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170 ROMED Volume 2 | Número 2 | Set. 2016 O JUSTO E O BOM NA TEORIA DA JUSTIÇA IGUALITARIA DE JOHN RAWLS E A CRÍTICA COMUNITARISTA THE FAIRNESS AND THE GOOD IN JOHN RAWLS’THEORY OF EGALITARIAN JUSTICE AND THE COMUNINITARISM CRITICISM Letícia Garcia Ribeiro DYNIEWICZ1 RESUMO: Este artigo tem como objetivo apresentar uma reflexão sobre duas correntes da filosofia política contemporânea que dialogam a respeito da resolução de conflitos morais latentes nas sociedades atuais: o liberalismo igualitário e o comunitarismo. Essa discussão tem origem com a obra de John Rawls, Teoria da Justiça, publicada em 1971. Tendo esse pano de fundo, esse trabalho analisa as concepções de justo e de bem propostas pelo autor, para em um segundo momento compará-la com o comunitarismo. Palavras-chaves: Justo. Bem. John Rawls. Comunitaristas. ABSTRACT: This paper aims to present a reflection about two contemporary political philosophy conceptions. Both of them – egalitarian liberalism and communitarianism - try to solve the problem of moral conflicts in nowadays societies. This debate started in Theory of Justice written by John Rawls and published in 1971. Taking into account this scenario, this article analysis, firstly, the conceptions of fairness and the good that Rawls develops in his piece. In the second part, his view will be compared to communitarianism. Key words: Fairness: Good. John Rawls. Communitarianism. INTRODUÇÃO Dentro de um debate político moral cada vez mais acirrado na contemporaneidade, em que as diferenças culturais presentes em todo mundo estão 1 Professora no Curso de Direito da FAE. Mestre em Direito- UFSC. Doutora em Direito – PUC-Rio. arthu Realce 171 ROMED Volume 2 | Número 2 | Set. 2016 cada vez mais próximas devido à globalização, a compreensão do debate que teve início com a Teoria da Justiça de John Rawls em 1971 é imprescindível para o Direito. Assim, a proposta deste pequeno texto é compreender a diferença entre e o justo e o bem na teoria rawlsiana, colocando-a em diálogo com a teoria comunitarista. Teoria da Justiça é a obra de John Rawls lançada em 1971 nos Estados Unidos, que inaugura um novo debate teórico em relação às diferentes concepções do justo. O intuito do autor era de dar coerência a uma série de artigos seus anteriormente publicados defendendo uma concepção de justiça contratualista para sociedades bem ordenadas, criticando o utilitarismo - principal corrente teórica da época. A partir dessa obra, inaugura-se um grande debate dentro da filosofia política acerca das diversas concepções de justiça. Muitos foram os autores dentro da tradição anglo-saxã que criticaram e adotaram posturas diferentes de Rawls. Dentre eles, os trabalhos de Charles Taylor, Alaisdair Mac Intyre e Michael Sandel. Mesmo na tradição continental, a discussão repercutiu, principalmente, na figura Jürgen Habermas. Atualmente, o debate ainda ressoa, por exemplo, na Teoria do Reconhecimento de Nancy Fraser e Axel Honneth. Além disso, o próprio autor revisou dez anos depois sua obra, o que resultou em seu livro Liberalismo Político. Apesar das muitas nuances que este debate apresenta - não se quer aqui reduzi-las, inicialmente, de forma bastante caricatural ou polarizada -, podemos separar estes autores em dois grandes grupos. Em um deles, encontram-se aqueles que de alguma forma apostam na teoria rawlsiana, ou seja, na prevalência do justo sobre o bem. Em outras palavras, em uma concepção deontológica de justiça para a ordenação social. Enquanto que, os críticos de Rawls, comunitaristas, filiam-se a uma tradição teleológica, na qual o próprio Estado, pautado na narrativa que o constitui, promove uma concepção de bem (perfeccionismo moral), que acredita ser virtuosa e, portanto, deve ser seguida por seus cidadãos (BERTEN, 1997). Com opiniões bastante divergentes sobre o bem e o justo e de como estes dois valores se coadunam, há algo que liga este grupo de autores em torno deste debate: o reconhecimento da pluralidade nas sociedades contemporâneas. Isto quer dizer que há inúmeras concepções individuais ou coletivas de bem, justiça e arthu Realce arthu Realce arthu Realce arthu Realce arthu Realce arthu Realce arthu Realce 172 ROMED Volume 2 | Número 2 | Set. 2016 democracia partilhadas