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1206 SOCIEDADE CIVIL em conseqüência de fatores sociais e políticos, como a mobilidade social e territorial, as experiências de autoridade e subordinação no ambiente de trabalho e os acontecimentos políticos diários, que a tradição da pesquisa sobre a Socialização política tende a subestimar. É Justamente pela importância de tais fatores de mudança que alguns autores põem também em dúvida o caráter progressivo e isento de conflitos do processo de aprendizagem política. Segundo eles, esta progressividade e continuidade são antes supostas que demonstradas: no processo podem ocorrer rupturas e descontinuidades em decorrência das mudanças sociais e políticas que se refletem também nos primeiros estádios da vida dos indivíduos. Isto se deveria à ação dos interesses e das ideologias em conflito e seria resultado do entre-cruzamento de influências várias. As pesquisas de Socialização política deveriam, por isso, prestar maior atenção às possíveis descontinuidades, aos possíveis "atrasos" no despontar e afirmar-se das inclinações políticas, e, principalmente, analisar mais a fundo as condições que fazem com que uma tendência ganhe raízes ou, ao contrário, esteja sujeita a mudanças, observando como os acontecimentos sucessivos da vida dos indivíduos ajudam a fortalecer ou a atenuar as primeiras e mais profundas impressões sobre o universo político. Se bem que estas críticas sejam perfeitamente justificadas e seja ainda necessário muito trabalho de pesquisa e reflexão para se dizer uma palavra definitiva sobre o processo que leva à estruturação da identidade política dos indivíduos, os resultados até aqui conseguidos possuem pelo menos um duplo mérito: o de haver investigado e muitas vezes descoberto a origem e desenvolvimento das crenças políticas fundamentais nos primeiros estádios da vida das pessoas e, principalmente, o de haver evidenciado os mecanismos emotivos e afetivos que entram em ação na construção das categorias interpretativas da realidade política. Dado que o processo de Socialização política se prolonga ao longo da vida adulta, não será difícil constatar que, mesmo neste estádio da vida, a aprendizagem política poderá dar-se amiúde sob a influência de fortes identificações e envolvimentos emotivos. BIBLIOGRAFIA - R. E. DAVSON e K. PREWITT. Political socialization. Little & Brown, Boston 1967; F. Y. GREENSTEIN, Children and politics. Yale University Press. New Haven 1965; H. HYMAN, Political socialization: Study in the psychology of political behavior, The Free Press. New York 1959; M. K. JENNINGS e R. G. NIEMI, The political character of adolescence The influence of families and schools. Princeton University Press. Princeton 1974; La socializzazione política, ao cuidado de A. OPPO, Il Mulino, Bologna 1980; A. PERCHERON, Le vocabulaire politique des enfants. Colin, Paris 1974; Handbook of political socialization. ao cuidado de S. A. RENSHON, The Free Press. New York 1977; D. SCARING, J. SCHWARTZ e A. LIND, The structuring principie: political socialization and political belief systems. in "American political science review", LXVII. 1973, pp. 415-32; R. WEISSBERG, Political learning. political choice and democratic citisenship. Prentice-Hall, Englewood Cliffs 1974. [ANNA OPPO] Sociedade Civil. I. A SOCIEDADE CIVIL NOS JUSNATURALISTAS. ² A expressão Sociedade civil teve, no curso do pensamento político dos últimos séculos, vários significados sucessivos; o último, o mais corrente na linguagem política de hoje (v. § 6), é profundamente diferente do primeiro e, em certo sentido, é-lhe até oposto. Em sua acepção original, corrente na doutrina política tradicional e, em particular, na doutrina jusnaturalista. Sociedade civil (societas civilis) contrapõe-se a "sociedade natural" (societas naturalis), sendo sinônimo de "sociedade política" (em correspondência, respectivamente, com a derivação de "civitas" e de "pólis") e, portanto, de "Estado". Conforme o modelo jusnaturalístico da origem do Estado, que se repete, com sensíveis variações, mas sem alterações substanciais da dicotomia fundamental "Estado de natureza-Estado civil", de Hobbes, que é seu criador, até Kant e seus seguidores, o Estado ou Sociedade civil nasce por