ele não pode responder. É como 
se aquela invisível luz, que é o escuro do presente, 
projetasse a sua sombra sobre o passado, e este, tocado 
por esse facho de sombra, adquirisse a capacidade de 
responder às trevas do agora. (Agamben, 2009, p. 72)
21| Teologia Contemporânea | FTSA | 
Digamos que esta é a conclusão de Agamben neste ensaio. Para entendê-
la melhor, separemos os seus elementos. Por que falar em “escuro do 
presente”? Em parte, porque, como vimos, ser contemporâneo signifi ca 
manter seus olhos fi xos em seu próprio tempo a fi m de, anulando sua 
artifi cial luminosidade, enxergar suas trevas. Mas, ao mesmo tempo, 
pode-se perguntar: que tempo é esse que ousamos chamar de “nosso”? 
Para Agamben, trata-se do tempo presente. O problema é que “o presente 
não é outra coisa senão a parte de não-vivido em todo vivido” (Agamben, 
2009, p. 70). O presente não cessa de desaparecer diante de nós como 
fumaça; quando nos damos conta de nossas experiências presentes, 
já se tornaram passado. Daí a ideia de um “não-vivido” ao qual, como 
contemporâneos, sempre tornamos nossa atenção. 
Perceba, então, como um elemento do tópico anterior, sobre a estreita 
relação entre o que costumeiramente chamamos de contemporâneo 
com uma dada compreensão histórica (linear, das eras), retorna agora 
com outra roupagem: isto é, segundo Agamben (2009, p. 71), de todo 
modo precisamos da história para ler a contemporaneidade, “colocando 
uma relação especial entre os tempos”, e suas diferentes “gerações”. 
Não se trata, por exemplo, de chamar Nietzsche (autor do século XIX) 
e você (uma pessoa vivendo no século XXI) de contemporâneos. E sim 
poder supor que Nietzsche, como qualquer outro pensador da história 
ou mesmo qualquer evento passado, possa adquirir a “capacidade 
de responder às trevas do agora” na medida em que você se põe a lê-
lo de uma forma inédita ou inaudita. Isto é o que Agamben chama de 
“interpolação do tempo”, ou que poderíamos chamar de dança entre as 
épocas, que só um contemporâneo pode fazer sem a preocupação de 
parecer démodé.
Para dar um exemplo, enquanto escrevemos estas linhas, John Mayer 
acaba de lançar seu oitavo álbum de estúdio chamado Sob Rock (2021). 
Como ele próprio admitiu em entrevista a Zane Lowe, trata-se de um 
álbum inspirado na música pop, ou soft-rock, dos anos 1980. Entretanto, 
engana-se quem pensa que o álbum foi produzido com a intenção de 
| Teologia Contemporânea | FTSA22
ser um mero retorno ao passado ou a um lugar conhecido. Como Mayer 
explica, na medida em que se escuta o álbum tem-se a sensação de 
que “poderia ter sido algo que já aconteceu” – uma espécie de deja vu
musical ou existencial –, mas, quando se presta atenção, na verdade não 
se pode encontrar um similar em lugar algum. Como o músico completa: 
“A ideia de Sob Rock é a de implantar falsas memórias em seu cérebro 
(...). Mas, a questão é: você pode ter memórias de coisas que nunca 
aconteceram?” (Apple Music, 2021, tradução nossa). Parece-nos que 
o que Mayer se propôs a fazer nesta obra-prima é precisamente o que 
Agamben afi rma ser a arte do contemporâneo: a de transformar o escuro 
de seu presente através de uma “leitura inédita da história”, ou de uma 
releitura altamente criativa.
Aqui também se insere a relação deste signifi cado com a teologia. Para 
Agamben (2009, p. 71), “é o contemporâneo que fraturou as vértebras de 
seu tempo”, e, desse modo, “faz dessa fratura o lugar de um compromisso 
e de um encontro entre os tempos e as gerações”. Tentando explicar 
o que Agamben quer dizer, seria como quebrar um osso do tempo 
presente e, nesse ponto de ruptura, fazer conexões com outros tempos, 
outras formas de pensar do passado. Nesse sentido, o apóstolo Paulo 
(segundo o próprio Agamben) foi exemplar, pois introduziu a noção de 
“tempo messiânico” (cronologicamente indeterminado) que se encontra 
em ponto de tensão com “o tempo que resta”, que, por sua vez, “é muito 
curto” (1Co 7.29). Com isso, promoveu não apenas uma interpolação 
entre tempos (toda a história se torna, para ele, uma prefi guração do 
tempo messiânico, inaugurado com a Ressurreição de Jesus Cristo), 
mas nos convidou a repensar nossa relação com o tempo. Como explica 
Júlio Zabatiero, a partir de então o tempo passa a ser visto não mais 
do modo linear, como uma “sucessão de épocas”, mas da perspectiva 
“de uma superposiçãode modos de viver: segundo a carne (a vida do 
tempo presente), segundo o Messias, ou segundo o Espírito (a vida do 
tempo futuro)”. O “tempo messiânico”, segundo Agamben (2017), seria 
o tempo que “pulsa dentro do tempo cronológico” (o tempo que resta), 
trabalhando-o ou moldando-o a partir de dentro a fi m de nos auxiliar 
23| Teologia Contemporânea | FTSA | 
a “atingir a meta”, que seria a de nos libertar de nossa “representação 
ordinária do tempo”.