pelos indivíduos dentro de uma sociedade. Desta forma, deparam-se com este horizonte empírico e dedicam-se a refletir modelos normativos, dentro dos quais, universal e particular possam se compatibilizar. Essa tentativa tem como intuito a possibilidade da construção de um discurso público democrático que legitime e torne possível a coexistência destas visões dentro de instituições públicas (LOIS, 2005). Essa caricatura inicial será aos poucos delineada durante este trabalho quando as concepções de bem e justo dos autores forem apresentadas. Assim, primeiramente, pretende-se expor como estes dois conceitos são desenvolvidas na Teoria da Justiça de John Rawls em oposição ao utilitarismo. Em um segundo momento, as críticas e as posições de Charles Taylor serão abordadas, comparando- as com o que postula Rawls. Finalmente, tratar-se-á de Alasdair MacIntyre no que tange a esses dois aspectos. 1. O Bem e o Justo em John Rawls John Rawls, em A Teoria da Justiça, desenvolve uma doutrina ética que denomina de justiça como equidade. Essa doutrina faz parte da teoria da escolha racional, ou da racionalidade prática, que se dedica a estudar como os indivíduos avaliam suas escolhas. O autor a situa dentro da tradição contratualista, pois propõe algo similar ao estado de natureza, a posição original. Nesta situação inicial, – absolutamente hipotética, portanto, não histórica – os indivíduos escolherão os princípios de justiça que irão reger suas condutas na sociedade. Contratualista também porque se filia a esta tradição teórica, seguindo, principalmente Kant. Além disso, Rawls afirma que o termo contrato se coaduna com vários pontos de sua teoria, tais como: a crença na racionalidade dos indivíduos, ou seja, estes são capazes de explicar e justificar suas escolhas; uma pluralidade de vontades que serão conciliadas através da colaboração social; e, por último, a publicidade dos princípios de justiça que foram nessa situação acordadas. No entanto, arthu Realce arthu Realce arthu Realce arthu Realce 173 ROMED Volume 2 | Número 2 | Set. 2016 alerta para o fato de que sua teoria não é totalmente contratualista, já que só trata da justiça, sem considerar outras virtudes presentes nas relações morais. Como já afirmado no parágrafo anterior, a principal influência contratualista de Rawls é a da Kant. Dentre algumas razões porque Rawls segue dois postulados kantianos bastante importantes: o pressuposto de que os seres humanos são dotados de uma racionalidade moral e de que o justo deve preceder ao bem. Entender o indivíduo como um ser racional moral significa compreendê-lo como um ser capaz de originar e fundamentar suas escolhas de forma autônoma. Esta personalidade moral, em Rawls, compõe-se de duas aptidões: a capacidade de escolher uma concepção de bem e um senso de justiça. A filiação de Rawls a uma tradição deontológica em relação à justiça, ou seja, sua formulação de princípios de justiça formal que precedem o bem, também é kantiana. Berten aproxima estes argumentos (BERTEN, 1997, p.27-8) ao demonstrar que Kant defende a escolha de um princípio formal que determine todas as ações, que obrigue os indivíduos a agir de forma que a finalidade da ação, o objetivo a ser alcançado, não seja o fundamento do agir. Se a ação for pautada pela sua finalidade, agiríamos pela mera satisfação dos nossos desejos, o bem, que se caracteriza pela constante mutabilidade. Isso não nos permitiria uma atitudemoral, já que não haveria parâmetros para hierarquizar a importância daquilo que desejamos. Além disso, a escolha de um princípio material nos aproxima das motivações empíricas, nossos afetos e emoções. Só ao rompermos com este tipo de motivação, seremos autônomos e capazes de não agir apenas segundo a ordem natural. Assim, da mesma forma que Kant, Rawls, na justiça como equidade, pressupõe que na posição original, os princípios de justiça sejam escolhidos independentemente daquilo que se considera o bem e portanto, possam ser universalizáveis. Este se define como a escolha racional que os indivíduos tomam a respeito dos seus planos de vida. Racional porque são capazes de adotar os meios mais eficientes para alcançar determinados fins, ou seja, aquilo que cada um irá buscar de acordo com sua vontade, sua concepção de bem. Também os considera racionais no sentido