contraste com um estado primitivo da humanidade em que o homem vivia sem outras leis senão as naturais. Nasce, portanto, com a instituição de um poder comum que só é capaz de garantir aos indivíduos associados alguns bens fundamentais como a paz, a liberdade, a propriedade, a segurança, que, no Estado natural, são ameaçados seguidamente pela explosão de conflitos, cuja solução é confiada exclusivamente à autotutela. Digamo-lo com as palavras de Locke: "Aqueles que se reúnem num só corpo e adotam uma lei comum estabelecida e uma magistratura à qual apelar, investida da autoridade de decidir as controvérsias que nascem entre eles, se encontram uns com os outros em Sociedades civis; mas os que não têm semelhante apelo comum ... estão sempre no Estado de natureza" (Segundo tratado sobre o Governo, § 87). SOCIEDADE CIVIL 1207 Agora as palavras de Kant: "O homem deve sair do Estado de natureza no qual cada um segue os caprichos da própria fantasia, para unir-se como todos os outros ... e submeter-se a uma pressão externa publicamente legal. . .: quer dizer que cada um deve, antes de qualquer outra coisa, entrar num Estado civil" (Metafísica dos costumes. I. Doutrina do direito, § 44). No sentido de sociedade política ou Estado, a expressão Sociedade civil é comumente usada por teólogos, canonistas e, em geral, por escritores de direito eclesiástico e história religiosa, para distinguir a esfera do temporal da esfera do espiritual, a esfera das relações sobre que se estende o poder político, da esfera de relações sobre que se estende o poder religioso. Na linguagem da doutrina cristã referente às relações entre Igreja e Estado, o problema destas relações é apresentado e ilustrado como problema das relações entre a Sociedade civil e a sociedade religiosa. O que muda neste uso da expressão não é tanto o seu significado de Sociedade civil, quanto o critério de distinção em relação ao seu oposto: enquanto a Sociedade civil e a sociedade natural se distinguem entre si, porque uma é instituída apoiando-se em relações de poder e a outra não, a Sociedade civil e a sociedade religiosa distinguem-se entre si pelos diferentes tipos de relações de poder que existem numa e na outra. Em Filosofia del diritto (1841-1845), Rosmini distingue três formas de sociedade que ele denomina teocrática, doméstica e civil. II. EM ROUSSEAU. ² Uma segunda acepção deriva do fato de que os mesmos escritores, quando querem apresentar um argumento a favor da historicidade do Estado de natureza, costumam identificá-lo com o estado no qual vieram a encontrar-se e se encontram ainda hoje os novos selvagens. Para provar a realidade do Estado de natureza, Hobbes mostra, na época presente, o exemplo dos "Americanos" e, em épocas passadas, o de raças "atualmente civilizadas e florescentes, mas antigamente compostas de um número relativamente pequeno de homens ferozes, de vida breve, pobres, sujos, com absoluta falta de todos aqueles confortos e requintes que a paz e a sociedade costumam oferecer" {De cive, I, 13). O mesmo autor diz que, "em muitos lugares da América, os selvagens não têm nenhuma forma de Governo, a não ser o Governo de pequenas famílias, cuja concórdia tem como fundamento a concupiscência natural" (Leviathan. cap. XII I) . Apoiado em José de Acosta, Locke aceita a informação de que "em muitos lugares da América não havia nenhum Governo" e de que "aqueles homens ... por longo tempo, não tiveram nem rei, nem repúblicas, vivendo, apenas, em bandos". (Segundo tratado, § 102). Através da identificação do Estado de natureza e do Estado selvagem, a Sociedade civil não se contrapõe mais somente à sociedade natural, abstrata e idealmente considerada, mas também à sociedade dos povos primitivos. Assim sendo, a expressão Sociedade civil adquire, neste novo contexto, também o significado de sociedade "civilizada" (onde "civil" não é mais adjetivo de "civitas", mas de "civilitas"). De resto, já Hobbes, numa célebre passagem de sua obra De cive, contrapõe, através de uma série de antíteses muito nítidas, os benefícios do Estado civil aos inúmeros inconvenientes do Estado de natureza (X, I). Atribui claramente à vida no Estado todas as características que distinguem o viver "civil" (entre as quais "o domínio da razão, a paz, a