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Março/ 2022 Professor: Dr. Jorge Henrique Barro Coordenadoria de Graduação Online: Dr. Marcos Orison Nunes de Almeida Projeto Gráfico e Capa: Departamento de desenvolvimento institucional Todos os direitos em língua portuguesa reservados por: Rua: Martinho Lutero, 277 - Gleba Palhano - Londrina - PR 86055-670 Tel.: (43) 3371.0200 3Teologia Bíblica da Missão | FTSA | SUMÁRIO Teologia Bíblica da Missão Unidade 1 - Defi nições e contextos da missão 1. O que é missão...................................................................................................07 2. Defi nição de termos relacionados a missão.....................................................15 3. Os contextos da missão......................................................................................23 Unidade 2 - Bíblia, teologia e missão - Parte I 1. A Bíblia como a base da missão......................................................................46 2. As dimensões da missão...................................................................................53 3. Missão centrípeta e centrífuga..........................................................................63 Unidade 3 - Bíblia, teologia e missão - Parte II 1. A missão no Antigo Testamento........................................................................72 2. A missão no Novo Testamento..........................................................................83 Unidade 4 - A prática da missão 1. A igreja misssional............................................................................................97 2. O Reino de Deus e a sua justiça.......................................................................107 Para assistir os vídeos, ouvir os podcasts e fazer os exercícios, acesse o AVA (Ambiente Virtual de Aprendizagem) | Teologia Bíblica da Missão | FTSA4 Introdução à Disciplina Bem-vindo(a) à disciplina Teologia Bíblica da Missão! Conforme demonstrado na fi gura abaixo, a teologia bíblica da missão tem a ver com três áreas interligadas, gerando três círculos de relacionamentos. A primeira área refere-se a Bíblia como uma narrativa única (começo- meio-fim) missional. A segunda área é a Teologia que, a partir da Palavra de Deus, constrói pressupostos e valores em perspectivas teológicas. A terceira área é a Missiologia que visa aplicar e contextualizar as ações ministeriais e missionais da igreja. Nenhuma dessas áreas podem (ou deveriam) existir sem as outras. Teologia da missão é TEOLOGIA (círculo A no diagrama), porque fundamentalmente envolve refl exão e, neste caso, refl exão sobre Deus e Sua missão. Aqui a tarefa envolve entender a missão de Deus (no latim, missio Dei), seus propósitos para com o mundo e Sua criação não-humana e humana, como também refl ete a participação do ser humano e da igreja, como povo de Deus, sendo estes instrumentos para o cumprimento da missio Dei no mundo. Tal refl exão teológica deve levar em consideração as questões contextuais de cada cultura para que a produção teológica seja contextual, isto é, traduzida de forma que cada cultura possa entender e ser impactada pelos valores do Evangelho do reino de Deus. Aqui está a principal diferença entre a teologia de missão e a teologia sistemática, sem menosprezo algum por esta, porque os teólogos da missão possuem uma orientação missiológica multidisciplinar na elaboração de sua teologização. 5Teologia Bíblica da Missão | FTSA | Teologia da missão é BÍBLICA (círculo B no diagrama) por causa do seu compromisso de permanecer fi el às intenções, perspectivas e propósitos de Deus revelados em Sua Palavra. Por isso, a teologia da missão possui uma preocupação fundamental com a Bíblia, como uma peça narrativa única. O teólogo da missão, em sua formação multidisciplinar, parte de um processo hermenêutico que possui um fio condutor chamado missio Dei. A Bíblia, sem a perspectiva da missão de Deus, perde sua própria razão de existir. Por que a Bíblia veio a existir? Um teólogo da missão responde categoricamente que é a Bíblia veio a existir em função da missão de Deus. Ela revela os planos de Deus para o mundo. Por isso, Bíblia e missão são inseparáveis e sem ambas, a teologia não tem razão de existir. Teologia da missão é DA e PARA A MISSÃO (círculo C no diagrama). Sem missão tanto a teologia como a Bíblia perdem sua razão de existir. Por um lado, a Bíblia sem missão perde seu propósito que é o de revelar Deus e Sua missão ao mundo. Por outro lado, a Teologia sem missão não passa de reflexões abstratas e, muitas vezes estéreis, com discussões insolúveis, especialmente as de caráter apologéticos, que mais dividem que do promovem a unidade no corpo de Cristo. E ainda, a Missão sem Teologia e Bíblia está fadada a um mero ativismo, movida e motivada por resultados, especialmente os numéricos, caracterizada especialmente por eventos porque não tem paciência com os processos do Espírito Santo. Aqui, corre-se o risco de desenvolver, pela ausência da Bíblia e da Teologia, uma missiologia gerencial, mais próxima do mercado do que dos princípios da Palavra de Deus. Por isso, por mais redundante que possa parecer (mas não é) a teologia da missão é da missão. Mas o que vem a ser esse “da”? Como já afi rmado, em contraste a teologia sistemática, a teologia “da” missão é uma teologia aplicada. Se é aplicada implica em reconhecer que se trata de uma refl exão teológica também a partir “das” questões, situações e temas particulares nos quais a missão precisa se relacionar com o seu contexto. Não é que a Teologia da missão seja mais prática e menos conceitual, mas sim que estabelece uma saudável relação entre práxis e conceito. Nesse sentido, a teologia da missão enfatiza e extrai sua natureza do Deus-Emanuel, encarnado na vida e | Teologia Bíblica da Missão | FTSA6 ministério de Jesus, que é o modelo da missão. Assim como em Jesus a prática missional é contextual porque surge como uma resposta as necessidades humanas e necessidades do mundo. Finalmente, a teologia da missão é também para a missão. E o que isso signifi ca? Que é ela é orientada “para” a missão. Isso é de vital importância entender pelo fato de que nem a missiologia e nem a teologia podem restringirem-se apenas à refl exão, como se fosse um mero exercício refl exivo-acadêmico. Como disse o renomado missiólogo Holandês, Johannes Verkuyl: A missiologia pode nunca se tornar um substituto para a ação e a participação. Deus chama participantes e voluntários em sua missão. Em parte, o objetivo da missiologia é se tornar uma “estação de serviço” ao longo do caminho. Se o estudo não leva à participação, seja em seu país ou no exterior, a missiologia perdeu sua humilde vocação... Qualquer boa missiologia é também uma missiologia viatorum - “missiologia peregrina” (1978:6,18). Sendo a teologia da missão orientada para a missão, implica em reconhecer que o fazer teológico é um fazer em perspectiva missional. O fazer missional (para a missão) é sempre o alvo penúltimo da missão. O alvo último é e sempre deverá ser a glória de Deus (missio Doxa), isso porque “quer comais, quer bebais ou façais outra coisa qualquer, fazei tudo para a glória de Deus” (1 Co 10:31). Paulo, ao escrever sua segunda carta aos Coríntios, os encoraja para que a graça multiplicadora os “torne abundantes as ações (alvo penúltimo) de graças por meio de muitos, para glória de Deus (alvo último)” (2 Co 4:15). É com essa consciência e espírito que a sua jornada nessa disciplina possa ser uma marca divisionária em sua vida e ministério refl itam uma TEOLOGIA BÍBLICA DE MISSÃO! Referências VERKUYL, Johannes. Contemporary missiology: an introduction. Grand Rapids: William B. Eerdmans Publishing Company, 1978. 7Teologia Bíblica da Missão | FTSA | UNIDADE 1 - Defi nições e contextos da missão Introdução Nesta Unidade I refl etiremos sobre as DEFINIÇÕES E CONTEXTOS DA MISSÃO hoje. Dois desafi os logo de entrada se apresentam, e podemos classifi cá-los emdo Norte a urbanização levou séculos, estimulada pela industrialização e aumento constante da renda per capita, no mundo em desenvolvimento ocorrerá no espaço de duas ou três gerações. Em muitos países em desenvolvimento, o crescimento urbano está 41Teologia Bíblica da Missão | FTSA | sendo impulsionado não pela oportunidade econômica, mas por altas taxas de nascimento e um afl uxo maciço de habitantes rurais que procuram escapar da fome, pobreza e insegurança. A maioria das cidades que mais crescem no mundo encontra–se nos países de baixa renda da Ásia e África com populações jovens. Nos próximos 10 anos, o número de habitantes urbanos na África Subsaariana deverá crescer quase 45%, de 320 milhões para 460 milhões. Kinshasa, capital de um dos países mais pobres do mundo, hoje é a megalópole futura que mais cresce no mundo. Em 2025, a população urbana dos países menos desenvolvidos da Ásia terá crescido de 90 milhões para cerca de 150 milhões, e Dhaka deverá ser a quinta maior cidade do mundo, com 21 milhões de habitantes (FAO, 2012, p. 1). Como não levar em consideração essas consequências e desafi os da urbanização? Esse fenômeno resultará ainda mais em altos níveis de pobreza, desemprego e insegurança alimentar. Estima–se que em todo o mundo 1 bilhão de pessoas vivam em favelas, sem acesso a serviços básicos de saúde, água e saneamento. Cerca de 30% da população urbana do Mundo Majoritário, ou seja, 770 milhões de pessoas, está desempregada ou são trabalhadores pobres, com renda abaixo da linha de pobreza. Esses pobres urbanos gastam a maior parte de sua renda com alimentação. Porém, muitas vezes seus fi lhos apresentam níveis de desnutrição tão altos quanto os das áreas rurais. Para sobreviver, milhões de favelados cultivam seus próprios alimentos em cada pedaço de terra disponível: em seus quintais, ao longo dos rios, estradas e ferrovias e sob as linhas de transmissão de energia. O crescimento das favelas ultrapassa o crescimento urbano por uma ampla margem. Em 2020, a proporção da população urbana pobre chega a 45%, ou 1,4 bilhão de pessoas. 85% dos pobres da América Latina, e quase metade dos pobres da África e Ásia, se concentrarão em áreas urbanas. | Teologia Bíblica da Missão | FTSA42 Já sem tem nome para isso: a nova bomba demográfi ca. Esse é um desafi o ou pesadelo não apenas para os governos como também para a educação teológica e a missão da igreja: aglomerados urbanos degradados e empobrecidos, com grandes populações vulneráveis de pessoas socialmente excluídas, jovens e desempregadas e, claro, no entorno de tudo isso, a criminalidade e violência urbana. Além disso tudo, o que falar dos deslocados, os refugiados! A guerra entre Rússia e Ucrânia gerou milhões de pessoas deslocadas para outros países, como especialmente para a Polônia. Quando percebo essas realidades percebo também o quanto temos sido egoístas como igreja. Enquanto o mundo está vivendo um processo de uma nova bomba demográfi ca muitas igrejas vivem e se preocupam com elas mesmas, seus membros seus templos e suas denominações e instituições. Parafraseando, talvez de modo impróprio, o que disse Jesus: “Hoje haverá culto para refl etirmos o que a Palavra tem a nos dizer. Vocês sabem interpretar as escrituras, mas não sabem interpretar os sinais dos tempos” (Mt 16:3). Os sinais dos tempos estão dizendo que devemos levar em consideração os espaços urbanos. O Congresso de Lausanne III, em 2010, realizado na Cidade do Cabo, percebeu a importância de destacar as cidades como um dos maiores desafi os para a missão: “What Is God’s Global Urban Mission?” (“Qual é a missão urbana global de Deus?”) (https://lausanne.org/content/what-is- gods-global-urban-mission). Glossário Munda Majoritário ou Dois-Terços-do-Mundo Terminologia que passou a ser utilizada no lugar da expressão “Terceiro Mundo”, que carregou conceitos pejorativos, como sendo países de categoria inferior por estarem em continentes subdesenvolvidos. Busca- 43Teologia Bíblica da Missão | FTSA | se com essa mudança de nomenclatura colocar o peso não nos aspectos econômicos, mas populacionais, ou seja, dois-terços da população do mundo estão na América Latina, África e Ásia. Missão A natureza/identidade e razão de existir, em nosso caso, de Deus e, derivadamente, da igreja. Missiologia, Missiológico Missiologia é o estudo da intersecção entre o evangelho, a cultura e a igreja. Tal estudo é multidisciplinar porque incorpora outras áreas do saber, tais como Teologia, Antropologia, Sociologia, História, Línguas, entre outras. Missional É um adjetivo que denota alguma coisa que está relacionada com ou é caracterizada pela missão. Indica algo que carrega qualidades, atributos ou dinâmicas da missão. Missionário No senso comum, são tipicamente aquelas pessoas enviadas por suas igrejas ou agências missionárias para lugares normalmente distante da igreja enviadora. Em nossa perspectiva missiológica, são todos os cristãos em resposta à missio Dei, agindo em seus contextos de vida. Missões Esforços e atividades missionárias de envio e sustento de pessoas que vão pregar o evangelho, implicando cruzar fronteiras geográfi cas e culturais. Também chamada de missão transcultural. Urbanização É o processo/fenômeno que está ligado ao crescimento populacional e territorial das cidades no qual as pessoas deixam as áreas rurais, agrícolas e indígenas em direção aos centros urbanos. | Teologia Bíblica da Missão | FTSA44 Referências BAUMAN, Zygmunt. Confi ança e medo na cidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed: 2009. BARRO, Jorge H.; ZABATIERO, Júlio P. T.; SILVA, Welinton. Porque Deus amou o mundo: igreja e ODS trato do ODS. Londrina: Editora Descoberta, 2018. BOSCH, David. Missão transformadora.: mudanças de paradigma na teologia da missão. São Leopoldo: EST & Sinodal, 2002. CASTRO, Emílio. Servos livres: missão e unidade na perspectiva do reino. Rio de Janeiro: CEDI, 1986. ENGEN, Charles van. Misión en el camino: refl exiones sobre la teologia de la misión. Grand Rapids: Baker Book House Company, 2007. FAO – Food and Agriculture Organization of United Nations. Criar cidades mais verdes. Roma: FAO, 2012. KIRK, Andrew. O que é missão: teologia bíblica de missão. Londrina: Descoberta, 2006. LIBÂNIO, João Batista. As lógicas da cidade: o impacto sobre a fé e sob o impacto da fé. 2. ed. São Paulo: Editora Loyola, 2012. MCLAREN, Brian. Uma ortodoxia generosa: a igreja em tempos de pós- modernidade. Brasília: Palavra, 2007. NEILL, Stephen. Creative tension. London: Edinburgh House Press, 1959. ONU. United Nations system-wide guidelines on safer cities and human settlements (Diretrizes para todo o sistema das Nações Unidas sobre cidades mais seguras e assentamentos humanos). Programa das Nações Unidas para Assentamentos Humanos - UN-Habitat 2012. 45Teologia Bíblica da Missão | FTSA | PADILLA, C. René. O que é missão integral? Viçosa: Ultimato, 2009. SIMMEL, Georg. “A metrópole e a vida mental”. In: VELHO, Otávio Guilherme (Org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973. VELHO, Gilberto. Individualismo, anonimato e violência na metrópole. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 6, n. 13, p. 15-29, jun. 2000 WRIGHT, Christopher J. H. A missão de Deus: desvendando a grande narrativa da Bíblia. São Paulo: Edições Vida Nova, 2014. | Teologia Bíblica da Missão | FTSA46 Unidade II - Bíblia, teologia e ,missão - Parte 1 Introdução Nesta Unidade II refl etiremos sobre missio Dei, Bíblia, teologia e missão. Temos alguns desafi os no Brasil relacionados à missão. O primeiro é justamente compreender o signifi cado de missão. Por isso, refl etimos na Unidade I, o que não é missão. O segundo desafi o é compreender o que é missio Dei. O terceiro é discernir o relacionamento entre Bíblia e missão, tanto no Antigo como no Novo Testamento. E, em quarto lugar, entender qual é a compreensão clássica da integralidade do Evangelho. Estes temas serãotratados nesta e na próxima unidade. Nessa unidade, trataremos de aspectos mais amplos da missão, como a defi nição de Teologia da Missão, suas dimensões e uma maneira geral de caracterizarmos e diferenciarmos a missão do ponto de vista do Antigo e Novo Testamento. Na próxima unidade, ainda construindo a relação entre Bíblia, teologia e missão, observaremos alguns conteúdos textuais das Escrituras. 1. A Bíblia como a base da missão Conforme já destacada anteriormente, podemos dizer que não existe uma base bíblica para missão e sim que a Bíblia toda é a base da missão. Em primeiro lugar, a Teologia Bíblica da Missão é teologia porque fundamentalmente envolve refl exão sobre Deus e as coisas de Deus. Procura compreender a sua missão, suas intenções e propósitos, seu uso dos instrumentos humanos e sua ação, por meio do seu povo, que atua no mundo por ele criado. Assim, a Teologia da Missão lida com todos os temas teológicos tradicionais da Teologia Sistemática. Por outro lado, difere no modo como os teólogos sistemáticos trabalharam classicamente através dos séculos. A diferença surge na orientação missiológica multidisciplinar de seu pensar e fazer teológico. 47Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 1.1. O aspecto teológico da missão A Teologia Sistemática é considerada a organizadora do pensamento teológico através dos séculos. Seus eixos teológicos foram organizados em sete áreas clássicas (que pode variar dependendo da tradição teológica), sendo: (1) Teontologia, (2) Antropologia, (3) Cristologia, (4) Soteriologia, (5) Eclesiologia, (6) Pneumatologia e (7) Escatologia. A Teontologia é área da Sistemática que estuda Deus, Deus-Pai ou Criador. A Antropologia ou Antropologia Teológica estuda a criação com especial atenção para o ser humano. A Cristologia se ocupa do estudo da pessoa de Jesus Cristo. A Soteriologia é o estudo da salvação promovida por Deus. A Eclesiologia estuda o fenômeno da igreja. A Pneumatologia é o estudo do Espírito Santo. E fi nalmente, Escatologia é o estudo das chamadas últimas coisas ou da esperança futura. De modo geral, a Teologia Sistemática desenvolvida na história da igreja não se preocupou em desenvolver uma perspectiva missiológica. Assim, a Missiologia surgiu, mais recentemente, como uma disciplina isolada. Minha intenção aqui é advogar a urgente necessidade de perceber um possível fluxo missiológico por trás das áreas da Teologia Sistemática. Pensemos assim: o princípio de todas as coisas é Deus (Teontologia), que apesar do pecado do ser humano, demostra sua graça e misericórdia para com a ser humano e humanidade (Antropologia). Por meio de Cristo, sua vida, obra, morte e ressurreição (Cristologia), a humanidade, junto com toda a criação, é redimida e salva (Soteriologia). Os salvos recebem o Espírito da promessa, passam a ser templos do Espírito, empoderados para cumprir os planos de Deus no e a favor do mundo (Pneumatologia), passando a ser membros do novo povo de Deus, a comunidade de fé, chamados a viver em comunhão, santidade e em comunidade missional (Eclesiologia). Finalmente, a marca distinta desta comunidade missional é a esperança do Reino que vem, vivendo na tensão entre “já e ainda não” (Escatologia) do reino de Deus, até a consumação dos séculos. Esse é um resumo das setes áreas. | Teologia Bíblica da Missão | FTSA48 No gráfi co que segue, apresento esse fluxo missiológico, demonstrando que a Teologia deve ser apta a seguir a ação misericordiosa de Deus em Cristo Jesus, o Verbo - transcendente - que se fez carne e habitou entre nós – imanente. Por isso, a Teologia é sempre um ato segundo, como discurso humano, pois o ato primeiro é o agir de Deus na história. Assim sendo, a Teologia é uma resposta ao agir de Deus, um meio, nunca um fi m. Fica claro que a Teologia é um serviço e está a serviço de Deus e seu reino. Este fl uxo missiológico indica a fi nalidade da Teologia, ou seja, estar a serviço da missão de Deus (missio Dei). Este precisamente foi, e continua sendo, o equívoco hermenêutico de muitos teólogos sistemáticos: não perceber a teologia como um instrumento a serviço da missão. Qual é o sentido da Teologia sem a Missiologia? Como, por exemplo, estudar a Cristologia e a Eclesiologia sem a perspectiva missiológica? Ou ainda, a quem serve esta Teologia? Teologia sem missão é refl exão estéril, sem relação com a práxis de Jesus e da igreja. Por outro lado, uma Missiologia que não seja Teológica será imatura, inconsequente e sem fundamento sólido. Assim, é urgente o repensar sobre elementos integrativos nas disciplinas missiológicas e teológicas. Devemos desenvolver uma teologia missiológica e uma missiologia teológica. A refl exão e práxis missiológica precisam de fundamentos teológicos, assim como os fundamentos teológicos precisam motivar, encorajar e impulsionar a missão. Este divórcio entre Teologia e Missiologia já causou muitas consequências negativas. Por exemplo, a refl exão teológica sem implicações missiológicas nada mais é do que domesticação e institucionalização doutrinária. 49Teologia Bíblica da Missão | FTSA | Desde já é necessário que você vá aprendendo a fazer integrações e diálogos entre Teologia e Missiologia. Pensar a Teologia na perspectiva da Missiologia é imprescindível, porque você perceberá em sua caminhada que raramente algo foi escrito nas sistematizações a partir da perspectiva missiológica. Se a Teologia não está a serviço da missão da igreja, ela está a serviço de quem? Ouso dizer que estaria a serviço de teólogos, denominações, suas confi ssões e doutrinas. Chegou o momento de fazer teologia não para a tradição eclesiástica, pois isso é manutenção do status quo, mas essencialmente com a igreja, como servos(as) submissos da missio Dei, de uma igreja a caminho nas sendas do reino. Se o desafi o é repensar a Teologia na perspectiva da Missiologia, propomos o seguinte fl uxo, utilizando aqui expressões em latim: Este gráfi co nos mostra a centralidade da Trindade na tarefa missional. É a partir da Trindade que devemos desenvolver uma Missiologia Trinitária, ou seja, a missio Dei (missão de Deus), missio Christi (missão de Cristo), e missio Spiritu Sancti (missão do Espírito Santo). Isto implica em concluir que a missão do povo de Deus (missio ecclesiarum) é consequência, um ato segundo, da missão Trinitária, que é o ato primeiro. A igreja, portanto, não vive para si mesma - ela é uma serva da Trindade em missão, vivendo e encarnando as boas novas do Evangelho, tanto em obras como em palavras, como peregrina e forasteira. Como nos exorta Pedro, a que sigamos em “santo procedimento e piedade, esperando e apressando a | Teologia Bíblica da Missão | FTSA50 vinda do Dia de Deus” (2 Pe 3:11 – 12) porque “segundo a sua promessa, esperamos novos céus e nova terra, nos quais habita justiça” (2 Pe 3:13), claramente uma referência a expectativa do reino que virá (missio adventus). Portanto, a refl exão da Teologia sem a perspectiva Missiológica é a morte da própria missão. É na práxis missiológica, a partir da refl exão bíblica e contextual, que a igreja diz para veio e existe. E, existindo assim, glorifi ca a Trindade em seu compromisso de encarnação missional. 1.2. O aspecto bíblico da missão Em segundo lugar, a Teologia Bíblica da Missão é bíblica devido ao seu compromisso de permanecer fi el às intenções, perspectivas e propósitos da Palavra de Deus. A Teologia da Missão mostra uma preocupação fundamental sobre a relação da Bíblia com a missão, permitindo que as Escrituras não apenas forneçam as motivações fundamentais para a missão, mas, essencialmente, questione, molde, oriente e avalie os esforços missionais. Isso porque, paradoxalmente, existem motivações impuras na realização da missão. Johannes Verkuyl, um renomado missiólogo holandês Johannes Verkuyl (1978, p. 164-168) (falecido) entende que existem duas motivações para realizar a missão: pura e impura. Em relação as motivações, ele alista essas:obediência, amor-misericórdia-piedade, Doxologia, escatologia, urgência e motivos pessoais, como por exemplo quando o apóstolo Paulo afi rmou: “Tudo faço por causa do evangelho, com o fi m de me tornar cooperador com ele” (1 Co 9:23). Em contraste, Verkuyl, nos alerta de que nem tudo o que a igreja faz tem uma intenção missional. Pare ele, é possível realizar a obra de Deus com intenções impuras e com maus propósitos, seja de forma consciente ou inconsciente. Verkuyl (1978, p. 168-175) indica quatro motivações impuras que a igreja pode assumir na pretensa realização da missão: • a motivação imperialista: é a tentativa de usar outra pessoa ou povo como um meio para alcançar o seu próprio objetivo. 51Teologia Bíblica da Missão | FTSA | • a motivação cultural: frequentemente ao comunicar o Evangelho a cultura do comunicador vem acoplada e já não se distingue entre o que é Evangelho e o que é cultura. • a motivação comercial: é a relação entre comércio e fé, ou seja, ter uma igreja guiada por interesses comerciais e mercantilistas. • a motivação do colonialismo eclesiástico: é o processo de imposição do modelo da igreja mãe sobre as igrejas nativas, não dando a oportunidade para que essas igrejas tenham suas características respeitadas e encorajadas. Você provavelmente já encontrou algumas dessas motivações sendo expressas por igrejas em sua caminhada. E por que esses motivos impuros, entre outros, existem? Por causa do abandono da orientação bíblica e sua relação com a missão. A missão, para ser fi el a Deus, é aquela revelada nas Sagradas Escrituras e não conforme uma denominação, nós mesmo, ou a comunidade que queremos. Fidelidade a Deus e sua Palavra não é apenas no púlpito por meio da pregação. Essa Palavra deve permear tudo o que somos, pensamos e fazemos. É interessante notar que a palavra missão, por si só, não é encontrada na Bíblia no sentido missional. Por outro lado, há várias referências Paulinas sobre envio, ou seja, ser enviado ao mundo para cumprir a missão de Deus. Uma das razões de não encontramos a palavra missão na Bíblia é porque sua origem é latina (missio). Contudo, o princípio do envio está presente. Aliás, toda a Sagrada Escritura é a revelação da história da missão de Deus. Novamente, toda a Bíblia, Antigo e Novo Testamento, é a revelação da missão de Deus no mundo. Sempre enfatizaremos isso: a missão de Deus, não a missão da igreja, sua ou a minha missão. Pois, fi nalmente, é a missão de Deus que nosso Senhor Jesus veio para dar testemunho, e consequentemente, é a missão de Deus que a igreja proclama no mundo hoje. É a missão de Deus que compartilhamos e participamos. | Teologia Bíblica da Missão | FTSA52 1.3. O aspecto da missão em si Em terceiro lugar a Teologia Bíblica da Missão é sobre a missão. Ou seja, ela é especialmente orientada para a missão. Nem a Teologia nem a Missiologia podem restringir-se apenas à refl exão. Como Johannes Verkuyl afi rmou, A missiologia nunca pode ser um substituto para a ação e participação. Deus chama participantes e voluntários em sua missão. Em parte, o objetivo da missiologia é se tornar uma “estação de serviço” ao longo do caminho. Se o estudo não leva à participação, seja em casa ou no exterior, a missiologia perdeu seu humilde chamado... Qualquer boa missiologia é também uma missiologia viatorum - “missiologia peregrina” (1978: p. 6,18). A Teologia da Missão, então, deve desembocar em uma ação missional biblicamente informada e contextualmente apropriada. A conexão íntima entre refl exão e ação é absolutamente essencial para a Missiologia. Ao mesmo tempo, se nossa ação missiológica não transforma nossa refl exão, podemos vir a ter grandes ideais, mas elas podem ser irrelevantes, ou inúteis, às vezes até mesmo destrutivas ou contraproducentes. Portanto, nossa orientação missional, que surge como fruto de nossa Teologia da Missão, deve se traduzir em ação. E a ação missional sempre ocorre em um contexto. Nossa peregrinação em missão é sempre a caminho, que exige refl etir sobre uma hermenêutica do contexto, que por sua vez exige uma releitura das Escrituras que provoque novas ideias e ações missionais. Uma das formas mais úteis de interligar a refl exão à ação é por meio do processo conhecido como práxis. Embora tenha havido vários signifi cados diferentes descritos para esta ideia, parece que a formulação de Orlando Costas é uma das mais construtivas: [...] é fundamentalmente um fenômeno praxiológico. Trata – se de uma refl exão crítica que se realiza na práxis da missão [...] [Ocorre] na concreta situação missionária, como 53Teologia Bíblica da Missão | FTSA | parte da obediência missionária e participação da Igreja na missão de Deus, e ela mesma se atualiza nessa situação [...] Seu objetivo é sempre o mundo... homens e mulheres em suas múltiplas situações de vida [...] Em referência a esta ação de testemunho saturada e conduzida pela soberana ação redentora do Espírito Santo [...] o conceito de práxis missionária é utilizado. A missiologia surge como parte de um compromisso de testemunho ao evangelho nas múltiplas situações da vida (1976: p. 8). O conceito de práxis nos ajuda a entender que não apenas a refl exão, mas profundamente a ação também deve fazer parte de uma Teologia Bíblica de Missão que busca descobrir como a igreja pode participar da missão de Deus no mundo. A ação deve ser em si mesma teológica e bíblica e serve para informar a refl exão, que por sua vez interpreta, avalia, critica e projeta um novo entendimento na ação transformadora. Resumindo, toda teologia é bíblica e a toda a narrativa bíblica é missional. 