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A ETNOGRAFIA APLICADA AOS ESTUDOS DO COTIDIANO ESCOLAR Maria das de Márcia Maria Gurgel Introdução A etnografia, enquanto uma abordagem científica no campo das pesquisas qua- litativas é explorada, nesse estudo, como uma das formas de pesquisas que vem sendo utilizada pelos pesquisadores na investigação sobre o cotidiano escolar e tem o intuito de contribuir para a construção do conhecimento no campo da educação. Essa opção decorreu de nossa experiência realizada no Doutorado em Educação na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, na qual utilizamos, como encami- nhamento a pesquisa qualitativa do tipo etnográfico aplicada à educação. Para traçar os percursos metodológicos norteadores deste texto, sentimos ne- cessidade de retomar brevemente as raízes históricas e os fundamentos filosóficos da abordagem qualitativa e etnográfica. Abordamos aspectos sobre a etnografia apli- cada aos estudos do cotidiano escolar e seus significados, uso de tendências atuais da pesquisa etnográfica em educação e alguns pressupostos da pesquisa etnográfica. A etnografia, como método de investigação originário da antropologia, esgo- tava-se numa finalidade estritamente descritiva. A etnografia escolar, nessa mes- ma linha, se fundamenta na mesma descrição da cultura escolar. Porém, de acordo com Fernando Sabirón (2001, citada por Fino 2013), a etnografia da educação, investigando sobre instituições, grupos e organizações sociais, supera a estrita dependência descritiva, ao ser entendida como devedora de um enfoque pluridis- ciplinar. De modo que se mantém a dependência descritiva, mas com base sobre a qual se interpreta. 1 Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2012), Mestrado em Educação pela Universidade Federal do (2002). Graduada em Bacharelado em Ciências Sociais Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba (1980). Atualmente é professora associada 1 da Universidade Federal do E-mail: maridasdoressousa@ hotmail.com 2 Possui graduação em Pedagogia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte mestrado em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (1990) e doutorado em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (1997), com estágio sanduiche na Université de Caen/França. É professora associada da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail: mgurgel@ufrnnet.brperspectivas de análise e abordagens interdisciplinares 153 As raízes históricas e os fundamentos da A teoria em qualquer tipo de pesquisa tem um papel fundamental na formula- abordagem qualitativa na área da educação ção do problema e na estruturação das questões orientadoras. trabalho de campo é o momento de fazer a mediação entre a teoria e a experiência vivida no campo, de Para uma melhor compreensão do significado da abordagem qualitativa na dialogar com os referenciais de apoio e, então, rever princípios e procedimentos e área da educação, retomamos a abordagem qualitativa, a partir de algumas dimen- fazer os ajustes necessários. Na fase final, a teoria tem um papel importante no sen- expostas por André (2008), Bogdan e Biklen (1994). entre outros. tido de fornecer suporte à interpretação e às abstrações que vão sendo construídas Segundo André (2008), a abordagem qualitativa de pesquisa tem suas raízes com base nos dados obtidos e em virtude deles. no final do século XIX, quando os cientistas sociais, fundamentados numa pers- Para Bogdan e Biklen, (1994, p. 62), "O objetivo dos investigadores qualitati- pectiva positivista, começaram a indagar se o método de investigação das ciências vos é expandir, e não o de limitar a compreensão. [...] São as realidades múltiplas e físicas e naturais deveria continuar servindo como modelo para os estudos dos fe- não uma realidade única que interessam ao investigador qualitativo". Na abordagem nômenos humanos e sociais. Entre os seus questionadores, a autora destaca que qualitativa, trabalha-se com a ideia de que nada é trivial, de que tudo tem potencial Dilthey sugere que a investigação dos problemas sociais utilize como abordagem para traçar caminhos. Vista por esse ângulo, é construída também a partir da postura metodológica a hermenêutica; Weber destaca a compreensão como o objetivo que do investigador, que planeja o trajeto da investigação tomando como referência suas diferencia a ciência social da ciência física; segundo ele, o