de arthu Realce arthu Realce arthu Realce arthu Realce arthu Realce arthu Realce arthu Realce arthu Realce arthu Realce 174 ROMED Volume 2 | Número 2 | Set. 2016 que não farão acordos que não possam cumprir ou mesmo muito difíceis de se manterem. O processo lógico racional formulado por Rawls para se atingir os princípios de justiça exige alguns conceitos, que já foram aqui citados, mas precisam ser aprofundados, como a posição original e o véu da ignorância. Rawls supõe um artifício hipotético para pensar a posição original – portanto, não é algo histórico ou empírico – em que as partes estejam em uma situação de igualdade de dignidade e de representação, na qual seja possível acordar sobre o justo e o injusto com neutralidade. Nesta posição, os indivíduos estão cobertos pelo véu da ignorância, que não os permite conhecer sua classe, seu status, sua sorte, seus dotes e habilidades naturais, inteligência, força, propensões psicológicas e concepções de bem. Não conhecem as circunstâncias particulares da sociedade onde vivem, como o grau de cultura e civilização, nem mesmo a geração a que pertencem. Todos estão na mesma condição de igualdade e sob o véu da ignorância para garantir que seus princípios de justiça sejam formulados de maneira que as partes não tenham condições de fazer juízos probabilísticos que as beneficiem, nem condicionados por condições arbitrárias ou pelo acaso natural. A pureza procedimental, adotada por Rawls, objetiva que os princípios escolhidos sejam aceitáveis de um ponto de vista moral. Sendo assim, as partes devem fazer escolhas razoáveis capazes de serem justificadas publicamente perante os outros, inclusive perante seus descendente, que serão afetados pela concepção de justiça aqui acordada. Essa concepção de justiça como equidade defendida por Rawls se destina a distribuir direitos, deveres, benefícios e encargos da vida social dentro da estrutura básica da sociedade, ou seja, “a ordenação das principais instituições em um esquema de ponderação” (RAWLS, 2002, p. 57). Para isso, o autor formulou, os princípios da justiça, que acredita seriam escolhidos na posição original, da seguinte forma: arthu Realce arthu Realce arthu Realce arthu Realce arthu Realce arthu Realce 175 ROMED Volume 2 | Número 2 | Set. 2016 Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para todos. Segundo: As desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que, ao mesmo tempo: (a) tragam o maior benefício possível para os menos favorecidos, obedecendo às restrições do princípio da poupança justa, e (b) sejam vinculadas a cargos e posições abertos a todos em condições de igualdade equitativa de oportunidades (RAWLS, 2002, p. 333) O autor nomeia o primeiro deles como princípio da liberdade igual, já o segundo, da diferença. Esta redação dos princípios obedece a uma ordem serial ou lexical, no qual o primeiro obrigatoriamente antecede o segundo, já que não se pode violar o primeiro em nome de maiores vantagens econômicas. As liberdades básicas, para Rawls, constituem um sistema único aplicável a todos os indivíduos, portanto, devem ser distribuídas de modo que “permitam a mais abrangente liberdade compatível com uma igual liberdade para todos” (RAWLS, 2002, p. 68). Só podem ser limitadas entre elas no caso de uma interferir na circunscrição da outra, já que cada uma das liberdades não é um absoluto em si e devem formar um sistema único. Já o segundo princípio, o da diferença, pressupõe que o primeiro princípio assim como a igualdade equitativa de oportunidades já estejam satisfeitos, e só admite como justa a situação em que se aumente as melhores expectativa dos mais favorecidos caso estas funcionem melhorando as expectativas dos menos favorecidos. Esse princípio, segundo Rawls, segue o princípio da eficiência, pois não há nenhuma outra situação em que a classe desfavorecida estaria em melhor situação. Esse ponto ideal favorece a todos mais do que se a renda fosse distribuída igualmente entre todos2. 