segurança, a riqueza, a decência, a sociabilidade, o requinte, a ciência e a benevolência"). É importante a distinção entre as duas acepções ² "Sociedade civil" como "sociedade política" e "Sociedade civil" como "sociedade civilizada" ² porque, enquanto na maior parte dos escritores dos séculos XVII e XVIII, os dois significados se sobrepõem, no sentido de que o Estado se contrapõe conjuntamente ao Estado de natureza e ao Estado selvagem, passando "civil" a significar, ao mesmo tempo, "político" e "civilizado", em Rousseau os dois significados são nitidamente distintos. Quando descreve, na segunda parte do Discurso sobre a origem da desigualdade, a passagem do Estado de natureza ao da "société civile" ("o primeiro que, após haver cercado um terreno, pensou em dizer isto é meu e achou os outros tão ingênuos que acreditaram, foi o verdadeiro fundador da Sociedade civil"), usa a expressão Sociedade civil, não no sentido de sociedade política, mas no sentido exclusivo de "sociedade civilizada" (onde, de resto, "civilização" tem, como se sabe, uma conotação negativa). Esta Sociedade civil descrita por Rousseau é tão pouco identificável com a sociedade política ou Estado que, em certas passagens, é apresentada como um estado em que "as usurpações dos ricos, o banditismo dos pobres e as paixões desenfreadas de todos" geram um estado de "guerra permanente" que faz pensar no Estado de natureza de Hobbes. Por outras palavras, enquanto para Hobbes (e igualmente para Locke) a Sociedade civil é a sociedade política e ao mesmo tempo a sociedade civilizada (civilizada na medida em que é política), a Sociedade civil de Rousseau é a sociedade civilizada, mas não necessariamente ainda a sociedade política, que surgirá do contrato 1208 SOCIEDADE CIVIL social e será uma recuperação do estado de natureza e uma superação da sociedade civil. A Sociedade civil de Rousseau é, do ponto de vista hobbesiano, uma sociedade natural. III. EM HEGEL. ² A terceira acepção é aquela que Hegel tomou célebre na sua obra Lineamentos de filosofia do direito. No sistema hegeliano, o espírito objetivo (que segue ao espírito subjetivo e precede o espírito absoluto) é distinto nos três momentos do direito abstrato, da moralidade e da eticidade. A eticidade, por sua vez, é distinta nos três momentos da família, da Sociedade civil e do Estado. Como se vê, a Sociedade civil, nesta sistematização geral das matérias tradicionalmente ligadas à filosofia prática, não coincide mais com o Estado, mas constitui um dos seus momentos preliminares. A Sociedade civil não é mais a família, que é uma sociedade natural e a forma primordial da eticidade, mas também não é ainda o Estado, que a forma mais ampla de eticidade e, como tal, resume em si e supera, negando-as e sublimando- as, as formas precedentes da sociabilidade humana. A Sociedade civil coloca-se entre a forma primitiva e a forma definitiva do espírito objetivo e representa, para Hegel, o momento no qual a unidade familiar, através do surgimento de relações econômicas antagônicas, produzidas pela urgência que o homem tem em satisfazer as próprias necessidades mediante o trabalho, se dissolve nas classes sociais (sistema das necessidades). É então que a luta de classes acha uma primeira mediação na solução pacífica dos conflitos através da instauração da lei e da sua aplicação (administração da justiça). É então, enfim, que os interesses comuns encontram uma primeira regulamentação meramente externa na atividade da administração pública e na constituição das corporações profissionais (polícia e corporação). Para fazer compreender que a Sociedade civil possui algumas características do Estado, mas não é ainda Estado, Hegel define-a como "Estado externo" ou "Estado do intelecto". O que falta à Sociedade civil para ser um Estado é a característica da organicidade. A mudança da Sociedade civil em Estado verifica- se quando cada uma das partes da sociedade, que nascem da dissolução da família, se unificam num conjunto orgânico. "Se se troca em Estado a Sociedade civil e a sua finalidade é colocada na segurança e na proteção da propriedade e da liberdade pessoal, o interesse do indivíduo como tal é o fim último onde tudo se unifica. Por causa disto, ser componente do Estado pode