foco da investigação escolhas teóricas, crenças e convicções acerca do processo deve centrar-se na compreensão dos significados atribuídos pelos sujeitos às suas que irá enfatizar. ações; outros estudiosos das questões humanas e sociais aliaram-se às ideias de We- Isto mostra que a realidade estudada pela pesquisa qualitativa é dinâmica, ber e Dilthey e defendem a perspectiva de conhecimento que tomou conhecida envolve vidas, sujeitos pensantes, objetividade e subjetividade. pesquisador, ao como idealista-subjetivista. deverá fazê-lo por meio da problematização e da relação entre o campo Tal concepção não aceita que a realidade seja externo ao sujeito, valori- empírico e o zando a maneira própria de entendimento da realidade pelo Trazendo a discussão da investigação qualitativa para o campo da educação, Ainda segundo André (2008). é a concepção idealista-subjetivista ou feno- (BOGDAN: BIKLEN 1994) argumentam que, nos anos de 1960, os investigadores menológica de conhecimento que dá origem à abordagem qualitativa de pesquisa, educacionais começam a manifestar interesse pelas metodologias qualitativas; ao na qual também está presente um conjunto de abordagens, como o interacionismo longo dos anos de 1970, a pesquisa participante e, particularmente, a etnografia ga- os estudos histórico-culturais, a etnometodologia e a etnografia. Estas nharam um número crescente de adeptos na área da educação e tem como fundo de abordagens têm em comum o significado da pesquisa qualitativa, ou seja, o valor preocupação além dos estudos da sala de aula, a avaliação curricular. Vale ressaltar que o objeto de estudo tem para o pesquisador, a compreensão do objeto a partir dos que esse estudo não abrange a avaliação curricular. dados coletados no seu natural, a participação do pesquisador no campo Segundo André (2008), nas décadas de 1980 e 1990, foi cada vez mais cres- empirico com a situação estudada e a descrição dos processos observados neste, cente o interesse dos pesquisadores pela etnografia nos estudos voltados para a edu- além dos encaminhamentos indutivos e interpretativos nas análises dos dados. o cação. Na década de 1980, produziram-se muitos trabalhos com a preocupação de processo de produção de conhecimento na pesquisa qualitativa se dá através da descrever as atividades de sala de aula e as representações dos atores escolares. interligação entre esses elementos e sua comunhão. Alguns trabalhos utilizam a indicação dos alunos (Cunha, 1988), outros o índice de pesquisador, os sujeitos envolvidos na investigação, os instrumentos utili- aprovação do professor (Kramer e André, 1984) e outros, indicam uma combinação zados na aproximação com a realidade, os referenciais teóricos, são elementos que de vários critérios, dentre estes (Libâneo 1984; Guarnieri 1990; Monteiro 1992). compõem o cotidiano de uma pesquisa qualitativa. No início dos anos de 1990, registrou-se uma produção regular e consistente na área Esta modalidade de pesquisa, ao contrário das pesquisas realizadas nas Ci- da educação. Esses trabalhos surgiram em maior parte nos cursos de pós-graduação ências Naturais, está permeada pelo movimento, pela complexidade das relações stricto em forma de dissertações e teses. Nos anos 2000, o interesse dos pes- sociais, pela amplitude de atuação do pesquisador que, se não tiver cuidado, perde quisadores pela etnografia no campo da educação continua pressente, a exemplo das o foco da investigação. teses, de doutorado de (Amparo, 2002; Sousa, 2012), desenvolvidas no Programa de Assim, a efetiva integração entre teoria e prática no ato da pesquisa é pré- Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em -requisito importante para que no processo de teorização se preserve a realidade que exploraram as possibilidades metodológicas trazidas pela etnografia voltada à concreta, evitando procedimentos tendenciosos seja pelo empirismo "puro e ingê- compreensão vivenciadas no cotidiano escolar. nuo" ou pelo teoricismo generalizante.154 SOBRE EDUCAÇÃO, PROCESSOS E SUJEITOS EDUCATIVOS: 155 perspectivas de e abordagens interdisciolinares Enfim, a pesquisa do tipo etnográfica no processo de construção do conhe- daquilo que, na cotidianidade, parece óbvio, a fim de olhar os acontecimentos que cimento do cotidiano escolar, com enfoque direcionado para a sala de aula, vem lhe são familiares como sendo estranhos, tentando captar e descrever os significados se apresentando