Em diálogo com Agamben, Zabatiero explica que:
As temporalidades em questão são as temporalidades 
expressas nos contrastantes estilos de vida não-
messiânico e messiânico. O tempo presente, que é o 
tempo em que vivemos, é tempo que resta, ou seja, 
é tempo de tensão, de desafi o, de vocação – é neste 
tempo não-messiânico que somos chamados e 
empoderados (pelo Espírito) a viver o tempo messiânico. 
O tempo messiânico não é cronológico, ou seja, não é 
um tempo que está no futuro e virá substituir o tempo 
presente. É uma temporalidade imanente à atual e 
(única) temporalidade cronológica, que a subverte 
internamente, que, em certo sentido, de fato a perverte, 
posto que contra todas as possibilidades, neste tempo 
cronológico é possível viver como o Messias viveu. 
(Zabatiero, 2018, p. 43-44, grifos do autor)
Em outras palavras, aprendemos com Paulo que vivemos uma vida na 
carne (temporalidade não-messiânica), mas, ao mesmo tempo, fomos 
libertos da escravidão em relação a este modo de vida, sendo chamados 
para uma vida no espírito (temporalidade messiânica). E que, para libertar-
nos de nossa representação ordinária do tempo – ou pelo menos, livrar-
nos de ser engolidos pelo deus chronos –, precisamos nos apropriar 
desse batismo pelo Espírito pelo qual “morremos e fomos sepultados 
com Cristo”, e, “assim como ele foi ressuscitado dos mortos pelo poder 
glorioso do Pai”, agora também possamos viver como o Messias viveu, 
em “novidade de vida” (cf. Rm 6.3-4). Fazendo, portanto, não apenas as 
mesmas obras que o Messias realizou, mas outras “até maiores”, como 
ele mesmo prometeu antes de retornar ao Pai (Jo 14.12). 
| Teologia Contemporânea | FTSA24
Não se trata mais, portanto, de viver na antiga tensão binária e 
eminentemente cronológica entre um já e um ainda-não – como 
postulou Oscar Cullmann no século passado –, mas em apropriar-se da 
noção neotestamentária de que o eschaton (fi m ou últimas coisas) do 
discípulo contemporâneo se realiza, pelo poder do Espírito, no eterno-
agora, que é uma espécie de ainda-não-já. O discípulo contemporâneo 
pode fazer livre e diligentemente a interpolação criativa entre os tempos 
precisamente porque é movido pelo Eterno. Porém, que fi que bem claro: 
estamos pensando nesse “discípulo contemporâneo” a partir de um 
diálogo com a noção apresentada por Agamben, que interessa a nossos 
propósitos teológicos aqui – que fi carão, esperamos, mais claros no 
próximo tópico. E não para dizer que as outras pessoas, que pensam 
e fazem diferente, não sejam contemporâneas segundo outro modo ou 
outra concepção vigente.
1.3. Resistindo à tirania do contemporâneo
Embora a última parte desta disciplina seja dedicada à igreja, é preciso 
falar dela já aqui, conectando o tópico anterior a esse – até porque, não 
é possível falar de Igreja sem falar de Pessoa, uma vez que não existem 
igrejas sem pessoas, ou mesmo Igreja fora da Pessoa de Cristo. No 
último tópico nossa conversa foi, sobretudo, com Giorgio Agamben, e 
neste avançaremos conversando mais com Thomas Merton. Mas, antes, 
gostaríamos de trazer aqui uma admoestação (se assim podemos dizer) 
de Agamben à Igreja em Paris certa feita em uma palestra. Para ele, a 
crise da Igreja tem raízes no abandono de sua “vocação messiânica”, qual 
seja, a de viver segundo a vontade (divina) que emerge da temporalidade 
messiânica (tempo-do-fi m) e não segundo as urgências e tentações, por 
assim dizer, da temporalidade cronológica (tempo-que-resta). Ao fi m da 
conferência, ele assim se expressa:
A Igreja pode ser uma instituição viva apenas na medida 
em que mantém uma imediata relação com o seu fi m. 
E – um ponto do qual não deveríamos nos esquecer 
–, de acordo com a teologia Cristã, há apenas uma 
25| Teologia Contemporânea | FTSA | 
instituição legal que não conhece nem interrupção, nem 
fi m: o inferno. O modelo da política contemporânea – 
que almeja fazer do mundo uma infi nita economia – é, 
assim, verdadeiramente infernal. E se a Igreja restringe 
sua relação original com a paroikia [ou peregrinação], 
ela não poderá nada senão perder a si mesma no tempo. 