ser considerado uma opção caprichosa" (§ 258, anotação). Ao distinguir a Sociedade civil do Estado, Hegel quer justamente contrariar as teorias precedentes, muito caras aos jusnaturalistas, que, identificando o Estado com a Sociedade civil, isto é, com uma associação voluntária que nasce de um contrato para a proteção externa dos bens de cada indivíduo, não conseguiam aperceber-se da real, efetiva excelência do Estado, em nome do qual os cidadãos são chamados, em tempos mais difíceis, até ao supremo sacrifício da vida. Antes de Hegel, uma distinção muito semelhante entre Sociedade civil e Estado havia sido sustentada por August Ludwig Schlözer (1793); com uma referência direta ao mesmo Schlözer, ela foi depois repetida e confirmada por Anselm Feuerbach, que, acolhendo a velha doutrina dos dois pactos constitutivos do Estado, afirmou que, com o primeiro (o pactum societatis), os indivíduos dão origem pura e simplesmente à Sociedade civil e, somente com o segundo (o pacto subiectionis, ao qual Feuerbach junta um terceiro, o pactum ordinationis civilis), conseguem transformar a Sociedade civil em Estado (Antihobbes, 1798, cap. II). IV. EM MARX. ² Não é improvável que, ao sujeitar esta terceira maneira de entender a Sociedade civil à crítica das teorias jusnaturalistas, especialmente à teoria de Locke, para o qual o Estado, não sendo outra coisa senão uma associação de proprietários, não pode ser considerado um Estado no sentido pleno da palavra à maneira de Hegel, se haja interposto uma terceira significação de "civil" que, em sua forma alemã, "bürgerlich", significa também "burguês". Na realidade, algumas páginas que Hegel dedicou à Sociedade civil, especialmente as que descrevem o sistema das necessidades, onde, entre outras considerações, achamos o reconhecimento da importância e da novidade da economia política, "ciência que faz honra ao pensamento", constituem representação fiel das relações econômicas entre indivíduos em conflito entre si, características da imagem que a sociedade burguesa tem de si mesma. Foi com Marx que se deu a passagem do significado de Sociedade civil, nas várias acepções até aqui mostradas, ao significado de "sociedade burguesa". Quando Marx, na Questão hebraica, descreve o processo através do qual a Sociedade civil se emancipa do Estado, que impede seu livre desenvolvimento, e se cinde em indivíduos independentes que se proclamam libertos e iguais perante o Estado, e quando critica os pretensos direitos naturais, universais e abstratamente humanos, como direitos que nascem da própria Sociedade civil, deixa claro que, por Sociedade SOCIEDADE CIVIL 1209 civil, devemos entender "sociedade burguesa". O processo de formação da Sociedade civil-burguesa é, de fato, contraposto ao da sociedade feudal: "A emancipação política foi, ao mesmo tempo, a emancipação da sociedade burguesa da política e da aparência de um conteúdo universal. A sociedade feudal dissolveu-se no seu elemento fundamental, o homem; mas o homem que constituía o seu fundamento, o homem egoístico. Este homem, membro da sociedade burguesa, é agora a base, o pressuposto do Estado político. Ele é reconhecido como tal pelo Estado nos direitos do homem." (Observe-se, entre outras coisas, que, se neste contexto traduzíssemos "civil" no lugar de "burguês", a frase seria quase incompreensível). O trecho canônico desta nova acepção é o do prefácio à Crítica da economia política, em que Marx afirma que, estudando Hegel, ficara convencido de que as instituições políticas e jurídicas tinham suas raízes nas relações materiais da existência, "cujo complexo é englobado por Hegel. . . sob o termo de 'Sociedade civil' ", pelo que "a anatomia da Sociedade civil deve buscar-se na economia política". Não importa que Marx neste trecho tenha dado uma interpretação deformada, ou pelo menos unilateral da Sociedade civil de Hegel, fazendo-a coincidir com a esfera das relações econômicas, enquanto, como já vimos, a Sociedade civil de Hegel é mais extensa e abrange também a regulamentação externa (estatal) dessas relações, sendo, portanto, já uma forma preliminar e, por isso, insuficiente de Estado. O que importa relevar é que, na medida em que Marx faz da Sociedade civil o espaço onde têm lugar as relações econômicas, ou