epistemologicamente com grande possibilidade de elaboração de e os sentidos atribuídos às ações realizadas na cotidianidade escolar. um conhecimento que possa captar a complexidade que envolve o saber-fazer do Para a utilização da pesquisa qualitativa com abordagem etnográfica, algu- professor, a construção da identidade docente e as implicações envolvidas nos dife- mas características se fazem presentes. Essas características, resumidas por Martins rentes contextos onde atua, a retomada de consciência sobre os professores, como (2008), são as seguintes: pessoas e como profissionais, entre outros aspectos. São enunciadas questões e proposições preliminares, provisórias. A teoria A etnografia aplicada aos estudos do preliminar é alterada e /ou confirmada no campo; cotidiano escolar e seus significados o trabalho de campo deve ser realizado, pessoalmente, pelo investigador; A prática etnográfica exige longa e imensa imersão na realidade do grupo social que se deseja estudar; A pesquisa etnográfica estuda predominantemente os padrões do pensamento conhecimento de outros grupos e de referenciais teóricos são fundamen- e do comportamento humano manifestos em sua rotina diária, estudam também os tais para o entendimento e as explicações dos significados que os grupos fatos, os eventos em determinado contexto interativo entre as pessoas e os grupos. atribuem às suas experiências; pesquisador, ao fazer uso da etnografia, observa os modos como as pessoas e os São diversas as técnicas de coleta de dados que podem ser utilizadas em grupos sociais conduzem suas vidas, com o objetivo de "revelar" o significado das estudos etnográficos: Observação direta, observação participante, entre- ações realizadas no seu cotidiano. vistas, documentos, questionários, fotografias. vídeos etc.: Para Mattos (2010, p. 2), tanto a etnografia mais tradicional "(Geertz,1989; relatório etnográfico necessariamente não se amolda ao convencional. Lévi-stauss, 1964) quanto a mais moderna Woods, 1986; Mehan, Poderá ser expresso por um filme, um texto em prosa e verso, um texto de 1992, Spidler, 1982; Willis, 1997), envolvem preferencialmente longos períodos de formato não ortodoxo etc. observação, um a dois anos". Esse período se faz necessário para que o pesquisador possa validar o significado das ações dos participantes, de forma que seja o mais No entanto, vale ressaltar que certos requisitos da etnografia podem não ser obri- representativo possível do significado que as pessoas pesquisadas dariam à mesma gatoriamente cumpridos pelos investigadores das questões educacionais. Como, uma ação, evento ou situação investigada. longa permanência do pesquisador em campo, contato com outras culturas e uso que define o empreendimento etnográfico não é somente "[...] estabelecer de amplas categorias sociais na análise dos dados. O que se tem feito na educação é relações, selecionar informantes, transcrever textos, levantar genealogias, mapear uma adaptação da etnografia. Esta recebe a nomeação de "pesquisa do tipo etnográ- campos, manter um diário, e assim por diante. [...] que define é o tipo de esforço fico" numa acepção menos tradicional, mas que preserva a sua identidade, ao fazer intelectual que ele representa: um risco elaborado para uma descrição densa" (GE- uso das técnicas e procedimentos que a caracterizam, como observação, entrevista e o ERTZ 1989, p. 15). questionário. Técnicas estas que devem ser adaptadas ao objeto de estudo. Para captar o sentido implicado com a compreensão da aplicação dos estudos A pesquisa do tipo etnográfica aplicada à educação é frequentemente utilizada etnográficos no cotidiano escolar é preciso partir de uma compreensão do contexto nos estudos da sala de aula e tem o interesse de compreender os processos e as rela- cultural em que a escola está inserida. Explica Geertz (1989) que a cultura não é um ções que se configuram no dia a dia da escola, a partir do ponto de vista dos seus su- poder, algo ao qual podem ser atribuídos casualmente os acontecimentos sociais, os jeitos e das ações que realizam no seu saber-fazer pedagógico. Segundo Silva (2000, comportamentos, as instituições ou os processos; ela é um contexto, algo dentro do p.58), "A racionalidade dominante não é a última instância que define a realidade qual eles podem ser descritos de forma inteligível, isto é, descritos com densidade. cotidiana. Nesse pequeno mundo, impera a