(...) Será que a igreja fi nalmente compreenderá a ocasião 
histórica e recuperará sua vocação messiânica? Se não 
o fi zer, o risco é claro: ela será varrida pelo desastre que 
ameaça todos os governos e todas as instituições da 
terra. (Agamben, 2012, p. 41, trad. nossa)
A vocação messiânica da Igreja não é defi nida pelo meio (o “tempo-
que-resta” ou o próprio mundo), mas pelo fi m (o tempo escatológico 
ou messiânico). Não ser defi nida pelo meio não signifi ca, porém, dar de 
ombros para um envolvimento direto com o meio; signifi ca ler, interpretar 
e viver o meio a partir do fi m. E o fi m (Ômega) é Cristo, como também 
o princípio (Alfa). A Igreja, portanto, não pode demonizar ou desprezar 
o meio – como tantas vezes o fez na história, e ainda o faz, embora se 
utilizando estrategicamente do que serve a seus interesses –, porque, 
como bem observou Teilhard de Chardin (2014), ela tem consciência de 
que não há meio algum fora de Cristo, o que o transforma, na consciência 
de cada discípulo, em “meio divino”. A Igreja, assim, ama o meio sem a ele 
aderir, sem dele depender exclusivamente, nem nele fazer sua profi ssão 
de fé. Como bem explica e diferencia De Chardin:
O pagão ama a Terra para usufruir dela e nela se 
confi nar. O cristão ama-a para torná-la pura e tirar dela 
a força para dela escapar. (...) O pagão pensa que o 
homem se diviniza, fechando-se em si mesmo; o gesto 
fi nal da evolução humana é, para cada um ou para todo 
o conjunto, o de se constituir em si mesmo. O cristão só 
vê a divinização na assimilação, por um Outro, de seu 
acabamento: o auge da vida, a seus olhos, é a morte na 
união. Para o pagão, a realidade universal só existe por 
| Teologia Contemporânea | FTSA26
projeção no plano do tangível: ela é imediata e múltipla. 
O cristão toma exatamente os mesmos elementos: 
mas ele os prolonga segundo o eixo comum que os 
religa a Deus; e, ao mesmo tempo, o universo se unifi ca 
para ele, sendo tudo atingível somente no Centro fi nal 
de sua consumação. (De Chardin, 2014, p. 91)
Fica evidente, pela exposição acima, que não é mais um binarismo do 
tipo sagrado versus profano, matéria versus espírito, ou espiritual versus
mundano que diferencia a presença do discípulo e do não-discípulo 
(“cristão” e “pagão”, em De Chardin) no meio, mas o modo como uns 
e outros se relacionam com e se apropriam do meio, pela adesão 
irrestrita ou por uma coincidência inconformada, como nomeamos aqui. 
Enquanto para o segundo tudo se “confi na”, se explica e se resume pelo 
e no meio, para o primeiro o meio é apenas um modo de encarnação de 
uma realidade muito maior e universal: a do Cristo. Assim, relaciona-se 
com o meio não apenas porque dele é parte, senão para se religar ao 
“Centro fi nal de sua consumação”, isto é, Cristo. Como admoestou Paulo, 
o apóstolo, aos Coríntios: “Portanto, não se orgulhem de seguir líderes 
humanos, pois tudo lhes pertence: Paulo, Apolo ou Pedro, o mundo, a 
vida e a morte, o presente e o futuro. Tudo é de vocês, e vocês são de 
Cristo, e Cristo é de Deus” (1Co 3.21-23, grifo nosso). 
Desse modo, podemos apresentar nossa própria defi nição de pessoa 
contemporânea, segundo a trilha até aqui percorrida – cientes, porém, de 
suas contingências próprias –, conforme o que segue:
Contemporânea parece ser a pessoa ou a Igreja que está ocupada em 
ser o que é (em Cristo) e viver de acordo com a força de sua própria 
vocação, do modo mais autênticopossível, mais do que ansiosa por 
“ser contemporânea”, conforme os sentidos normalmente aceitos para 
a palavra.
Para tanto, ela precisa desenvolver uma atenção e postura tais em sua 
própria época de tomar parte nos meandros do mundo sem deixar-se 
27| Teologia Contemporânea | FTSA | 
prejudicar ou perder-se por seus feitiços. Como isso é possível? Isto é, 
como ser contemporâneo e, ao mesmo tempo, resistir às pressões ou 
tiranias do contemporâneo? 
Pode parecer que a resposta já está embutida na última pergunta – 
quer dizer, basta resistir à tirania do contemporâneo para ser, de fato, 
um contemporâneo –, mas não é tão simples assim. Pois a linha que 
separa uma presença efetiva de uma busca angustiada por relevância e 
aprovação do mundo é mais tênue do que parece. Por isso, convidamos 
Thomas Merton para esta última parte da conversa, pois nele vemos 
um exemplo prático de um contemporâneo – dentro de sua própria 
época e lugar, Estados Unidos da América, em meados do século XX – 
exercendo o direito de falar e de ser ouvido sem seguir aos imperativos 
aparentemente necessários à época para conquistar a audiência da 
pessoa moderna – conduta que ele mesmo critica. 