2 Importante lembrar que estes dois princípios pressupõe uma estrutura básica justa. O princípio da eficiência só pode ser aplicado nesta situação. Caso isso não ocorra, admite-se que se altere as expectativas de alguns que estão em melhores situação para beneficiar aqueles que não tem seu conjunto de direitos e liberdades básicas atendidos. arthu Realce arthu Realce arthu Realce arthu Realce arthu Realce arthu Realce 176 ROMED Volume 2 | Número 2 | Set. 2016 Dessa forma, a liberdade é priorizada pelos princípios de justiça, “tanto porque é comum a todos na posição original, como porque é o que possibilita a igualdade entre os cidadãos depois de escolhidos os princípios” (SILVA, 2005, p.52). Assim, o principal objetivo da justiça como equidade é a satisfação das liberdades básicas para que os homens possam escolher suas concepções de bem. A crítica que pode ser feita é que, dessa forma, Rawls acaba substancializando sua teoria formal da igualdade, pois a liberdade passa a ser o bem maior a ser protegido para a garantia da pluralidade3, já que a justiça não é um valor em si, mas sim um valor que tem como fim a liberdade. Como citado inicialmente, toda teoria de Rawls é uma crítica ao princípio da utilidade, que dominava na época o debate público anglo-saxão. Ao contrário da sua teoria, onde o justo sempre precede o bem, garantindo que todos realizem seus planos de vida, no utilitarismo, o bem precede o justo. Sendo assim, a principal crítica de Rawls é a de que o utilitarismo não respeita os homens como fins em si mesmos, admitindo que alguns sejam tratados como meio para a realização dos planos de vida de terceiros. No contratualismo, só se cumpre a condição de tratar os homens como fins em si mesmos, minimamente, quando todos são tratados de acordo com os princípios que consentiram. Daí a importância da posição original e do véu da ignorância, já que somente a partir dessas condições é possível alcançar a unanimidade de uma concepção de justiça, que represente genuinamente uma conciliação de interesses. Além disso, racionalmente, consideradas as circunstâncias da justiça – as condições normais da sociedade implicam, ao mesmo tempo, em identidade e conflito de interesses, já que cada indivíduo tem sua própria concepção de bem –, as partes só se implicarão verdadeiramente se houver uma identidade de interesses representada na concepção de justiça, de cooperação social, se esta “possibilitar para todos uma vida melhor do que qualquer um teria se tentasse viver apenas por seus próprios esforços” (RAWLS, 2002, p. 136). Essa cooperação social não é uma espécie de solidariedade, já que o indivíduo não está preocupado com a realização dos planos3 Essa crítica será retomada mais tarde a partir dos autores que serão analisados. arthu Realce arthu Realce arthu Realce arthu Realce arthu Realce arthu Realce arthu Realce 177 ROMED Volume 2 | Número 2 | Set. 2016 de vida alheio. Apenas centra-se no seu plano e não obstaculiza os planos alheios porque reconhece que estes possibilitarão a realização do seu próprio bem (SILVA, 2005). Enquanto que, o princípio da utilidade exige um sacrifício das expectativas, já que os menos afortunados são obrigados a aceitar as maiores vantagens dos outros em nome de um bem comum maior. Uma concepção de justiça como esta não é estável, exige do ser humano virtudes como benevolência e compreensão, enquanto a justiça como equidade apenas requer que os seres humanos não sejam invejosos. Por isso, na posição original, onde os indivíduos estão dotados de uma racionalidade pura, sua mente não lhes conduziria a escolha do princípio da utilidade. Ao imaginar que pode, na sociedade, estar no lugar do ser o menos afortunado, rejeitaria uma concepção de justiça que colocasse em risco o cumprimento de seus projetos pessoais, já que poderia ter suas liberdades básicas desrespeitadas em prol da máxima realização do bem coletivo. Assim as partes rejeitariam o princípio da utilidade e aceitariam uma concepção de justiça mais realista em relação aos sacrifícios pessoais. 