heterogeneidade. o poder instruído tenta Em outras palavras, a cultura é uma forma como o homem significa o seu mundo homogeneizar o cotidiano escolar, mas os sujeitos resistem de diversas formas; cons- a partir da teia de signos e símbolos que ele criou e teceu ao longo de sua história. troem identidades coletivas ou individuais". Ou seja, a vida cotidiana é contraditória, Olhar as dimensões simbólicas da ação social não significa deixar de lado os heterogênea e plena de significados diversos é rica em história não documentada. dilemas existenciais da vida em favor de algum domínio empírico, uma boa inter- Nesse tipo de pesquisa, o pesquisador, ao realizar uma descrição densa, deve pretação de qualquer coisa exige descobrir o que significa toda rede de significados. se posicionar não somente como um observador da conduta de um grupo ou de Assim, torna-se pertinente, explicar que quando se trata da etnografia na uma situação natural, mas procurar obter das pessoas observadas os significados educação faz o contrário, do que fazia os antropólogos que passavam a viver com os que conferem e dão corpo aos comportamentos. A descrição etnográfica depende povos por eles estudados tornando-se um deles. useja, na educação toma-se distância das qualidades de observação, da sensibilidade ao outro, do conhecimento sobre o contexto estudado, da inteligência e da imaginação científica do pesquisador.perspectivas de análise e abordagens interdisciplinares Para Ghedin e Franco (2008, p.189), "a educação constitui um fenômeno ex- Nesta perspectiva, acrescenta (2008), que até então as pesquisas sobre tremamente complexo, o qual não se pode compreender sem levar em conta toda a sala de aula eram fundamentadas nos princípios da psicologia comportamental vi- a dimensão do ser humano". Nesta Perspectiva, a pesquisa educacional constrói nham sendo realizadas com base em instrumentos de observação que visavam regis- teorias que emergem das situações vividas, experimentadas no contexto da ação trar e analisar comportamentos de professores e alunos numa situação de interação. cotidiana, pois é lá onde acontece o fazer pedagógico em todas as suas dimensões, Esses estudos serviram não somente para estudar as interações de sala de aula, mas ética, cultural e social. Por isso se faz necessária uma perspectiva teórica também para treinar professores ou medir a eficiência de programas de treinamento. definida, que ajude a captar essas dimensões e que oriente sua análise interpretativa. A abordagem antropológica surge como alternativa para esse tipo de pesquisa. A visão de escola interagindo com tais dimensões vai exigir um rompimento Quando os estudiosos das questões educacionais recorreram à abordagem et- com uma visão de cotidiano estático, para considerá-lo como um terreno cultural nográfica, buscavam uma forma de retratar o que se passava no cotidiano das es- caracterizado por vários graus de acomodação, contestação e resistência. colas, mostrar como se estrutura o processo de produção do conhecimento em sala Para (2008, p. 41), "conhecer a escola mais de perto significa colocar de aula e a inter-relação entre as dimensões cultural, institucional e instrumental do uma lente de aumento na dinâmica das relações e interpretações que constituem fazer pedagógico. o seu dia a dia, apreendendo as forças que a impulsionam ou que a Nessa Nessa direção, Borges (1994, apud GHEDIN; FRANCO, 2008), adverte que busca, se faz necessário identificar as estruturas de poder, como se organiza o tra- alguns pressupostos devem ser considerados no processo de construção do conheci- balho escolar, compreender o papel e a ação de cada sujeito, em um contexto em mento que tem como referência a abordagem etnográfica, tendo em vista que: que se veiculam conhecimentos, atitudes, valores, crenças modos de ver e de sentir a realidade e o mundo. Existem realidades múltiplas, socialmente construídas. Cada Desta feita, a etnografia, como um tipo de pesquisa de intervenção realidade forma um todo que não pode ser compreendido isolado do con- traz contribuições para campo de pesquisa que se interessa pelos estudos do coti- texto; diano escolar e seu conjunto de significados, segundo os quais as ações, o saber-fa- Há interação entre conhecimento e conhecedor, inseparáveis em virtude de zer pedagógico são produzidos. percebidos e interpretados. Esse conjunto de signi- suas influências ficados nos apresenta