As ideias a serem discutidas a seguir foram desenvolvidas no livro A 
igreja e o mundo sem Deus (Merton, 2018b), especialmente nos três 
primeiros capítulos. Neles, primeiro, Merton discute a ideia de “mundo”. 
Nele, Merton basicamente segue a intuição, já presente em autores como 
De Chardin, de que o discípulo não deve renegar o mundo, mas aprender a 
como participar dele de maneira crítica, crística e criativa. O que quer que 
defi namos como “mundo”, deve passar longe da ideia de uma entidade 
separada da vida e do humano. É, como ele defendeu noutro lugar, “um 
complexo de responsabilidades e de opções feitas por amores, ódios, 
medos, alegrias, esperanças, inveja, crueldade, bondade, fé, confiança e 
de desconfiança de tudo” (Merton, 2019, p. 224). 
Em outras palavras, mundo não é o globo terrestre, mas é o amálgama dos 
seres vivos que habitam o globo, com suas luzes e suas trevas – pensando 
nesse caso mais no mundo dos humanos. E as trevas do mundo – e 
da contemporaneidade, lembrando aqui da ideia de Agamben de “ver as 
trevas” – não se encontram em sua superfície ou em sua materialidade, 
mas, segundo Merton (2018b, p. 16), “no pecado de vontades egoístas 
que rejeitaram o amor de Deus”, muitas vezes agindo em nome do próprio 
| Teologia Contemporânea | FTSA28
Deus. O mundo em trevas, completa Merton, “é o mundo sem amor, o 
mundo sem Cristo – um mundo de indivíduos fechados sobre si ou sobre 
os interesses comuns de um grupo social ou nacional”. O nó, que muitas 
vezes tentamos desatar de modo simplista, é que esse mesmo mundo 
“tenebroso” e “decaído” (expressões que Merton usa), também é parte da 
criação divina e objeto de seu amor, redenção e reconciliação. O mundo 
é tudo isso e, como lembra Merton (2018b, p. 18), “é também o Reino de 
Deus no qual Cristo já reina e no qual a história se dirige à sua conclusão 
fi nal”. Em linguagem agambeniana, é o lugar no qual se realiza o “tempo-
que-resta” e onde emerge silenciosamente o “tempo messiânico”. 
Assim como não é possível pensar numa Igreja fora da pessoa, também 
não se pode pensar numa Igreja fora do mundo, já que tanto a Igreja 
quanto o mundo são instituições pessoais, por assim dizer. As mesmas 
pessoas que compõem e fazem pulsar a Igreja, também compõem e 
fazem pulsar o mundo. Os mesmos ódios, medos, esperanças, alegrias, 
tristezas, bondade e crueldade que fazem do mundo um mundo, também 
habitam no interior da Igreja de Cristo. O mesmo Cristo, universalmente 
presente nas entranhas do mundo, é o “Cabeça da Igreja” (1 Co 12.27), 
que é seu corpo. Que diferença há, portanto, entre mundo e Igreja? A 
consciência, no caso da Igreja, de sua existência somente em Cristo – o 
que seria do corpo sem a cabeça? –, e assunção de uma vocação, de 
uma tarefa, de uma missão reconciliadora no mundo, a partir de uma 
experiência profundamente revolucionária de vida que ela tem em e com 
o “Cristo Universal” (De Chardin, 2014; Rohr, 2019). Seu comprometimento 
primordial, portanto, não é com qualquer agenda oriunda do mundo e 
seus modos de operar, mas (para evocar de novo Agamben) com o seu 
“fi m”, com a sua “vocação messiânica”, com o reinado de Deus tal como 
inaugurado em Jesus Cristo.
Partindo dessa premissa, Merton elege um exemplo do tempo em que 
ele escreve o mencionado opúsculo (meados da década de 1960), para 
fazer algumas considerações críticas ao que ele chamou de “escola do 
ser contemporâneo”. A crítica de Merton, diga-se de passagem, não se 
29| Teologia Contemporânea | FTSA | 
dirige tanto aos motivos concretos que deram origem a essa escola – crise 
da religião tradicional e do teísmo –, mas aos métodos escolhidos para 
responder a esta suposta crise. Destina-se aos assim chamados teólogos 
da morte de Deus e adeptos de uma forma de cristianismo secular ou 
“sem religião”. Esse caminho, como descreve Merton (2018b, p. 24), “pode 
ser resumido no kenosismo absoluto religioso [completo esvaziamento 
da religião no mundo (acréscimo nosso)], um cristianismo esvaziado 
de tudo, mesmo do próprio Deus”. Tanto Deus, como a religião cristã e 
sua pregação, haviam se tornado (segundo esta visão) uma afronta à 
“maioridade” do mundo, agora entregue à sua própria sorte – ou melhor, 
guiada pela ideologia moderna, do progresso e da ciência. Não se torna, 
portanto, livre de qualquer profissão de fé, como comentaremos adiante.