seja, as relações que caracterizam a estrutura de cada sociedade, ou "a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política", a expressão Sociedade civil, que, nos escritores jusnaturalistas, significava, conforme a etimologia, a sociedade política e o Estado, passa a significar (e significará cada vez mais de agora em diante por influência do pensamento marxista) a sociedade pré-estatal; tem, portanto, a mesma função conceptual que tinha, para os escritores jusnaturalistas, o Estado de natureza ou a sociedade natural, que era exatamente a sociedade das relações naturais ou econômicas entre os indivíduos, de cuja insuficiência nascia a necessidade de evoluir para uma fase superior de agregação (de civilização) que seria a sociedade política ou Estado. Pelo exposto verificamos que, ao final deste processo de mudança, ou melhor, de desvios de significado, Sociedade civil acabou por ter um significado oposto àquele que tinha no início do processo. Em outras palavras, na grande dicotomia "sociedade-Estado", própria de toda a filosofia política moderna, Sociedade civil representa, ao princípio, o segundo momento e, ao fim, o primeiro, embora sem mudar substancialmente o seu significado: com efeito, tanto a "sociedade natural" dos jusnaturalistas, quanto a "Sociedade civil" de Marx indicam a esfera das relações econômicas intersubjetivas de indivíduo a indivíduo, ambos independentes, abstratamente iguais, contraposta à esfera das relações políticas, que são relações de domínio. Em outras palavras, a esfera dos "privados" (no sentido em que "privado" é um outro sinônimo de "civil" em expressões como "direito privado" que equivale a "direito civil") se contrapõe à esfera do público. Em Sagrada família, Marx define a Sociedade civil com palavras que não diferem das usadas pelos jusnaturalistas para definir o Estado de natureza: "O Estado moderno tem como sua base natural (note-se a palavra "natural") a Sociedade civil, ou seja, o homem independente, unido a outro homem somente pelo vínculo do interesse privado e pela inconsciente necessidade natural." E, o que é mais significativo, o caráter específico da Sociedade civil (burguesa) assim definida é o do Estado de natureza descrito por Hobbes, isto é, a guerra de todos contra todos: "Tudo quanto a Sociedade civil é realmente, esta guerra (do homem contra o homem), de um contra o outro, de todos os indivíduos que se excluem reciprocamente só por causa da sua individualidade, é o universal e desenfreado movimento das forças elementares da vida desligadas dos vínculos dos privilégios." V. EM GRAMSCI. ² Gramsci também distingue repetidamente Sociedade civil e Estado. Esta distinção é um dos motivos condutores da análise histórica e política que ele faz, em Cadernos do cárcere, da sociedade burguesa e da evolução da sociedade burguesa para a sociedade socialista. Esta distinção, porém, apesar da identidade da terminologia, não coincide com aquela de Marx. A expressão Sociedade civil adquire assim, na obra mais madura de Gramsci, um quinto significado. Ele afirma: "Podem-se por enquanto fixar dois grandes planos superestruturais, o que se pode chamar da Sociedade civil, ou seja, do conjunto de organismos vulgarmente denominados privados, e o da sociedade política ou Estado, que correspondem à função de hegemonia que o grupo dominante exerce em toda a sociedade, e ao do domínio direto ou de comando que se expressa no Estado ou no Governo jurídico." 1210 SOCIEDADE CIVIL Desta passagem e de outras análogas que poderíamos citar, se deduz claramente que, ao contrário de Marx, para quem a Sociedade civil compreende a esfera de relações econômicas e, portanto, pertence à estrutura, Gramsci entende por Sociedade civil apenas um momento da superestrutura, particularmente o momento da hegemonia, que se distingue do momento do puro domínio como momento da direção espiritual e cultural que acompanha e integra de fato nas classes efetivamente dominantes, e que deve acompanhar e integrar nas classes que tendem ao domínio, o momento da pura força. Parafraseando o que foi dito por Marx, poderíamos afirmar, para bem acentuar a distinção, que a Sociedade civil compreende, segundo Gramsci, não já "todo o complexo das relações materiais", mas todo