como estruturas inter-relacionadas no processo de construção Tudo se encontra em estado de influência mútua e simultânea, sendo im- do conhecimento possível distinguir causas e efeitos em relação direta, como no caso das ciências que usam métodos experimentais; Pode-se dizer que o trabalho de pesquisa de cunho etnográfico permite que o A pesquisa depende de valores. É influenciada pelos valores do pesquisa- pesquisador tenha a compreensão do que é o outro em seu próprio espaço explique dor, manifestos na delimitação do problema, assim como pelo paradigma as situações observadas no cotidiano em que elas ocorrem. Para Geertz (1989, p. que guia a investigação, pelas teorias que embasam a coleta, a análise e a 20), Fazer etnografia é como tentar ler (no sentido de 'construir uma leitura de') interpretação dos dados e pelos valores inerentes ao contexto. um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas sus- peitas e comentários tendenciosos, escrito não com os sinais convencionais do som, No dizer de Ghedin e Franco, (2008, p.180), "O trabalho etnográfico está liga- mas com exemplos transitórios de comportamento modelado." do a um modelo de perceber o mundo do outro ou de "treinar" o olhar para aprender o alcance da compreensão dos significados do saber-fazer pedagógico, das a perceber como o outro se vê a si mesmo como alguém que se percebe diferente, ações realizadas na escola, requer sucessivo aprofundamento nos procedimentos com uma identidade que é sua e dos outros ao mesmo tempo". Nessa modalidade de indagar, comparar, observar os acontecimentos e as situações ocorridas no co- de pesquisa, o pesquisador aproxima-se do mundo do outro para poder descrever, tidiano da escola. analisar e compreender seus significados, não em sua própria ótica, mas na cultura Para Amparo (2002), o crescente interesse pelos estudos sobre a realidade do do sujeito investigado. espaço escolar, voltado para as ações docentes, vem se manifestando a partir de Em suma, a pesquisa do tipo etnográfica nos estudos do cotidiano escolar, estudos realizados por pesquisadores das Ciências Sociais em busca de epistemolo- permite construir os processos e as relações que configuram a experiência escolar gias capazes de explicar as questionadas práticas pedagógicas. Tais estudos possi- diária conhecendo a escola mais de perto e internamente, descrevendo, compreen- bilitam uma maior compreensão da saber-fazer docente, desenvolvido no cotidiano dendo e interpretando os fenômenos educativos presentes no contexto escolar. Para escolar e promove o crescimento intelectual e social, dos professore e alunos na (2008, p. 103), a abordagem etnográfica "tornou possível a divulgação do interação da sala de aula. trabalho de bons professores, retratando situações que podem servir de "modelo" aos iniciantes e de material para discussão nos cursos de formação e aperfeiçoamen- to docente".161 perspectivas de análise e abordagens interdisciplinares A observação participante parte do principio de que o pesquisador tem sempre trabalho etnográfico envolve uma abordagem de pesquisa que não pode ser um grau de interação com a situação Ele tem mais condições do que completamente planejada a prior. Ele se delineia a partir de decisões tomadas nos não participante em compreender os hábitos, atitudes, interesses e relações pessoais diferentes tempos e eventos e tem como desafios saber trabalhar o envolvimento e e as relações estabelecidas pelo grupo, no contexto em que está sendo investigado. BIKLEN 1994). a subjetividade que requer o trabalho Na pesquisa etnográfica, à medida Na observação participante, a identidade do pesquisador e os objetivos do es- que os pesquisadores interagem com os participantes e com os dados coletados atra- vés das técnicas que tradicionalmente são associadas à etnografia, observação par- tudo são revelados ao grupo pesquisado desde o início. "Nessa posição o pesquisa- dor pode ter acesso a uma gama variada de informações, até mesmo confidenciais ticipante, entrevista, documento entre outras, pode tornar-se necessário modificar o pedindo cooperação ao grupo" (LÜDKE; ANDRE, 2007, p. 29). projeto original da pesquisa para que se leve em conta o contexto local. Quando aplicada à educação, a etnografia, como uma modalidade de pesquisa As entrevistas possibilitam uma maior aproximação entre o pesquisador e os que tem como foco a escola, trouxe um enriquecimento muito grande