Saiba mais: O Teísmo e os “Teólogos da Morte de Deus”
Em 8 de abril de 1966, a revista norte-americana Time, uma das mais 
conhecidas e lidas do mundo, trazia na matéria da capa a pergunta: 
“Deus morreu?” (Is God dead?). John T. Elson assinou o artigo da 
capa, que ele levou cerca de um ano para terminar, tempo que 
passou entrevistando líderes religiosos e teólogos do momento. O 
artigo sinalizava mudanças signifi cativas que vinham ocorrendo no 
Ocidente cristão (especialmente Europa e EUA), e revelou ao grande 
público um movimento teológico que fi cou conhecido por endossar 
a tese da secularização – que postulava, dentre outras coisas, que 
a humanidade havia atingido uma maioridade, e, portanto, não 
necessitava mais nem de Deus (que estaria morto) nem da religião 
nos moldes tradicionais –, por isso foi chamado, dentre outros 
nomes, de “teologia secular” e/ou “da morte de Deus”. 
Esses teólogos – dentre os quais fi guram nomes como Thomas J. 
Altizer e William Hamilton, além do britânico John A. T. Robinson 
–, inspirados pelas ideias de Dietrich Bonhoeffer (esboçadas em 
suas cartas do período da prisão em um campo de concentração 
| Teologia Contemporânea | FTSA30
nazista), defendiam uma teologia desintoxicada das imagens e 
ideias de Deus provenientes do teísmo e da prática cristã tradicional, 
que queria falar de Deus em outros termos, de uma maneira nova, 
menos transcendente e mais imanente, e que pudesse aproximar 
esse Deus propagado pelo “teísmo” – o Deus da providência, que 
de longe governa o mundo e dita como as coisas são e têm que 
ser aqui embaixo – das mentes e corações de homens e mulheres 
vivendo em uma situação secular. Não se tratava propriamente de 
mudar quem Deus é, mas de transfi gurar sua imagem de modo que 
fi zesse sentido a esse ser humano moderno e secular. O quanto 
dos intentos desses teólogos dos anos 1960 estava realmente em 
Bonhoeffer é, no mínimo, discutível.
Em todo caso, a teologia da morte de Deus causou grande 
burburinho no meio teológico e algum impacto na cultura, bastante 
difícil de mensurar na verdade, mas até o fi nal dos anos 1960 já havia 
perdido muito de seu vigor original, graças ao surgimento de novos 
movimentos de espiritualidade ao estilo “nova era”, mostrando que 
Deus até podia estar morto para alguns acadêmicos, teólogos e 
fi lósofos, mas difi cilmente morreria na experiência religiosa de 
pessoas comuns. Tanto que, em 1969, a mesma Time, seguindoas tendências do momento (afi nal, o objetivo é vender revista 
tanto quanto, ou menos que, formar opinião), lançou um número 
cujo título de capa era “Is God coming back to life?” (Deus está 
voltando à vida?). O editor à época fez referência ao sucesso da 
capa de 1966 sobre a morte de Deus, mas que, naquele instante, 
ela se encontrava em declínio uma vez que seus ideólogos haviam 
caído em silêncio, enquanto ministros de todas as denominações 
embarcavam em novas e dinâmicas maneiras, trazendo o divino de 
volta à cena. Emplacar o secularismo nunca foi tarefa fácil, mesmo 
depois da “morte de Deus”.
Ver mais em: MENEZES, Jonathan. Filosofi a da Religião. Londrina: 
FTSA Editora, 2016, pp. 157-169.
31| Teologia Contemporânea | FTSA | 
Quanto à Bonhoeffer, Merton faz a concessão de que suas declarações não 
devem ser extraídas do contexto em que foram escritas – a experiência 
de evolução de seu gênio teológico enquanto preso pelo regime nazista 
(prisão da qual, aliás, ele infelizmente não saiu vivo) –, com vistas à 
justifi car todo um movimento que, segundo ele, pode ter nascido de um 
lugar honesto (vide o famoso livro do bispo Robinson, chamado Honesto 
com Deus), mas que conduziu a conclusões (ou soluções) generalistas 
e enganadoras. Como se o “mundo sem Deus” representasse, de fato, o 
mundo de todos os contemporâneos, e não apenas um nicho, cada vez 
maior naquele contexto, é verdade, de pessoas decepcionadas com Deus 
e com a religião e, ao mesmo tempo, encantadas pelas possibilidades 
de respirar um ar puramente secular, livre dos constrangimentos da 
transcendência. 
A mesma concessão não foi feita por Merton ao bispo Robinson e seus 
ímpetos de honestidade com Deus e o mundo. Gostaríamos de apontar 
três razões, presentes em seu texto (formuladas por nossa apreensão 
do que ele apresenta nestas linhas), que denotam isto e explicam sua 
polêmica com esta escola do ser contemporâneo, identifi cada com 
Bonhoeffer e Robinson.