2. As dimensões da missão A missão possui grande aproximação com o tema da salvação. Contudo, precisamos atentar para o fato de que fruto da infl uência dualista e dicotômica, a salvação para muitos signifi ca apenas salvar almas. Concordamos que o movimento da missão integral surgiu como uma correção do que a igreja, instituições teológicas e cristãos entendem por missão. Era necessário corrigir o conceito de que missão não passa de proclamação verbal, tendo com único objetivo o ganhar almas (“soul- winning”). Isso revela uma defi ciência escriturísticas da compressão da missio Dei. A palavra integral jamais deveria ter a necessidade de ser usada, porque é uma redundância, pois a missio Dei é por natureza integral. É tão redundante quanto dizer que eu vou “subir para cima” ou “descer para baixo”. Das muitas palavras hebraicas usadas para salvação, yasha - alvar, ajudar em afl ição, resgatar, livrar, libertar - é a que aparece mais frequentemente no Antigo Testamento. | Teologia Bíblica da Missão | FTSA54 Comumente, o livramento ou libertação, no discurso do Antigo Testamento, é de natureza material, embora haja exceções importantes. Em contraste, o emprego de soter - raiz grega aplicada ao conceito de salvação - no Novo Testamento, embora possa incluir a preservação material, geralmente signifi ca uma libertação com um signifi cado especialmente espiritual. Além da noção de libertação, a Bíblia também usa a palavra salvação para denotar saúde, bem-estar e cura. De acordo com o signifi cado mais amplo usado nas Escrituras, o termo salvação engloba a obra total de Deus pela qual ele busca resgatar o ser humano da ruína, destruição e poder do pecado, concedendo – lhe a riqueza de sua graça abrangendo a vida eterna, provisão por vida abundante agora e glória eterna (Ef 1:3-8; 2:4-10; 1 Pe 1:3-5; Jo 3:16, 36; 10:10). A palavra salvação comunica o pensamento de libertação, segurança, preservação, integridade, restauração e cura. Na Teologia, no entanto, seu principal uso é denotar a obra de Deus em favor da humanidade, que inclui as pessoas e criação. Como tal, é uma doutrina importante da Bíblia que inclui os conceitos de redenção, reconciliação, propiciação, convicção, arrependimento, fé, regeneração, perdão, justifi cação, santifi cação, preservação e glorifi cação. Por um lado, asalvação é descrita como a obra de Deus que resgata o ser humano de seu estado perdido, que por si só, jamais conseguiria sair, sendo exclusivamente uma obra de Deus por meio do mediador Jesus Cristo. Também descreve o estado de uma pessoa que foi salva e que é vitalmente renovada, fazendo parte da herança dos santos. Não podemos esquecer e nem mesmo negligenciar a salvação (redenção) da criação, apontada pelo apóstolo Paulo em Romanos: “A ardente expectativa da criação aguarda a revelação dos fi lhos de Deus. Pois a criação está sujeita à vaidade, não voluntariamente, mas por causa daquele que a sujeitou, na esperança de que a própria criação será redimida do cativeiro da corrupção, para a liberdade da glória dos fi lhos de Deus” (Rm 8:19-21). Portanto, precisamos, ainda que de modo resumido e condensado, entender que a salvação engloba a obra total de Deus formulada, entendida e incentivada pelo Apóstolo Paulo: 55Teologia Bíblica da Missão | FTSA | [...] o qual é imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação; porque nele foram criadas todas as coisas que há nos céus e na terra, visíveis e invisíveis, sejam tronos, sejam dominações, sejam principados, sejam potestades; tudo foi criado por ele e para ele. E ele é antes de todas as coisas, e todas as coisas subsistem por ele. E ele é a cabeça do corpo da igreja; é o princípio e o primogênito dentre os mortos, para que em tudo tenha a preeminência, porque foi do agrado do Pai que toda a plenitude nele habitasse e que, havendo por ele feito a paz pelo sangue da sua cruz, por meio dele reconciliasse consigo mesmo todas as coisas, tanto as que estão na terra como as que estão nos céus (Cl 1:15 – 20). A palavra missão, no sentido que aqui está sendo refl etido, conforme já afi rmado, não está na Bíblia. Quando a palavra aparece, e poucas vezes, é no sentido de uma tarefa particular, como por exemplo, a missão dos espias (Js 2:14, 20). Isso gera algumas difi culdades porque, uma vez que não existe uma defi nição explícita, ela se torna implícita e passível de interpretações. E é justamente aqui que muitos problemas surgem. Toda defi nição e interpretação implicam e resultam em práticas em função do que se defi niu e interpretou. Se, por exemplo, defi nimos a missão da igreja como salvar almas, isso defi nirá o método, as práticas e os resultados esperados. O método será pregar verbalmente, cuja ênfase recairá no ir por todo o mundo – a prática - para que as pessoas se convertam – o resultado. Toda defi nição corre o risco de incluir e excluir elementos. Neste exemplo, a defi nição de missão está certa no que inclui, mas equivocada no que exclui. Como já afi rmado, é necessário compreender que a Bíblia, e não textos isolados, é a base da missão. Ela é a peça missional de Deus. Uma coletânea de 66 livros que formam uma única peça. A Palavra veio a existir para revelar o plano de Deus para a humanidade e sua criação. Ela revela os propósitos de Deus para mundo e a isso chamamos de missio Dei. É fundamental entender o que significa a missão de Deus, porque é ela | Teologia Bíblica da Missão | FTSA56 que determina a missão do povo de Deus no Antigo Testamento, e a de Jesus e da igreja no Novo. Consequentemente, isso determina a nossa missão hoje. Isso porque nem tudo o que é feito em nome da missão é de fato a missão de Deus. Assim, como podemos definir a missão de Deus? É necessário começar pelo princípio de tudo: a narrativa da criação no livro de Gênesis. Ali encontramos o projeto original, o ambiente harmônico em que tudo o que Deus fez era bom. Esse ambiente era marcado por quatro dimensões de relacionamentos que devem ser percebidas como alvo da missão - salvação: (1) o relacionamento de Deus com o ser humano; (2) do ser humano com o próximo; (3) do ser humano consigo mesmo e (4) do ser humano com a criação. Desde já é fundamental perceber que a missão de Deus tem a ver com relacionamento. Para a maioria das igrejas, líderes eclesiais e pessoas, quando se pensa em missão pensa-se em atividades, projetos, programas e eventos. É claro que não há nada de errado em utilizar essas ferramentas. Porém, são ferramentas que devem visar os relacionamentos. Vejamos cada uma das dimensões da missão em seus relacionamentos. As quatro dimensões da missão de Deus fi cam assim representadas: 57Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 2.1. Dimensão pessoal: relacionamento de Deus com o ser humano Estou chamando a primeira dimensão de pessoal. Alguns chamam de dimensão espiritual. No entanto, nós ocidentais, somos profundamente infl uenciados por uma visão dualista da vida e da teologia, que contribuem para: • pensarmos que a salvação só trata da alma e não do corpo • valorizarmos menos as coisas materiais que as consideradas espirituais. Por exemplo, podemos pensar que o nosso trabalho é para ganhar dinheiro e sustentar a família e não para glória de Deus e sua missão, por isso nos referimos a ele como trabalho secular, por não entendermos que ele possa ser considerado uma vocação espiritual; • vermos a vida na terra como algo irreal ou de pouca importância, porque nossa pátria é o céu; • pensarmos que a beleza nesta vida - natureza, pessoas, arte, música etc. – são de menor valores que a beleza espiritual. Assim, se chamarmos essa dimensão de espiritual corremos o risco de dar a chance da interpretação de que as demais dimensões não-são- espirituais. E essa tem sido a interpretação da maioria das pessoas, que ao pensarem e agirem assim, são mais docéticas e gnósticas do que cristãs. Voltando ao nosso tema, a narrativa da criação - ou narrativas - que encontramos no livro de Gênesis procura criar o pano de fundo introdutório de todo o drama humano que se desenvolverá ao longo da revelação bíblica. O primeiro relato aponta para a transformação do caos – “a terra, porém, estava sem forma e vazia; havia trevas sobre a face do abismo” (Gn 1:2) - em um ambiente harmônico no qual Deus, o criador, cria cada coisa e as coloca em seu devido lugar de for ordenada. | Teologia Bíblica da Missão | FTSA58 A expressão “e viu Deus que isso era bom” se repete várias vezes. E ao criar os seres humanos o texto diz que o que Deus havia criado “era muito bom” (Gn 1:31). Embora essa primeira narrativa não descreva uma relação específi ca entre Deus e os seres humanos, podemos inferir que tudo funcionava de maneira perfeita. O relato seguinte, que inicia no capítulo 2, descreve a criação de uma maneira mais humanizada, se podemos dizer assim. Ao invés do caos e da intervenção impessoal de Deus, lemos que tudo ocorre em torno da ideia de um jardim ou um lar campestre, onde havia um espaço próprio para a plantação, porém, não havia plantas nem quem as plantasse (Gn 2:5). A partir daí, o que se constrói é a ideia de um Deus próximo que põe a mão na massa (barro) para formar o ser humano e lhe sopra no nariz o fôlego de vida. Esse contraste entre o primeiro e o segundo relato, que trabalha a proximidade de Deus do ser humano, fi ca mais evidente nos detalhes que seguem: • Deus planta um jardim com todo o alimento necessário ao ser humano (Gn 2:9); • Deus “percebe” a carência de companhia do ser humano e a provê (Gn 2:18, 21); • Deus “andava” pelo jardim e “conversava” com o ser humano, expressão de comunhão e intimidade (Gn 3:8-9). Essa relação entre Deus e o ser humano, assim descrita, harmoniosa, é quebrada com a queda do ser humano. Sem entrarmos na profundidade da discussão teológica desse tema, que não é o nosso objetivo aqui, o relato fala de uma desobediência direta a uma ordem divina: “não comer do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal” (Gn 2:17). Esse ato pode ser interpretado como um desejo humano por autonomia e completa independência de qualquer coisa que o restrinja. Gerado em seu orgulho ou soberba egocêntrica, o desejo se traduz como a inclinação para ser como Deus, ou ser o seu próprio deus, não tendo ninguém acima de si59Teologia Bíblica da Missão | FTSA | que o governe. Como lemos na narrativa, a tentação propunha que os seres humanos seriam “como Deus”, isto é, conhecedores do bem e do mal - conhecimento total (Gn 3:5). Ao desejarem ser Deus, os seres humanos quebram essa harmoniosa relação entre criador-criatura. O texto descreve esse novo estado como sendo um misto de vergonha e medo, levando-os a se esconderem daquele que carinhosamente os havia criado e providenciado tudo para a sua sobrevivência em plenitude (Gn 3:10). 2.2. Dimensão social: relacionamento do ser humano com seu próximo A segunda dimensão trata do relacionamento harmônico do ser humano com seu próximo. Esse relacionamento entre os seres humanos é elaborado na narrativa em torno do casal Adão e Eva. Como já mencionado rapidamente no tópico anterior, lemos no relato da criação a seguinte afi rmação do criador: “Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma auxiliadora que lhe seja idônea” (Gn 2:18). Embora o relato que segue seja construído em torno de Adão e Eva e da relação homem e mulher, essa afi rmação vai além desse âmbito, considerando a máxima de que não é bom - contrastando inclusive com as expressões “e viu Deus que isso era bom” - que o homem esteja só. Sabemos que o ser humano é um ser social/relacional em sua natureza. Não apenas isso, desde o seu nascimento somos dependentes do cuidado materno e de um ambiente familiar que fornece as condições para o nosso crescimento e desenvolvimento. É pelo auxílio, cooperação, companheirismo e solidariedade que as sociedades se estabelecem. Difi cilmente alguém consegue sobreviver sozinho e isolado, mesmo em ambientes desertos e inóspitos. Por isso, as Escrituras também afi rmam: Melhor é serem dois do que um, porque têm melhor paga do seu trabalho. Porque se caírem, um levanta o companheiro; ai, porém, do que estiver só; pois, caindo, não haverá quem o levante. Também, se dois dormirem juntos, eles | Teologia Bíblica da Missão | FTSA60 se aquentarão; mas um só como se aquentará? Se alguém quiser prevalecer contra um, os dois lhe resistirão; o cordão de três dobras não se rebenta com facilidade (Ec 4:9-12). Interessante notar a sutileza com que o texto apresenta a harmonia da relação ao dizer “Ora, um e outro, o homem e sua mulher, estavam nus e não se envergonhavam” (Gn 2:25). A expressão demonstra uma relação expressa pela liberdade e franqueza sem espaço para a vergonha, que é exatamente a sensação de desconforto e inconformidade na convivência. O contraste dessa expressão não é necessariamente a percepção da nudez que ocorre na queda (Gn 3:10), mas a acusação e tentativa de transferência de responsabilidade, que quebra a noção de companheirismo e cumplicidade: “A mulher que me deste por esposa, ela me deu da árvore, e eu comi” (Gn 3:12). O efeito da queda, do pecado, afeta não apenas a relação do ser humano com Deus, mas, simultaneamente, a relação do ser humano com o seu próximo. Aquela relação harmônica de companheirismo e interdependência é rompida. O ápice dessa história é apresentado logo no capítulo seguinte do livro de Gênesis quando o autor introduz a história do primeiro assassinato (Gn 4:8). Esse ato representa o maior atentado contra a criação por ser um ato contra aquilo que temos de mais valioso: a vida humana e vista esta projetada na imago Dei (imagem de Deus). 2.3. Dimensão intrapsíquica: relacionamento harmônico do ser humano consigo mesmo Essa é uma dimensão pouco trabalhada e mencionada na igreja. Ninguém que não esteja em paz e harmonia consigo mesmo pode estar bem com Deus, seu próximo e o meio ambiente. A dimensão intrapsíquica ainda encontra resistência em alguns ambientes evangélicos. Para alguns, isso soa como misticismo, esoterismo ou até espiritismo. No entanto, não podemos esquecer ou negligenciar aquilo que a narrativa da criação informa sobre o ser humano: “Então formou o Senhor Deus 61Teologia Bíblica da Missão | FTSA | ao homem do pó da terra, e lhe soprou nas narinas o folego de vida, e o homem passou a ser alma vivente” (Gn 2:7). O Dicionário Bíblico Strong traduz a expressão alma - no original hebraico, ���� (nephesh) - da seguinte forma: ser, vida, criatura, pessoa, apetite, mente, ser vivo, desejo, emoção, paixão. Por isso, o ser humano é aquele que respira, a substância ou ser que respira, o ser interior do homem, ser vivo, ser pessoa ou indivíduo, que tem apetites, emoções, paixões e atividade da mente, quer sejam atividades duvidosas, de vontade, ambíguas, relacionadas ao seu caráter. Talvez esse fundamental detalhe já possa ter passado despercebido da leitura da narrativa, que esse ser humano formado é uma alma vivente. A palavra alma aparece 382 vezes na Bíblia (versão Revista e Atualizada). Destas, 119 aparecem nos Salmos. Isso por si só é indicativo, por ser o livro dos Salmos um compêndio de alegrias e lamentos, alívios e dores, razão e emoção. Sendo um dos livros poéticos, nada melhor do que a alma para representar a fala das experiências humanas. A alma, por exemplo, expressa sua: • luta com tristezas - “até quando estarei eu relutando dentro de minha alma, com tristeza no coração cada dia?” (Sl 13:2); • angústia - “conheceste as angústias de minha alma” (Sl 31:7); • esperança por livramento - “Empunha a lança e reprime o passo aos meus perseguidores; dize à minha alma: Eu sou a tua salvação” (Sl 35:3); • consciência do pecado - “SENHOR; sara a minha alma, porque pequei contra ti” (Sl 41:4); • ânsia pelo relacionamento com Deus – “Como suspira a corça pelas correntes das águas, assim, por ti, ó Deus, suspira a minha alma” (Sl 42:1); • compreensão dos ensinos divinos - “A minha alma tem observado os teus testemunhos; eu os amo ardentemente” (Sl 119:167); | Teologia Bíblica da Missão | FTSA62 • alegria - “Aleluia! Louva, ó minha alma, ao SENHOR” (Sl 146:1). No Novo Testamento a palavra nephesh é traduzida por psyché, daí a expressão psíquica, que representa essa esfera interior do ser humano. Quando olhamos para o relato da criação, não vemos desajustes dessa ordem até o momento da queda, quando lemos que a confusão e medo tomam conta da vida humana: “tive medo e me escondi” (Gn 3:10). Esse drama é aumentado quando o autor fala sobre como se dá a dinâmica do pecado: “Então lhe disse o Senhor: Por que andas irado? E por que lhe descaiu o semblante? Se procederes bem, não é certo que serás aceito? Se, todavia, procederes mal, eis que o pecado jaz à porta; o seu desejo será contra ti, mas a ti cumpre dominá-lo” (Gn 4:6-7). O quadro é de um ser humano que está irado, com o semblante caído, cujo desejo que surge em seu interior é contra ele mesmo, e que passará o resto de sua vida nessa luta interna de tentar dominar os seus desejos para que não se tornem em pecado. 2.4. Dimensão ecológica: relacionamento do ser humano com a criação O primeiro relato da criação, que se encontra no primeiro capítulo de Gênesis, apresenta detalhes a formação da natureza - do cosmos - que servirá como ambiente para o desenvolvimento do ser humano. Ali, lemos sobre a água, os astros, a terra, as plantas, e as várias espécies de animais. Comparativamente, o texto que descreve a criação da natureza é bem maior que o que descreve o ser humano o que deveria nos levar a considerar a sua importância teológica. No segundo relato, a natureza ou ambiente para o desenvolvimento da vida humana é descrito como um jardim, também em detalhes, novamente com a descrição da geografi a, plantas e animais. Estamos falando aqui do habitat humano, sua casa, cuja palavra em grego é oikos, que dá origem às palavras eco e ecologia. Nos dois relatos encontramos ordenanças divinas para os seres humanos sobre como deveriam se relacionar com a natureza. A primeira ordenança é: “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a; 63Teologia Bíblica da Missão | FTSA | dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, e sobre sodo o animal que rastejapela terra” (Gn 1:28). Partindo da ideia de que a criação vive um estado de harmonia, a multiplicação do gênero humano com a força para a sujeição e domínio da terra, não pressupõe uma ação que coloque em risco a sua própria sobrevivência. Vemos aí o conceito de sustentabilidade. A sujeição e domínio imagina-se sendo racional e inteligente e não de forma destrutiva, predatória ou maldosa. Ela, no fundo, tem que contribuir para que a avaliação divina de que tudo é muito bom prevaleça sobre qualquer circunstância ou decisão humana. A segunda ordenança é assim registrada: “Tomou, pois, o Senhor Deus ao homem e o colocou no jardim do Éden o cultivar e o guardar (Gn 2:15). As expressões cultivar e guardar indicam uma ação mais cuidadosa do que o sujeitar e dominar do relato anterior. O foco aqui é agrícola e pastoril, e tem a ver com a imagem do jardim. Obviamente não se imagina uma ação que seja contra a própria subsistência e desenvolvimento. Aqui temos a relação com o conceito de mordomia. O ser humano iria cuidar do jardim cujo dono é o Criador, ainda que em seu próprio benefício. Essa é a sua missão! Mais uma vez esse projeto original é afetado pela queda e podemos ver a sua consequência nos resultados do pecado: “maldita é a terra por tua causa: em fadigas obterás dela o sustento durante os dias de tua vida. Ela produzirá também cardos e abrolhos, e tu comerás a erva do campo. No suor do rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra” (Gn 3:17-19). Sem nos aprofundarmos muito no texto, vemos claramente que a relação entre o ser humano e a natureza é diretamente afetada pela queda, fugindo da intenção original do Criador. Aquela harmonia quebrada torna- se agora um alvo de restauração. 3. Missão centrípeta e centrífuga Observando a Bíblia como um todo, considerando a revelação que temos no Antigo Testamento, centrado na experiência do povo de Israel com Deus, e a que temos no Novo Testamento, centrado na pessoa de Jesus | Teologia Bíblica da Missão | FTSA64 Cristo e sua igreja, podemos caracterizar a maneira como se encara a missão de forma distinta. Não é incomum se ouvir dizer que não há missão no Antigo Testamento e que ela se inicia apenas no Novo Testamento, especialmente com a chamada Grande Comissão (expressão que não está na Bíblia). A essa altura de nosso estudo já temos bons argumentos para contrapor essa percepção. Alguns teólogos e missiólogos, a partir do século XX, disseminaram uma maneira particular de caracterizar a missão, conforme revelada nos dois Testamentos, usando uma nomenclatura originada da Física: centrípeta e centrífuga. Na Física, entende-se por força centrípeta aquela que empurra um corpo, em movimento circular, em direção ao centro deste círculo imaginário. Já a força centrífuga é aquela que age sobre um corpo fazendo-o movimentar-se para fora da trajetória circular, como que se afastando do centro na direção tangencial. De forma ilustrativa temos o seguinte: 65Teologia Bíblica da Missão | FTSA | Na fi gura, as setas verdes indicam a força centrípeta, que aponta para o centro, e atua sobre o corpo azul durante seu movimento circular. As setas vermelhas representam a força centrífuga, que aponta para fora do centro, tangenciando a trajetória do movimento circular realizada pelo corpo azul. Aplicando esse conceito ao tipo de missão referente aos dois Testamentos, os teólogos caracterizaram a missão do Antigo Testamento como centrípeta e a do Novo como centrífuga. Agora, vamos entender o que isso signifi ca. 3.1. Missão centrípeta no Antigo Testamento (de fora para dentro/centro) A maneira como a missão de Deus se manifestou no Antigo Testamento denominamos como missão centrípeta. A razão para essa caracterização é porque entende-se que Israel funcionava como uma força de atração para as outras nações para que elas viessem a conhecer ao Deus-Javé. Elaborando um pouco mais essa ideia, a compreensão é de que a nação de Israel deveria ser um modelo para as outras nações do mundo de então que, vendo como aquela sociedade fi el a Deus se estruturava em torno da Lei, questionariam os motivos de serem bem-sucedidos. A resposta imediata seria a aliança de fi delidade com Javé. Embora tenhamos relatos de personagens bíblicos como José, Jonas, Daniel e Ester que testemunharam em países estrangeiros, na compreensão de Christopher Wright, “Israel não recebeu o mandato divino de enviar missionários às nações” (Wright, 2014, p. 22). Note como esse conceito aparece em Isaías 66:19 – 21: Porei entre elas um sinal e alguns dos que foram salvos enviarei às nações, a Társis, Pul e Lude, que atiram com o arco, a Tubal e Javã, até às terras do mar mais remotas, que jamais ouviram falar de mim, nem viram a minha glória; eles anunciarão entre as nações a minha glória. Trarão todos os vossos irmãos, dentre todas as nações, por oferta ao SENHOR, | Teologia Bíblica da Missão | FTSA66 sobre cavalos, em liteiras e sobre mulas e dromedários, ao meu santo monte, a Jerusalém, diz o SENHOR, como quando os fi lhos de Israel trazem as suas ofertas de manjares, em vasos puros à Casa do SENHOR. Também deles tomarei a alguns para sacerdotes e para levitas, diz o SENHOR. No texto, alguns “dos que foram salvos”, ou seja, “sobreviventes”, foram enviados às nações, em uma missão do tipo centrífuga, para que “anunciassem entre as nações a minha glória”. No entanto, esse esforço tinha com objetivo trazer “os vossos irmãos, dentre todas as nações, por oferta ao Senhor”, o que caracteriza uma fi nalidade centrípeta, sendo o centro a nação de Israel ou, mais especifi camente, o monte Sião, onde estava edifi cada a cidade de Jerusalém, onde se encontrava o Templo. Johannes Blauw (1966, p. 39) indica que foi Bengt Sundkler quem chamou a atenção para essa convicção de que Jerusalém era o centro do mundo e, de certa forma, justifi cando a limitação do ministério de Jesus às ovelhas perdidas de Israel (Mt 10:5b-6), evitando uma missão aos gentios (apud Blauw 1966, p. 146-147). Sundkler (1965: p. 14-15) comentou: “O universalismo centrífugo é atualizado por um mensageiro que atravessa fronteiras e passa suas notícias àqueles que estão longe; centrípeta por uma força magnética, atraindo povos distantes para o lugar da pessoa que está no centro”. Blauw (1966, p. 40) aplica o sentido centrípeta da missão de Israel, em que as nações iriam para Sião (Is 2:2-4), como uma “expectação escatológica que será cumprida apenas no fi m dos tempos”. Ele entendia que “nunca, em todo o período do Antigo Testamento, houve qualquer atividade missionária deliberada” e que “não há pensamento sobre missão no Antigo Testamento no sentido centrífugo em que este surge no Novo Testamento” (1966, p. 34). Walter C. Kaiser (2000, p. 9), em contraste, vê o papel centrípeta como “testemunho passivo” e o papel centrífugo como “testemunho ativo”. Porém, o signifi cado de uma teologia de missão centrípeta vai mais fundo do que um testemunho passivo. Os missionários que vão para as nações de modo centrífugo precisam de uma força centrípeta para atrair as nações assim que lá chegam. 