do ponto de sujeitos investigados, ocupam lugar de destaque num processo de investigação por vista metodológico, pela disponibilidade de ajustes durante o processo investigativo ser um procedimento metodológico que se caracteriza pela palavra, pelos sentidos e teórico, pela identificação de elementos não previstos no planejamento inicial, atribuídos, tornando mais evidente, mais possível a construção das análises como unidade de sentido. mas essencial para a análise e a compreensão do cotidiano da escola, especifica- É importante destacar que na pesquisa com procedimentos etnográficos "À mente das ações realizadas pelos professores em sala de aula. Tendo em vista que se refere a uma abordagem metodológica centrada nos "dizeres" dos indivíduos, medida que se vai efetuando a coleta, vai sendo construída a interpretação, até ser compreendendo-os como construtores de seu cotidiano e, além disso, como sujeitos alcançado um nível de das indicativo de que o pesquisa- capazes de explicitar, diaiogar sobre o seu fazer diário, sobre suas opções, a raciona- dor conseguiu o máximo de variação sobre dado contexto" (GHEDIN: lidade presente nos discursos permite ao pesquisador compreender que significados 2008, p. 190). Neste tipo de pesquisas, desaparece a separação entre o domínio da atribuem ao seu saber- fazer pedagógico. Permite também descrever e analisar o descoberta e o da verificação, os dois movimentos são realizados simultaneamente, sistema de significados culturais dos grupos estudados. promovendo a autodefinição da própria dinâmica da pesquisa. No fundo, o trabalho etnográfico constitui uma abordagem investigativa pro- Este é um momento em que o pesquisador precisa estar aberto para ler diversas missora, pois busca novas formas de entendimento da realidade investigada. Essas vezes suas anotações, ouvir atentamente as gravações, procurando rever cada expe- são algumas questões que moveram a discussão que tentamos explorar. riência vivenciada na coleta de dados, as reflexões registradas nos diários de campo, rever o material teórico que o ajude a entender os fatos, o significado das ações, os sentidos que foi capaz de descrever. o pesquisador que envereda pela pesquisa qualitativa com procedimentos et- nográficos precisa estabelecer uma relação mista entre a teoria e a prática, a busca empírica apanhando a realidade para desnudá-la por meio da teoria. Segundo Ghe- din; Franco (2008, p. 207), a relação entre teoria e empiria permite ao pesquisador orientar-se por meio de categorias acerca dos caminhos que deve percorrer e ainda interpretar, à luz de outros estudiosos e parceiros do trajeto, que conduz à realidade investigada. Considerações finais Nesse estudo procuramos discutir a pesquisa qualitativa do tipo etnográfica aplicada à educação, como um modelo alternativo de pesquisa que estuda o coti- diano escolar, especificamente a sala de aula a partir de um plano aberto e flexível, em que os focos da investigação vão sendo constantemente revistos, as técnicas de coleta de dados reavaliadas, e os fundamentos teóricos repensados.158 SOBRE EDUCAÇÃO, PROCESSOS E SUJEITOS EDUCATIVOS: 159 perspectivas de abordagens o uso de tendências atuais da pesquisa etnográfica em educação Alguns pressupostos da pesquisa etnográfica Com o uso de tenências atuais como a microetnografia ou de microanálise. A etnografia vem evoluindo no sentido de tentar romper o distanciamento pesquisa- o trabalho etnográfico, como já foi dito neste texto, deve ser orientado para dor-grupo pesquisado, presente nos trabalhos mais tradicionais. a apreensão e a descrição dos significados culturais dos grupos estudados. Deste A microetnografia é uma tendência de pesquisa atual que vem sendo muito modo, o pesquisador deve exercer o papel subjetivo de participante e o papel utilizada pelos pesquisadores na área da educação, apresentando resultados bastante objetivo de observador, para poder compreender e explicar o comportamento dos positivos. "As maiores dificuldades para a sua efetivação diz respeito, em primeiro grupos pesquisados. lugar, à transcrição dos vídeos, uma tarefa árdua, longa e onerosa e, em segundo Segundo (2006), a pesquisa etnográfica não difere muito de outros tipos lugar, análise dos vídeos, que exige conhecimento de técnicas especiais e muito de A primeira fase requer amplo estudo da literatura relacionada ao tema e preparo teórico" (ANDRÉ, 2006, p. 108). Ela ainda