Em primeiro lugar, sua premissa de origem não é nova, nem original. Qual 
seja, a de dizer que nossos símbolos, linguagens e imagens de Deus não 
dão conta de quem Deus é, ou não comunicam plenamente a realidade 
dos mistérios que “nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem jamais 
penetrou em coração humano” (1Co 2.9). A tradição da teologia apofática, 
também conhecida como “via negativa”, que vem do Pseudo-Dionísio e 
dos padres capadócios do século IV, até místicos como o já citado João 
da Cruz, De Chardin e o próprio Merton, dentre outros, sempre ensinou 
que, “se dizemos que ‘Deus é’, signifi cando que nele há plenitude de tudo 
que podemos conceber como Ser, devemos completar dizendo também 
‘Deus não é’” (Merton, 2018b, p. 27). Ora, o “Ser” está ao mesmo tempo 
além de tudo o que podemos considerar como existindo e é a base de 
toda existência. Desta feita, é irrelevante dizer que se acredita ou não na 
existência de Deus, pois, de fato, Deus não existe, Deus é. 
| Teologia Contemporânea | FTSA32
Entretanto, como explica Merton (2018b, p. 27):
Devemos lembrar-nos que esta tradição da negação 
mística sempre coexiste, no cristianismo, com a 
tradição da teologia simbólica na qual aceitam-se os 
símbolos positivos e analogias do ensino teológico tais 
como são: aproximações verdadeiras, mas imperfeitas, 
que nos levam gradativamente àquilo que não pode ser 
propriamente expresso em linguagem humana.
O que acontece, neste caso – e o que, muitas vezes, gerou tanta 
rejeição secular a certas teologias e expressões de fé –, é que fórmulas, 
símbolos religiosos e artigos de fé são essas formas de acercamento 
do incognoscível, que por vezes se esquecem de que são apenas 
“aproximações” e não o espelho do divino ou da verdade. Por isso é que 
Merton resiste em aceitar a solução proposta por Robinson e outros, de 
abandonar os símbolos em razão de seu desgaste – lançando o bebê 
fora com a água do banho –, pois é óbvio, para uma fé madura ou adulta, 
que símbolos ou fórmulas são “os termos seguros” por meio dos quais 
nossa fé no incompreensível se expressa, e não o objeto mesmo dessa 
fé. Como completa Merton (2018b, p. 28), “o objeto de nossa fé não é uma 
afi rmação sobre Deus, mas o próprio Deus a quem a afi rmação designa e 
que está infi nitamente além de qualquer coisa que a afi rmação nos pode 
levar a compreender ou imaginar”. Podemos revisar, eventualmente, 
certas formulações ou afi rmações na base da crença, o que não signifi ca 
abandonar o caminho da fé. Como reconheceu Merton em outro texto 
da mesma época, “sem dúvida, já é tempo de a consciência cristã se 
expressar em linguagem contemporânea”, mas a realidade do Eterno, 
que transcende a linguagem e os conceitos, “não é em si modifi cada 
pelas mudanças de cultura” (Merton, 2019, p. 266).
Em segundo lugar, não é garantido que tornar-se um cristão “sem 
Deus” aproximará os ateístas de Deus, nem é tão óbvio que todos os 
contemporâneos sejam incapazes de crer. (Recordemos aqui que 
Merton está falando a contemporâneos de outra época e contexto, 
33| Teologia Contemporânea | FTSA | 
embora algumas afi rmações ainda possam ser válidas à nossa época). 
Merton expressa aqui uma dúvida sobre aquilo que alguns de seus 
contemporâneos mais ansiosos por “ser contemporâneos” pareciam 
tomar como óbvio. A dúvida é, por assim dizer, metodológica, e pode ser 
endereçada pela pergunta: o que garante que juntar-se aos modernos no 
abandono da linguagem tradicional sobre Deus, porém, mantendo uma 
crença secreta nele, efetivamente servirá para “religar” (sem nenhuma 
forma de religião) essas pessoas a Deus? Merton nos leva a supor com 
ele a situação em que essas pessoas agora conseguiram uma audiência 
no mundo contemporâneo – e, por um curto período, isso não deixou de 
ser verdade, pela relativa popularidade do livro Honesto com Deus, de 
Robinson, no Reino Unido, ou pelo rebuliço causado em 1966 pela capa 
da Times, já citada –, segue-se então a pergunta: “uma vez que o cristão 
ganha audiência, o que prega ele senão Deus, Cristo e a Igreja?” (Merton, 
2018b, p. 34). A difi culdade de Merton (um homem da Igreja) estava em 
imaginar o que esses teólogos pregariam depois da constatação da 
“morte de Deus”. Desta maneira, em seguida ele expressa o que considera 
o ponto mais crítico:
Do ponto de vista católico, então, a crítica mais séria 
deste admitidamente sincero, caridoso e solícito 
cristianismo “sem religião” é que não parece ser cristão. 