2 O bem e o justo na tradição comunitarista A principal crítica feita a Rawls pelos teóricos comunitários consiste no fato de que estes não acreditam na possibilidade de uma concepção totalmente formal de justiça, na qual os indivíduos sejam desvinculados da narrativa histórica da sociedade a que pertencem. Em outras palavras, não se pode definir a justiça em uma determinada sociedade sem que se leve em conta os valores, a tradição, o modo de vida daquelas pessoas. Além disso, a tradição comunitária acredita que essa moral pautada apenas na liberdade individual não promoveria nenhum valor comum, o que não seria suficiente para manter a unidade da sociedade e das instituições. No entanto, essa tradição teórica é bastante heterogênea. Cada um dos autores representantes do comunitarismo desenvolve seus próprios conceitos. Segundo Berten, o que os une são convergências pontuais em relação à desconfiança arthu Realce arthu Realce arthu Realce arthu Realce arthu Realce arthu Realce 178 ROMED Volume 2 | Número 2 | Set. 2016 em uma moral abstrata, uma simpatia com uma ética de virtudes e uma concepção de política que valoriza a história e a tradição (BERTEN, 1997, p.6). Ademais, seguem uma corrente epistemológica de tradição aristotélica e republicana do Renascimento, segundo as quais a polis precede o indivíduo. Assim não se pode afirmar a existência de um pensamento comunitarista mas, apenas, uma corrente de pensamento que compartilha alguns fundamentos. Para tanto, essa seção demonstrará algumas das diferenças dessa corrente em relação a Rawls, bem como entre alguns de seus pensadores. Charles Taylor, ao se posicionar nesse debate, aponta algumas das críticas de Michael Sandel a Rawls, das quais compartilha. A primeira delas estaria em um equívoco rawlsiano em relação ao sujeito engajado nessa sociedade liberal. Taylor afirma que para o cumprimento do princípio da diferença rawlsiano, segundo o qual os talentos individuais de cada um são parte constitutiva da igualdade e, portanto, devem ser respeitados de forma a gerar cooperação social, só seria de fato seguido se houvesse um alto grau de solidariedade entre as partes. No entanto, como já explicitado aqui, Rawls não admite sua adesão a esse valor, apontando como única premissa da psicologia social do seu indivíduo a não inveja, o desinteresse. Esse compromisso desejado por Rawls só seria atingido por indivíduos tocados por um “forte sentido de comunidade” (TAYLOR, 2000, p. 200) e não sujeitos mutuamente indiferentes como propõe o autor liberal. Os indivíduos, da teoria da justiça como equidade, não podem ao escolher o princípio de justiça da sociedade, vinculá-lo a uma concepção de bem, pois isso levaria a discriminação. Isto que dizer que apenas a concepção de vida boa de alguns seria endossada por toda a sociedade. Existiria, portanto, uma minoria não representada e, portanto, não receberia igual tratamento. Para que exista uma sociedade livre, a coerção que em sociedades não democráticas é realizada por uma única pessoa ou por um grupo delas, que escolhe o justo e bom para todos, deve ser substituída por outro mecanismo. Taylor afirma que esse mecanismo seria a identificação dos indivíduos com a polis, ou seja, os indivíduos devem reconhecer que as leis a que se obrigam e suas instituições são arthu Realce arthu Realce arthu Realce arthu Realce arthu Realce arthu Realce arthu Realce arthu Realce 179 ROMED Volume 2 | Número 2 | Set. 2016 expressão de suas vontades. Segundo o autor, isso só é possível quando há um sentimento que propicie que estes indivíduos se reconheçam dentro da ordem pública. Esse sentimento, o patriotismo, é uma virtude que exige mais do que a não inveja, algo que vai além do egoísmo. Nas palavras do autor: [...] o patriotismo se baseia numa identificação com os outros num empreendimento comum específico. Não me dedico a defender a liberdade de qualquer um, mas sinto o vínculo da solidariedade com meus compatriotas em nossa empresa comum, a expressão comum de nossa respectiva dignidade. (TAYLOR, 2000, p. 204). Dessa forma, Taylor aposta na liberdade dos antigos. Na crença antiga de que o cidadão é livre ao participar da vida pública, bem como no fato de ter sua voz ouvida na tomada de decisões que irá pautar a vida na coletividade. Nessa situação, o indivíduo se engaja na vida pública porque se sente motivado pelo patriotismo a cumprir às ordens. Aqui nesse regime participativo, há a escolha de uma concepção de bem comum que irá reger aquela determinada sociedade. Há a proteção de uma liberdade bastante significativa, que seria a dignidade dos cidadãos. Essa dignidade só será compreendida dentro de um conjunto histórico, das tradições, que constituem uma determinada sociedade. MacIntyre, em Is Patriotism a Virtue (2003) também afirma que a nação é construída pela ideia de uma história compartilhada, bem como ao apelo pelos