manifesta como uma de suas sobre o contexto a ser Essa fase é fundamental para a formulação do pro- preocupações a questão da ética e dos valores relativos aos sujeitos ou grupos inves- blema e para a construção teórica que irá orientar o trabalho de campo. A segunda tigados e ao "consumidor" da pesquisa. fase é o trabalho de campo propriamente dito. Durante a estada no campo, os dados Conforme a citada autora, o uso da microetnografia ou da microanálise tendo recolhidos são provenientes de fontes diversas, envolve a observação participante, o vídeo como fonte primária. o texto base deixa de ser a narrativa, já que é substi- que é o que o observador apreende, vivendo com as pessoas e compartilhando as tuído pela transcrição do vídeo. vídeo pode ser visto analisado e discutindo aber- suas atividades. As entrevistas tem a finalidade de aprofundar as questões e esclare- tamente, tornando-se um documento mais público do que as anotações de campo. cer os problemas observados; os estudos de documentos oficiais e pessoais são usa- A possibilidade de se rever o vídeo várias vezes, discutir e confrontar diferentes dos no sentido de contextualizar o fenômeno e explicitar suas vinculações mais pro- interpretações vai refinando a análise, até atingir uma melhor aproximação do ob- fundas. Além desses, existem outros instrumentos de coleta de dados que podem ser jeto de estudo. A combinação das tomadas de vídeo com as anotações de campo utilizados na pesquisa etnográfica, para obter informações acerca de grupos sociais, aperfeiçoa ainda mais o trabalho, tornando a análise e as interpretações cada vez o questionário é um deles. "A informação obtida por meio de questionário permite mais consistentes. observar as características de um indivíduo ou grupo. Por exemplo: sexo, idade, es- Por outro lado, é importante assinalar que vêm surgindo uma crescente preo- tado civil, nível de escolaridade, preferência etc." (RICHARDSON, 1999, cupação por parte dos investigadores em relação a essas novas tendências das pes- p.189). A terceira fase diz respeito à sistematização dos dados e sua apresentação quisas etnográficas em educação. No caso da microetnografia, (LAPASSADE, apud em forma de relatório, leva o pesquisador a dialogar mais uma vez com a teoria e FINO, 2013, p. 8) argumenta que nunca nessa espécie de abordagem vídeo, como com os dados, culminando em nova estruturação do real. registro de um olhar fixo, "objetivo" e descontextualizado, é a fonte primária". A etnografia, como uma abordagem de pesquisa em que o senso questionador A divergência por parte dos investigadores no uso vídeo na micoetnografia do pesquisador tem um papel fundamental, não segue padrões rígidos ou predeter- como fonte primária, necessita de mais investigação para se ter mais segurança na minados, como foi dito anteriormente. Muitas vezes as técnicas tem que ser criadas utilização enquanto procedimento metodológico. e reformuladas para atender à realidade do trabalho de campo. A microanálise etnográfica estuda particularmente um evento ou parte dele, ao A seleção dos sujeitos da pesquisa é definida à luz dos objetivos, que vão mesmo tempo em que se dá ênfase ao estudo das relações sociais em grupo como esclarecendo o próprio processo de sua realização. Na análise dos dados, o pesqui- um todo, holisticamente é um instrumento da etnografia, frequentemente utilizado sador parte de um foco inicial e, à medida que vai coletando e analisando os dados, nos estudos da linguagem caracterizada como sociolinguística da comunicação, mi- vai definindo o foco da investigação. Na pesquisa etnográfica esses dois momen- croanálise sociolinguística interacional. Na educação, a é utilizada por tos andam juntos. o resultado desse processo de construção e interpretação deverá pesquisadores que observam, por um longo período de tempo, uma escola, uma sala ser negociado com informantes e com outros grupos interessados. "Os informantes de aula, um professor, para depois particularizar um processo interacional ou um possuem o direito de participar e discutir a interpretação desenvolvida pelo pesqui- fato que é considerado micro analiticamente relevante (MATTOS, 2010). sador." (CASTRO, 1994, apud GHEDIN: FRANCO, 2008, p. 192). Essas inovações no campo da pesquisa etnográfica, sem duvidas, trazem va- o trabalho de campo constitui um conjunto de ações orientadoras dos pro- liosas contribuições para a pesquisa etnográfica na área da educação, mas ainda cedimentos da pesquisa com o objetivo de compreender o objeto de investigação. requerem discussões sobre suas peculiaridades, suas filiações teóricas e seus fun- Na pesquisa etnográfica, o trabalho de campo se utiliza geralmente da observação damentos epistemológicos no sentido de se articular com mais clareza os percursos participante e da entrevista. metodológicos no processo de investigação.162 REFERÊNCIAS PRÁTICAS EDUCATIVAS NO CAMPO EA PROMOÇÃO DA IGUALDADE DE GÊNERO AMPARO, Laísa Braga, MIRANDA, Práticas pedagógicas: marcas subjacentes e reflexões persistentes no cotidiano escolar. 