Não que “religião”, no sentido paulino dos “elementos” 
do ritual e adoração humanos, seja necessária ao 
cristianismo, mas um certo fundamento ontológico 
e teológico é necessário. Para ganhar uma audiência 
no mundo moderno, para “ser contemporâneo”, esse 
cristianismo dispensa a revelação cristã de Deus, em 
Cristo, e aceita o que é, na realidade, um conceito 
materialista do homem. (Merton, 2018b, p. 34-35)
 Eliminando-se os resquícios da transcendência na cultura a fi m de 
legitimar de vez a “maioridade” desse ser humano, que nos resta senão 
a pura materialidade e a visão científi ca que a justifi ca? Isso, porém, 
não basta, e os humanismos não nos deixam mentir. É necessária uma 
| Teologia Contemporânea | FTSA34
base ética que sustente a vida societária a partir de valores humanos, na 
medida em que a “nostalgia de Deus” vai sumindo de vista (mas nunca 
de vez, como vimos no caso da Revista Times). Onde encontramos essa 
base? Ao responder esta pergunta, Merton salienta que “a própria ‘religião-
sem-religião’ ainda se apega a algo que constitui uma ‘mensagem’ – não 
é uma religião, não prega Deus, nem a redenção, mas ainda tem um 
querigma de amor” (Merton, 2018b, p. 35). 
Algumas perguntas surgem daí: “Se podemos dispensar Deus, por que 
não o amor? Por que a lógica de kenosis para exatamente onde para? 
Não podemos dizer que a fé num Deus vivo, que se revela como amor, 
não é mais consistente, afi nal?” (Merton, 2018b, p. 35-36). O paradoxo 
se faz evidente, na visão de Merton: ao rejeitar a crença em Deus sob a 
premissa de umaconfi ança em si mesmo (maioridade), os modernos 
acabaram forjando outro tipo de credulidade, materialista e secular, mas 
ainda assim uma forma de crença. E o problema todo, para ele, é que os 
cristãos estavam usando “a linguagem dessa ‘crença’ para tornar sua fé 
compreensível ao homem moderno” (Merton, 2018b, p. 36), e com isso 
abandonando sua “vocação messiânica”, para usar de novo o termo de 
Agamben. O que nos conduz à terceira e última razão...
Em terceiro lugar, quando a contemporaneidade, segundo tais ou quais 
padrões, se torna um imperativo, “ser contemporâneo” não passa de 
mito. A visão de Merton é sufi cientemente sofi sticada para não confundir 
“mito” com “mentira”. Como ele explica em nota: “Mito é uma síntese 
imaginária de dados e intuições sobre estes, que formam um complexo 
interpretativo de ideias e imagens. Esse complexo de ‘valores’ então se 
torna central numa visão de mundo, uma norma de julgamento e prática” 
(Merton, 2018b, p. 32). Em outras palavras, o mito é o que proporciona 
que contemos histórias, que se querem verdadeiras, sobre como 
determinadas coisas ou modos de ser vieram à origem. E o ponto é: 
cremos tanto em nossos mitos que nem sequer nos lembramos de que 
são mitos, isto é, não a própria realidade, mas as lentes que utilizamos 
para conferir sentido a ela. E, por serem “sínteses imaginárias”, sem 
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necessariamente que reconheçamos que o são, esses mitos têm o poder 
de promover urgências e criar necessidades como se fossem realidades 
últimas ou absolutos. Uma dessas necessidades, consideradas míticas 
por Merton, é justamente a de ser contemporâneo, que para muitos 
signifi ca “estar em dia” a fi m de não sentir que, de algum modo, sua 
existência está sendo diminuída e que “sua imagem começou a desbotar” 
(Merton, 2018b, p. 33). 
Vimos no tópico anterior alguns signifi cados de contemporâneo a partir 
de um diálogo com Agamben. Merton, porém, oferece uma defi nição que, 
segundo ele, justifi ca o caráter mítico do “ser contemporâneo” em sua 
época, motivado, sobretudo, por um incômodo gerado pela pergunta do 
bispo Robinson: “Pode uma pessoa verdadeiramente contemporânea
não ser ateia?”. A ansiedade presente nesta frase é o que parece conduzir 
Merton à seguinte refl exão:
Ser contemporâneo é ser reconhecido “em dia” num 
mundo em rápida aceleração, onde não só os gostos, 
mas toda a visão da arte, da ciência, da fi losofi a, da 
literatura e da religião é revolucionada cada três ou 
cinco anos [hoje, em pleno século XXI, muitas destas 
“revoluções” ocorrem em menos tempo, vide, por 
exemplo, o que acontece com a tecnologia em questão 
de meses (acréscimo nosso)]. Ser contemporâneo 
é manter o seu lugar, sobreviver num altamente 
organizado e trepidante dinamismo do efêmero. É 
um tipo de existencialismo da moda, em que não 
há fundamento fi rme e ontológico do ser, mas só o 
constante e imprevisível fl uxo da existência. O que 
importa é estar bem harmonizado com os sinais mais 
leves que indicam a próxima revolução de ideias, 
para que se possa continuar a fazer a opção certa, 
isto é, contemporânea – no momento exato. Basta 
um pequeno erro de tempo, e alguém não é mais 
perfeitamente contemporâneo. Naufraga-se no fl uxo de 
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decisões efêmeras e se é superado por outros que têm 
a habilidade de permanecer contemporâneos. (Merton, 
2018b, p. 33)
À luz da passagem acima, as perguntas de Merton continuam ecoando 
ainda hoje: Que preço precisamos pagar para conseguir uma audiência 
em nossa época, em nosso contexto, contemporâneos? O que é 
necessário sacrificar para “estar em dia”, para ser considerado relevante 
e “verdadeiramente contemporâneo”? E o que garante que decisões 
tomadas no ímpeto da urgência, da necessidade e sob o signo da 
efemeridade nos levarão ao topo hoje e nos protegerão de não sucumbir, 
por um pequeno deslize cronológico, à próxima “revolução” que emergirá 
amanhã? Esse parece ser precisamente o “calcanhar de Aquiles” dessa 
escola do ser contemporâneo: quando ser contemporâneo – segundo os 
ditames desta escola – é a motivação primeira para o que fazemos, pode 
ser que em breve percamos o rumo de nossa vocação em incessantes 
tentativas de seguir o que é tendência ou o que está na “ordem do dia”. 