mesmos cânones. Assim que cada uma das nações centrais, por exemplo, tem seu marco em uma grande obra literária, bem como na exaltação de seus heróis. Constroem-se identidades coletivas a partir dessas narrativas de características particulares, de méritos e conquistas, mesmo que a história não tenha ocorrido exatamente desta forma. Seria o patriotismo a virtude para a realização do bem de uma determinada comunidade. Para Rawls, o apelo ao patriotismo seria inadmissível frente ao primeiro princípio, da liberdade igual, pois esse bem comum poderia implicar em restrição de um determinado plano de vida individual. O Estado e suas instituições, no liberalismo igualitário, devem ser neutros em relação às concepções individuais. O questionamento feito pelos comunitaristas, nesse sentido, é como tomar uma decisão que não tome um posicionamento moral, ou seja, que não eleja bens superiores uns arthu Realce arthu Realce arthu Realce arthu Realce arthu Realce arthu Realce arthu Realce arthu Realce 180 ROMED Volume 2 | Número 2 | Set. 2016 aos outros. Essa escolha, tal como Rawls afirma, deve ser justificada publicamente. A justificativa que se daria dentro da teoria rawlsiana é que ela não viola a pluralidade da sociedade. Então, o valor moral que legitima politicamente as decisões em Rawls é o pluralismo, portanto, seria incoerente sustentar uma teoria do justo que negue seu fundamento em um bem. Taylor afirma que ao se afirmar o direito x de uma pessoa, isto não é feito meramente paranão intervenção da sociedade no que diz respeito a pessoa em realizar a conduta x. Segundo o autor, um determinado direito é protegido porque a sociedade acredita que x é um valor ou uma conduta que deve ser mantida e transmitida às futuras gerações. Assim, afirmar o direito de B em realizar a conduta x, em si já é uma escolha por um determinado valor considerado relevante em determinada sociedade. Dessa forma, não se pode afirmar o puro procedimentalismo da teoria rawlsiana ao tentar delimitar apenas formalmente o justo. O autor canadense também se pergunta o porquê de considerarmos razoável uma teoria política que prima pelos direitos individuais não reconhecendo a condição social do homem, ou seja, o homem como animal político. Acredita que isso se deve a uma concepção atomista da condição humana. O atomismo seria característico do contratualismo e de algumas formas de utilitarismo. Geralmente, aqueles que sobrepõem o interesse e direitos do indivíduo sobre a sociedade ou que a entendem como um mero instrumento. Essa seria a ontologia humana da teoria de Rawls – funda a autoridade política nos direitos individuais – que não se coaduna com a teoria normativa social que postula (TAYLOR, 1990). A viabilidade de uma sociedade que atenda ao que Rawls chama de justo antes do bem, só ocorreria nos Estados Unidos, e quem sabe na Inglaterra, segundo Taylor. Isso porque estas sociedades liberais se constituíram de forma que sua ética é “antes uma ética do direito do que do bem” (TAYLOR, 1990, p. 202-3). Seus princípios foram formulados de forma a responder e arbitrar à concorrência entre os indivíduos. Esta forma de organização permite que não se defina primeiramente que bens esta sociedade irá promover, “mas antes como ela vai determinar os bens a ser promovidos, as aspirações e exigências dos indivíduos que a compõe” (TAYLOR, arthu Realce arthu Realce arthu Realce arthu Realce arthu Realce arthu Realce arthu Realce arthu Realce 181 ROMED Volume 2 | Número 2 | Set. 2016 1990, p. 203). Por isso, acusa a teoria rawlsiana de etnocêntrica e irreal, pois o que se percebe nas entrelinhas é uma valorização da liberdade, do altruísmo e do universalismo. Estes são valores centrais à modernidade ocidental e não universais (TAYLOR, 2005). Taylor diante dessa discussão introduz o argumento aristotélico da phrônesis para definir sua concepção de justo. Phrônesis representa uma noção de prudência, que estimularia a participação pública, fortalecendo as diversas concepções comunitárias, reconhecendo a pluralidade de valores. Permite que os diversos grupos, já que se fala aqui de sociedades plurais, reclamem politicamente seus direitos sem que por isso estabeleçam a priori um valor, o que poderia originar um totalitarismo comunitário. Essa teria valor por não ser totalmente