67Teologia Bíblica da Missão | FTSA | Christopher Wright (2014, p. 528) faz dois pontos dignos de nota na questão centrípeta e centrífuga. Ele entende “que Israel defi nitivamente contava um senso de missão, não no sentido de ir a algum lugar, mas de ser alguma coisa”, “eles seriam uma luz e uma testemunha às nações”. A conclusão de Wright (2014, p. 549- 550) é que “a missão centrífuga da igreja neotestamentária também contava, por um lado, com uma teologia centrípeta: as nações, na verdade, estavam sendo reunidas, não para serem trazidas a Jerusalém, ao templo físico ou a Israel como nação, mas a Cristo, como o centro, e ao novo templo de Deus”. Resumindo, todo esse movimento centrípeta encontrado no Antigo Testamento está relacionado ao plano de Deus de revelar seu caráter às nações colocando Israel na encruzilhada do mundo antigo e dando todasas condições para ser uma nação modelo para as outras nações do mundo. Com isso Israel atrairia as nações para Deus, muitas das quais seriam incorporadas à aliança divina. Assim declara o profeta: Pouco é o seres meu servo, para restaurares as tribos de Jacó e tornares a trazer os remanescentes de Israel; também te dei como luz para os gentios, para seres a minha salvação até à extremidade da terra. Assim diz o SENHOR, o Redentor e Santo de Israel, ao que é desprezado, ao aborrecido das nações, ao servo dos tiranos: Os reis o verão, e os príncipes se levantarão; e eles te adorarão por amor do SENHOR, que é fi el, e do Santo de Israel, que te escolheu (Is 49:6-7). A ideia aqui é o verbo vinde, venham e vejam: Nos últimos dias, acontecerá que o monte da Casa do SENHOR será estabelecido no cimo dos montes e se elevará sobre os outeiros, e para ele afl uirão todos os povos. Irão muitas nações e dirão: Vinde, e subamos ao monte do SENHOR e à casa do Deus de Jacó, para que nos ensine os seus caminhos, e andemos pelas suas veredas; porque de Sião sairá a lei, e a palavra do SENHOR, de Jerusalém (Is 2:2-3). | Teologia Bíblica da Missão | FTSA68 3.2. Missão centrifuga no Novo Testamento (de dentro/ centro para fora) No Novo Testamento o verbo muda a direção. O vinde dá lugar ao ide, vão e façam discípulos, como encontramos na chamada Grande Comissão (Mt 28:18-20). A palavra no grego εκκλησια traduzida como igreja já revela o caráter centrífugo do Novo Testamento. Ekklesia é defi nida como uma assembleia ou congregação convocada. Por exemplo, Atos 11:26 diz que “por todo um ano, se reuniram [Paulo e Barnabé] naquela igreja (ekklesia) e ensinaram numerosa multidão. Em Antioquia, foram os discípulos, pela primeira vez, chamados cristãos”. Em 1 Coríntios 15:9 Paulo diz que se considerava “o menor dos apóstolos” e até mesmo de não ser “digno de ser chamado apóstolo” porque ele tinha consciência de haver perseguido a “igreja (ekklesia) de Deus”. Igreja, portanto, é formada de ek e klesia, ou seja, a assembleia comissionada de dentro para fora. É a congregação daqueles a quem Deus chamou “a fi m de proclamardes as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz” (1 Pe 2:9). A palavra no Novo Testamento também foi usada para se referir a qualquer assembleia de pessoas. Em seu discurso ao Sinédrio, Estevão chama o povo de Israel de “a congregação (ekklesia) no deserto” (At 7:38). E em Atos 19:39 refere-se a uma “assembleia (ekklesia) regular”, uma convocação de cidadãos para discutir os assuntos legais. No entanto, na maioria dos contextos, a palavra ekklesia é usada para se referir às pessoas que compõem uma comunidade de cristãos. Essa defi nição e uso da palavra ekklesia nos revela a importância de entender a missão centrífuga da igreja como sendo aqueles que são chamados por Deus de dentro para fora. É a igreja que faz diferença no mundo, sem se impregnar dos valores do mundo. Assim como no Antigo Testamento, Israel é chamado para ser um “contraste”, conceito muito usado por Michael W. Goheen (2014, p. 161): Uma importante dimensão da eclesiologia missional de Lucas é revelada aqui: a igreja tem início como Israel restaurado, 69Teologia Bíblica da Missão | FTSA | uma comunidade transformada, com uma missão para seu próprio povo [...] Israel precisa ser restaurado ao seu papel de ser uma atraente comunidade de contraste. Esse é o chamado missional de Israel que defi ne a igreja desde o seu começo (ênfase minha). Sem contraste a igreja é um desastre. O ser precede ao dizer e fazer. Em meu livro Discipulado missional (Barro, 2013, p. 73-74), enfatizo o que Jesus, Paulo, João e Pedro afi rmaram que somos. Note a ênfase no vós sois: Jesus disse: • vós sois o sal da terra (Mt 5:13) • vós sois a luz do mundo (Mt 5:14) • vós sois testemunhas destas coisas (Lc 24:48) • vós são meus discípulos, se vocês se amarem uns aos outros (Jo 13:35) • vós sois os ramos (varas) (Jo 15:5) • vós sois meus amigos, se fi zerdes o que eu vos mando (Jo 15:14) • vós sois os fi lhos dos profetas e do pacto que Deus fez com vossos pais (At 3:25) Paulo disse: • vós sois dele, em Cristo Jesus, o qual para nós foi feito por Deus sabedoria, e justiça, e santifi cação, e redenção (1 Co 1:30) • vós sois lavoura de Deus e edifício de Deus (1 Co 3:9) • vós sois de Cristo, e Cristo, de Deus. • vós sois corpo de Cristo, e individualmente seus membros (1 Co 12:27) • vós sois fi lhos de Deus mediante a fé́ em Cristo Jesus (Gl 3:26) • vós sois um em Cristo Jesus (Gl 3:28) • vós sois guiados pelo Espírito (Gl 5:18) • vós sois luz no Senhor • vós sois fi lhos da luz e fi lhos do dia (1 Ts 5:5) | Teologia Bíblica da Missão | FTSA70 João disse: Filhinhos, vós sois de Deus (1 Jo 4:4) E Pedro disse: vós sois geração eleita, sacerdócio real, nação santa, povo exclusivo de Deus, para anunciar as grandezas daquele que os chamou das trevas para a sua maravilhosa luz (1 Pe 2:9). Assim é a ekklesia de Deus, um contraste que são luz em meio as trevas. De forma ilustrativa temos a seguinte fi gura que resume a ideia de missão centrípeta e centrífuga: Referências BARRO, Jorge H. Discipulado missional: andar como Ele andou. Londrina: Descoberta, 2013. BLAUW, Johannes. A natureza missionária da igreja. São Paulo: ASTE, 1966. BOSCH, David J. Missão transformadora. São Leopoldo: EST & Editora Sinodal, 2002. 71Teologia Bíblica da Missão | FTSA | COSTAS, Orlando E. Theology of the crossroads in contemporary Latin America: missiology in mainline Protestantism - 1969 - 1974. Amsterdam: Rodopi, 1976. SNYDER, Howard A. La salvación de toda la creación. Buenos Aires: Ediciones Kairos, 2016. SUNDKLER, Bengt. Jesus et les paiens. Revue d’histoire et de philosophie religieuses 16, 1936, pp. 462 – 499. VERKUYL, Johannes. Contemporary missiology: an introduction. Grand Rapids: William B. Eerdmans Publishing Company, 1978. WRIGHT, Christopher J. H. A missão de Deus: desvendando a grande narrativa da Bíblia. São Paulo: Vida nova, 2014. | Teologia Bíblica da Missão | FTSA72 UNIDADE III - Bíblia, teologia e missão - Parte 2 Introdução Nesta Unidade III, ainda pensando na fundamentação bíblico-teológica da missão, vamos trabalhar alguns textos e temas do Antigo e Novo Testamentos. Como vimos na unidade anterior, a Bíblia é a base da missão. Ela é essencialmente missiológica em sua intencionalidade reveladora, por isso, depois de termos feito uma abordagem mais ampla e genérica, mergulharemos mais a fundo em alguns textos que nos ajudam a compreender a centralidade da missão na bíblia. Mais que isso, minha proposta é que aprendamos a ler os textos bíblicos com os olhos da missão e que esse exercício interpretativo nos ajude a reafi rmar o nosso compromisso com a missão de Deus. Para aqueles que quiserem se aprofundar no tema da Teologia Bíblica da Missão, sugiro dois livros que me acompanham porque estes procuram percorrer as Escrituras mostrando os principais aspectos relativos ao foco missional do povo de Israel e da igreja: • Missão integral: uma teologia bíblica, de Timóteo Carriker; • A missão de Deus: desvendando a grande narrativa da bíblia, de Christopher Wright, tendo sido utilizado na unidade anterior A fi cha bibliográfi ca completa dos dois livros você encontra ao fi nal dessa unidade. 1. A missão no Antigo Testamento Antes de investigarmos alguns períodos que compõem a história de Israel, quero iniciar, mais uma vez, com um texto da narrativa da criação para falar da missão de Deus. É importante relembrar que a missão está diretamente relacionada à teologia da salvação, ou seja, falar de missão só faz sentido após a queda, tendo como referência o estado ideal e harmônico descrito na criação e as quatro dimensões de relacionamentos. 73Teologia Bíblica da Missão | FTSA | Assim, um texto muito bonito que indica a intenção e interesse de Deus pelo resgate do ser humano caído - a missio Dei - ocorre logo no inícioda bíblia e imediatamente após a queda: “E chamou o Senhor Deus ao homem, e lhe perguntou: Onde estás?” (Gn 3:9). O que esse texto nos mostra é postura carinhosa de Deus diante de um quadro de caos. A narrativa é construída debaixo da tensão da tentação, queda e suas imediatas consequências. A desobediência à ordem divina, que tinha como punição automática a morte, é seguida por um estado de medo, vergonha, confusão mental e fugas por parte do ser humano. Vamos tentar fazer um exercício de abstração, imaginando o que poderia ter acontecido logo após a desobediência. Talvez, Deus poderia ter simplesmente aparecido diante deles e cumprido aquilo que havia alertado, ou seja, poderia ter acabado com a vida de Adão e Eva, ali, sem diálogo ou qualquer outra explicação. Deus apareceria como um juiz aplicando a justa condenação diante da desobediência, afi nal, eles sabiam e foram alertados das consequências se desobedecessem. A questão, no entanto, é que acabar com a vida humana não é um plano divino original. O seu plano é que a criação não-humana e humana fossem um projeto de relações harmônicas. A queda é um desvio de percurso. Assim, acabar com a criação e a vida humana seria um contrassenso. No entanto, o que fazer? O que a narrativa nos mostra é um Deus que se aproxima do ser humano com uma pergunta. Esse ato de aproximação é um ato missional. Poderíamos dizer que Deus envia-se a si mesmo para dialogar com o ser humano e, mais a frente, resgatá-lo. Essa aproximação é descrita como, ao mesmo tempo, simples e estratégica. Perceba que o texto anterior diz que Deus “andava no jardim pela viração do dia” (Gn 3:8). Não lemos que Deus tenha agido de modo que saísse da rotina, do comum, do ordinário, do esperado. O ser humano sim, havia quebrado a normalidade. Mas Deus, de maneira sutil, sem apelar para a ira ou para uma manifestação extraordinária, que talvez provocasse uma reação que piorasse ainda mais o quadro caótico e de temor em que se encontrava o ser humano, e andando entre eles, como de costume, pergunta: Cadê vocês? | Teologia Bíblica da Missão | FTSA74 Essa pergunta simples e até natural - mesmo considerando que Deus já soubesse onde eles estavam, por ser Deus - dá a oportunidade ao ser humano de reagir, refl etir, mesmo que de forma confusa, se explicar e assumir responsabilidade. Esse modelo de aproximação me parece ser algo que se estabeleceu como padrão divino. Mesmo que dominado por uma perspectiva centrípeta, podemos notar que no Antigo Testamento Deus usa os seus mensageiros, seus representantes - agentes missionais - como forma de se aproximar dos seres humanos que compõem os povos e as nações. 1.1. A missão nos patriarcas Certamente, a maior referência patriarcal é Abraão. É com ele que nasce a aliança de Deus com um povo que iria se formar por meio da sua descendência. Como indica Christopher Wright, “a aliança de Deus com Abraão é provavelmente a tradição bíblica mais importante para uma teologia da missão e uma hermenêutica missional da Bíblia” (2014, p. 195). Na história de Abraão podemos ver alguns elementos claros de envio missional: E disse o SENHOR a Abrão: Sai da tua terra, da tua parentela e da casa de teu pai, e vai para a terra que te mostrarei; de ti farei uma grande nação, e te abençoarei, e te engrandecerei o nome. Sê tu uma bênção: abençoarei os que abençoarem, e amaldiçoarei os que te amaldiçoarem; em ti serão benditas todas as famílias da terra (Gn 12:1-3). O chamado de Abraão envolve deixar para trás a segurança e conforto de um estado e situação conhecidos ou controlados, para algo totalmente novo e desconhecido. O objetivo desse movimento, ou envio divino, é muito grande e nobre: “abençoar todas as famílias da terra”. Para Michael Goheen (2014, p. 50). “Bênção” é um termo bíblico com ricas ressonâncias, signifi cando a revogação da maldição do pecado e a 75Teologia Bíblica da Missão | FTSA | restauração da plenitude da criação [...] Desse modo, o autor de Gênesis pretende deixar claro que Deus quer reverter em Abraão os efeitos do pecado: “A nova palavra de grande poder [‘abençoar’], que em Gênesis 12.1-3 forma a essência da aliança abrâmica, deve anular a maldição dos capítulos 1 a 11 de Gênesis”. A bênção restaura todo o bem que Deus havia generosamente concedido à criação no início (e.g. Gn 1.22,28) e assim prenuncia sua obra de redenção subsequente para o desenvolvimento dos seres humanos no relacionamento com Deus, uns com os outros e com a criação não humana. Essa é a missão que está diante de Abraão e de sua descendência que, aliás, inclui a todos nós, igreja de Cristo (Rm 9:8). Como visto na unidade anterior, a missão de Deus é ampla e envolve todos as dimensões da vida humana e não-humana. Ela não se limita à salvação da alma com vistas a um céu futuro, mas busca regatar o estado de plenitude de vida perdido na queda. Um detalhe interessante é levantado por alguns missiólogos sobre o chamado de Abraão ou sobre a maneira como entendemos a missão é a partir da sua aliança com Deus. Esse detalhe tem a ver com o conceito de eleição. A história de Abraão mostra que ele era um homem comum e que a sua escolha por Deus não foi porque ele tinha alguma característica especial que justifi casse ter sido eleito. A bíblia indica que ele era um homem de fé exemplar (Hb 11:88ss), mas o relato da sua escolha não fala que essa teria sido essa a razão para que ela ocorresse. Por isso, não há na missão lugar para um sentimento de orgulho, de sectarismo e de exclusivismo. O que se aprende, ao contrário, é que o chamado de Abraão é para realizar um serviço. Ele tem um objetivo a ser alcançado e para isso foi chamado. Então, a eleição de Abraão não teve como alvo exclusivo a bênção dele próprio. Este, além de receptor, teria o papel de “mediador” no plano salvífi co de Deus (Von Rad 1972:160) | Teologia Bíblica da Missão | FTSA76 para todas as famílias da terra. Israel, herdeiro desta promessa para Abraão por descendência (Gênesis 13.14- 16; 15.5,7,18; 17.4-8; 18.18; 22.17-18; 26.2-4,24; 28.3-4, 13- 15; 22.12; 35.9-12; 48:16), também seria um canal, não um “depósito” das bênçãos de Deus no seu desígnio último para as nações (Peters 1972:94). Quando Deus escolheu Abraão, não abandonou as nações, mas o fez a favor delas. Johannes Verkuyl recoda a colocação de A. de Grost, “Israel é apalavra de abertura na proclamação da salvação de Deus, não o Amém” [tradução] (1978:91). Por causa deste papel mais amplo, o termo “particularismo” que é muito usado entre alguns estudiosos, não é muito apropriado para defi nir o propósito e lugar e Israel. Por certo, a salvação e o serviço de Deus foram dirigidos para um povo escolhido, mas também este povo teria um propósito maior como instrumento no alcance das nações. CARRIKER, Timóteo. Missão integral: uma teologia bíblica. São Paulo: Sepal, 1992. p. 48. Isso serve de alerta para igreja hoje. Como responsáveis pela missão de Deus não podemos agir como especiais, melhores, únicos abençoados, detentores da bênção divina, como se fossemos merecedores dela. A missão que temos é a de sermos mediadores da bênção de Deus para todas as famílias, e nesse caso, aqueles que não possuem um relacionamento reconciliado com Deus e toda a Sua criação. Somos chamados para um serviço inacabado, o mesmo chamado que teve Abraão. 1.2. A missão na tradição mosaica Se a principal referência dos patriarcas é Abraão, o maior personagem do Antigo Testamento é Moisés. É em torno dele que se constrói a maior parte da tradição religiosa de Israel. Não necessariamente em torno de sua pessoa e história, mais daquilo que representou para a tradição 77Teologia Bíblica da Missão | FTSA | da Lei ou da Torá. Um exemplo claro disso é a acusação que os judeus apresentaram contra o apóstolo Paulo: “Ouvindo-o, deram eles glória a Deus e lhe disseram: Bem vês, irmão, quantas dezenas de milhares há entre os judeus que creram, e todos são zelosos dalei; e foram informados a teu respeito que ensinas todos os judeus entre os gentios a apostatarem de Moisés, dizendo-lhes que não devem circuncidar os fi lhos, nem andar segundo os costumes da lei” (At 21:20-21). Repare na expressão “apostatarem de Moisés” que signifi ca que a fi gura de Moisés, ou o seu nome, absorveu tudo aquilo que se referia às leis presentes nos textos do Antigo Testamento como também os costumes que foram construídos em torno delas pelos diversos grupos religiosos -fariseus, escribas, saduceus, etc. Olhando pela perspectiva missiológica, Moisés também se confi gura em um importante elemento na construção da missão do Antigo Testamento. Veja como Timóteo Carriker (1992, p. 60-61) analisa a importância de Moisés: Moisés se destaca como uma fi gura tão signifi cante para a ideia de missão no Velho Testamento, que H. H. Rowley o declara o primeiro missionário que conhecemos. De fato, a ideia de ser enviado por Deus para uma tarefa de resgate, tão essencial ao conceito neotestamentário de missão, só se evidencia mais explicitamente no chamado de Moisés. Iahweh “envia” (’ehyeh shelâhani, Êxodo 3.12,13,14) Moisés. Todavia, a ideia de que Deus chama um homem para se seu representante, que assume um papel de administração (Adão), de julgamento e renovação (Noé), ou de maldição e bênção (Abraão), já precede o chamamento de Moisés. Cada uma dessas fi guras pressupõe, explicita e avança a missão daquele que o antecedeu. Por isso, nós não consideramos Moisés como o primeiro missionário e, sim, como uma explicação signifi cante dos “missionários” protótipos que o precederam. Moisés é chamado e enviado por Deus para uma tarefa missionária | Teologia Bíblica da Missão | FTSA78 específi ca. Na análise de Wright (2014, p. 278-282), a redenção promovida por Javé é bastante abrangente, ela inclui as dimensões política, econômica, social e espiritual da opressão imposta pelo faraó do Egito - denominada escravidão. Essa faceta da missão de Deus é, às vezes, ignorada. A narrativa não trata da salvação de pecados, mas de uma situação de opressão de um sistema político, que também inclui o elemento religioso. De acordo com o texto, o povo descendente de Jacó e, obviamente, de Abraão, não conhecia a Deus, agora identifi cado como Javé (Êx 3:13; 6:2-3). A relação com Javé desse misto de gente que habitava no Egito (Êx 12:38), chamado de povo de Israel, será estabelecida por meio de uma aliança que se inicia no Sinai (Êx 19), em renovação da aliança anterior estabelecida com Abraão. É a retomada da missão de abençoar as famílias da terra debaixo de uma nova confi guração. De maneira prática, a missão do povo de Israel se torna a de cumprir a Lei, os mandamentos divinos, que tem por objetivo construir uma sociedade modelo, via contraste, como referência para todas as nações. 1.3. A missão na monarquia e no profetismo O período da monarquia em Israel, que inclui a maioria dos escritos proféticos, é o mais conturbado do Antigo Testamento, considerando o conteúdo dos textos produzidos. As muitas disputas e guerras, internas e externas à comunidade de Israel, servem de oportunidade para a intervenção profética e aprendizado para o povo de Deus, naquele tempo e hoje. Isso é o que chamamos de aprendizado pela via negativa, ou seja, o aprendizado pelos erros. Ao longo das histórias dos reis e reinos temos mais histórias de erros do que de acerto. Por isso mesmo, é que encontramos a constante intervenção divina, por meio de seus profetas, para chamar a atenção dos líderes e do povo para os seus desvios e pecados. Michael Goheen (2014, p. 77) faz um pertinente comentário sobre o início da monarquia em Israel: 79Teologia Bíblica da Missão | FTSA | O livro de Juízes termina com o clamor por um rei (Jz 21.25). No período tribal, “ameaças tanto internas quanto externas constituíam importantes obstáculos para a história bíblica por impedirem Israel de cumprir a missão para a qual Deus o havia escolhido. A pergunta que o livro de Juízes nos deixa é se a monarquia poderia por fi m a essas ameaças”. Um rei poderia capacitar Israel a cumprir a sua vocação missional? Embora o clamor do povo por um rei seja atendido na história de Samuel, inicialmente há pouca esperança de que um rei suprirá o que Israel necessita para se tornar de fato bênção para as nações, uma vez que Israel deseja ter um rei como o têm as outras nações (1Sm 8.5). A razão dada pelos israelitas denuncia sua apostasia, um abandono de seu chamado missional: “Queremos um rei sobre nós, para que sejamos como todas as demais nações, e para que o nosso rei nos julgue, nos lidere e lute as nossas batalhas” (1Sm 8.19,20, grifo do autor). Eles queriam ser “como todas as demais nações” - exatamente o que Deus havia chamado Israel a não ser. Uma grande responsabilidade, então, passa a recair sobre o rei. A fi gura de liderança que antes era ocupada por um profeta ou juiz, ou seja, na fronteira do âmbito carismático e religioso, agora passa para o âmbito político. Com todos os problemas que envolveram a liderança do primeiro rei, Saul, que não consegue perpetuar a sua descendência no poder, logo surge a fi gura de Davi. Davi acaba por reunir o perfi l carismático que o povo estava acostumado em sua história. Ele, rapidamente, como uma de suas primeiras decisões resolve construir uma casa para Deus ao lado da sua - um templo ao lado do palácio. Assim, ele consegue retomar a fé em Javé, como identidade nacional, que havia caído no esquecimento durante o tempo dos Juízes. O templo assume um papel primordial na construção da monarquia, centralizando na capital (Jerusalém) o poder político e religioso. | Teologia Bíblica da Missão | FTSA80 Em torno de Davi, então, surge a imagem de um herói que haveria de liderar o povo ao status de uma grande nação, podendo, assim, ser um exemplo para as outras nações. Essa seria, portanto, a retomada da missão de Israel. A aliança com Abraão é reconfi gurada como sendo uma aliança com Davi e um reino eterno (2 Sm 7:8-17). É também em Davi, de um descendente seu, que se constrói a principal referência da esperança messiânica no Antigo Testamento (Is 55:3-5). Todo esse projeto, no entanto, sofre percalços ao longo do período monárquico. A liderança, e o povo em geral, não consegue levar adiante a sua missão. O principal pecado cometido durante esse período é o abandono de Javé. De modo mais específi co, o não cumprimento das suas leis, seus mandamentos e sua vontade, em suma, da sua missão. É nesse ambiente que entra em cena a representativa fi gura do profeta de Javé, aquele que é a sua voz direta aos líderes e ao povo. O profeta cumpre o papel de denunciar, chamar à responsabilidade, apelar para o arrependimento e conversão, e anunciar o iminente castigo, que é a consequência da desobediência e permanência no erro. Dessa forma, poderíamos pensar no profeta como o guardião da missão. Basta ler os vários livros dos profetas para perceber o tipo de mensagem que eles trazem para o povo de Deus. Talvez o tema mais comum, que tem associação com o princípio da Lei, seja o da justiça, e, por consequência, do juízo, do tornar-se justo ou justifi cado. Apenas como um exemplo representativo dessa função tão importante para o tema da missão, conforme entendida nesse período, cito o profeta Isaías: Visão que Isaías, fi lho de Amoz, teve a respeito de Judá e Jerusalém, nos dias de Uzias, Jotão, Acaz e Ezequias, reis de Judá. Escutem, ó céus, e ouça, ó terra, porque o SENHOR é quem fala: “Criei fi lhos e os fi z crescer, mas eles se revoltaram contra mim” [...] Ai desta nação pecadora, deste povo carregado de iniquidade! São descendência de malfeitores, fi lhos que praticam o mal. Rejeitaram o SENHOR, desprezaram o Santo de Israel, voltaram para trás [...] “Quando vocês estendem as 81Teologia Bíblica da Missão | FTSA | mãos, eu fecho os meus olhos; sim, quando multiplicam as suas orações, não as ouço, porqueas mãos de vocês estão cheias de sangue. Lavem-se e purifi quem-se! Tirem da minha presença a maldade dos seus atos; parem de fazer o mal! Aprendam a fazer o bem; busquem a justiça, repreendam o opressor; garantam o direito dos órfãos, defendam a causa das viúvas”. O SENHOR diz: “Venham, pois, e vamos discutir a questão. Ainda que os pecados de vocês sejam como o escarlate, eles se tornarão brancos como a neve; ainda que sejam vermelhos como o carmesim, eles se tornarão como a lã. Se estiverem dispostos e me ouvirem, vocês comerão o melhor desta terra. Mas, se recusarem e forem rebeldes, vocês serão devorados pela espada; porque a boca do SENHOR o disse” (Is 1:1-20). 1.4. A missão no exílio, pós-exílio e no profetismo posterior O exílio do povo de Israel na Babilônia (70 anos) é considerado um castigo por sua desobediência a Javé (Jr 25:8-9). Como comentado no tópico anterior, mesmo diante dos alertas e apelos proféticos para que houvesse arrependimento, a insistência no erro é tida como a causa da conquista da nação de Israel por Nabucodonosor. Os fatos mais graves resultantes dessa guerra de conquista foram a destruição da terra e o cativeiro de parte da população na Babilônia. Se pensarmos que essa conquista resultou na destruição da cidade de Jerusalém e do Templo, isso poderia indicar o fi m da missão de Israel. Lembre-se que caracterizamos a missão no Antigo Testamento como centrípeta, que tinha como principal objetivo atrair os outros povos à Israel, mais especifi camente à Jerusalém e para o reconhecimento e adoração a Javé no seu templo. Logo, a destruição do centro imaginário da missão de Israel poderia signifi car o seu fi m. Mas não é isso o que vemos. O período do exílio e do pós-exílio confi gura uma transição do modelo de missão centrípeta para centrífuga, chamado de período intertestamentário, ou seja, entre o Antigo e Novo Testamento. | Teologia Bíblica da Missão | FTSA82 Mesmo que esse período tenha durado em torno de 400 anos, com a experiência do que se chamou de silêncio profético, após Israel cair sob o domínio de várias nações, sem jamais se reerguer plenamente, é sob o império romano que Jesus surge no cenário dando novo impulso para a missão. Contudo, antes de entrarmos na missão no Novo Testamento, é necessário observarmos alguns importantes conteúdos missiológicos que surgem no período do exílio e pós-exílio. Se olharmos para a situação desde uma perspectiva ligeiramente diferente, podemos concluir que o povo exilado funcionou como um povo missionário na Babilônia. Por um lado, o povo foi levado pelos babilônicos, por outro, esse mesmo povo foi enviado por Javé. O objetivo permaneceu o mesmo: servir de testemunhas do Deus Javé, criador e sustentador da vida, que quer abençoar todas as nações na demonstração prática de uma comunidade modelo que cumpre a sua Lei e, assim, promove a justiça sobre a terra. Durante o tempo do exílio vemos a crise que havia se instaurado na mente do povo sendo, mais uma vez, necessária a intervenção profética. O profeta Jeremias vai chamar a atenção do povo para a importância da sua participação na sociedade babilônica como parte dessa missão que prevê a demonstração e infl uência do relacionamento que tinham com Javé: Assim diz o SENHOR dos Exércitos, o Deus de Israel, a todos os exilados que eu deportei de Jerusalém para a Babilônia: “Construam casas e morem nelas; plantem pomares e comam o seu fruto. Casem e tenham fi lhos e fi lhas; escolham esposas para os fi lhos de vocês e deem as suas fi lhas em casamento, para que tenham fi lhos e fi lhas. Aumentem em número e não diminuam aí na Babilônia! Procurem a paz da cidade para onde eu os deportei e orem por ela ao SENHOR; porque na sua paz vocês terão paz. Porque assim diz o SENHOR dos Exércitos, o Deus de Israel: Não se deixem enganar pelos profetas e adivinhos que vivem no meio de vocês. Não deem 83Teologia Bíblica da Missão | FTSA | ouvidos aos sonhadores, que sempre sonham segundo o desejo de vocês. 9 Porque eles profetizam falsamente em meu nome; eu não os enviei”, diz o SENHOR (Jr 29:4-9). Javé nesse período é descrito pelos profetas como o Deus de toda a criação e de todas as nações. A expectativa do seu ungido, ou messias, também ganha esses contornos. A razão para isso foi porque o povo de Israel havia desenvolvido um sentimento de favoritismo e exclusivismo com relação às bênçãos de Javé. Mesmo depois do retorno do exílio, os judeus não aprenderam a lição e continuaram com essa perspectiva reduzida da missão. Basta vermos o resultado do judaísmo no tempo de Jesus. Uma breve conclusão que podemos tirar nesse processo de construção da Teologia Bíblica da Missão, começando no Antigo Testamento, é que a intenção missional de Deus é constante, afi nal o seu amor e fi delidade não mudam. Embora seus instrumentos missionários na história, mais especifi camente o povo de Israel, falhe, de modo geral, em permanecer constante em seu engajamento com a missão, sempre vemos aqueles que permanecem fi éis (por vezes chamados de remanescentes fi éis) e conseguem dar continuidade a esse processo. É por essa razão que hoje somos os herdeiros da missio Dei. Como você pode percebeu, toda essa refl exão no Antigo Testamento foi feita em ótica/perspectiva missional, ou seja, tendo a missão Deus como fi o condutor. Espero que você tenha percebido a profunda diferença que a missiologia faz quando nos aproximamos e abordamos o texto bíblico com uma hermenêutica missional. Tal aproximação fi ca ainda mais evidente no Novo Testamento. 