Porque “estar na moda” ou “ser relevante” são condições tão fugazes 
quanto à própria moda ou a defi nição de relevância – a fama do 
movimento da “teologia da morte de Deus” nos anos 1960 que o diga. 
Ademais, como ressalta Merton (2018b, p. 36), “quando alguém está 
por demais preocupado em ‘ser verdadeiramente contemporâneo’, 
pode talvez desviar-se em seu julgamento ‘do que é e do que não é 
contemporâneo’” – como ele acredita ter sido o caso do bispo Robinson. 
Numa primeira instância, porque há muito mais gente dentro desse 
“contemporâneo” do que muitos daqueles que são movidos pela 
urgência de ser contemporâneos estão aptos a reconhecer. Merton, no 
caso, não estava disposto a admitir em seu leque de opções vocacionais 
o requisito de que, para ser “verdadeiramente contemporâneo”, era 
necessário aderir à morte de Deus ou a uma “religião-sem-religião”. 
Mais do que isso, ele acreditava que muitas pessoas inteligentes de sua 
época, incluindo cientistas e formadores de opinião, haviam recebido 
o dom da fé e percebido a sabedoria escondida no velho dito: “creia e 
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compreenderá”. Isso não fez delas pessoas menos contemporâneas. A fé 
pode ser revestida de uma “linguagem contemporânea” a fi m de se tornar 
comunicável? Merton admite que sim. Mas, para isso, ainda é preciso 
crer. Numa segunda instância, porque são justamente os pequenos 
traços de desarmonia, esses “pequenos erros de tempo”, e uma evidente 
dessintonia com os ditames de sua época que podem fazer emergir em 
nós o “ser contemporâneo” como ser intempestivo – tal como vimos 
pelos signifi cados para “contemporâneo” apresentados por Agamben. 
Nesse sentido, o diálogo com Merton neste último tópico foi interessante 
não tanto pelos exemplos por ele escolhidos como objeto de sua crítica 
– não negamos aqui, por sinal, o mérito e a importância da obra do bispo 
Robinson, muito menos a de Bonhoeffer –, mas pela exemplifi cação na 
prática, isto é, por meio da práxis de Merton como monge contemplativo e 
escritor do século XX, das teses sobre o que signifi ca ser contemporâneo 
apresentadas por Agamben. Sua trajetória, aliás, não somente suas 
ideias, perfaz o que chamamos aqui de uma “coincidência inconformada”: 
desempenhar sua vocação no mundo coincidindo (isto é, incidindo junto, 
encontrando-se) com as questões candentes de sua época sem, no 
entanto, conformar-se com todos os seus meandros. 
Voltando a um tema que vimos em Agamben, somos todos habitados pelas 
“trevas” de nossa época, mas (biblicamente falando) tão somente para nela 
“manifestar a glória dos fi lhos de Deus” (Rm 8.19). E, já que trouxemos o 
apóstolo Paulo de novo à conversa, convém terminar com suas conhecidas 
palavras em Romanos, que indiretamente inspiraram toda a refl exão sobre 
“ser contemporâneo” apresentada aqui do princípio ao fi m:
Não imitem o comportamento e os costumes deste 
mundo, mas deixem que Deus os transforme por meio 
de uma mudança em seu modo de pensar, a fi m de que 
experimentem a boa, agradável e perfeita vontade de 
Deus para vocês. (Rm 12.2, NVT)
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Referências bibliográfi cas
AGAMBEN, Giorgio. The Church and the Kingdom. London: Seagull Books, 
2012.
_________. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó, SC: 
Argos, 2009. 
CRUZ, João da. Noite escura. 6ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. 
DE CHARDIN, Pierre Teilhard. O meio divino. 2ª ed. Petrópolis, RJ: vozes, 
2014.
GRENZ, Stanley; OLSON, Roger. A teologia do século XX: Deus e o mundo 
numa era de transição. São Paulo: Cultura Cristã, 2003.
MCNAMARA, William. The Human Adventure: The Art of Contemplative 
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