abstrata e por respeitar os elementos da tradição. Rawls negaria esse princípio por haver algo de irracional nele, algo que não está previamente determinado, além de reconhecer a ética de determinados grupos, não individualmente. Para o autor canadense, a filosofia moderna se tornou cega a virtudes como essa, prezando unicamente uma razão universal e abstrata, negando que esta também serve a um fim, portanto, não é totalmente neutra. A ideia de liberdade desengajada provém dessa noção de racionalidade. A phronesis, traduzida aqui como prudência, não nega nem liberalismo, nem culturalismo, pois consiste em uma intuição sobre o particular pautada na experiência, no mundo sensível, capaz de se adaptar a todas as situações sem perder de vista o fim bom. Sendo assim Berti afirma: Enquanto conhecimento do particular, a prudência pressupõe uma certa experiência, não no senso do empirismo inglês (sensação, percepção, ideia), mas no sentido aristotélico de ser especialista, de ter vivido muitas experiências, de conhecer casos de vida; porque é mais fácil encontrar nas pessoas idosas, ou de outra forma maduras, que nos jovens (os quais, às vezes, brilham na matemática, onde, aparentemente, depois dos trinta anos não conseguem produzir mais nada de novo). (BERTI, 2012, p. 03) Essa é a forma encontrada por Taylor para pensar conflitos entre o justo e o bem nas sociedades pluralistas. Isso porque não acredita que princípios gerais e abstratos acomodarão todas as respostas para conflitos futuros. Considera, portanto, o fato de a vida em sociedade se caracterizar pela contingência, pela constante arthu Realce arthu Realce arthu Realce arthu Realce arthu Realce arthu Realce 182 ROMED Volume 2 | Número 2 | Set. 2016 aparição de elementos novos, que originam o conflito. A racionalidade pura e abstrata acaba por neutralizar esse elemento, que é essencial à política, o conflito. Alainsdair MacIntyre segue a mesma tradição comunitarista de Taylor, inclusive no que diz respeito à aproximação com Aristóteles. Isso quer dizer que não crê em um valor abstrato que poderia ser encontrado em valores metaéticos, mas sim no bem como algo concreto, construído historicamente. Por isso também não acredita que um rol de princípios previamente fixados são suficientes para resolver, muitas vezes, casos particulares. Princípios gerais e abstratos, como são os Direitos Humanos, podem colidir com práticas tradicionais e familiares, a moral. Assim afirma que não nega totalmente o liberalismo, mas que em seu trabalho indica alguns pontos fracos desta teoria. Como já citado anteriormente, também acredita que o bem do indivíduo não pode ser separado do bem da comunidade. Dessa forma, do mesmo modo que Taylor, rompe com a noção liberal de Rawls de que a ideia de justiça precede o bem, já que considera o bem comum o fim das atividades compartilhadas. determinados que resolva o caso concreto (MacIntyre, 1998). Por esse motivo menciona que a própria ideia a respeito da racionalidade (MacIntyre, 1990) deve ser assumida publicamente por toda a sociedade, já que esta varia de acordo com as práticas de um determinado grupo. A partir disso, uma noção de bem comum pode ser institucionalizada na comunidade. Por isso, da mesma forma que Taylor, o autor valoriza a virtude da justiça, que não pode ser tão abstrata, tão longe de um compromisso com o bem comum, como é em Rawls. Outra crítica que o autor dirige a Rawls aponta para o fato de que a teoria da justiça como equidade é permeada por um subjetivismo ético ao trabalhar com a ideia de um Estado neutro no que tange aos valores morais. Seria uma sociedade em que a expressão e identificação dos interesses individuais antecedem qualquer tipo de laço social ou moral. Inclusive, de certa forma, acusa Rawls de utilitarista, já que o este defende uma sociedade na qual os indivíduos cooperam para sustentar a ordem social com o único objetivo de atingir seus fins particulares.Nesse sentido, a arthu Realce arthu Realce arthu Realce arthu Realce arthu Realce arthu Realce arthu Realce 183 ROMED Volume 2 | Número 2 | Set. 2016 associação dos indivíduos passa a ser um mero instrumento da realização dos fins individuais. Inclusive para o autor, essa noção de moralidade abstrata universal entra em choque com o patriotismo, que é definido como “um