2. A missão no Novo Testamento O evento mais importante que caracteriza a passagem daquilo que chamamos de Antiga e Nova Aliança ou Antigo e Novo Testamento é a pessoa de Jesus. O nascimento de Jesus, e, consequentemente a encarnação do Deus-Emanuel, é o marco dessa nova maneira de enxergarmos a Deus e sua missão. | Teologia Bíblica da Missão | FTSA84 É muito comum ouvirmos dizer que devemos modelar a missão da igreja, como também a nossa, na pessoa de Jesus. E de fato Jesus é o principal modelo e paradigma da missão. Mas, o que exatamente signifi ca assumir o fato de que precisamos modelar nossa prática missional na pessoa de Jesus? O apóstolo João disse que “aquele que diz que está nele também deve andar como ele andou” (1 Jo 2:6). Essa parte do nosso estudo procura responder a essa pergunta. A principal base encarnacional da missão da igreja não é um conceito fi losófi co. Também não é um princípio teológico abstrato. Antes, é o Jesus Nazareno, este que o apóstolo Pedro chama de “a pedra principal da esquina, eleita e preciosa” (1 Pe 2:6). David Bosch (2002, p.41), falando dessa singularidade de nossa fundação para a missão, diz que “não podemos refl etir de maneira íntegra sobre o que a missão poderia signifi car hoje em dia a menos que nos voltemos para o Jesus do Novo Testamento, já que a nossa missão está amarrada à pessoa e ao ministério de Jesus”. Jesus é o modelo insuperável da missão, que é libertadora e integral. Libertadora quanto ao seu propósito que é a liberdade de toda opressão (Jo 8:32) e integral quanto ao seu alcance, pois que cobre todas as dimensões do ser humano e criação em geral. 2.1. A missão na perspectiva de Jesus Um dos textos mais signifi cativos para entendermos a missão, a partir da perspectiva de Jesus, é aquele que foi registrado por Lucas: Então, pela virtude do Espírito, voltou Jesus para a Galileia, e a sua fama correu por todas as terras em derredor. E ensinava nas suas sinagogas e por todos era louvado. E, chegando a Nazaré, onde fora criado, entrou num dia de sábado, segundo o seu costume, na sinagoga e levantou-se para ler. E foi-lhe dado o livro do profeta Isaías; e, quando abriu o livro, achou o lugar em que estava escrito. O Espírito do Senhor é sobre 85Teologia Bíblica da Missão | FTSA | mim, pois que me ungiu para evangelizar os pobres, enviou- me a curar os quebrantados do coração, a apregoarduas categorias: ad intra e ad extra. Ad intra são os desafios internos da própria igreja e, por ad extra, os desafi os externos que o mundo (país, cidade, sociedade, bairro, comunidade etc.) lançam sobre a igreja. Por mais incrível que possa parecer, o maior desafi o para a missão é a própria igreja. Assim como Israel, tendo sido o povo eleito de Deus, não entendeu o projeto de Deus e teve difi culdades para ser um instrumento d’Ele, a ponto de precisar ser levado ao Cativeiro Babilônico por um período de 70 anos, também as igrejas e suas lideranças nem sempre entendem o que é a missão de Deus. Por isso, antes de falarmos dos desafi os externos e dos contextos da missão, olhemos esse desafi o interno (ad intra) para discernir o que não é missão. 1. O que não é missão Já são mais de dois mil anos de história do movimento cristão ou do cristianismo. Dois mil anos através dos quais compartilhou-se a mesma fé, no mesmo Cristo ressurreto, por meio de pessoas que fazem parte da mesma igreja, o grande Corpo de Cristo – visível e invisível – espalhado por toda a terra, mas que são diferentes, que vivem em épocas diferentes, que habitam em lugares diferentes, com formas de pensar, de sentir, de julgar que também são diferentes. Imagine todas essas pessoas pensando sobre temas bíblicos e extrabíblicos e com suas percepções culturais distintas. O próprio Cristo, em quem todos nós, como cristãos, cremos, não é entendido sem controvérsias. A chamada Cristologia alta e baixa, ou | Teologia Bíblica da Missão | FTSA8 seja, a dupla natureza divina (alta) e humana (baixa) é um dos exemplos (você aprofundará essa questão ao estudar Teologia Sistemática, particularmente com a Cristologia). A Bíblia é muito clara ao falar de Jesus por meio de suas obras (ações) e palavras (ensinos) (ver Lc 24:19; At 1:1). A Bíblia pode até ser clara, mas nós, que a lemos com nossos óculos culturais – cosmovisão – corremos o risco de não entender a total clareza com a qual ela fala. O que isso signifi ca? Signifi ca que nossa mente, mesmo sendo iluminada pelo Espírito, não é capaz de dar conta de modo integrativo de toda a revelação expressa na Palavra, isto é, não compreendemos as chaves que nos conduzem à interpretação da Palavra de Deus. Assim, ainda que conheçamos a Cristo hoje, prosseguimos em conhecê-lo todos os dias. Isso pode ir um pouco contra o que você já aprendeu até hoje, mas, não é? Vou tentar explicar o porquê. Pense comigo: se tudo passa, mas a Palavra de Deus nunca passará; se ela é viva e efi caz e mais cortante que uma faca de dois gumes; se ela é lâmpada para nossos pés e luz para nossos caminhos; se ela é nosso prazer noite e dia, e tantas outras referências que falam sobre ela e que conhecemos por meio dela mesma, isso implica afi rmar que: 1) a Palavra de Deus é maior que as nossas palavras; 2) nossa capacidade de expressá-la está condicionada pelo nosso espaço e tempo, o que implica em reconhecer que temos nossos próprios condicionamentos, nossas lentes culturais; 3) por isso, ela se renova permanentemente à medida que mudamos. Isso é apenas para que você comece a pensar sobre a questão. O que importa, agora, é refl etir sobre esse desafi o ad intra: o que é, afi nal de contas, missão? Como defi nir uma prática que tem mais de cinco mil anos de história – começando em Gênesis – e que está desgastada por tantas controvérsias, nomenclaturas, termos, e pior, os modismos? Como podemos dizer o que é e o que não é missão, quando tantos biblistas, teólogos, missiólogos, pastores, missionários e agências missionárias fazem afi rmações tão diferentes, e às vezes até opostas, sobre a compreensão da missão? 9Teologia Bíblica da Missão | FTSA | Antes de prosseguir, é fundamental que você defi na o que compreende ser missão. Quando afi rmamos o que não é missão é nosso dever e responsabilidade fazer isso não em função do que achamos ser ou gostaríamos que fosse, mas sim à luz de referenciais que cremos e que estão fi rmados na Palavra de Deus. Ou seja, se você afi rma que missão não é, signifi ca que você está convicto do que missão é. E qual é, então, sua defi nição de missão? 1.1. Algumas percepções possíveis Defi nir é estabelecer limites e delimitar, que busca indicar o verdadeiro sentido, a signifi cação precisa de. Foi precisamente pensando nisso que David Bosch disse que “a missão permanece indefi nível; ela nunca deveria ser encarcerada nos limites estreitos de nossas próprias predileções” (BOSCH, 2002, p. 26). Em outras palavras, na tentativa de se defi nir missão, corremos o risco de deixar algumas coisas de fora e estas podem ser essenciais. Um exemplo disso foi o derramar do Espírito Santo sobre os gentios na casa de Cornélio: Ainda Pedro falava estas coisas quando caiu o Espírito Santo sobre todos os que ouviam a palavra. E os fi éis que eram da circuncisão, que vieram com Pedro, admiraram–se, porque também sobre os gentios foi derramado o dom do Espírito Santo; pois os ouviam falando em línguas e engrandecendo a Deus. Então, perguntou Pedro: Porventura, pode alguém recusar a água, para que não sejam batizados estes que, assim como nós, receberam o Espírito Santo? E ordenou que fossem batizados em nome de Jesus Cristo. Então, lhe pediram que permanecesse com eles por alguns dias (At 10:44–48). Note a expressão “também sobre os gentios”. Isso fi ca ainda mais evidente quando Pedro precisou se explicar ao chegar ao conhecimento dos apóstolos e dos irmãos que estavam na Judéia que também os gentios haviam recebido a palavra de Deus, e isso porque Pedro havia entrado na casa de homens incircuncisos e tinha comido com eles. Pedro | Teologia Bíblica da Missão | FTSA10 fez uma longa justifi ca do que aconteceu e ao fi m disse: “Pois, se Deus lhes concedeu o mesmo dom que a nós nos outorgou quando cremos no Senhor Jesus, quem era eu para que pudesse resistir a Deus?” (At 10:17). Parece que está dizendo” – “Que culpa tenho eu?” É nítido o conceito de missão por detrás de tudo isso! Os gentios estavam excluídos do amor de Deus. Um novo paradigma missional se erguia: “E, ouvindo eles estas coisas, apaziguaram–se e glorifi caram a Deus, dizendo: Logo, também aos gentios foi por Deus concedido o arrependimento para vida” (At 10:18). É o paradigma da inclusividade – “também aos gentios”. Pedro precisava entender que a missão de Deus está para além das percepções e divisas culturais, raciais e étnicas! Então, perceba como é possível incluir ou excluir à luz das nossas defi nições e compreensões. Para que Pedro pudesse afi rmar que “todo aquele que nele crê recebe remissão de pecados” (At 10:43), ele antes precisa reconhecer algo, registrado em suas próprias palavras: “Então, falou Pedro, dizendo: Reconheço, por verdade, que Deus não faz acepção de pessoas; pelo contrário, em qualquer nação, aquele que o teme e faz o que é justo lhe é aceitável” (At 10:43). Era necessário que Pedro se converte-se ao outro (gentios) que não fazia parte de sua cultura. Por isso, evangelizar é um ato (não sentimento) de amor! Ninguém evangeliza a quem não ama. A evangelização sem amor é uma denúncia contra nós mesmos e revela que nossas motivações são proselitistas e interesseiras. Para que isso acontecesse na vida de Pedro, por três vezes uma voz teve que insistir em lhe dizer: “Levanta-te, Pedro! Mata e come” (At 10:13). A questão essencial aqui não era comida, uma vez que os judeus não comiam “coisa alguma comum e imunda” (At 10:14). A questão era alargar a visão de Pedro rompendo a esfera e escopo dos judeus para incluir os gentílicos no processo salvífi co de Deus. Deus é este que “não faz acepção de pessoas; pelo contrário, em qualquer nação, aquele que o teme e faz o que é justo lhe é aceitável” (At 10:43). A cada vez que falamos o que a missão é, acabamos também falando uma série de coisas que missão não é. Excluir algum elemento essencial da missão (inclusividade, como vimos em Pedro) pode produzir consequênciasliberdade aos cativos, a dar vista aos cegos, a pôr em liberdade os oprimidos, a anunciar o ano aceitável do Senhor. E, cerrando o livro e tornando a dá-lo ao ministro, assentou-se; e os olhos de todos na sinagoga estavam fi tos nele. Então, começou a dizer-lhes: Hoje se cumpriu esta Escritura em vossos ouvidos. E todos lhe davam testemunho, e se maravilhavam das palavras de graça que saíam da sua boca, e diziam: Não é este o fi lho de José? E ele lhes disse: Sem dúvida, me direis este provérbio: Médico, cura-te a ti mesmo; faze também aqui na tua pátria tudo o que ouvimos ter sido feito em Cafarnaum. E disse: Em verdade vos digo que nenhum profeta é bem recebido na sua pátria. Em verdade vos digo que muitas viúvas existiam em Israel nos dias de Elias, quando o céu se cerrou por três anos e seis meses, de sorte que em toda a terra houve grande fome; e a nenhuma delas foi enviado Elias, senão a Sarepta de Sidom, a uma mulher viúva. E muitos leprosos havia em Israel no tempo do profeta Eliseu, e nenhum deles foi purifi cado, senão Naamã, o siro. E todos, na sinagoga, ouvindo essas coisas, se encheram de ira. E, levantando-se, o expulsaram da cidade e o levaram até ao cume do monte em que a cidade deles estava edifi cada, para dali o precipitarem. Ele, porém, passando pelo meio deles, retirou-se (Lc 4:16-30). O missiólogo Lucas apresenta de maneira longa o início do ministério público de Jesus e, particularmente, seu ministério na Galileia, dedicando quase 6 dos seus 24 capítulos no primeiro volume (Evangelho; o segundo volume é Atos, ou seja, um único livro em 2 volumes) da sua narrativa. Essa seção começa em 4:14, onde diz que “Jesus voltou para a Galileia no poder do Espírito”, e vai até 9:50, quando ele deixa a Galileia para ir a Jerusalém, quando “manifestou o fi rme propósito de ir a Jerusalém” | Teologia Bíblica da Missão | FTSA86 (9:51). Esta região é a terra de Jesus e sua população na época chegou a três milhões. Naquele tempo a Galileia estava sob o controle dos romanos. Nazaré, que é o lugar exato onde se encontra Jesus em Lucas 4, é uma cidade com não mais do que 22 mil habitantes. “Em Nazaré da Galileia vivia José com a sua família, o trabalhador que deve ter pertencido à classe dos trabalhadores por conta própria” (Oyin Abogunrin, 2000, p. 1255). Voltando ao texto de Lucas 4, a apresentação dos fatos segue uma ordem mais teológica do que cronológica. O mais seguro é pensar que passagem resume três incidentes separados na vida de Jesus: (1) a reunião na sinagoga (4:16-22); (2) a admiração do povo (4:23-24); e (3) a menção de Elias e Eliseu, com a consequente raiva e rejeição de seu auditório de compatriotas querendo sua morte (4:25-30). Lucas se propõe a demonstrar a universalidade (não universalismo) da mensagem salvífi ca, ou seja, para todas as pessoas sem exclusão, de Jesus e o caminho da missão que o Pai lhe havia dado. Lucas, não sem intenção, destaca o comportamento contraditório dos fi éis que, depois de haverem admirado Jesus (4:22), quiseram matá-lo naquela hora: “para dali [cume do monte] o precipitarem” (4:29). A intenção teológica de Lucas é clara e preciosa para o nosso interesse de descobrir algumas características do modelo missionário de Jesus. Darío López (2004, p. 50), um teólogo pentecostal peruano diz: A perspectiva teológica de Lucas é clara: A partir do mundo dos pobres tece uma visão integral da missão cujo horizonte aponta para uma transformação de todas as coisas, se articula um discipulado radical marcado por uma fé inabalável em o Deus da vida, a afi rmação do valor da vida humana inegociável como um dom de Deus, se constitui a paz e se afi rma a dignidade de todos os seres humanos como criação de Deus. E conclui que dessa maneira, se amplia o horizonte missionário abrindo-se às novas situações e alarga o alcance da missão libertadora do carpinteiro de Nazaré. 87Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 2.2. Âmbito multifacetado e orientado à libertação Nos parágrafos seguintes trataremos da amplitude dessa missão de Jesus e de seu enfoque libertador A primeira coisa que observamos, ao ler o relato de Lucas, é que para Jesus a missão tem um alcance multifacetado, ou seja, apresenta vários aspetos, orientado por um único objetivo: libertar de toda opressão. Os pobres, os presos, os cegos e os oprimidos são os quatro grupos/tipos específi cos mencionados, juntamente com um grupo geral a quem é proclamado o “ano aceitável (ou da graça) do Senhor”. Em Lucas 4:19-20, encontramos o centro do texto. A variedade das necessidades e a diversidade dos grupos indicam desde já que a missão redentora não seria reduzida a abstrações da alma humana - sua missão teria concretude histórica e nada do humano fi caria fora do seu interesse. Para Jesus, o ano aceitável do Senhor “consiste em pregar a boa nova aos pobres, o que se traduz em ações concretas, que envolve os planos sociais, políticos, econômicos e religiosos. Essas ações têm como fi m o reestabelecimento de uma condição perdida ou oprimida. O ministério público de Jesus dará conta constantemente do cumprimento desta missão” (Mansilla, 1999, p. 141). Vejamos os destinatários da missão de Jesus, as ações a eles relacionadas e quais dádivas receberiam: Este é o modelo missionário que aprendemos de Jesus: multifacetado, pluridimensional e inclusivo. Os ouvintes da sinagoga de Nazaré souberam desde o início. Toda a região da Galileia foi testemunha do | Teologia Bíblica da Missão | FTSA88 alcance multifacetado do ministério de Jesus: ensinou com autoridade (Lc 4:31-32), libertou dos demônios (4:33-37), curou os enfermos (4:38- 41), pregou as boas novas do reino de Deus (4:42-44), pastoreou seus discípulos em meio a muitas difi culdades (5:1-11), acercou-se dos enfermos indesejáveis de seu tempo e os tocou com amor (5:12-16), se fez amigo dos cobradores de impostos (5:27-32), debateu com seus opositores teológicos (5:33-39), desafi ou e confrontou as tradições religiosas e defendeu a dignidade do ser humano (6:1-11), desenvolveu uma liderança compartilhada junto a doze homens comuns (6:12-16), optou pelos desvalidos do mundo (5:20-22), falou com valor profético contra os poderosos de sua época (6:23-29), argumentou contra o legalismo hipócrita (6:37-42), e tudo e mais coisas fez como pastor, mestre, amigo, profeta e redentor de todos e tudo. Esse, e não outro e nem aquilo, é o nosso modelo de missão! Modelo que tem o como meta o reino de Deus. 2.3. Paixão pelo reino O que motivou e animou a Jesus para servir desta maneira? Jesus foi movido por uma grande paixão chamada o reino de Deus. O texto de Lucas 4:43 relaciona a proposta da sinagoga de Nazaré com a proclamação do reino de Deus, e diz de maneira conclusiva que “para isto fui enviado”. Jesus tinha, pois, muitas tarefas para cumprir, porém só uma meta a alcançar: o Reino de Deus e sua justiça (Mt 6:33). O reino de Deus é o governo soberano de Deus sobre a criação, sobre tudo e todos. Deus se propõe abarcar a totalidade da vida humana e a totalidade da criação porque ele é Rei e Senhor de tudo. Por isso, também, quer restaurar as diferentes relações entre Deus e os seres humanos, e a comunidade e a criação, por meio da instauração da shalom que é “a plenitude e a abundância da vida em suas expressões físicas, emocionais, espirituais, políticas e sociais” (Padilla e Yamamori, 2001, p. 267-268). O Pai que o enviou é Criador e Senhor de tudo e, por isso mesmo, enviou o Filho para redimir tudo. Esta é - a redenção de tudo - o que está no 89Teologia Bíblica da Missão | FTSA | pensando do apóstolo Paulo quando ensina a Igreja de Colossos que Cristo foi enviado para que pro meio dEle Deus “reconciliasse consigo todas as coisas, tanto as que estão na terra quanto as que estão no céu” (Cl 1:20), e para que Cristo seja, fi nalmente, “tudo e está em todos” (Cl 3:11). Por esta razão é a integralidade da missão só se pode compreender desde a perspectivateológica do senhorio de Deus sobre toda a vida e para toda a Criação. Não é possível reduzir o domínio de Deus a alma humana e sua preocupação ao que acontece ao interior da igreja. Se Deus é senhor de toda a vida e senhor de tudo o que foi criado, a igreja deve orientar sua missão nessa mesma dimensão integral. É razão teológica antes que metodológica ou programática, pois trata-se do senhorio de Cristo e não do mercado eclesiástico cujo tentação é de ampliar o menu das ofertas religiosas buscando satisfazer a clientela-membresia. 2.4. Cenário diversifi cado, dirigido pelo Espírito Regressando ao texto de Lucas, agreguemos que, além do alcance multifacetado e libertador do modelo missional de Jesus, também se distingue um cenário diverso. Multifacetado tem a ver com as áreas da missão - pobreza, catividade, cegueira e opressão, para usar as mencionadas na sinagoga. Porém, a diversidade se refere aos cenários humanos: judeus e gentios, homens e mulheres, adultos e crianças, poderosos e oprimidos, excludentes e excluídos. A primeira característica aponta para o conteúdo, a segunda para o contingente. Vamos visualizar isso nesse gráfi co: | Teologia Bíblica da Missão | FTSA90 O texto do Evangelho nos chama a atenção por sua diversidade. Lucas centra agora sua atenção na universalidade da missão de Jesus. Depois do sucedido na sinagoga e da admiração das pessoas pelas “palavras de graça que lhe saiam dos lábios”, segue esse incidente: Jesus cita Elias e Eliseu, e isto desata a fúria e a rejeição (4:25-30). Porém, o que aconteceu? Por que depois dos aplausos eles queriam matá-lo? O que foi que Jesus falou? É quase seguro de que entre a admiração da sinagoga e a reação adversa haja passado algum tempo e que as pessoas haviam tido notícias acerca da fama de Jesus e dos milagres realizados em diferentes lugares. Então se perguntam: “Não é este o fi lho de José?”. Os milagres inquietaram a população nazarena e despertaram a curiosidade por quererem saber se também em seu povo se fariam tais proezas. Ciúmes? Talvez. O povo, então, faz um pedido a Jesus: “Faze aqui em tua terra o que ouvimos que fi zeste em Cafarnaum. Continuou ele: Digo-lhes a verdade: Nenhum profeta é aceito em sua terra” (4:23-24). Porém, os adverte que “o profeta realiza em nome de Deus os prodígios, mas é, portanto, sujeito às exigências dos homens” (De Tuya, 1977, p. 83). Tal foi o caso de Elias (1 Rs 17:18-24) e de Eliseu (2 Rs 5:1-16). Estes profetas do Antigo Testamento realizaram seus milagres fora das fronteiras de Israel. Elias, para remediar uma fome devastadora, foi à casa de uma viúva em Sarepta, na região de Sidom. Eliseu curou de lepra a Naamã, um sírio, ainda que no mesmo tempo houvesse muitos leprosos em Israel. Esta referência histórica da missão para fora das fronteiras de Israel desatou as reações conhecidas. Além disso, naquele sábado quando leu o texto do profeta Isaías, Jesus suprimiu a segunda parte de um dos versículos que diz “o dia da vingança do nosso Deus” (Is 61:2), com sua óbvia conotação de castigo dos pagãos. Quando Jesus se apresentou como o libertador de todas as opressões, seus compatriotas o aprovaram, porém quando o mesmo redentor declarou que sua missão era universal, ou seja, muito além das divisas dos judeus, arremeteram contra ele. Ao que parece sua universalidade causou tantos problemas como seu messianismo. 91Teologia Bíblica da Missão | FTSA | William Barclay (1994, p. 69), um teólogo escocês que foi professor da Universidade de Glasgow, afi rmou: O que enfureceu foi o elogio que Jesus pareceu dedicar aos gentios. Os judeus estavam tão convencidos de que eram o povo escolhido de Deus que depreciavam a todos os demais. Alguns inclusive diziam que “Deus havia criado os gentios para usar-lhes como lenha no inferno”. E aqui estava este jovem Jesus, a quem todos conheciam, pregando como se os gentios fossem os favoritos de Deus. Começava a ameaçá-los a ideia de que haviam coisas na nova mensagem que nem se lhes havia ocorrido falar. 2.5. Libertação sem distinção Os habitantes da Galiléia, nos informa Lucas, também testemunharam como Jesus assumiu sua missão universal indo ao encontro destes, sem exclusão: compatriotas (4:16-30); endemoninhados (4:31-37); leprosos (4:12-16); paralíticos (4:17-26); publicanos (4:27-32); contingentes do exército romano (7:1-10); viúvas (7:11-17); discípulos de outros mestres (7:18-35); fariseus (7:36-50); mulheres (8:1-3); entre outros. Para todos estes, houve um toque de cura, ou uma palavra renovadora, um ensino estimulante, uma vida restaurada. Com razão de sobra exclamaram: “Hoje temos visto maravilhas” (4:26). A compreensão integral e libertadora da missão da igreja tem um claro sentido universal, assim como um convite urgente para que a comunidade de fé saia das fronteiras do seu abrigo eclesial e vá à busca dos “leprosos da Síria e das viúvas de Sarepta”. Os destinatários da missão transpassam todas as fronteiras, quer sejam geográfi cas, culturais, raciais, sexuais, religiosas ou ideológicas, entre outras. Isso desagradou a Jonas, enfureceu os nazarenos, transtornou a comunidade cristã de Jerusalém (At 11:1-18) e ainda inquieta a igreja do século 21, quando ela resiste em abraçar sem medo e entregar-se aos | Teologia Bíblica da Missão | FTSA92 outros com e por amor do Filho. Prova disso, é a difi culdade que mostra a igreja para se aproximar de outros potenciais parceiros de missão. É necessário aqui a colaboração fraterna - para evitar a expressão corporativa de “aliança estratégica” -, com organizações da sociedade civil para trabalhar, por exemplo, na defesa dos direitos humanos ou instituições públicas, cuidando para não cair nas armadilhas da politicagem local. Os projetos podem ser de ação social ou de desenvolvimento local, entre muitos outros, ou com redes intereclesiásticas ou intereligiosas para servir juntos na construção de uma cultura de paz, ou em programas para crianças, ou em resposta às emergências nacional - prevenção, mitigação e resposta. Aqui estão alguns exemplos que devemos reconhecer a necessidade de agir de forma responsável para as muitas necessidades do nosso mundo e sermos agentes efi cazes do reino de Deus. 2.6. Universalidade e particularidade De nenhuma maneira esta abertura universal diminui a identidade particular. No cumprimento da missão surge uma tensão dialética entre o geral e o concreto, entre o global e o regional, entre inclusivo e exclusivo, entre o universal e o particular. Estes não são extremos antagônicos, mas sim valores complementares entre si e, ainda mais, eles precisam um do outro. Este é o caso de uma comunidade de fé que pratica a dimensão ecumênica (no sentido de colaboração com outras igrejas cristãs) da igreja, mas nem por isso perde a sua identidade confessional ou denominacional. Ambas são necessárias para a missão. Sem um é forte, o outro é fraco. O modelo de Jesus ilustra com precisão essa tensão. Ele empreendeu as ações do Reino com alcance universal (Mt 28:19; At 1:8), mas sem deixar suas raízes de nazareno. Ele era um membro da comunidade particular, identifi cado como o fi lho de uma das famílias vizinhas, que ia à sinagoga “como era seu costume” (Lc 4:16), e que conhecia com destreza de provinciano os ditos populares: “Médico, cura a ti mesmo” (Lc 4:23). O universal, em vez de minar o particular, o reafi rmava. Não é possível a missão integral sem essa tensão dinâmica. Hoje, a fúria da globalização tenta roubar identidades particulares, locais e regionais 93Teologia Bíblica da Missão | FTSA | tais como costumes, linguagem, folclore e tradições, com a fi nalidade de padronizar os mercados. Por sua parte, os fundamentalismos religiosos, políticos e ideológicos lutam por reduzir tudo a uma parcela local, com a fi nalidade de alimentar os ódios dogmáticos. A igreja, inspirada no modelo de Jesus, tem outra alternativa para sua missão: o amor global ou universal do Criadorem harmonia com o enraizar contextual do Filho. Missão não é colonização (Johannes Verkuyl) uma tentativa de conquistar culturalmente outros povos para ali estabelecer e plantar a igreja “mãe” impondo valores e a cultura dos plantadores. Temos um caminho “mais excelente”, que é o amor (1 Co 12:31). A opção nazarena de Jesus é a chave para entender antigos temas latino- americanos de missiologia como a enculturação, inserção, acomodação, contextualização ou encarnação. Termos diferentes que apontam para desafi os em traduzir a mensagem por meio de um testemunho que comunica/proclama/manifesta o que Jesus nos ensinou com sua vida, e que foi experimentado em suas primeiras comunidades. Já dizia Irineu no século 2 que “o que não é assumido não é redimido” (Documento de Puebla, 400). O modelo cristão de inserção é, naturalmente Jesus Cristo, por meio de sua encarnação em favor da humanidade. Tanto o alcance multifacetado da missão, que refl etimos no primeiro tópico, como o cenário diverso, ao que nos referimos depois, formam parte do modelo missionário libertador de Jesus de Nazaré. É uma libertação de todos, sem reserva alguma, e para todos. Resta acrescentar que, em Jesus, essa libertação integral está ligada à ação soberana do Espírito. Sem Espírito não há libertação, pois sem Ele a liberdade é ilusória. No texto de Lucas, Jesus reconheceu a ação determinante do Espírito Santo em sua vida e ministério. “Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão e foi guiado pelo mesmo Espírito, no deserto” (Lc 4:1). E ao sair do deserto, após as tentações do diabo, “Jesus, no poder do Espírito, regressou para a Galiléia” (Lc 4:14). E foi cheio da presença do Espírito que Jesus que entra na sinagoga da Nazaré e declara na abertura do seu manifesto que “o Espírito do Senhor está sobre mim” (Lc 4:18) por | Teologia Bíblica da Missão | FTSA94 fora por Espírito “que me ungiu para” (Lc 4:18). René Padilla (2003, p. 129), comentando este texto, observa que “a unção do Espírito signifi ca a realização da missão do Messias, o Ungido de Deus. Para ele, a unção e missão são inseparáveis, e que, além disso, a missão que resulta dessa unção é um trabalho orientado para as pessoas mais vulneráveis da sociedade”, sendo os destinatários os pobres, cativos, cegos, oprimidos e endividados (Lc 4:18). Sem o Espírito, a missão não pode ser integral, nem libertadora. Sem o Espírito, aquele sábado em Nazaré teria sido tudo igual ao que ditava a tradição litúrgica na sinagoga daquela província. Teria havido profeta, mas sem profecia. Sem o Espírito nada teria acontecido na Galiléia. Jürgen Moltmann (1999, p. 68) diz: “O Espírito faz de Jesus o ‘Reino de Deus em pessoa’: na força do Espírito Jesus expulsa os demônios e cura os enfermos. Na força do Espírito ele acolhe os pecadores e leva aos pobres o Reino de Deus”. É na força do Espírito que Jesus realiza a missão de Deus! Como falar de uma missiologia integral sem uma pneumatologia transformadora? Esta relação é ainda uma dívida pendente na teologia evangélica. Se não se desenvolve uma teologia do Espírito que seja, ao mesmo tempo bíblica, contextual, integral e libertadora, se corre o risco de reduzir sua ação aos espaços litúrgicos da sinagoga e manipular sua atividade para satisfazer aos que pedem, na mesma sinagoga, que se faça em Nazaré os mesmo sinais e milagres como os de Cafarnaum. E os pobres, os presos, os cegos e os oprimidos? Qual é a boa notícia de libertação que lhes comunica o Espírito? A pneumatologia integral que necessitamos não despreza as contribuições do movimento pentecostal que tem estado presente em nossas terras por pouco mais de um século. O pentecostalismo oferece uma riqueza espiritual e missionária que deve ser levada em conta quando se fala sobre o Espírito na América Latina. Também, por outro lado, outros movimentos latino-americanos têm percorrido um longo caminho tratando de responder o que signifi ca o Espírito para a causa dos empobrecidos. Estas duas perspectivas proporcionam um ponto de partida para a tarefa proposta. 