2002. Tese (Doutorado em Educação)- Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2002. Gilvana Pessoa de Oliveir Marli. Eliza. D.A. de. 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Disponível em www3.uma.pt/ renciada homens e mulheres, devido à construção de estereótipos que impedem autonomia do indivíduo, de acordo com o sexo. GEERTZ, Cliford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989 A participação da mulher no campo é considerada como "ajuda". Com GHEDIN, Evandro; Maria Amélia Santoro. A etnografia como paradig- esta expressão compromete o reconhecimento da sua contribuição socioeconômica ma de construção do processo de conhecimento em educação. In: GHEDIN, Evan- No entanto as mulheres começam, progressivamente, de forma coletiva ou individu dro; FRANCO, Maria Amélia Santoro. Questões de métodos na construção da al, a assumir novos papéis no meio rural, trazendo demandas até então suplantada pesquisa em educação. São Paulo: Cortez, p. 177-208. (Coleção docência pela visão heteronormativa de currículos escolares, políticas públicas, legislações em formação, Série saberes pedagógicos). práticas cotidianas. No desenvolvimento de práticas educativas, seja na escola ou Menga; ANDRÉ, Marli E. D.A. Pesquisa em educação: abordagens qua- em outros espaços de formação, como os sindicatos, deve-se articular a formação litativas. São Paulo: EPU, 2007 (Coleção temas básicos de e ensino). do indivíduo, desvelando as relações desiguais de poder entre homens e mulheres MARTINS, Gilberto de Andrade. Estudo de caso: uma estratégia de pesquisa. 2.ed. buscando democráticas. São Paulo: Atlas, 2008. A necessidade de uma escolarização que reconheça a diversidade cultural do MATTOS, Carmen Lúcia dc. A abordagem etnográfica na invenção campo, desvelando as várias formar de viver, sentir e construir este espaço e de se cientifica. Acesso Disponível em: www.ines.gov.br relacionar com o urbano, assegura uma educação comprometida com uma socieda- PIMENTEL, Maria da Glória. o professor em construção. 2. ed. Campinas, SP: de democrática. A construção de um projeto educativo em que as diferentes culturas Papirus, 1994. (Coleção magistério, formação e trabalho pedagógico). sejam representadas é um desafio, principalmente quando se identificam as relações Roberto Jerry. Pesquisa social: métodos e técnicas e. ed. Ver. de poder entre espaços (urbano e rural) e indivíduos homens e mulheres), Ampl. São Paulo: Atlas, 1999. dos a partir da oposição, da negação e repercutindo na comunidade enquanto sujeito SILVA, Jair Militão da (Org.) Os educadores e o cotidiano escolar. Campinas, SP: coletivo desta interação. Papirus, 2000. A análise sobre as práticas educativas, no campo, integra o debate sobre o pa- SOUSA, Maria das Dôres de. Identidade e Docência: o saber-fazer do professor pel da escola e dos sindicatos em um projeto emancipatório e de combate a todas as de sociologia das escolas públicas estaduais de Picos PI. 2012. 192 f. Tese (Dou- formas de exploração e exclusão causadas pelo modelo agroexportador e a desigual- torado em Educação) Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal. 2012. dade social crescente. Os educandos e educandas devem ser vistos a partir de suas particularidades coletivas e individuais, da dinâmica construção de sua história e as desiguais relações de poder existentes. As construções e desconstruções dos papéis 1 Possui graduação em Licenciatura Plena em Pedagogia Magistério pela Universidade Federal do Especialista em Docência do Ensino Superior UESPI e Especialista em Gestão Escolar UFPI. Mestra em Serviço Social/UFPE e Doutoranda em Serviço Professora Assistente da vinculada ao Curso de Pedagogia. Atuou no Campus de Picos e hoje está vinculada ao Campus de E-mail: gilvana@ufpi.edu.br