tipo de lealdade com uma nação particular, que só aqueles que possuem aquela nacionalidade podem a exibir” (MacIntyre, 2003, p. 298). Esse sentimento de lealdade, pré-requisito para o patriotismo e, portanto, para uma vida em comunidade faz com que o indivíduo se sinta pertencente à comunidade e, por isso, aja também para atingir o bem comum desta. A moralidade liberal não pode considerar o patriotismo uma virtude, já que seria um bem particular. No entanto, acredita que essa noção de moralidade é datada do pós renascimento na cultura ocidental, principalmente ligada ao liberalismo político e ao individualismo social, portanto, não pode ser generalizada.Assim, por exemplo, à pergunta, sobre o lugar que os bens de cada prática realizada por um determinado indivíduo, não pode ser respondida em todo o mundo da mesma forma. A resposta a esta questão pode ser individual, mas será influenciada determinantemente pela sociedade da qual esse faz parte. Em outras palavras, a determinação da concepção do bem comum individual é inseparável da identificação do bem comum da comunidade. As práticas dentro de uma sociedade são ordenadas de acordo com a relevância que cada uma delas terá para aquele determinado grupo de pessoas, por isso não pode ser descolada dos hábitos, tradições e cultura do local. CONCLUSÃO Após leitura e análise destes três autores, da tentativa de alinhavar o debate liberais x comunitários, a pergunta sobre o que se fazer diante do conflito, diante do novo, do contingente, daquilo que não pode ser capturado pelas normas, ainda é respondida de maneira bastante incipiente. Isso porque, ao considerarmos o sujeito abstrato rawlsiano, que se submete às regras na posição original, sob o véu da ignorância, percebe-se a existência de um momento pré-político, de um momento em que todos estariam em condições puramente racionais para escolher uma opção de arthu Realce arthu Realce arthu Realce arthu Realce 184 ROMED Volume 2 | Número 2 | Set. 2016 justiça, ou de política, porque em “condições humanas”, onde vivemos sob nossos apetites, desejos e paixões, não conseguiríamos alcançar tal decisão. Por outro lado, os sujeitos marcados pela tradição, que respeitam o laço cívico da nacionalidade, que se compreendem como partícipes da vida pública, apesar das diferenças, seriam capazes de acordar sobre um bem comum que se sobreporia ao bem individual. Elimina-se também desta forma o conflito. O elemento aristotélico da phrônesis, recuperado por Taylor de certa forma demonstra que esse existe, que o contingente pode colocar em conflito o bem particular com o bem comum, ou mesmo o bem comum com algum valor universal. Essa discussão, como apontada inicialmente, tem um caráter teórico normativo, mas que mira à realidade, os conflitos cotidianos, o modo como as sociedades se organizam constitucionalmente. Assim, mesmo que a phrônesis possa representar um passo além, no cotidiano das questões de justiça, os conflitos práticos parecem insolúveis. Como atribuir direitos a um membro da religião testemunha de Jeová, que ao receber sangue, será banido da comunidade? Ao mesmo tempo, se não receber terá seu direito à saúde, à integridade física, que devem ser garantidos pelo Estado, violados. O sujeito racional rawlsiano violaria a identidade de indivíduos que se sentem pertencente a grupos, enquanto que esse sujeito comunitário pode, em alguns casos, querer se desvincular de sua cultura para seguir valores diferentes daquela comunidade, mas que não são os valores universais do liberalismo. Conclui-se, portanto, que ambas as teorias, embora bastante engajadas nessas discussões, não são suficientes para regular relações nas sociedades plurais contemporâneas, onde os indivíduos querem “pular fora” de sua comunidade, mas também sentem ter seus direitos violados por uma concepção universalista da justiça como a de John Rawls. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BERTEN, André. POURTOIS, Hervé. SILVEIRA, Pablo. Libéraux et communautariens. Paris: Presses Universitaires de France, 1997. arthu Realce arthu Realce arthu Realce 185 ROMED Volume 2 | Número 2 | Set. 2016 BERTI, Enrico. Saggezza o filosofia pratica? Etica & Politica, 2005, 2. Disponível em: Visualizado em 22 de outubro de 2012. 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