95Teologia Bíblica da Missão | FTSA | Conclusão: simplesmente imitar o Rei Lucas 4 nos tem servido como ponto seguro de referência para pensar o modelo de missão integral de Jesus. Quanto ao alcance de sua missão foi dito que é multifacetado e orientado pelo objetivo de libertar tudo o que oprime e escraviza o ser humano. Quanto ao cenário de sua missão afi rmamos que ele foi diverso e focado na direção do Espírito, que foi quem ungiu Jesus. Este modelo de Jesus fornece as bases da nossa missão. Por isso, sendo Jesus o nosso modelo, “aquele que afi rma que permanece nele, deve andar como ele andou” (1 Jo 2:6). Falar de missão integral libertadora é apenas um recurso pedagógico para destacar os diferentes aspectos dessa missão e sublinhar que está orientada para a vida plena e livre (Jo 8:32, 10:10). A verdade é que deveríamos falar apenas de missão, e missão sem adjetivos, uma vez que há apenas uma: a missão de Deus (missio Dei), entendida “como um movimento de Deus para o mundo” e a igreja como um instrumento para essa missão, conforme compreendeu o missiólogo David Bosch. Vale ressaltar que falamos integral porque ainda se faz necessário uma vez que a igreja ainda não entendeu o que missão é e signifi ca. De Jesus aprendemos também que a missão integral libertadora é, antes de tudo, um fi el e obediente seguimento: “a minha comida é fazer a vontade daquele que me enviou e concluir a sua obra” (Jo 4:34). É moldar nossas ações dentro do projeto maior do reino de Deus, para que o Senhor seja glorifi cado e seus propósitos se cumpram “assim na terra como no céu” (Mt 6:10). Jesus é o Senhor e modelo supremo da missão. Ele disse que da maneira como o Pai o enviou, do mesmo modo e, com o mesmo padrão e modelo, ele nos enviou: “assim como o Pai me enviou, eu os envio” (Jo 20:21). Nisso consiste a missão, em imitar o Rei. Pedro afi rma que foi “para isso [que] vocês foram chamados, pois também Cristo sofreu no lugar de vocês, deixando- lhes exemplo (modelo), para que sigam os seus passos” (1 Pe 2:21). Também o apóstolo Paulo: “Seja a atitude de vocês | Teologia Bíblica da Missão | FTSA96 a mesma de Cristo Jesus” (Fp 2:5). Se nós ou a igreja imitamos outra coisa ou alguém que não seja Cristo, então somos todos idólatras. Mas quem o reconhece e o tem modelo uma coisa fará, não será idólatra de si mesmo ou sejam outros ídolos que forem, tão conscientes como o foi João Batista, que afi rma que “eu não sou o Cristo, mas fui enviado como seu precursor. O que tem a noiva é o noivo; o amigo do noivo que está presente e o ouve muito se regozija por causa da voz do noivo. Pois esta alegria já se cumpriu em mim. Convém que ele cresça e que eu diminua”. Referências BARCLAY, William. Comentario del Nuevo Testamento. Terrassa: CLIE, 1994. v. 4. BOSCH, David J. 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O conceito determina a prática que, por sua vez, a prática revela o conceito. Isso é um processo hermenêutico espiral. Para auxiliar o que signifi ca a ideia de igreja missional, vou apresentar algumas sugestões de defi nições. A primeira defi nição é de Darrell Guder (1998, p. 4): Precisamos entender que missão não é apenas uma atividade | Teologia Bíblica da Missão | FTSA98 da igreja. Em vez disso, a missão é o resultado da iniciativa de Deus, enraizada nos propósitos de Deus para restaurar e curar a criação. “Missão” signifi ca “envio”, e esse tema central da Bíblia descreve a fi nalidade da ação de Deus na história humana [...] Nós aprendemos a falar de Deus como um “Deus missionário”. Assim como o pai me enviou, também eu vos envio ao mundo” (Jo 20:21). A segunda defi nição é do missiólogo David Bosch (2002, p. 28): Temos que distinguir entre missão (singular) e missões (plural). O primeiro refere-se principalmente à missio Dei (missão de Deus), isto é, a auto-revelação de Deus com Aquele que ama o mundo, o envolvimento de Deus no e com o mundo, a natureza e atividade de Deus, que abrange tanto a Igreja como o mundo, e em que a igreja tem o privilégio de participar. Missio Dei enuncia a boa notícia de que Deus é um Deus-para-pessoas. Missões (empreendimentos missionários da igreja) se referem a formas particulares, relacionadas com horários específi cos, lugares ou necessidades, de participação na missio Dei. Outra defi nição é a de Craig van Gelder (2000, p. 31): A igreja, como povo de Deus no mundo, é inerentemente uma igreja missionária. É a participação plena na obra redentora do Filho enquanto o Espírito cria, guia e ensina a Igreja a viver com pessoas distintas de Deus. Com esse entendimento, a missão deixa de ser uma função da igreja para descrever sua natureza essencial [...] Ainda outra defi nição é dada por Lois Barrett (2004, p. x), que adiante exploraremos em mais detalhes: A igreja missional é uma igreja que é moldada para participar na missão de Deus, que se organiza para restaurar o mundo 99Teologia Bíblica da Missão | FTSA | quebrado e pecaminoso, para resgatá-lo e redimi-lo para Deus [...] Igrejas missionais percebem a si mesmas não tanto como enviadoras, como sendo [ela mesma] enviada. Uma congregação missional permite que a missão de Deus permeie tudo o que ela faz - da adoração ao testemunho, formando membros para o discipulado. Ela preenche a lacuna entre o alcance [para fora] e a vida congregacional [para dentro], já que, em sua vida comunitária, a igreja encarna a missão de Deus. Stephanie Lutz Allen, uma pastora norte-americana, compartilha a sua experiência em tentar buscar ser uma igreja missional: Este repensar “como fazer” me levou a explorar o movimento da igreja missional. Como uma co-pastora, eu tinha trabalhado duro para revigorar uma velha e tradicional igreja presbiteriana. Focar nas melhores práticas e novos métodos era insufi ciente por si mesmo. Quando eu tentei concentrar nas pessoas para reverter nosso declínio, os membros da igreja pensaram que eu (e outros membros da equipe) só queríamos uma igreja maior para acariciar nossos egos. Quando eu tentei adicionar música contemporânea para que pudéssemos “atrair os jovens”, isso causou raiva nas pessoas que não podiam entender por que os jovens não gostavam de suas músicas. Quando eu enfatizei o objetivo de “atrair os jovens”, as pessoas começaram a perguntar mais sobre o porquê a igreja existe e como o evangelho poderia/ deveria ser traduzido para a língua do coração de pessoas que estão fora de nossas paredes, e foi aí que comecei a ter menos resistência. Agora, como uma consultora, quando eu dialogo com líderes da igreja, vejo a necessidade de não se concentrar em métodos e funções da igreja como ponto de partida, mas no chamado bíblico para ser uma igreja, e onde se encaixa dentro de nossa história comum (s/d, p.4). | Teologia Bíblica da Missão | FTSA100 Sua experiência é vista como um tipo de conversão em que devemos nos perguntar se o nosso foco são os programas e atividades da igreja ou se temos uma perspectiva mais profunda relacionada aos propósitos de Deus para o mundo. Essa crucial pergunta deve nos conduzir a entender o conceito de igreja missional. 1.1. Aprofundando o conceito de igreja missional Uma igreja missional é defi nida como uma busca constante de estar envolvida com a missão de Deus no mundo. O povo de Deus é sempre visto como o povo enviado em missão. Já, nos modelos tradicionais de grandes corporações, os enviados são os missionários pagos, por vezes chamados de profi ssionais. Na igreja missional, todos se percebem como participantes neste chamado. A missão é de Deus. A igreja é criada para ser um sinal e instrumento de Deus em favor do mundo. Essa atividade de Deus no mundo diz respeito tanto à restauração das pessoas com ele, como das pessoas com outras pessoas, das pessoas com elas mesmas e ainda das pessoas com toda a criação. No modelo tradicional de igreja, ela envia missionários, enquanto no modelo da igreja missional a igreja mesma é a enviada. Não se pensa tanto em destino, mas em uma jornada. Utilizando a defi nição dada por Lois Barret, citada acima, tentemos elaborar um pouco mais esse conceito em três aspectos importantes. 1.1.1. Deus como sujeito da ação Barret afi rma que a “igreja missional é uma igreja que é moldada para participar na missão de Deus, que se organiza para restaurar o mundo quebrado e pecaminoso, para resgatá-lo e redimi-lo para Deus” (2004, p. X). Assim, o sujeito da missão não é a igreja, mas Deus. E Deus tem uma missão, na qual a igreja participa e jamais o contrário. A localização (locus) da missão de Deus não é principalmente a igreja, mas o mundo. Deus é ativo no mundo que Ele mesmo criou, redimindo e sustendo-o. A igreja tem uma vocação para participar da atividade de Deus, em nome 101Teologia Bíblica da Missão | FTSA | de toda a criação. Isso está em contraste com a igreja como o sujeito ativo da missão. É a igreja que tem a missão de levar Deus ao mundo ou é Deus que já atua no mundo e na vida das pessoas? Deus já está atuando no mundo, e somos convidados para nos unir a Ele naquilo que Ele já está fazendo. Deus está sempre atuando, não apenas no mundo, mas na vida das pessoas, seja de modo individual (pessoal) ou coletivo. Deus se preocupa com a vida humana em toda a sua complexidade. Vou te dar exemplo, quando uma criança está se esforçando para aprender a ler, porque ela tem dislexia, Deus se preocupa com o seu aprendizado para que ela possa ter vida em plenitude. Deus está com ela em sua luta. Se você fosse o tutor desta criança com dislexia, estaria participando naquilo que Deus estaria fazendo na vida dela. Se você fosse o tutor dela é porque o amor de Deus o levou a fazê-lo, e seu trabalho seria uma expressão viva de que Deus está com essa criança e se preocupa com ela. Assim, a ideia é de que a missão de Deus implica em restaurar a totalidade da Sua criação. A igreja participa como sinal e instrumento dessa missão. Por outro lado, o conceito, então, não é que a missão da igreja seja levar o amor de Deus ao mundo.Ao contrário, que Deus convida Sua igreja a participar da Sua missão. Isto pode soar um tanto conceitual, semântico ou mera troca de palavras, mas essa distinção é fundamental. Isto signifi ca que o que fazemos dentro da igreja (ad intra) não é a totalidade da obra de Deus, mas sim o preparo do povo de Deus para a obra dele no mundo (ad extra). É uma questão de mudança de foco, do institucional, ou de sobrevivência, para olhar a atividade de Deus, dentro e fora (centrífuga) de nossos espaços institucionais. Ela muda o nosso foco não apenas ao perguntar como podemos restaurar as pessoas para Ele através dos ministérios oferecidos nas instalações da igreja, mas também para o que Deus já está fazendo em nossa comunidade e como podemos ser parte disso. Como vimos, uma forma de articular que Deus é o sujeito ativo da missão é o termo missio Dei. Esta frase em latim aparece muitas vezes na literatura missional. É traduzido como missão de Deus. Deus criou o mundo, de modo que toda a criação pudesse experimentar a plenitude | Teologia Bíblica da Missão | FTSA102 em relacionamento com Ele. O pecado entrou no mundo e, com ele a corrupção individual e coletiva. Em outras palavras, nós pecamos como pessoas individuais e quando nos organizamos em grupos e sociedades, uma sinergia de pecado entra em vigor. O Deus-Pai enviou Jesus ao mundo para resgatar esse mundo caído. Jesus veio anunciar o reino de Deus, ou o que também é chamado de o reinado redentivo de Deus. Como o Pai enviou o Filho, o Filho e o Pai enviam o Espírito ao mundo e este impulsiona a igreja, enviando-a ao mundo como participante com Deus na redenção de toda a criação. A igreja existe para proclamar e manifestar o reino de Deus e experimentar em sua própria vida a presença deste reino, caracterizada pela justiça, amor e misericórdia. Quando nos preocupamos com o outro, experimentamos, conscientes ou não, uma antecipação deste reino, em que o amor é a maneira de vivermos juntos. A vida congregacional interna assume um novo signifi cado quando ela tem como foco preparar o povo de Deus para participar da atividade de Deus em favor do mundo. Esta distinção liberta-nos de ver nossos esforços sendo canalizados apenas para igreja-edifício, manutenção-institucional e números- resultados. A igreja passa a se perceber como movimento e não monumento. Não se curva a numerolatria. Se conta o número das pessoas é visando o cuidado de quem não está do que a ostentação de quem está. Leia A parábola da ovelha perdida, e descubra o motivo pelo qual Jesus nos ensinou a contar as ovelhas: Então, lhes propôs Jesus esta parábola: Qual, dentre vós, é o homem que, possuindo cem ovelhas e perdendo uma delas, não deixa no deserto as noventa e nove e vai em busca da que se perdeu, até encontrá-la? Achando-a, põe-na sobre os ombros, cheio de júbilo. E, indo para casa, reúne os amigos e vizinhos, dizendo-lhes: Alegrai-vos comigo, porque já achei a minha ovelha perdida. Digo-vos que, assim, haverá maior júbilo no céu por um pecador que se arrepende do que por noventa e nove justos que não necessitam de arrependimento (Lc 15:3-7). 103Teologia Bíblica da Missão | FTSA | O motivo está claro: “vai em busca da que se perdeu, até encontrá-la”. Não se trata de ostentação, mas de cuidado pastoral para com aquela que havia se perdido. Uma igreja com consciência missional se preocupa com as pessoas (ovelhas) perdidas e busca equipar as pessoas como instrumentos de reconciliação na participação da missão de Deus no mundo. Tal enfoque reconhece que a igreja aponta para o reino de Deus. Assim, ela não é o fi m último, mas um meio para o fi m, que é o reino e a glória de Deus. Em outras palavras, não estamos construindo a igreja como uma mera instituição, mas vivendo como um sinal transformador do reino de Deus. Igrejas grandes e pequenas podem ser missionais. Não há um único modelo de ser igreja. Cada igreja vai procurar estar nessa jornada rumo a um ministério missional dentro de seu contexto, no lugar que Deus a colocou. 1.1.2. Repensando a história O segundo aspecto ressaltado por Barret (2004, p. X) é que “igrejas missionais percebem a si mesmas não tanto como enviadoras, como sendo [ela mesma] enviada” Esta defi nição também aponta para um afastamento da igreja como uma agência que predominantemente envia missionários para outras partes do mundo e que os que fi cam, oram e fi nanciam estes. O movimento missional procura repensar o desafi o de que toda a igreja é e já está enviada, e não uns poucos. É certo que existe a necessidade de preparar pessoas para as missões transculturais e isso jamais deverá deixar de ser realizado. A questão é que na história da igreja é isso que se tem compreendido como sendo a totalidade da missão. Ou seja, que as missões, no plural, é a missão da igreja (como já tratamos anteriormente). Missões transculturais são uma das atividades da igreja missional e não a única. A igreja missional vive para a missão e as missões são uma das suas dimensões. Além da proclamação (dp “ide pro todo mundo” – Mc16:15), as outras dimensões da missão são o ensino, o serviço, a comunhão e a adoração. | Teologia Bíblica da Missão | FTSA104 Quando o Império Romano, particularmente com Constantino, declarou o cristianismo como sendo sua religião ofi cial no quarto século, a igreja passou primariamente a ser um movimento missionário institucional- estatal, estabelecida e protegida pelo estado. Essa constantinização da igreja, contando com a proteção e prestígio do Estado, fi cou conhecida como cristandade, ou seja, uma adesão cultural. Uma das consequências disso foi o nominalismo que é a identifi cação do cristão em função de uma tradição ou denominação. Assim, em vez de discípulos, os cristãos passam a ser mais reconhecidos por serem membros de igreja. Via de regra, essa membresia constrói um corpo estático que perde seu caráter de peregrino. O dinamismo missional - “e sereis minhas testemunhas tanto em” (At 1:8) - é sufocado pelo clericalismo e institucionalismo. Conclusão, a igreja passa a ser um lugar, um prédio, onde as pessoas vão e não o que elas são. O movimento ir à igreja pode conspirar contra o movimento somos a igreja. Essa situação exige uma resposta de luto que aceita a desestabilização desse status por amor a Deus, seu reino e sua missão. Quem não existe para a missão existirá para a manutenção. Faz-se necessário abraçar essa mudança, caso contrário, esse sal da terra que somos, não “servirá para nada, exceto para ser jogado fora e pisado pelos homens” (Mt 5:13). O caminho de Jesus nunca foi o de manutenção do status quo, antes conduziu seu ministério a partir das margens, isto é, da Galileia, em vez de um lugar de poder privilegiado, ou seja, de Jerusalém. 1.1.3. Missão como a natureza essencial da Igreja Barret (2004, p. X) fala sobre a necessidade de a igreja ser moldada para participar na missão de Deus: “Uma congregação missional permite que a missão de Deus permeie tudo o que ela faz - da adoração ao testemunho -, formando membros para o discipulado. Ela preenche a lacuna entre o alcance [para fora] e a vida congregacional [para dentro], já que, em sua vida comunitária, a igreja encarna a missão de Deus”. Missão não é uma das funções da igreja, mas seu propósito de existir. Missão como apenas uma função pode ser vista na maneira como muitas igrejas têm 105Teologia Bíblica da Missão | FTSA | um departamento de missão, que normalmente supervisiona o dinheiro e o trabalho dos missionários enviado para terras estrangeiras. Missão não se trata de departamento, antes é de sua essência, da sua natureza da qual a igreja não existe para outra fi nalidade. Ela é povo missional de Deus onde todos são preparados e equipados para participar na missão de Deus no mundo. Culto, governo, formação espiritual de adultos e crianças, ministérios... tomam um novo signifi cado. Estes aspectos da vida comunitária da igreja nunca deixarão de existire, na verdade, se tornam ainda mais importantes. Nós nos reunimos em classes ou pequenos grupos para desenvolvimento da fé, adorar e cultuar a Deus, discernir a nossa vocação, e planejar juntos como vamos viver nosso chamado missional em nossa comunidade e em nossas esferas de infl uência. O governo da igreja está principalmente focado e se perguntando como a igreja toda pode viver o seu propósito no ritmo da comunhão (ad intra) e do compartilhar (ad extra) como uma comunidade já enviada. Isso altera as conversas que temos ao redor das reuniões, como por exemplo, em vez de apenas perguntarmos se o orçamento está equilibrado, passamos a perguntar se o orçamento refl ete nosso propósito como uma igreja missional. A igreja missional é aquela que vive como um sinal da presença de Deus no mundo por meio de todas as suas atividades/ministérios internas e externas. As atividades e práticas internas, tais como adoração, estudo da Bíblia, ministérios com as crianças e jovens, o cuidado um do outro, assumem um signifi cado mais profundo. O foco dessas atividades internas está em capacitar/equipar as pessoas a desenvolverem sua fé e identifi carem sua vocação ou dom para o serviço. Um serviço que é vivido em ministérios tanto para dentro como para fora. Na igreja missional, o papel dos pastores é “preparar os santos para a obra do ministério” (Ef 4:12). Trata-se do ministério (diaconia = serviço) comum a todos, conforme entendeu o apóstolo Paulo ao afi rmar que | Teologia Bíblica da Missão | FTSA106 “tudo isso provém de Deus, que nos reconciliou consigo mesmo por meio de Cristo e nos deu o ministério da reconciliação” (2 Co 5:18). Todo discípulo tem esse ministério! Nenhum novo nascido precisa rogar ao Espírito de Deus que dê o ministério da reconciliação. Ao nascer de novo, nasce também para o serviço de ser um instrumento para a reconciliação das pessoas com Deus, com elas mesmas, com o outro e com a criação. Quem prepara os santos para esse serviço são os pastores e mestres. Esse discípulo conforme ruma a maturidade em Cristo, pode e deve buscar essa preparação, mas os pastores e mestres não podem se esquecer dessa tarefa, porque “todo o corpo, ajustado e unido pelo auxílio de todas as juntas, cresce e edifi ca- se a si mesmo em amor, na medida em que cada parte realiza a sua função” (Ef 4:16). A tarefa prioritária de um pastor é mobilizar, capacitar e supervisionar o povo de Deus para que seja um povo missional. Para isso, é fundamental discernir o papel e a presença da liderança na igreja. Infelizmente ainda funcionamos com a mentalidade do líder burocrático, eleito ou escolhido para atuar na igreja. Ninguém deveria ser líder na igreja se não fosse com o propósito de estar serviço da missão de Deus. Isso passa fundamentalmente pela visão pastoral. É, sim, responsabilidade pastoral mobilizar, treinar e capacitar a liderança com tal e para tal visão. Uma liderança que não está a serviço de Deus e sua missão tende a ser causadora de problemas e se muitos se acham donos da igreja. Sim, a igreja tem dono: Jesus! E este disse: “edifi carei a minha igreja” (Mt 16:18). A igreja é dEle, Jesus, por esse motivo: “a qual ele comprou com o seu próprio sangue” (At 20:28). Se alguma pessoa da igreja, pastores, líderes ou outra qualquer quiser ser dona da igreja, basta morrer na cruz e derramar seu sangue por ela! Ou seja, isso nunca acontecerá porque foi “mediante a oferta do corpo de Jesus Cristo..., tendo oferecido, para sempre, um único sacrifício pelos pecados, assentou-se à destra de Deus, aguardando, daí em diante, até que os seus inimigos sejam postos por estrado dos seus pés. Porque, com uma única oferta, aperfeiçoou para sempre quantos estão sendo santifi cados” (Hb 10:10- 14). A igreja não é nossa a ponto de acharmos que ela nos pertence. A igreja é de Jesus! 107Teologia Bíblica da Missão | FTSA | Citei aqui a experiência da pastora Stephanie Lutz Allan que afi rmou que “queríamos uma igreja maior para acariciar nossos egos”. Como é fácil desviar os motivos pelos quais a igreja existe. Pensamos que estamos realizando a missão, mas estamos infl ando nosso ego para termos uma igreja maior, mais vibrante, mais tudo. A grande pergunta que alguém que se converteu à perspectiva missiológica será sempre a mesma: - “para que?” Para que queremos um culto mais vibrante? Para que realizaremos um acampamento de carnaval? Para que iremos reformar a igreja? Para que criaremos uma programação aos jovens? Para que dizimamos? E assim por diante. Uma igreja, um pastorado, uma liderança que não pergunta para que não se converteu à missão de Deus. Pense nisso tudo e reflita você mesmo. Caso você já seja ou está se preparando para ser um pastor, para que o é ou será? Caso seja um líder, para que o é? Se sua igreja não é uma igreja missional, ela existe para que? É impossível participar da vida de Jesus sem que também participemos da sua missão. Concluindo, Deus tem uma missão para com o mundo e quer realizá-la por meio nós, sua igreja, comprada pelo sangue de Jesus. Nossa missão é cumprir a missão de Deus no mundo. Lembre-se: igreja não é um prédio onde vamos; igreja é o que você e eu somos: “vós sois”. Lembre-se mais, já estamos em missão, já estamos enviados, porque “assim como o Pai me enviou, eu também vos envio”. Somos os agentes missionais de Deus que buscam a transformação das pessoas e do mundo. Sem isto, a igreja jamais será uma igreja missional. Outra impossibilidade é separar a igreja do reino, que é que passamos a refl etir. 2. O reino de Deus e a sua justiça Como cristãos, cremos que a Bíblia aponta para a história da renovação e restauração do justo domínio-governo de Deus sobre toda a criação. É a história do enfrentamento de Deus contra o pecado e a injustiça por amor ao mundo que Ele mesmo criou e segue amando. É a história que envolve seu povo eleito em sua jornada ao participar de sua missão redentora. | Teologia Bíblica da Missão | FTSA108 Nossas respostas às perguntas da justiça pública e da ação política devem ser encontradas nesta história. Não custa relembrar que “a igreja não é o Reino de Deus; o Reino de Deus cria a igreja e opera no mundo por intermédio dela” (Ladd, 2008, p. 124). George Eldon Ladd (Ladd, 2008, p. 116) ainda nos ensina que “no Novo Testamento, o Reino de Deus é a obra redentora de Deus na história para a derrota de seus inimigos e trazer aos homens as bênçãos do reinado divino”. De modo exortativo, Ladd (2008, p. 59) nos pergunta: “De onde tiramos a ideia de que o campo é a igreja? Jesus mesmo disse que o campo é o mundo” (p. 59). E Ladd (2008, p. 122) conclui afi rmando que “o Reino de Deus, como a atividade redentora e governo de Deus na pessoa de Cristo, criou a igreja e opera no mundo por meio da igreja”. Se a igreja foi criada por Deus como sua agência para a atividade redentora do Reino e que este Reino opera no mundo por intermédio dela, igreja, portanto ela já está convocada, por Jesus para que “buscar, pois, em primeiro lugar, o seu reino e a sua justiça” (Mt 6:33; também Lc 12:31). O reino de Deus é um reino de justiça! 2.1. A justiça na perspectiva bíblica Quando a criação de Deus foi corrompida pelo pecado, Ele partiu em uma longa jornada rumo à redenção. Deus escolheu Abraão e prometeu fazer dele um canal de bênção redentora para todas as nações. O caminho para que essa bênção se tornasse concreta nas vidas das famílias da terra deveria se dar pela constante prática da justiça, a partir de Abraão e sua descendência: “Abraão será o pai de uma nação grande e poderosa, e por meio dele todas as nações da terra serão abençoadas. Pois eu o escolhi, para que ordene aos seus fi lhos e aos seus descendentes que se conservem no caminho do Senhor, fazendo o que é justo e direito, para que o Senhor faça vir a Abraão o que lhe havia prometido” (Gn 18:18-19). Em outras palavras, a bênção ocorreria à medida que as pessoas que descendessem de Abraão se tornassemum modelo atraente de justiça, dando testemunho para as nações - missão centrípeta - que o Senhor era o Deus vivo e justo. 