o complexo das relações ideológico-culturais. Se toda a forma durável de domínio se apóia na força e no consenso, todo o regime político necessita não somente de um aparelho coativo, em que consiste o Estado no sentido estrito e tradicional da palavra, mas também de várias instituições, dos jornais à escola, das editoras aos institutos culturais, instituições essas que têm por fim a transmissão dos valores dominantes e através das quais a classe dominante exerce a própria hegemonia. O relevo dado por Gramsci ao elemento da hegemonia não significa que ele tenha abandonado a tese marxista da prioridade da estrutura econômica; mostra, quando muito, que ele quis distinguir com mais força, no conjunto dos elementos superestruturais, o momento da formação e da transmissão dos valores (hoje poderíamos dizer da "socialização") do momento mais propriamente político da coação. Na história dos vários significados de Sociedade civil o que importa essencialmente notar é que Gramsci, chamando Sociedade civil ao momento da elaboração das ideologias e das técnicas do consenso, a que deu particular relevo, modificou o significado marxista da expressão, voltando parcialmente ao significado tradicional, segundo o qual a Sociedade civil, sendo sinônima de "Estado", pertence, segundo Marx, não à estrutura, mas à superestrutura. Em suma, Gramsci serviu-se da expressão Sociedade civil, não para contrapor a estrutura à superestrutura, mas para distinguir melhor do que o haviam feito os marxistas precedentes, no âmbito da superestrutura, o momento da direção cultural do momento do domínio político. VI. NA LINGUAGEM DE HOJE. ² De todos os significados precedentemente analisados, o mais comum na linguagem política atual é o genericamente marxista. Tanto é assim que, enquanto a contraposição entre Sociedade civil e Estado é corrente na literatura política continental, que sentiu mais a influência do marxismo (veja-se, por exemplo, a obra de P. Farneti intitulada Sistema político e Sociedade civil, 1971), ela é praticamente desconhecida na literatura política de língua inglesa, onde o "sistema político" é considerado, geralmente, como um subsistema em relação ao "sistema social" em seu conjunto, e onde a expressão Sociedade civil é substituída pelo termo mais genérico de "sociedade". Na contraposição Sociedade civil-Estado, entende- se por Sociedade civil a esfera das relações entre indivíduos, entre grupos, entre classes sociais, que se desenvolvem à margem das relações de poder que caracterizam as instituições estatais. Em outras palavras, Sociedade civil é representada como o terreno dos conflitos econômicos, ideológicos, sociais e religiosos que o Estado tem a seu cargo resolver, intervindo como mediador ou suprimindo-os; como a base da qual partem as solicitações às quais o sistema político está chamado a responder; como o campo das várias formas de mobilização, de associação e de organização das forças sociais que impelem à conquista do poder político. Evocando a conhecida distinção de Weber entre poder de fato e poder legítimo, pode-se também dizer que a Sociedade civil é o espaço das relações do poder de fato e o Estado é o espaço das relações do poder legítimo. Assim entendidos, Sociedade civil e Estado não são duas entidades sem relação entre si, pois entre um e outro existe um contínuo relacionamento. Uma das maneiras mais freqüentes de definir os partidos políticos é a de mostrar sua função de articulação, agregação e transmissão das demandas que provêm da Sociedade civil e que são destinadas a tornar-se objeto de decisão política. A contraposição entre Sociedade civil e Estado tem sido freqüentemente utilizada com finalidades polêmicas, para afirmar, por exemplo, que a Sociedade civil move-se mais rapidamente do que o Estado, que o Estado não tem sensibilidade suficiente para detectar todos os fermentos que provêm da Sociedade civil, que na Sociedade civil forma-se continuamente um processo de deterioração da legitimidade que o Estado nem sempre tem condições de deter. Uma velha formulação desta mesma antítese é a que contrapõe o poder real ao poder legal. Daí a freqüente afirmação de que a solução das crises que ameaçam a sobrevivência de um Estado deve buscar-se, antes de tudo, na Sociedade