109Teologia Bíblica da Missão | FTSA | Quando Deus redimiu Israel do Egito, Ele chamou Seu povo para ser uma nação santa, uma luz para as outras nações que demonstrariam o seu amor e a sua justiça: Logo Moisés subiu o monte para encontrar-se com Deus. E o Senhor o chamou do monte, dizendo: “Diga o seguinte aos descendentes de Jacó e declare aos israelitas: ‘Vocês viram o que fi z ao Egito e como os transportei sobre asas de águias e os trouxe para junto de mim. Agora, se me obedecerem fi elmente e guardarem a minha aliança, vocês serão o meu tesouro pessoal dentre todas as nações. Embora toda a terra seja minha, vocês serão para mim um reino de sacerdotes e uma nação santa’. Essas são as palavras que você dirá aos israelitas” (Êx 19:3-6). Os israelitas deveriam ser uma comunidade radiante e atraente, um showroom, uma vitrine para o mundo para mostrar como viver a aliança com o Senhor que transforma os povos. Eles deveriam ser um reino sacerdotal para mediar as bênçãos de Deus para as nações. E, assim, Deus entregou a Torá para eles, a Lei, para orientar suas vidas para encarnar o amor e a justiça. Este pacto no Sinai era o centro de tudo, o restante do Antigo Testamento é realmente apenas um comentário sobre esse Israel que não consegue ser uma luz para as nações. E os profetas surgem e denunciam sua rebelião para com essa aliança. Provavelmente nenhum profeta tem o tom mais grave do que Amós. Numa época em que os ricos viviam no luxo ostensivo (3:12, 4:1, 6:4-6), onde os pobres eram ignorados e a eles se negava a justiça (2:7, 5:12, 6:6), onde as práticas comerciais estavam preocupadas apenas com o lucro (2:6-7, 5:11-12), onde a promiscuidade sexual abundava (2:7), onde os líderes políticos estavam mais preocupados com a sua notoriedade do que com a justiça (6:1) - tudo soa muito parecido com os nossos próprios dias - Amós vem com palavras muito afi adas: “Eu odeio seus cultos. Mostrem-me uma comunidade verdadeiramente justa!”. Leiamos: Eu odeio e desprezo as suas festas religiosas; não suporto | Teologia Bíblica da Missão | FTSA110 as suas assembleias solenes. Mesmo que vocês me tragam holocaustos e ofertas de cereal, isso não me agradará. Mesmo que me tragam as melhores ofertas de comunhão, não darei a menor atenção a elas. Afastem de mim o som das suas canções e a música das suas liras. Em vez disso, corra a retidão como um rio, a justiça como um ribeiro perene! (Am 5:21-24). Amós talvez ainda acreditasse que Israel pudesse ser curado e cumprisse seu chamado, por isso os chama ao arrependimento. Isaías, por outro lado, vê juízo vindouro sobre Israel por sua infi delidade. Contudo, isso não signifi ca o fi m da missão de Deus. Alguém ainda poderia ser levantado e este fi nalmente traria justiça às nações. Quem é este? Eis o meu servo, a quem sustento, o meu escolhido, em quem tenho prazer. Porei nele o meu Espírito, e ele trará justiça às nações. Não gritará nem clamará, nem erguerá a voz nas ruas. Não quebrará o caniço rachado, e não apagará o pavio fumegante. Com fi delidade fará justiça; não mostrará fraqueza nem se deixará ferir, até que estabeleça a justiça sobre a terra. Em sua lei as ilhas porão sua esperança (Is 42:1-4). Isaías e os outros profetas anteviram o dia que o Senhor viria, quando Deus iria estabelecer seu governo sobre toda a terra (Is 2:1-4). Ele seria realizado por seu rei escolhido no poder do Espírito Santo (Is 42:1-4). O povo de Deus seria reunido, curado e purifi cado (Ez 26:14-27) para que pudessem participar novamente na missão de Deus de libertar o mundo inteiro da escravidão do pecado e da injustiça. Israel sonhou e esperou por este dia até que Jesus de Nazaré veio, anunciando que o dia que Israel estava esperando fi nalmente havia chegado: “O Espírito está sobre mim”. Jesus anuncia a inauguração do reino da justiça de Deus, para libertar os oprimidos, para trazer justiça à terra (Mc 1:15; Lc 4:18ss). É essa boa notícia que Jesus proclama. Deus 111Teologia Bíblica da Missão | FTSA | estava intervindo na história com amor e poder por meio de Jesus, pelo poder do Espírito, para restaurar toda a vida humana, como também, toda a criação, para viver novamente sob o governo justo e misericordioso de Deus. Este é um anúncio que não pode ser encaixado apenas no âmbito privado-pessoal, marcas de um protestantismo individualista. Esta é uma notícia de primeira página de um jornal. O tema da justiça do reino de Deus ainda é um tema negligenciado na missão da igreja. Alguns pensam que a justiça trata apenas daquilo que Deus fez por nós ignorando aquilo que ele quer fazer por nosso intermédio que é buscar a sua justiça, no sentido da sua promoção na humanidade: “Mas, buscai primeiro o reino de Deus, e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas” (Mt 6:33). Nossa prioridade é viver o reino de Deus em sua plenitude e compreender que esse reino é reino de justiça. Deus é um apaixonado pela justiça: “o Senhor é um Deus justo” (Ed 9:15). 2.2. A justiça do reino em contraponto à justiça da sociedade Jesus nos apresenta uma parábola ilustrativa de como se dá a prática da justiça no reino de Deus como referência para a nossa própria prática: Esta é uma ilustração do Reino dos Céus: O dono de uma propriedade saiu certa manhã para contratar trabalhadores para a sua colheita. Ele combinou com eles de pagar um denário por dia e mandou todos trabalharem. Duas horas mais tarde, ele estava passando por uma praça e viu alguns homens por ali, à espera de serviço, então mandou aqueles também para os seus campos, dizendo que pagaria no fi m do dia aquilo que fosse justo. Ao meio-dia, e novamente perto das três da tarde, ele fez a mesma coisa. Às cinco horas daquela tarde ele estava novamente na cidade, viu mais alguns homens por ali, e perguntou: Por que vocês estão parados o dia inteiro? Porque ninguém nos contratou, responderam eles. Então vão e juntem-se aos outros nos | Teologia Bíblica da Missão | FTSA112 meus campos, disse ele. À noite ele disse ao pagador que chamasse aos homens e lhes pagasse, começando pelos últimos. Quando os homens contratados as cinco horas foram pagos, cada um recebeu um denário. Assim, quando os homens contratados mais cedo vieram para receber o que era seu, pensavam que receberiam muito mais. Porém, a eles também foi pago um denário. Eles protestaram: Aqueles companheiros só trabalharam uma hora, e o senhor assim mesmo pagou-lhes exatamente a mesma quantia que pagou para nós, que trabalhamos o dia inteiro e nos cansamos do calor”. Amigo, respondeu o homem a um deles, eu não fui injusto com você! Você não aceitou trabalhar o dia inteiro por um denário? Receba o denário e vá embora. É meu desejo pagar o mesmo a todos. É contra a lei presentear o meu dinheiro se eu quiser? Você se zanga por que eu sou bondoso. E assim é que os últimos serão os primeiros, e os primeiros serão os últimos (Mt 20:1-16). O reino de Deus é semelhante a um proprietário que saiu de manhã cedo para contratar trabalhadores. Ele contratou alguns e acertou com eles aquilo que seria considerado normal, pagar o salário de um dia de trabalho. Depois, em mais três períodos ao longo do dia ele resolveu continuar contratando outros trabalhadores que deveriam trabalhar apenas até o fi nal daquele dia. No entanto, ele parecia estar inquieto porque alguns ainda estavam desempregados. Ele saiu de novo, antes do pôr do sol, e viu outro grupo em pé e à espera de emprego. Ele perguntou por que eles estavam esperando o dia todo sem fazer qualquer trabalho. Eles responderam: “Porque ninguém nos contratou”. Assim, mesmo faltando pouco tempo para acabar aquele dia, ele também os contratou. Jesus estava descrevendo uma situação triste e concreta para aquela cultura. Aquela era uma sociedade irresponsável que não cuidava de todos os seuscidadãos; uma sociedade injusta. Essas pessoas estavam esperando desde cedo até a noite, por alguém que as contratasse, 113Teologia Bíblica da Missão | FTSA | pois, caso contrário, suas famílias poderiam passar fome. Estavam desesperadas por trabalho. O fazendeiro-proprietário saiu várias vezes à procura de desempregados, porque ninguém estava interessado neles. Ele entendia o que signifi cava estar desempregado e fi car na rua sem fazer nada. Quando ele conversa com aqueles últimos contratados, a resposta que recebeu foi: “ninguém nos quer, ninguém reparou que estamos aqui esperando, ninguém nos perguntou por que nós estávamos esperando todo o dia, e ninguém se importa conosco”. O desemprego não é apenas um problema econômico, mas também um problema espiritual. Ela desmoraliza pessoas. Ele destrói a personalidade dos desempregados, afeta a autoestima. É um juízo triste em nossa sociedade quando vidas humanas são desperdiçadas porque ninguém se importa com elas. Nesta parábola, o que é importante notar é que o fazendeiro saiu repetidas vezes para contratar trabalhadores. Podemos ainda sugerir que o proprietário: • Não encontra falta neles por não estarem trabalhando; • Não diz a eles que era sua culpa estarem desempregados; • Não diz que tinham abandonado a escola e desperdiçado as oportunidades dadas a eles; • Não diz que eram vagabundos; • Não diz que não mereciam qualquer atenção das pessoas de bem que trabalham duro na sociedade. O fazendeiro sabia muito bem que eles estavam nessa situação porque os poderosos da sociedade, os ricos e os infl uentes, mesmo os mais instruídos e os religiosos, também eram responsáveis por aquela terrível situação em que muitas pessoas não tinham trabalho. Nos Evangelhos, Jesus criticou os líderes religiosos, os líderes políticos e os seus próprios discípulos. Raramente criticou as massas. Ele sabia muito bem dos seus defeitos, suas fraquezas. Esses desempregados não eram “santos”, mas Jesus também conhecia sua situação, pois conta essa história com riqueza de detalhes. Ele teve compaixão porque eram como ovelhas sem pastor. | Teologia Bíblica da Missão | FTSA114 No reino de Deus não há injustiça. Aqueles que trabalharam o dia inteiro tem salário de um dia inteiro. Aqueles que trabalharam apenas uma hora também tem o salário de um dia inteiro. Esta é a justiça do reino. Isto é o que signifi ca justiça. Na sociedade em que vivemos, aqueles que têm um bom começo de vida, aqueles que são infl uentes e bem-educados, são os que recebem mais. Aqueles que correm mais rápido são recompensados. Aqueles que são fortes irão explorar os fracos. Esta é a justiça do mundo. Na perspectiva do reino, os que são poderosos e infl uentes não devem ter mais às custas dos que tem menos. A sociedade é apenas uma extensão dos mais desfavorecidos, dos defi cientes, dos pobres e dos oprimidos. A aritmética de Deus é diferente. Ele não adiciona nem calcula os salários como nós. Ele não corrige os salários de acordo com o número de horas que temos trabalhado. A justiça social é uma parte integrante da mensagem de Cristo e não diminui sua mensagem de salvação. N.T. Wright (2010, s/p) disse: Toda a questão dos evangelhos é que a vinda do reino de Deus na terra como no céu é precisamente não a imposição de uma tirania estranha e desumanizadora, mas sim o confronto de uma tirania estranha e desumanizadora com a novidade de um Deus — o Deus reconhecido em Jesus - que é radicalmente diferente de todos eles, e cuja justiça que irrompe procura resgatar e restaurar a humanidade genuína... Sim, Jesus realmente, como diz Paulo, morreu por nossos pecados, mas a sua agenda toda de lidar com o pecado e todos os seus efeitos e consequências nunca foi sobre salvar almas individuais do mundo, mas sobre salvar humanos para que eles pudessem se tornar parte de seu projeto de salvar o mundo. “Meu reino não é desse mundo”, ele disse a Pilatos; se fosse, ele teria liderado um movimento de resistência armada como os outros profetas de reinos do mundo. Mas o reino que ele trouxe foi enfaticamente para esse mundo, o que signifi cou e signifi ca que Deus está presente no 115Teologia Bíblica da Missão | FTSA | espaço público e não irá se retirar dele novamente, ele, sim, derrotou as forças tanto da tirania como do caos - tanto do modernismo estridente quanto do pós-modernismo fofo, se você preferir - e estabeleceu em seu lugar uma norma justiça restauradora e curativa... A justiça de Deus e a crítica aos sistemas de dominação aparecem algumas vezes no Novo Testamento. A mensagem de Jesus é centrada no conceito de reino de Deus. As primeiras palavras de Jesus no Evangelho de Marcos são: “fi nalmente chegou o tempo” e “o reino de Deus está próximo! Afastem-se dos seus pecados e ajustem sua vida a esta gloriosa mensagem!” (Mc 1:14). O reino de Deus carrega também um signifi cado político. As pessoas a quem Jesus falou viviam em reinos governados por reis poderosos e elites ricas. As pessoas deveriam, portanto, perceber o contraste imediato entre o reino de Herodes ou de César e o proposto reino de Deus. Poderiam se questionar como seria a vida na terra se Deus fosse rei e não os príncipes daquele mundo. O reino de Deus era para esta terra e não apenas para a vida após a morte. Por isso Jesus nos ensinou a orar: “Venha o Teu reino, seja feita a sua vontade, assim na terra, como já no céu”. O público primário de Jesus foi a classe camponesa e os excluídos das cidades e povoados. A Oração do Senhor fala incisivamente sobre as situações urgentes daquela camada da população. Vemos pelo menos dois temas interessantes: • “Dá-nos hoje o nosso pão de cada dia” - uma preocupação real daqueles que lutavam pela sobrevivência diária; • “Perdoe as nossas dívidas” - geralmente os cristãos de hoje compreendem as dívidas como pecados, mas as pessoas para as quais Jesus falou entenderam o signifi cado literal. A dívida fi nanceira era uma questão primária de sobrevivência na vida camponesa. As chamadas bem-aventuranças, que se encontram no Sermão do Monte de Mateus e em seu correlato no livro de Lucas. Mateus apresenta | Teologia Bíblica da Missão | FTSA116 a versão um pouco espiritualizada em relação a Lucas. Enquanto em Mateus aparece a expressão pobre de espírito, em Lucas aparece apenas pobre. De modo semelhante, em Mateus lemos sobre a fome e sede de justiça, enquanto em Lucas, lemos sobre os que estão com fome. Se é assim, a vinda do reino de Deus implica também em alimento para o faminto. 2.3. O aspecto político do reino e da prática da justiça Jesus é o Senhor. Esta afi rmação tem um signifi cado político, bem como um signifi cado religioso, como sendo um contraste com César, o imperador romano, que também era chamado de senhor. Ou seja, afi rmar o senhorio de Cristo era negar o senhorio de César, pelo menos no sentido absoluto de submissão. Cristo e César foram ambos também referidos como fi lhos de Deus, salvador, rei dos reis e senhor dos senhores. Os títulos de César cabem bem em Jesus em seu senhorio escatológico. O senhorio de Cristo se contrapõe ao senhorio de César apontando para o justo reino de Deus e os injustos reinos deste mundo. É importante notar que os primeiros cristãos tinham uma percepção muito negativa do Império Romano. Ele era chamado de Besta do Abismo, a Grande Prostituta. Sua capital, Roma, era alvo de crítica a ponto de usarem a palavra R-O-M-A como acrônimo para Radix Omnium Malorum Avaritia, signifi cando a raiz de toda cobiça má. Aquele domínio político era a personifi cação da ganância por meio de sistemas de dominação, ou seja, a raiz de todo o mal. Apesar do Império Romano ter sido melhor que a maioria dos impérios em muitos sentidos, suas políticas impactaram negativamente milhões de vidas. A população sofreu com guerras brutais de conquista, ricos tributando os pobres, camponeses que perderam suas terras para grandes proprietários, a migração de camponeses paraas cidades, aumentando a miséria urbana. Ainda, sabemos que a cruz representa o maior símbolo da salvação que Deus oferece por meio de Jesus. Por outro lado, não podemos esquecer que Jesus foi executado pelo sistema de dominação do império de sua 117Teologia Bíblica da Missão | FTSA | época. Como disse Pilatos, “Não sabe que eu tenho autoridade para libertá-lo e para crucifi cá-lo?” (Jo 19:10). Esse sistema de dominação disse não a Jesus. A cruz encarna o caminho de transformação pessoal, mas também acusa os sistemas de dominação do mundo que são construídos sobre poder, riqueza e avareza perversa. Nesse sentido, sistemas sociais injustos moldam e afetam nossas vidas e as vidas de outras pessoas. O racismo é um dos muitos exemplos. Sistemas afetam a forma como pensamos e percebemos a nós mesmos e aos outros. Sistemas também afetam as condições materiais de vida. As elites ricas em nosso tempo, como nos tempos antigos, usam o poder e riqueza para estruturar o sistema econômico em seu próprio interesse e este sistema é mantido pelos poderes políticos. A concentração de riqueza não é resultado do trabalho duro individual e nem é um resultado natural e necessário de um sistema de livre mercado. Ao contrário, é um produto do sistema econômico que favorece os ricos em detrimento dos pobres. É óbvio que sempre há exceções, ainda que raras, mas os ricos usam sua infl uência para estruturar a política em seu próprio interesse. Este é um assunto delicado para muitos de nós, especialmente para os que desfrutam de uma situação fi nanceira confortável. A questão não é a bondade do indivíduo ou virtude dos ricos ou dos pobres. A questão é a forma como a sociedade está estruturada em torno de seus sistemas. Como vamos usar a nossa riqueza e infl uência? Usaremos para trazer mudanças ou para apoiar políticas de interesse próprio? Precisamos de mais pessoas como Mateus, João, Zaqueu e José de Arimatéia, que conviveram com Jesus, pessoas fi nanceiramente confortáveis, desencantadas com a injustiça sistêmica e comprometidas com o reino de Deus. Levar a justiça do reino de Deus a sério signifi ca defender a política de compaixão, ou a política do reino. Um tipo de política que suspeita dos sistemas poderosos que formam classes ricas privilegiadas e poderosas, usando seu poder não para defender, mas para esmagar os menores deste mundo. | Teologia Bíblica da Missão | FTSA118 Há muito preconceito, mau entendimento e, consequentemente, prejuízo para a missão da igreja ter uma compreensão superfi cial sobre a natureza do evangelho e sua presença na esfera pública. O evangelho que Jesus pregou não possuiu apenas a dimensão da salvação individual com a promessa de um futuro mundo espiritual. Em Jesus Cristo, o reino no fi nal da história cósmica foi revelado e realizado. É um anúncio que tem por objetivo restaurar toda a história do reino de Deus sobre todas as nações, ao longo de toda a vida humana, sobre toda a criação. E este reinado invadiu a história no passado e continua invadindo agora. Em nossa cultura, a Bíblia tem sido reduzida a uma história religiosa que é relegada ao domínio privado ou âmbito pessoal da vida. No entanto, esta Bíblia também trata da história de todo o universo, contada a partir da perspectiva teológica. Ela começa com a criação e termina com a renovação de toda a criação caída. A história humana na Bíblia e o evangelho de Cristo são conteúdos públicos para todas as pessoas. Além da história bíblica, devemos aprender com a história da igreja. Há uma rica e variada história de engajamento público da igreja e somos tolos se a ignorarmos. Ao olhar para o passado, podemos nos benefi ciar tanto do pensamento como da prática daqueles que vieram antes de nós e, assim, esperançosamente evitar seus erros. O reino já está aqui, entre nós, mas ainda não alcançou sua plenitude, é a tensão já - ainda não. O poder do Espírito de Deus para curar, renovar e libertar já está presente, mas a aniquilação de toda a oposição ao governo de Deus só será uma realidade cabal no futuro: Então virá o fi m, quando ele entregar o Reino a Deus, o Pai, depois de ter destruído todo domínio, autoridade e poder. Pois é necessário que ele reine até que todos os seus inimigos sejam postos debaixo de seus pés. O último inimigo a ser destruído é a morte. Porque ele tudo sujeitou debaixo de seus pés. Ora, quando se diz que tudo lhe foi sujeito, fi ca claro que isso não inclui o próprio Deus, que tudo submeteu a Cristo. Quando, porém, tudo lhe estiver sujeito, então o próprio Filho 119Teologia Bíblica da Missão | FTSA | se sujeitará àquele que todas as coisas lhe sujeitou, a fi m de que Deus seja tudo em todos (1 Co 15:24-28). Deus deu a seu povo o antegozo do reino. Vivemos no tempo da sobreposição da velha era com a nova era, onde as forças do mal, da injustiça e da morte coexistem com o poder do Espírito de Deus que traz liberdade, cura e libertação. A batalha será empenhada até o julgamento fi nal. Lesslie Newbigin (1954, p. 153-154) comenta sobre essa sobreposição: O signifi cado dessa “sobreposição das eras” em que vivemos, o tempo entre a chegada de Cristo e sua vinda novamente, é o tempo dado para o testemunho apostólico da Igreja até os confi ns da terra. O fi m de todas as coisas, que foi revelado por Cristo, é, por assim dizer, retido até que o testemunho seja levado para o mundo inteiro a respeito do julgamento e salvação revelado em Cristo. A implicação de uma verdadeira perspectiva escatológica está na obediência missionária, e a escatologia que não emite tal obediência é uma escatologia falsa A missão da igreja é tão grande quanto a vida humana, e isso inclui a política que não pode ser confundida com politicagem e nem partidos políticos. Política enquanto exercício da nossa cristã na polis, de onde vem o sentido de política. Este testemunho de que Newbigin fala não é simplesmente evangelismo e missões. A igreja é testemunha do senhorio de Cristo sobre toda a vida humana. Sua missão é dar a conhecer as boas notícias sobre o domínio de Deus sobre toda a vida humana. O chamado da igreja é para servir ao Senhor em todas as esferas de nossa vida, nossos casamentos e famílias, nossas escolas e tecnologias, nossos trabalhos e nosso lazer. A procura da justiça é fundamental para a história bíblica e cristã e central para a tarefa da política. Como já afi rmamos, a justiça é um tema central na história bíblica. É a justiça cristã que protege os direitos humanos individuais e coletivos para expressarem-se como a imagem de Deus. Certamente isso inclui especialmente os pobres, os mais vulneráveis | Teologia Bíblica da Missão | FTSA120 e fracos em nosso meio. Mas não pode cair no individualismo, que caracteriza tanto a política ocidental, que protege apenas ou principalmente os direitos dos indivíduos. Ela, a justiça cristã, também irá proteger o espaço social para instituições como o casamento, família, escola, empresas e muitos outros tipos de associações para fl orescerem e cumprirem o chamado de Deus. Assim, se a ordem da criação é a base para a justiça, ela será ainda mais abrangente. Ela irá incluir a natureza. Além disso, em um mundo cada vez mais global, a justiça não deve se concentrar apenas em assuntos internos domésticos. A justiça pública cristã vai além de uma política de auto interesse nacional, alcançando políticas de justiça internacional. “Toda a terra é minha”, diz o Senhor. Resumindo, a justiça cristã oferece uma visão abrangente que refl ete a amplitude do governo total de Deus sobre toda a criação. É triste ver que alguns cristãos não pensam e nem agem com essa consciência e com base bíblico-teológica. A Palavra de Deus não é nos revela que Deus não é neutro em relação a injustiça no mundo. O amor “não se alegra com a injustiça, mas regozija-se com a verdade” (1 Co 13:6). O apóstolo João afi rma que “Toda injustiça é pecado” (1 Jo 5:17). Esse mesmo apóstolo, em sua narrativasobre as “últimas coisas” (Apocalipse), animando e consolando a comunidade sofredora especialmente debaixo do jugo do império romano, exilado na ilha de Patmos, relata que “o tempo está próximo” (Ap 22:10) e assim conclama: “Continue o injusto fazendo injustiça, continue o imundo ainda sendo imundo; o justo continue na prática da justiça, e o santo continue a santifi car-se” (Ap 22:11). Esses dois caminhos sempre estarão diante do povo Deus! Caminhos que revelam duas marcas imprescindíveis daqueles e daquelas que foram resgatados pelo Cordeiro de Deus. O caminho da prática da justiça e caminho da prática da santidade. A missão de Deus não se faz de qualquer jeito ou até mesmo nem do nosso jeito. É missão a partir do caráter de Deus, que é justo e santo! Deus nos separou (santidade) para Ele para praticarmos a justiça. Nossa indignação deve estar alinha ao nosso “Deus é justo juiz, 121Teologia Bíblica da Missão | FTSA | Deus que sente indignação todos os dias” (Sl 7:11). Fiquemos vigilantes do nosso individualismo segregador e mantenedor dos sistemas injustos deste mundo que avilta o propósito de Deus para a humanidade. Jamais se esqueça “porque aprouve a Deus que, nele, residisse toda a plenitude e que, havendo feito a paz pelo sangue da sua cruz, por meio dele, reconciliasse consigo mesmo todas as coisas, quer sobre a terra, quer nos céus” (Cl 1:19-20). Conclusão Muitos cristãos e igrejas ignoram, porque desconhecem, o entendimento da missão por causa da ausência de fundamentos bíblicos e teológicos. Estes cristãos aprenderam a ler a Bíblia para si mesmo, a favor e em benefício de si mesmo, que gera uma espiritualidade/devocional individualista. Lemos a Palavra de Deus para sermos encorajados e motivados para cumprir a missão de Deus no mundo. Sem essa lente hermenêutica as pessoas irão desenvolver uma espiritualidade templocêntrica, domingueira, intramuros, com alta visibilidade do clero! Conquanto não seja possível enquadrar todas as comunidades cristãs num único jeito de ser, acredito que há uma mentalidade vigente, uma certa maneira de pensar a igreja, que se torna representativa da grande maioria das comunidades cristãs. Creio que podemos identifi car esta mentalidade eclesiástica à luz de quatro grandes conceitos, ou paradigmas, a saber: culto, clero, domingo e templo (ênfase minha) (Kivitz p. 39). Umas das principais responsabilidade para fornecer estas convicções missionais, por meio de ensino sólido na igreja é dos pastores/as. O ensino teológico na igreja, que pode usufruir de parcerias com instituições teológicas que particularmente estão comprometidas com a missão de | Teologia Bíblica da Missão | FTSA122 Deus, como a Faculdade Teológica Sul Americana, visando fazer com que as pessoas tenham nas Escrituras o fundamento e a base da missão. A missão de Deus somente pode ser realizada com compaixão que revela não apenas quem e como somos, mas também revela essa face do Cristo que se compadece. A tensão entre o já e o ainda-não precisa estar em nossas mentes. Enfatizar o já em detrimento do ainda-não resulta em pessoas que pensam que são os nossos esforços humanos que produzem o reino, ou, pior ainda, que o objetivo fi nal de Deus é melhorar as condições da vida. Por outro lado, enfatizar o ainda-não em detrimento do já resulta em pessoas que pensam que qualquer envolvimento em questões sociais é um desperdício de tempo, porque um dia tudo acabará. Manter os dois juntos é a única possibilidade para que o engajamento no aqui e agora revele nossos paradigmas celestiais, do reino por vir, o já de Deus no ainda-não da humanidade. Devemos também estar atentos para proclamar verbalmente o evangelho sem excluir a sua manifestação concreta na sociedade. Este é o ponto em que a nossa teologia realmente está na superfície. Ou, como afi rma David Bosch (2002, p. 480), “as relações entre as dimensões evangelística e social da missão cristã constitui uma das áreas mais difíceis da teologia e da prática da missão”. A missão integral é a proclamação e a demonstração do Evangelho, em palavras e obras. Não é simplesmente que a evangelização e o compromisso social tenham que ser levados a termo juntos. Declaração da Rede Miqueias sobre missão integral muito nos auxilia: A missão integral… é a proclamação e demonstração do evangelho. Não signifi ca simplesmente que a evangelização e o compromisso social tenham que ser levados a termo lado a lado. Antes, na missão integral, a nossa proclamação tem consequências sociais enquanto convocamos as pessoas ao amor e ao arrependimento em todas as áreas da vida. E o nosso compromisso social tem consequências 123Teologia Bíblica da Missão | FTSA | para a evangelização enquanto damos testemunho da graça transformadora de Jesus Cristo. Se assumimos uma postura de omissão diante do mundo, traímos a Palavra de Deus, a qual requer de nós que O sirvamos. Se assumirmos uma postura de omissão à Palavra de Deus, não temos nada que oferecer ao mundo. A justiça e a justifi cação pela fé, a adoração e a fé política, o espiritual e o material, a transformação pessoal e a mudança estrutural estão unidas entre si. Ser, fazer e dizer estão no mesmo coração de nossa tarefa integral. Referências ALLEN, Stephanie Lutz. Cultivating mission. Disponível em: www. cultivatingmission.org. Acesso em 16 fev. 2019. BARRET, Lois Y (Ed.). Treasure in clay jars: patterns in missional faithfulness. Grand Rapids: Eerdmans, 2004. BOSCH, David J. Transforming mission: paradigm shifts in theology of mission. Maryknoll: Orbis Books, 1991. GUDER, Darell L. Missional church: a vision for sending church in North America. Grand Rapids: Eerdmans, 1998. KIVITZ, Ed René. Quebrando paradigma. São Paulo: Abba Press Editora Ltda, 7 ed., 2008. WRIGHT, N.T. The kingdom of God and the need for social justice. Disponível em: http://godspace.wordpress.com/2010/03/15/nt-wright- the-kingdom-of-god-and-the-need-for-social-justice. Acesso em 16 fev. 2019. NEWBIGIN, Lesslie. The household of God: lectures on the nature of the church. New York: Friendship Press, 1954. POLITEIA. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Politica. Acesso em: 12 jan. 2019. VAN GELDER, Craig. The essence of the church: a community created by the Spirit. Grand Rapids: Baker Books, 2000. Rua: Martinho Lutero, 277 - Gleba Palhano - Londrina - PR 86055-670 Tel.: (43) 3371.0200trágicas na vida da igreja! É necessário mais do que cuidado; é necessário uma leitura missional de toda a Escritura! 11Teologia Bíblica da Missão | FTSA | Saiba mais Você vai ouvir falar muito desse conceituado missiólogo chamado David Jacobus Bosch, em particular, seu livro chamado Missão transformadora: mudanças de paradigma na teologia da missão. Sugerimos fortemente que você compre, pois lhe será muito útil em sua vida e ministério. Nasceu em 13 de dezembro de 1929 e morreu 15 de abril de 1992 em um trágico acidente automobilístico, uma perda irreparável. Ele foi membro da Igreja Reformada Holandesa na África do Sul (NGK). No Dia da Liberdade, 27 de abril de 2013, ele recebeu postumamente a Ordem do Baobá do Presidente da África do Sul por sua luta altruísta pela igualdade e dedicação ao desenvolvimento da sociedade, e viveu os valores do não–racismo diante de sua própria cultura e igreja que dava suporte ao apartheid, palavra do idioma africânder que signifi ca separação. Esse foi o nome dado ao sistema político que esteve em vigor na África do Sul e que exigia a segregação racial da população negra, que vigorou entre 1948 e 1994, comandado pela minoria branca daquele país. Juntamente com seu vasto conhecimento no campo dos estudos bíblicos, teologia, história da igreja e missiologia, David Bosch tinha a rara capacidade de destilar o discernimento e a sabedoria para atender às demandas do dia. Sua ampla simpatia por todos os que constituem a família cristã e seu dom de comunicação fi zeram dele um amigo confi ável e respeitado onde quer que fosse. Foi um infl uente missiólogo, uma expressão contra cultural, um profeta entre nós, e mesmo depois de sua morte, continua sendo um dos mais infl uentes e disseminadores da missiologia cristã. | Teologia Bíblica da Missão | FTSA12 Vamos tomar alguns exemplos. Se entendermos que missão é a pregação do Evangelho em terras onde nunca se ouviu falar de Jesus – a chamada missões transculturais, deixamos de fora, entre outras coisas, nossa própria cultura (missões nacional ou cultural), como também todas as outras nações que já foram evangelizadas. Além disso, deixamos de fora todas as ações que não são obrigatoriamente “verbais” de lado, bem como não defi nimos quem é o seu agente. Aqui é evidente que se defi ne a missão como missões (no plural). Você já deve ter percebido como muitas igrejas focam mais em missões, especialmente pela enormidade de conferências e congressos de missões, tendo estes a primazia sobre os demais temas (como por exemplo, não se ouve com tanta frequência sobre congresso de diaconia, de educação cristã, entre outros). Só que existe outro extremo nessa história. Se, por um lado, corremos o risco de “fechar” demais o nosso conceito de missão, também corremos o risco de exagerarmos em sua “abertura”. Daí, convém lembrar a conhecida frase do missiólogo Stephen Neil (1959, p. 81), a qual diz “se tudo é missão, então nada é missão”. Ou seja, quando banalizamos o conceito de missão e entendemos que qualquer coisa feita pela igreja é cumprimento da obra missionária, essa falta de intencionalidade e consciência missional leva a uma tendência muito comum: a missão passa a ser manutenção, ou seja, a igreja passa a lutar apenas para manter suas conquistas, voltando-se para si e não para fora, mantenha o ad intra em detrimento do ad extra. E aqui vive-se uma inversão de foco: de monumento (templo) versus movimento. Tendo essa consciência e advertência bem diante de nós, precisamos buscar uma defi nição de missão que leve em consideração “toda a Escritura” porque somente ela “é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fi m de que o homem [e mulher] de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra” (2 Tm 3:16–17). Mas antes disso, vamos discernir agora o que não é missão. Em primeiro lugar, a missão não é da igreja, ela é de Deus. É muito comum 13Teologia Bíblica da Missão | FTSA | falarmos a missão da igreja. Mas, o certo mesmo é falarmos da missio Dei, cuja expressão signifi ca missão de Deus em latim. Esse termo será usado várias vezes, porque este é o que melhor expressa o conceito de missão. Afi rmarmos que a missão é Deus isso nos autoriza a desprezar a igreja? É por acaso plano de Deus realizar Sua missão no mundo sem a nossa participação ou a participação da igreja? Nunca! Não é isso que as Escritura revelam. O que signifi ca é simplesmente é colocar a igreja no seu devido lugar. E que lugar é este? O apóstolo Paulo responde: Deus, que criou todas as coisas, para que, pela igreja, a multiforme sabedoria de Deus se torne conhecida, agora, dos principados e potestades nos lugares celestiais, segundo o eterno propósito que estabeleceu em Cristo Jesus, nosso Senhor, pelo qual temos ousadia e acesso com confi ança, mediante a fé nele (Ef 3:10–12). A igreja é um instrumento de Deus para a realização da Sua missão no mundo. É “pela igreja” e não por causa da ou para a igreja. Note quão elucidadora é a preposição “pela” em grego: δια (dia) é uma preposição primaria que denota o canal de um ato: 1) através de 1a) de lugar 1b) de tempo 1c) de meios 1a1) com 1a2) em, para 1b1) por tudo, do começo ao fi m 1b2) durante 1c1) através, pelo 1c2) por meio de 2) por causa de 2a) o motivo ou razão pela qual algo é ou não é feito 2a1) por razão de 2a2) por causa de 2a3) por esta razão 2a4) portanto, 2a5) por este motivo A missão de Deus é instrumentalizada pela igreja. Ela é um canal, um meio pelo qual o próprio Deus usa para tornar conhecida sua multiforme sabedoria diante dos principados e potestades nos lugares celestiais, segundo o eterno propósito que estabeleceu em Cristo Jesus. Vamos | Teologia Bíblica da Missão | FTSA14 refl etir tudo isso mais à frente, especialmente esse fato de ela ser um instrumento, mas por hora é fundamental estabelecer a compreensão de que a missão não é da igreja, mas de Deus que por ela é servido e glorifi cado. Em segundo lugar, o conteúdo da missão não é a doutrina da igreja ou da denominação, mas sim o Evangelho do reino de Deus. O conteúdo da missão é toda a Escritura centralizada no reino de Deus, personifi cada e modelada na pessoa de Jesus de Nazaré́, em suas palavras (pregações/ ensinos) e obras (ações/manifestações) realizadas no poder do Espírito Santo. É do reino que a missão trata, este reino que Jesus veio inaugurar em nossa história Nos ensinamentos de Jesus, o Reino de Deus compreende todos os anseios e os gritos de angústia do povo de Israel. Responde à mensagem fundamental do Antigo Testamento e revela o propósito, o caráter e o poder do futuro domínio de Deus. Convida o povo a responder com obediência radical. A proclamação do Reino é sempre acompanhada por um chamado à decisão, para seguir Jesus, para participar da missão de Deus. Para Jesus, a vinda do Reino é o domínio transformador de um Deus compassivo (CASTRO, 1986, p. 67). O próprio Jesus deixa claro que o Evangelho do Reino de Deus é o conteúdo da missão: “Ele, porém, lhes disse: É necessário que eu anuncie o evangelho do reino de Deus também às outras cidades, pois para isso é que fui enviado. E pregava nas sinagogas da Judéia” (Lc 4:42–43). Em terceiro lugar, o lócus da missão não é a igreja, mas o mundo. O campo da missão é o mundo. Jesus disse: “Não dizeis vós que ainda há quatro meses até à ceifa? Eu, porém, vos digo: erguei os olhos e vede os campos, pois já branquejam para a ceifa” (Jo 4:35). Os campos estão preparados para a colheita. É no mundo que a missão se realiza. E é por amor ao mundo que ela existe. Como a igreja é parte do mundo, pode- 15Teologia Bíblica da Missão | FTSA | se também acrescentar, como afi rma Andrew Kirk (2006, p. 58) “que a missão de Deus é cumprida tanto no mundo quanto na igreja; num grau menor na história que não foi tocada pelo Evangelho, e num grau maior onde o Evangelhoé crido e obedecido”. Tudo o que aconteça no ad intra visa o ad extra. Jamais podemos esquecer que Jesus foi enviado “porque Deus amou o mundo” (Jo 3:16). O mundo é objeto do amor de Deus e a igreja, como um instrumento de Deus, existe por amor ao mundo. René Padilla (2009, p. 19) disse: De acordo com o que foi dito, qual é o papel da igreja local em relação à missão? Lembrando as palavras de McLaren: ‘Equipar e mobilizar homens e mulheres para a missão de Deus no mundo’ – não exclusivamente no ‘templo’, que pode ou não existir, mas sim em todos os campos de ação humana: em casa, na empresa, no hospital, na universidade, no escritório, na ofi cina... Enfi m, em todo lugar, já que não há lugar que esteja fora da soberania de Jesus Cristo. Resumindo: A missão é Deus e não da igreja; o conteúdo da missão é o Evangelho do Reino de Deus e não a doutrina da igreja/denominação; e o lócus da missão é o mundo e não somente a igreja. 2. Defi nição de termos relacionados à missão Para prosseguir, creio ser importante mencionar uma diferença que, às vezes, as pessoas não percebem na igreja: missão é diferente de missões. Estamos mais ou menos acostumados a falar sobre missões na igreja. Vemos e ouvimos os testemunhos de missionários, os dados estatísticos sobre a evangelização mundial, sobre os povos não alcançados, a chamada Janela 10/40, as campanhas fi nanceiras para missões, os departamentos de missões na igreja e assim por diante. Isso tudo diz respeito a missões, diante de uma imensa tarefa inacabada, | Teologia Bíblica da Missão | FTSA16 cuja responsabilidade pesa sobre os ombros da igreja. Nada disso deve deixar de existir ou de não ser incentivado na igreja. Todavia, a missão (no singular) da igreja, como ainda veremos na unidade seguinte, é maior e mais ampla. Também tem a ver com o testemunho e serviço do reino em nossa sociedade, com a edifi cação da nossa comunidade, com a celebração e adoração ao nosso Deus, que por sua vez é mais do que momentos íntimos ou comunitários de contemplação, com o ensino responsável de todo conselho de Deus expresso nas Escrituras, entre outros. 2.1. Missão e Missões Missão não está relacionada apenas com missões, pois é mais do que a descrição de esforços e atividades missionárias de envio e sustento de pessoas que vão para pregar transculturalmente o Evangelho a outros povos, aos lugares não alcançados pelo Evangelho de Cristo. David Bosch (2002, p. 17) ilustra bem essa ideia quando observa que o signifi cado de missão, entre a maioria dos cristãos do ocidente até os anos 1950, foi parafraseado como: “a) propagação da fé; b) expansão do reinado de Deus; c) conversão dos pagãos; e d) fundação de novas igrejas”. Assim, segundo ele, “o termo ‘missão’ pressupõe alguém que envia, uma pessoa ou pessoas enviadas por quem envia, as pessoas para as quais alguém é enviado e uma incumbência” (2002, p. 17). Christopher Wright (2006, p. 23), por sua vez, demonstra certa insatisfação com abordagens sobre a missão que reduzem sua defi nição por meio da menção à raiz latina da palavra, missio, que literalmente signifi ca envio. Com isso, ele não pretende negligenciar a importância desse sentido, mas chamar a atenção ao fato de que se defi nimos missão somente nesses termos, excluímos necessariamente de nosso inventário de recursos relevantes muitos outros aspectos do ensinamento bíblico que, direta ou indiretamente, afetam nossa compreensão da missão de Deus e de nossa participação nela. Assim, para Wright, missão tem a ver com a nossa participação comprometida como povo de Deus, pelo chamado e comando de Deus, em sua missão (missio Dei) no meio da história do mundo em prol da redenção de toda a Sua criação. Em suma, missão 17Teologia Bíblica da Missão | FTSA | tem a ver com a natureza e identidade, sendo a razão da igreja existir. Já missões tem a ver com uma das responsabilidades missionais da igreja que é a de levar – pregar/proclamar – o Evangelho a outras culturas do mundo, e por isso chamada e diferenciada como missões transculturais. Em síntese, missões não é a razão da igreja existir; é uma das atividades da missão. Missão sim é razão da existência da igreja que contempla missões, mas não somente esta. Veja no gráfi co: 2.2. Missionário Esse termo designa a pessoa que se engaja em missões, normalmente em outra cultura que não a sua. É uma atividade que implica em cruzar barreiras, não apenas geográfi cas, como também linguísticas, étnicas, raciais, culturais, econômicas e espirituais. Missionários são tipicamente aqueles enviados por suas igrejas ou agências missionárias. Wright também alerta que esse conceito carrega consigo a ideia de missão como envio ou missões, como também evoca a imagem de cristãos, ocidentais e brancos, expatriados para países distantes. Além disso, evoca o risco de se entender que missionários são apenas os chamados | Teologia Bíblica da Missão | FTSA18 “profi ssionais”. No entanto, o povo de Deus, cada novo nascido, possui uma vocação comum sendo este também um missionário. Wright prefere descrevê-los como parceiros de missão. Afi nal de contas, missionários são mais do que pessoas enviadas para uma tarefa específi ca fora de sua cultura; são pessoas que, por serem cristãs, são chamadas a viver o Evangelho de modo digno do intento divino de reconciliação do mundo consigo mesmo, inclusive onde estão. Amplia-se, portanto, a ideia de missionário e de campo missionário, uma vez que, como observa Brian McLaren (2007, p. 121), “todo cristão é um missionário e todo lugar é um campo missionário”. Isso não signifi ca afi rmar que não se deve ter missionários sustentados por igreja e agências missionárias para contextos e situações específi cas, que requer inclusive competências e habilidades específi cas, como por exemplo, pessoas que vão às outras culturas onde não existem igrejas e tão pouco bíblias traduzidas em suas línguas nativas. 2.3. Missional Esse é um adjetivo relativamente recente que denota um relacionamento e compromisso com a missão de Deus. Indica, por outro lago, algum substantivo que carrega qualidades, atributos ou dinâmicas da missão. Uma igreja missional, por exemplo, é uma igreja que explora em sua razão de ser, sua natureza, atributos ou qualidades que estão voltados para a missão de Deus, que entende que é chamada e vocacionada para uma missão no mundo, que Jesus não veio criar uma religião exclusivista apenas para salvos, mas que ama o mundo e deseja sua completa e total reconciliação, restauração e redenção. Assim, exemplos de uma comunidade missional podem ser percebidos ou não na visão por ela expressa, como por exemplo: “ser uma igreja de Deus de modo autêntico para o mundo”. Essa frase revela, nas palavras de McLaren, uma equação missional. Ser missional é ser uma igreja que em tudo o que faz existe a intencionalidade de fazer para a missão de Deus. Ser missional modela as músicas, o púlpito, a educação cristã, os pequenos grupos, a ação social compassiva, todos os ministérios da igreja e assim por diante. 19Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 2.4. Missiologia e Missiológico Missiologia é o estudo da intersecção entre o Evangelho, a cultura e a igreja. Tal estudo é multidisciplinar porque incorpora outras áreas do saber, tais como Teologia, Antropologia, Sociologia, História, Línguas, entre tantas outras. Por causa dessa complexidade, a missiologia constitui sua própria disciplina ou área de saber. Sendo uma disciplina acadêmica, toda missiologia é teológica e toda teologia é missiológica e ambas possuem implicações pastorais. Por isso falamos de teologia bíblica da missão, no singular e não plural. Muito provavelmente você já deve ter visto como título de palestra ou até mesmo um curso inteiro chamado de Bases Bíblicas da Missão. Podemos dizer, que existe alguma inconsistência nessa ideia, pois, a Bíblia toda é a base da missão. Elencar alguns versículos isolados, como até mesmo os textosda chamada Grande Comissão e afi rmar que estes, incluindo Atos 1:8, são as bases bíblicas da missão, é outro risco. Corre-se o risco de fazer Bíblia uma colcha de retalhos e dar prioridade e preferências para determinados textos em função de outros. Uma das consequências é que as pessoas não sabem o que fazer, por exemplo, com os textos Poéticos como Provérbios, Cantares, Salmos, Jó. Qual o lugar, por exemplo, de Cantares na missão de Deus? Portanto, não devemos falar de bases bíblicas da missão, mas sim a Bíblia toda como a base da missão. Afi nal, “toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fi m de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra” (2 Tm 3:16 – 17). A Bíblia, “toda a Escritura”, é o tratado e manifesto missional de Deus ao mundo. Um missiólogo, ou missiologista, deve pensar a missão de uma maneira bíblica e integral, porque busca compreender os propósitos do Deus- Criador visando uma perspectiva mais profunda dos anseios de homens e mulheres como seres criados à sua imagem. A missiologia é a teologia prática ou na prática. Sendo a missiologia o estudo bíblico teológico da missão, ela é uma disciplina que, em suas elaborações e rigores, procura, | Teologia Bíblica da Missão | FTSA20 segundo Bosch (2002, p. 26), “olhar o mundo a partir da perspectiva do compromisso com a fé cristã”, e por outro lado discernir como o mundo infl uencia a fé cristã. Este é um processo hermenêutico: discernir e refl etir como sociedade infl uência a comunidade de fé e, por outro lado, como a comunidade de fé é chamada para infl uenciar a sociedade/mundo por meio dos valores bíblicos. Para isso, cruza as barreiras entre o mundo da fé e não-fé. De acordo com Christopher Wright (2006, p. 25), o termo missiológico deve ser usado toda vez que tal aspecto bíblico teológico ou refl exivo estiver implicado. Sobre isso, Charles van Engen (2007, p. 3) diz que “a missiologia é um todo unifi cado; é uma disciplina em si, centrada em Jesus e em sua missão. Como a igreja participa da missão de Jesus Cristo, ela participa da missão de Deus no mundo de Deus, por meio do poder do Espírito Santo”. Esse breve aporte aos usos e designações desses conceitos será de extrema importância para o restante desse curso, pois, desde já, você tem ferramentas para identifi car o que efetivamente está se dizendo quando se aplica tais termos ao estudo da teologia bíblica de missão. Uma coisa é dizer “Bases Bíblicas da Missão”. Outra é dizer “A Bíblia é a Base da Missão”. A Bíblia (“toda Escritura”) é o tratado, o manifesto missional de Deus. Elencar alguns versículos ou textos, como os 4 Grandes Comissões, Atos 1:8, entre outros, e chamar isso de “base” é fazer da Bíblia uma colcha de retalho que corre o risco de priorizar ênfases em detrimento de outras. Assim, um missiólogo (ou missiologista) deve pensar a missão de uma maneira bíblica e integral, porque busca compreender os propósitos do Deus–Criador visando uma perspectiva mais profunda dos anseios de homens e mulheres como seres criados à Sua imagem (imago Dei). A missiologia é a teologia prática. Sendo a missiologia o estudo bíblico– teológico da missão, ela é uma disciplina que, em suas elaborações e rigores, procura, segundo Bosch (2002, p. 26), “olhar o mundo a partir da perspectiva do compromisso com a fé́ cristã”, e por outro lado discernir como o mundo infl uencia a fé cristã. Este é um processo hermenêutico: 21Teologia Bíblica da Missão | FTSA | a infl uência na comunidade de fé e por sua vez a comunidade de fé é chamada para infl uenciar o mundo por meio dos valores bíblicos. Para isso cruza as barreiras entre o mundo da fé e não–fé. De acordo com Chris Wright (2006, p. 25), o termo missiológico deve ser usado toda vez que tal aspecto bíblico– teológico ou refl exivo estiver implicado. Sobre isso, van Engen (2007, p. 3) diz que “a missiologia é um todo unifi cado; é uma disciplina em si, centrada em Jesus e em sua missão. Como a igreja participa da missão de Jesus Cristo, ela participa da missão de Deus no mundo de Deus, por meio do poder do Espírito Santo”. Esse breve aporte sobre os usos e designações desses conceitos será de extrema importância para o restante desse curso, pois, desde já, você tem ferramentas para identifi car o que efetivamente está se dizendo quando se aplica tais termos no estudo da teologia bíblica de missão. Para fi nalizar essas questões introdutórias, voltemos a três observações feitas por David Bosch (2002, p. 28-29) em seu relevante estudo sobre a missão. • Primeira observação, Bosch distingue missão (no singular) de missões (no plural) – como também já destacamos anteriormente. Para ele, o primeiro conceito designa a missão de Deus, isto é, implica na “autorrevelação (sic) de Deus como Aquele que ama o mundo, o envolvimento de Deus no e com o mundo, a natureza e atividade de Deus, que compreende tanto a igreja quanto o mundo, e das quais a igreja tem o privilégio de participar”. Já o segundo conceito, de missões, como temos visto, refere–se aos empreendimentos missionários da igreja que são suas “formas particulares, relacionadas com tempos, lugares ou necessidades específi cas, de participação na missio Dei”. • Segunda observação, Bosch afi rma que a missão não é sinônima de evangelização, mas certamente a evangelização está inclusa na missão como uma de suas fundamentais dimensões – a | Teologia Bíblica da Missão | FTSA22 dimensão kerigmática. E, assim, como um dos elementos da missão, a evangelização é, conforme Bosch, “a proclamação da salvação em Cristo às pessoas que não creem nele, chamando–as ao arrependimento e à conversão, anunciando o perdão do pecado e convidando–as a tornarem–se membros vivos da comunidade terrena de Cristo e a começarem uma nova vida de serviço aos outros no poder do Espírito Santo”. • Terceira observação, Bosch defende particularmente que a missão é a expressão tanto do sim como do não de Deus ao mundo. O sim de Deus pode se expressar na solidariedade cristã com a sociedade e na valorização da cultura; o não de Deus, por sua vez, apareceria como expressão de nossa oposição e confl ito com ela. Isso propriamente para dizer que a igreja – como um sinal do reino de Deus e instrumento da graça na reconciliação do mundo com Deus – não é nem totalmente idêntica e nem totalmente avessa a ele. Não é nem totalmente idêntica porque: Não ameis o mundo nem as coisas que há no mundo. Se alguém amar o mundo, o amor do Pai não está nele; porque tudo que há no mundo, a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida, não procede do Pai, mas procede do mundo. Ora, o mundo passa, bem como a sua concupiscência; aquele, porém, que faz a vontade de Deus permanece eternamente (1 Jo 2:15–17). Por outro lado, nem é totalmente avessa ao mundo: Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito... pois “Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que julgasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele” (Jo 3:16–17) e “assim como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo (Jo 17:18; 20:21). 23Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 3. O contexto da missão: uma perspectiva urbana A missão de Deus, realizada por meio do seu povo, sempre será exercida e desenvolvida em contextos específi cos que possuem suas demandas e desafi os específi cos. Estudar tais contextos e desafi os é uma tarefa imprescindível que deve ser levada a sério visando a efi cácia da missão. É conhecida a frase, atribuída ao teólogo suíço Karl Barth (1886–1969), que disse: “É preciso segurar numa mão a Bíblia e na outra o jornal”. Com isso ele quis dizer que jamais devemos negligenciar o estudo das questões contextuais contemporâneas sempre em diálogo com a Palavra de Deus. Qual o risco de não se fazer isso? O risco é o de uma mensagem descontextualizada. Por issoa contextualização se tornou um tema indispensável no estudo da Missiologia. Isso se aplica à interpretação das Escrituras: um bom missiólogo não despreza o fato de que o texto tem seu contexto, tanto do autor original quanto em sua comunicação ao leitor atual. Muitos são os contextos da missão: urbano, rural, indígena, ribeirinhos, transculturais, ciganos e tantos outros. Aqui focaremos o contexto urbano não por preferência, e nem por menosprezo dos demais contextos, mas sim pela urgência. A urbanização é o maior e mais desafi ador fenômeno para o mundo. Quando falamos e refl etimos sobre a missão, seguramente temos que considerar o “onde” da missão, que a isso chamamos de contexto. Ignorar o contexto da missão é ignorar sua possibilidade de pertinência e relevância. Precisamos relembrar constantemente que Jesus era conhecido como “Jesus de Nazaré” (Lc 4:34; 18:37; 24:19) e que “Pilatos mandou preparar uma placa e pregá-la na cruz, com a seguinte inscrição: “Jesus Nazareno, o rei dos Judeus” (Jo 19:19). Olhemos de modo mais específi co o contexto urbano brasileiro. 3.1. O contexto urbano do Brasil hoje O Brasil hoje é majoritariamente é majoritariamente urbano. Os números demonstram que: | Teologia Bíblica da Missão | FTSA24 É comum aceitar que o processo da aceleração da urbanização brasileira se deu a partir de 1950. “A urbanização brasileira, só começou a ocorrer no momento em que a indústria tornou – se o setor mais importante da economia nacional. Assim, representa um dos aspectos da passagem de uma economia agrário – exportadora para uma economia urbano – industrial, fato que só ocorreu no século XX e intensifi cou – se a partir de 1950”1. Surge assim o processo de metropolização, que trata da concentração demográfi ca nas principais áreas metropolitanas do país. A tabela a seguir traz os dados da população brasileira colhidos nos Censos do IBGE de 2000 e 20102: 1 Metropolização e problemas sociais urbanos. Disponível em: http://www.algosobre. com.br/geografi a/metropolizacao–e–problemas–sociais–urbanos.html. Acesso em 17 mai. 2011. 2 Até a hoje (2022) o último censo do IBGE realizado no Brasil foi o de 2010. 25Teologia Bíblica da Missão | FTSA | Comparando os números, destaca-se o aumento de mais de 20 milhões no total da população, cerca de 2 milhões por ano nesses últimos 10 anos. Em contraste, vemos também a diminuição de quase 2 milhões de habitantes nas áreas rurais. Os dados do gráfi co abaixo demonstram a população urbana versus a rural em todos os Estados do Brasil. Perceba que o Brasil é 84% urbano3. De acordo com esses dados, percebe-se que os três estados mais urbanos do Brasil são: Distrito Federal (96,62%), Rio de Janeiro (96,71%) e São Paulo (95,88%). Os três estados mais rurais são: Maranhão (36,93%), Piauí (34,23%) e Pará (31,51%). A conclusão clara é esta: os estados mais 3 IBGE – Censo 2010 – www.ibge.org.br | Teologia Bíblica da Missão | FTSA26 urbanizados estão no eixo sul-sudeste e os mais rurais no eixo norte- nordeste. O fenômeno chamado urbanização tem trazido muitas consequências para as cidades e seus habitantes. Para muitos as cidades são símbolos negativos da vivência humana. E isso é uma das explicações da resistência da não ação redentora da igreja para com a cidade. 3.2. Cidade: símbolo de caos, desordem social e artifi cialidade Para a maioria das pessoas, a cidade não passa de um espaço geográfi co para se viver e “ganhar a vida”. Este espaço, muitas vezes hiperlotado, é sinônimo ou símbolo de anarquia, de caos, de desordem social e de vida artifi cial. Existem pelo menos quatro atitudes carregadas de sentimentos e ações, como consequências desta visão negativa, sendo: 3.2.1. Despersonalização O sentimento de que na cidade as pessoas não passam de um número, de um dado estatístico. Em seu clássico artigo “A metrópole e a vida mental” de Georg Simmel (1973) procura mostrar como as metrópoles alteram a personalidade das pessoas em função das de tantas situações que acabam condicionando e afetando a psique humana. Simmel (1973, p. 12) afi rma: A metrópole extrai do homem, enquanto criatura que procede a discriminações, uma quantidade de consciência diferente da que a vida rural extrai. Nesta, o ritmo da vida e do conjunto sensorial de imagens mentais fl ui mais lentamente, de modo mais habitual e mais uniforme. É precisamente nesta conexão que o caráter sofi sticado da vida psíquica metropolitana se torna compreensível – enquanto oposição à vida da pequena cidade, que descansa mais sobre relacionamentos profundamente sentidos e emocionais. 27Teologia Bíblica da Missão | FTSA | Isso explica as muitas fobias, medos e crises gestados pelo estilo de vida urbana. 3.2.2. Medo com ansiedade Na cidade as pessoas morrem de medo e vivem apavoradas. Têm medo de roubos, assaltos, delinquências, trânsito, risco de desemprego, não conseguir uma vaga para o fi lho estudar, morrer na fi la do SUS, não ter comida, ser despejado da casa. As pessoas vivem debaixo de pressão o tempo todo. O aclamado Sociólogo Zygmunt Bauman (2009, p. 19) nascido na Polônia, em uma família de judeus poloneses), em sua refl exão sobre o Confi ança e medo na cidade, diz: Todos sabem que viver numa cidade é uma experiência ambivalente. Ela atrai e afasta; mas a situação do citadino torna-se mais complexa porque são exatamente os mesmos aspectos da vida na cidade que atraem e, ao mesmo tempo ou alternadamente, repelem. A desorientadora variedade do ambiente urbano de fonte de medo, em especial entre aqueles de nós que perderam seus modos de vida habituais e foram jogados num estado de grave incerteza pelos processos desestabilizadores da globalização. Mas esse mesmo brilho caleidoscópico da cena urbana, nunca desprovido de novidades e surpresas, torna difícil resistir a seu poder de sedutor. 3.2.3. Intimidação São tantos os problemas e, na maioria das vezes, maiores do que a nossa capacidade de resolver que fi camos intimidados, acuados, e quase nada conseguimos fazer. Sentimos que não temos capacidade de resolver tantos problemas, como por exemplo a violência urbana ou os desafi os que existentes em uma favela (comunidade). No documento da ONU chamado United Nations system-wide guidelines on safer cities and human settlements (Diretrizes para todo o sistema das | Teologia Bíblica da Missão | FTSA28 Nações Unidas sobre cidades mais seguras e assentamentos humanos) do Programa das Nações Unidas para Assentamentos Humanos (UN- Habitat, 2012, p. 6)), diz: Tornar as cidades e os assentamentos humanos seguros é uma das principais aspirações refl etidas no Objetivo 11 da Agenda 2030. Da mesma forma, na Nova Agenda Urbana, os Estados Membros se comprometeram a promover um ambiente seguro, saudável, inclusivo e protegido nas cidades e assentamentos humanos, permitindo que todos vivam, trabalhem e participem da vida urbana sem medo de violência e intimidação, levando em consideração que mulheres e meninas, crianças e jovens e pessoas em situação de vulnerabilidade são muitas vezes particularmente afetadas (ênfase minha). A Bíblia contém inúmeras histórias de pessoas intimidadas especialmente por causa da violência. No livro que sou um dos organizadores, Porque Deus amou o mundo: igreja e ODS (2018, p. 263), trato do ODS (Objetivo de Desenvolvimento Sustentável n. 11, Cidades e Comunidades sustentáveis), mostrando a ação de Deus com o dilúvio: Violência e corrupção da conduta humana deram fi m aos primeiros povoamentos e cidades. Os sonhos dos primeiros construtores, como Caim e outros, literalmente foram para debaixo da água, com o dilúvio, pois “as águas prevaleceram sobre a terra cento e cinquenta dias” (Gn 7:24). Foram necessários quase cinco meses para destruir tudo quanto o ser humano havia construído até então, inclusive o próprio Jardim do Éden. Este recomeço nasce, novamente, com a bênção de Deus: “Deus abençoou Noé e seus fi lhos dizendo-lhes: “Sejamférteis, multipliquem-se e encham a terra” (Gn 9:1; ver também 9:7) e “a partir deles toda a terra foi povoada” (Gn 10:19). Este povoamento teria que acontecer com o compromisso, por parte de Noé e seus fi lhos, de não permitir que violência e 29Teologia Bíblica da Missão | FTSA | corrupção da conduta humana se estabelecessem na terra novamente. Deus estabelece uma aliança com a família de Noé e a estende “para todas as gerações futuras” (Gn 9:12). Mas isto não é unilateral. Deus deixa claro que pediria contas da vida do próximo (Gn 9:5) e afi rma: “Quem derramar sangue do homem, pelo homem seu sangue será derramado; porque à imagem de Deus foi criado o homem” (Gn 9:6). Esta é a contrapartida da aliança. Exige a participação humana como compromisso responsável. A cláusula contratual que Deus impõe na aliança é para o benefício do próprio ser humano. Ou seja, os novos povoamentos e a construção das futuras cidades não poderiam se dar pelo uso e exercício da violência como também desenvolver uma nova percepção ética-moral para que a corrupção não encontrasse um solo fértil para crescer. E foi com base nessas condições humanitárias que Deus disse: “Sejam férteis, multipliquem- se e encham a terra” (Gn 9:7). Encham a terra de gente pacífi ca e íntegra! Isto nos fornece preciosas pistas de que dois elementos são fundamentais para Deus nas relações humanas: paz e integridade. Uma sociedade violenta e corrupta revela a ausência da imagem de Deus (Gn 9:6). A busca da paz e da integridade não se trata apenas de um esforço determinante para as relações humanas, mas acima de tudo de preservar o essencial: a imago Dei no meio delas. Encontramos aqui uma função teológica impressionante para o exercício da missão do povo Deus nas cidades: a imagem de Deus no próximo. Isso revela que a questão da violência e da corrupção não pode ser vista e abordada apenas como um mal social e estrutural da sociedade. A questão essencial é relacional-espiritual, mas é óbvio que esse aspecto é negligenciado pelos governantes. É relacional porque a violência e a corrupção, sejam quais forem suas expressões e modalidades, sempre atinge o ser humano. É espiritual porque a violência e a corrupção acontecem pelo | Teologia Bíblica da Missão | FTSA30 menosprezo ou desconhecimento da imagem de Deus no próximo. Isso revela o quanto Deus está interessado em participar da vida das pessoas da cidade. 3.2.4. Individualismo Muitos dizem e praticam o “cada um por si e Deus por todos”. A individualização é uma proposta da secularização: a religião sem igreja. Quantas pessoas dizem: “eu não vou à igreja, mas leio a Bíblia, rezo, oro, sou muito ligado a Deus”. Pessoas que beiram o sincretismo religioso, que procuram mostrar que todas as religiões são boas são, grosso modo, pessoas que vivem uma religião individual, ao estilo selfservice. Gilberto Velho (renomado antropólogo brasileiro, pioneiro da Antropologia Urbana no Brasil, falecido em 2012), em seu artigo Individualismo, anonimato e violência na metrópole, diz: A indiferença, o egoísmo, o narcisismo aparecem como expressão do individualismo associados à especifi cidade da vida metropolitana, à separação de domínios, à fragmentação de papéis, à perda de laços de comunidade, a deformações do capitalismo competitivo, à massifi cação, entre outros. Portanto, de um lado temos o individualismo(s) como força positiva de transformação, vinculado às idéias de liberdade e igualdade, rompendo com a opressão e rigidez de sistemas tradicionais de dominação e organização social como o feudalismo. De outro, o individualismo aparece como produtor de situações de desagregação e anomia sociais, rompendo com valores e redes de reciprocidade e de atuação pública. Obviamente, em se tratando de público e de privado, a questão da propriedade em uma sociedade capitalista, com seu corolário social é ponto chave nessa discussão sobre direitos individuais e necessidades sociais. 31Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 3.2.5. Insensibilidade O volume dos problemas sociais, o aumento da pobreza urbana que vai encurralando as pessoas para os morros e periferias da cidade, a crescente população de mendigos, indigentes, usuários de drogas, pedintes, crianças nas ruas que vão se tornando parte da geografi a e do cotidiano das pessoas que já não mais sofrem ou têm compaixão. São tantas mazelas que provocam a perda de sensibilidade e de humanidade. A ausência da sensibilidade conspira contra a compaixão. O ver precede o serviço compassivo. Muitas pessoas não percebem que o servir exige ver. Isso é claro na vida de Jesus: “Vendo ele as multidões, compadeceu- se delas, porque estavam afl itas e exaustas como ovelhas que não têm pastor” (Mt 9:36). O famoso ditado diz que “o que os olhos não veem o coração não sente”. Em outra ocasião, Lucas relata que “Estava ali [no tanque chamado Betesda, que signifi ca casa de misericórdia, junto à Porta das Ovelhas) um homem enfermo havia trinta e oito anos. Jesus, vendo-o deitado e sabendo que estava assim há muito tempo, perguntou-lhe: Queres ser curado?” (Jo 5:6). O ver conduz ao serviço compassivo. Que não vê, não serve! É isso que insensibilidade causa em nós, a perda do ver! 3.2.6. Impotência A impotência é o sentimento ou a sensação de incapacidade diante da imensidão dos desafi os e problemas. As pessoas passam a se justifi car alegando que não conseguem cuidar de seus próprios problemas, quanto mais dos problemas dos outros. Esse texto acima dessa história no diz que “estava ali um homem enfermo havia trinta e oito anos” (Jo 5:6). Mas ele não era o único nesse estado deplorável, pois com ele, “jazia uma multidão de enfermos, cegos, coxos, paralíticos [esperando que se movesse a água. Porquanto um anjo descia em certo tempo, agitando-a; e o primeiro que entrava no tanque, uma vez agitada a água, sarava de qualquer doença que tivesse]” (Jo 5:2-4). Para piorar, era um tanque no “qual tem cinco pavilhões” (Jo 5:2). Ou seja, um lugar imenso, com | Teologia Bíblica da Missão | FTSA32 uma multidão de enfermos, cegos, coxos, paralíticos, gente totalmente desprezível para os judeus, Jesus volta-se para apenas um deles, vendo-o deitado e sabendo que estava assim há muito tempo, perguntou-lhe: Queres ser curado?” O evangelho nos chama a ser compassivos com todas as pessoas, mas isso não nos autoriza que ao vermos a imensidão de necessidades que nos justifi quemos e nos escondamos na desculpa de que se não podemos não podemos socorrer todos não vamos socorrer um correndo o risco de sermos injustos. Isso é o que nós e a igreja faz muitas vezes, justifi cando-se que “não podemos abrir mão da regra “ou todos ou ninguém”. Jesus não teve essa crise, que, em meio a multidão de enfermos, cegos, coxos, paralíticos e cura apenas “estava ali um homem enfermo havia trinta e oito anos”. Não se pode justifi car o nada fazer em nome da impotência que paralisa a misericórdia e a compaixão! 3.2.7. Indiferença Como você deve per percebido, essas palavras que começam com “I”, são como um círculo hermenêutico cujo destino fi nal é vivermos alienados, indiferentes as necessidades e sofrimentos dos outros. Ou seja, não negamos que existem, mas não nos importamos mais. A insensibilidade gera a indiferença. Indiferença é o estado de não se importar que leva a pessoa à apatia. Neste sentido, a parábola do Bom Samaritano é muito familiar para nós. Ninguém sai desses estados e sentimentos intrapsíquicos com pensamentos positivos. Apenas a Palavra de Deus é poderosa, pela força do Espírito, de nos tirar dessa letargia e nos mover para ações concretas transformadoras. Quantas não foram as situações de pavor e medo que o povo de Deus experimentou e recebeu, de Deus, palavras de encorajamento: “não temam”! Estamos refl etindo esse tema da questão urbana pelo fato de que o principal locus atual, mas não único, da missão é o contexto urbano. Muito me encanta a citação de João Batista Libânio(2012, p. 13)., que disse: 33Teologia Bíblica da Missão | FTSA | Aí estão os dados estatísticos. O Brasil já caminha para uma população 79 por cento urbana. A igreja rural tende a desaparecer. É verdade que os arquétipos rurais, o imaginário agrário acompanha ainda muitas pessoas da primeira geração que migrou para as cidades. Pouco a pouco, os nascidos do mundo urbano criam novo horizonte de pensar e de agir. A teologia e a pastoral não podem desconhecer tais mudanças. Desafi a– nos construir uma matriz teológica urbana que responda a perguntas diferentes. O Cristianismo em seus primórdios proliferou antes em áreas urbanas. Tem uma conaturalidade com esse mundo. Sua ruralização veio depois. E impregnou–o de tal que hoje nos parece difícil pensa–lo fora desse paradigma. A teologia da cidade continua ainda mais um desejo que uma realidade, mais um programa que uma realização, mais uma proposta que um fato. Tem sido mais trabalhada pela pastoral e menos pela sistemática. Talvez porque não aparece claramente sua identidade. A cidade atual e a moderna confundem– se em muitos aspectos. Modernização – a modernidade tecnológica – e urbanização massiva caminham juntas. A cidade se constitui um dos principais objetos de estudo hoje para a concretude e realização da missão e ministérios. Não basta colocar uma igreja em um bairro, abrir suas portas, e esperar que o povo venha. É necessário estudar profundamente a geografi a, o onde a igreja e ministério estão inseridos. No desenvolvimento da Teologia Bíblica de Missão perceba que ela, teologia, é um ato segundo – uma perspectiva muito defendida pelo teólogo Gustavo Gutiérrez. O ato primeiro é do próprio Deus que age e intervém na história da humanidade. É, portanto, a partir do agir de Deus – misso Dei – no mundo que tudo o que fazemos se torna uma resposta a esse agir. Entendida desta forma, a teologia jamais será um fi m em si mesma, mas antes um instrumento. Não se estuda teologia com a fi nalidade de se tornar um erudito ou obter um título. A educação teológica | Teologia Bíblica da Missão | FTSA34 é um instrumento que visa capacitar as pessoas para a missio Dei. Só existe teologia porque existe a missão. Sem missão não há necessidade de teologia, como também, a necessidade da igreja. 3.3. Sem necessidade não há necessidade da missão Isso fi ca muito claro na compreensão que o próprio Jesus tem sobre o motivo/fi nalidade de ter sido enviado pelo Pai ao mundo. Jesus, como agente de Deus e de Sua missão, tem plena consciência de que fora enviado para suprir as necessidades das pessoas: Sendo dia, saiu e foi para um lugar deserto; as multidões o procuravam, e foram até junto dele, e instavam para que não os deixasse. Ele porém lhes disse: É necessário que eu anuncie o evangelho do Reino de Deus também às outras cidades, pois para isso é que fui enviado. E pregava... (Lc 4:43 – 44). O dia nem quase havia rompido e um bando de gente já estava atrás de Jesus: “as multidões o procuravam” (Lc 4:42). E tendo-o achado, “insistiram que não as deixasse”. A resposta de Jesus a essa multidão é o texto de Lucas 4:43. O apelo da multidão pode ser um símbolo ou uma representação de um dos grandes desafi os que se percebe na igreja hoje ou que tem perpassado a sua história. O que notamos é a tendência ad intra em sobreposição ao ad extra, ou seja, a tentação de privatizar Aquele que veio para todos. Essa mesma tentação é percebida no episódio do Monte da Transfi guração. Sabemos que a fé se alimenta no relacionamento particular com Jesus: “tomou Jesus consigo a Pedro e aos irmãos Tiago e João e os levou, em particular, a um alto monte” (Mt 17:1). Esse é o aspecto do secreto: “Tu, porém, quando orares, entra no teu quarto e, fechada a porta, orarás a teu Pai, que está em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará” (Mt 6:6). Pedro deseja que esse momento especial seja o centro da sua relação com o mestre: “Então, disse Pedro 35Teologia Bíblica da Missão | FTSA | a Jesus: Senhor, bom é estarmos aqui; se queres, farei aqui três tendas; uma será tua, outra para Moisés, outra para Elias” (Mt 17:4). No entanto, o locus da sua manifestação está no público. Tão logo desceram do monte, no espaço público, surge uma situação de possessão demoníaca: E, quando chegaram para junto da multidão, aproximou – se dele um homem, que se ajoelhou e disse: Senhor, compadece – te de meu fi lho, porque é lunático e sofre muito; pois muitas vezes cai no fogo e outras muitas, na água. Apresentei – o a teus discípulos, mas eles não puderam curá-lo. Jesus exclamou: Ó geração incrédula e perversa! Até quando estarei convosco? Até quando vos sofrerei? Trazei – me aqui o menino. E Jesus repreendeu o demônio, e este saiu do menino; e, desde aquela hora, fi cou o menino curado (Mt 17:14-18). De certa forma, podemos afi rmar que é no público que a missão acontece, mas é no privado que a fé é nutrida. A multidão queria reter Jesus para ela, queria que Jesus fosse seu refém, de suas necessidades, sem perceber as necessidades das outras pessoas que ali não gozavam do mesmo privilégio. Assim, a resposta de Jesus está encharcada de teologia bíblica da missão. Olhemos com mais cuidado, apenas em um versículo, essa resposta de Jesus que revela os seguintes elementos da missão (de novo, em apenas um versículo!). 3.3.1. A importância: “é necessário” A principal visão que precisamos ter e desenvolver é esta: “Porque Deus amou a cidade (o mundo)”. A cidade é alvo do amor de Deus. Deus amou tanto as pessoas e suas cidades que enviou seu único Filho para que elas encontrassem esperança. E Jesus compreende esse amor do Pai e engaja-se em sua missão nos centros urbanos de sua época. Se a multidão vê Jesus como uma oportunidade para o isolamento, por meio de uma atitude de egoísmo e desprezo para com os que estão de fora, Jesus olha a necessidade dos outros de forma inclusiva. “O egoísmo não | Teologia Bíblica da Missão | FTSA36 é amor por nós próprios, mas uma desvairada paixão por nós próprios” (Aristóteles). Jesus entende e vê a vida humana por meio da necessidade. A multidão não vê a necessidade do outro, apenas a dela. Jesus, além de ver, se percebe como o agente de Deus para a cidade. Da mesma forma que o apóstolo João nos informa: “E era-lhe necessário atravessar a província de Samaria” (Jo 4:4). Jesus ainda disse: “Estai vós de sobreaviso, porque vos entregarão aos tribunais e às sinagogas; sereis açoitados, e vos farão comparecer à presença de governadores e reis, por minha causa, para lhes servir de testemunho. Mas é necessário que primeiro o evangelho seja pregado a todas as nações” (Mc 13:9-10). E ainda, disse Jesus que “é necessário que façamos as obras daquele que me enviou, enquanto é dia; a noite vem, quando ninguém pode trabalhar” (Jo 9:4), revelando seu senso de que a necessidade está diante de nós, seus discípulos. O que justifi ca a missão? A necessidade. Entender isso é fundamental para justifi car a presença da igreja e dos cristãos em uma determinada cidade. Deixar de se envolver e de se perceber como um instrumento de Deus para suprir as necessidades das pessoas é deixar de realizar a missão de Deus. E, normalmente, as necessidades vêm carregadas de problemas, difi culdades, crises, dores, e tantas outras coisas. Jesus é a resposta de Deus para as necessidades do mundo. Se os discípulos de Jesus e sua igreja se recusarem a abençoar as pessoas em suas necessidades, nada mais resta, se não, ser “pisado pelos homens” (Mt 5:13). Devemos, portanto, por mais difícil que seja, ver as necessidades das pessoas como oportunidades missionais. E nos dias de hoje, diante de tantas necessidades e problemas, a porta está escancarada para realizarmos a missão de Deus. Suprir as necessidades não é sinônimo de atender os desejos das pessoas e nem mesmo fazer por elas. Fazer por elas ou no lugar delas é gerar dependência e paternalismo. Nosso desafi o é fazer com elas.O que justifi ca a missão é a necessidade. Se não houver necessidade (espiritual, material, emocional, entre outras), não há necessidade da missão. Mas, como há a necessidade da missão, quem a realiza? 37Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 3.3.2. O agente: “que eu” Só existe missão porque existem necessidades. Missão é sempre resposta à necessidade. Quem age primeiro é Deus. Mas, se existem necessidades, alguém precisa supri-las. Jesus se coloca como o agente de Deus: “é necessário que eu”. Existem dois tipos de cristãos: os que não percebem a necessidade dos outros - neste caso aqui representados por essas multidões - e os que percebem a necessidade dos outros - representados por Jesus. Ou imitaremos as multidões ou imitaremos Jesus. A igreja só é missional quando todas as pessoas que dela participam se percebem como agentes da missão. Cada discípulo é um agente da missão de Deus no mundo, e isso, onde estiver. É esse eu missional, esse “Cristo em vós, a esperança da glória” (Cl 1:27). Se cada discípulo não tiver a consciência desse “é necessário que eu”, a missão trunca, paralisa e se torna dependente dos pastores e missionários profi ssionais. Cada pastor tem a responsabilidade de conscientizar, educar e capacitar cada pessoa para que ela diga: “eu um missionário(a)”. E a missão acontece majoritariamente no ad extra, nessa geografi a da Parábola da Grande Ceia: “sai depressa para as ruas e becos da cidade” (Lc 14:21) e “sai pelos caminhos e atalhos” (Lc 14:23). Nenhuma geografi a pode escapar ou fi car de fora da esfera do agente missional: ruas, becos da cidade, caminhos e atalhos. A direção é que este agente missional saia e depressa, porque “ainda há lugar”, pois o desejo de Deus é este: “para que fi que cheia a minha casa” (Lc 14:23). 3.3.3. O método: “anuncie” “É necessário que eu anuncie”. Esse “anuncie”, em algumas versões “pregue”, em grego, é εαγγελίσασθαί (euangelisasthai). Esse anúncio não pode ser interpretado como sendo apenas palavras. Ao estudar os relatos de Lucas sobre o ministério urbano de Jesus e da igreja primitiva, fi camos perplexos ao vê-lo em ação: “Jesus começou a fazer e a ensinar” (At 1:1). Ele é “poderoso em obras e palavras, diante de Deus e de todo o povo” (Lc 24:19). Seu anúncio é integral: obra e palavras em Jesus são inseparáveis. A transformação da cidade acontece por meio da | Teologia Bíblica da Missão | FTSA38 manifestação concreta do amor de Deus e poder transformador do Evangelho. O Evangelho é o próprio Jesus. Ele é a boa notícia manifestada em atitudes e em palavras. Quando agimos em nome de Jesus estamos pregando por meio do nosso testemunho de vida imitando-o. Quando anunciamos Jesus estamos pregando por meio de palavras de vida baseadas nEle. É bem perceptível a força dessa bênção que o apóstolo Paulo deu à Igreja em Tessalônica. Em suas palavras, lemos: “Que o próprio Senhor Jesus Cristo e Deus nosso Pai, que nos amou e nos deu eterna consolação e boa esperança pela graça, dê ânimo aos seus corações e os fortaleça para fazerem sempre o bem, tanto em atos como em palavras” (2 Ts 2:16 – 17). 3.3.4. O conteúdo: “o evangelho do Reino” É o Evangelho do reino que transforma, tanto as pessoas como as cidades. Jesus disse: “Quando entrarem numa cidade e forem bem recebidos, comam o que for posto diante de vocês. Curem os doentes que ali houver e digam – lhes: O reino de Deus está próximo de vocês” (Lc 10:8-9). O evangelho do reino não trata de distração, mas de atração. Somente ele tem o poder de atrair as pessoas para Deus. Só o evangelho do reino - βασιλεία tο Θεο (basileia tou Theou) - cujo centro é a cruz, tem o poder de transformar. Infelizmente, existem comunidades que já renunciaram à cruz na sua pregação do Evangelho. Pode até ser Evangelho, ou seja, não deixa de ser uma notícia, que distrai as pessoas, mas certamente não é o Evangelho do reino que atrai as pessoas para Deus por meio da cruz. Jesus disse de forma muito enfática que este, e não outro evangelho, é que deve ser pregado: “E este evangelho do reino será pregado em todo o mundo como testemunho a todas as nações” (Mt 24:14). Ninguém tem o direito de inventar conteúdos novos. Já nos foi indicado: é o Evangelho é este, do reino de Deus. As formas como esse Evangelho é anunciado e manifestado fi ca por conta da nossa criatividade e contextualidade, desde que não seja motivo e escândalo para o próprio Evangelho. 39Teologia Bíblica da Missão | FTSA | 3.3.5. A inclusividade: “também às outras cidades” O desejo e pedido das multidões é justamente o contrário: serem exclusivas. A exortação de Deus com as pessoas sempre foi essa: enquanto Ele busca a humanidade, o ser humano busca a si mesmo. Dois exemplos de inclusividade nos são dados pelo próprio Jesus na sinagoga de Nazaré: a viúva de Sarepta e Naamã, o sírio. Jesus acabara de reafi rmar sua identidade missional, confi rmada na unção do Espírito, para servir especialmente aos excluídos e desfavorecidos do seu tempo. Os judeus, assim como as multidões, achavam que eles eram os destinatários exclusivos da missão. Estavam errados, e Jesus tratou logo de desenganá-los dessa ilusão. A missão de Deus é para todos. E a raiva tomou conta dos corações das pessoas (Lc 4:28-29). Mas Jesus, em sua vocação missional, não desiste. Ele “passou por entre eles e retirou-se. Então ele desceu a Cafarnaum, cidade da Galiléia, e, no sábado, começou a ensinar o povo” (Lc 4:30-31). Ele não mudou o foco porque sabia exatamente qual era seu propósito de vida. 3.3.6. A fi nalidade: “pois para isso é que fui enviado” “Para isso” implica em vocação, propósito e senso de destino. Jesus se percebe enviado com e para esse propósito. A obra não é de Jesus, mas do Pai. E Jesus tem uma profunda compreensão da missio Dei. A missão é de Deus, e por isso, convoca seus agentes para realizá-la. Assim, Jesus é aquele “que andava de cidade em cidade e de aldeia em aldeia, pregando e anunciando o Evangelho do reino de Deus” (Lc 8:1) e como resultado vinha “ter com ele gente de todas as cidades” (Lc 8:4). Jesus é nosso modelo de missão para e com a cidade. Seu ministério aconteceu nas cidades e regiões do seu tempo: Galiléia (Lc 4:41-9:50); Samaria e Judéia (Lc 9:51-19:27) e Jerusalém (Lc 19:28-24:53). E Ele nos convida para andar e visitar as cidades que tanto as abençoou com o poder do Evangelho. | Teologia Bíblica da Missão | FTSA40 Conclusão Surge deste modo uma pergunta crucial: - “para qual contexto a teologia responde?” Obviamente que para todos porque o Evangelho do reino não faz acepção de pessoas e nem de geografi as e contextos. Contudo, deve fi car claro para nós que o contexto emergente que produz um volume enorme de desafi os são os contextos urbanos. E em particular, as cidades, metrópoles e megalópoles do mundo, particularmente as que estão no chamado Mundo Majoritário, também chamado de Dois- Terços-do-Mundo, sendo a Ásia, África e América Latina. Saiba mais A população mundial deve crescer em mais de 2,2 bilhões de pessoas até 2050, de acordo com estudo da ONU, e mais da metade deste crescimento (1,3 bilhão) deve acontecer na África subsaariana. A Índia, a China e a Nigéria vão impulsionar o reforço da urbanização, representando 35% do crescimento da população urbana entre 2018 e 2050. Cerca de 55% da população mundial vive atualmente em cidades. O estudo estima que nas próximas décadas esse número suba para 68%. A expressão “dois terços do mundo” passou a ser utilizada no lugar da expressão “terceiro mundo”. Terceiro mundo carregou conceitos pejorativos, como sendo países de categoria inferior por estarem em continentes subdesenvolvidos. Busca–se com essa mudança de nomenclatura colocar o peso não nos aspectos econômicos mas populacional, ou seja, dois terços da população do mundo estão na América Latina, África e Ásia. https://nacoesunidas.org/mundo–tera–22–bilhoes–de–pessoas–a–mais– ate–2050–indica–onu/ [...] enquanto na Europa e América