civil, onde é possível a SOCIEDADE DE MASSA 1211 formação de novas fontes de legitimidade e, portanto, novas áreas de consenso. Nos momentos de ruptura, se exalta a volta à Sociedade civil, tal como os jusnaturalistas exaltavam o retorno ao Estado de natureza. BIBLIOGRAFIA. - N. BOBBIO, Sulla nozione di società civile, in "De homine", 1968; P. FARNETI, Sistema politico e sistema civile. Giappichelli, Torino 1971; J. HABERMAS. Storia e critica dell'opinione pubblica (1962). Laterza. Bari 1971; M. RIEDEL. Büfgerliche Gesellschaft. Historisches Lexicon zur politisch-sozialen Sprache in Deutschland, Klett- Cotta. Stuttgart 1974, vol. II. [NORBERTO BOBBIO] Sociedade de Massa. I. A SOCIEDADE DE MASSA E OS CRÍTICOS. ² Sob o ponto de vista descritivo, a Sociedade de massa pode ser definida como uma sociedade em que a grande maioria da população se acha envolvida, seguindo modelos de comportamento generalizados, na produção em larga escala, na distribuição e no consumo dos bens e serviços, tomando igualmente parte na vida política, mediante padrões generalizados de participação, e na vida cultural, através do uso dos meios de comunicação de massa. A Sociedade de massa surge num estádio avançado do processo de modernização: quer quanto ao desenvolvimento econômico, com a concentração da indústria na produção de bens de massa e o emergir de um setor terciário cada vez mais imponente; quer quanto à urbanização, com a concentração da maior parte da população e das instituições e atividades sociais mais importantes nas grandes cidades e nas megalópoles; quer quanto à burocratização, com o predomínio da racionalidade formal sobre a substancial e com a progressiva redução das margens da iniciativa individual. Este conjunto de condições define o tipo e estilo que prevalecem nas relações sociais de uma Sociedade de massa. Tendem a perder peso sucessivamente os vínculos naturais, como os da família e da comunidade local, prejudicados pelas organizações formais e pelas relações intermediadas pelos meios de comunicação de massa: daí o notável crescimento das relações mútuas entre sujeitos às vezes sumamente distantes entre si e, ao mesmo tempo, o empobrecimento e a despersonalização dessas inter- relações, que envolvem apenas aspectos parciais e limitados da personalidade dos indivíduos. Na complexidade da sua estrutura, a Sociedade de massa é um fenômeno recente, do nosso século; mas, ao mesmo tempo, ela é resultado de um longo processo de modernização, que pressupõe um progressivo envolvimento social, político e cultural das grandes massas da população. Não é, pois, de admirar que as interpretações e críticas que se fizeram da Sociedade de massa, e, particularmente, das suas conseqüências políticas, sejam eco, em parte, de velhas posições mantidas em face do ingresso das massas na cena social e política e, em parte, reflitam, pelo contrário, posições novas. Perante o surgimento das massas nas sociedades européias, se observam fundamentalmente três atitudes diversas: um juízo Malmente positivo por parte dos democratas e socialistas, Marx por exemplo; uma crítica que chamaria aristocrática, como a de Maistre, Le Bon, Burckardt, Nietzsche e, finalmente, Ortega y Gasset, todos eles a esconjurar o declínio dos valores tradicionais e elitizantes sob o embate nivelador das massas; uma crítica moderada por parte de alguns liberal-democratas, como Tocqueville e Stuart Mill, preocupados com salvaguardar a liberdade individual diante da possível "tirania da maioria" e da pressão do conformismo social. Hoje, em face da Sociedade de massa, a posição que continua a apresentar mais coerência é a de inspiração liberal-democrática, uma posição de crítica moderada, quando não de defesa (Kornhauser, Bell, Shils). A esta se opõe uma crítica radical e muito agressiva, que provém principalmente da esquerda (Fromm, em primeiro lugar, Mills e Marcuse). Resta-nos agora considerar mais de perto as interpretações e críticas da Sociedade de massa. Fá-lo- emos analisando particularmente dois dos aspectos politicamente mais qualificativos: o CONFORMISMO (V.), que seria característico das Sociedades de massa, e as relações entre Sociedade de massa e TOTALITARISMO (V.). II. SOCIEDADE DE MASSA E CONFORMISMO. ² Já no conceito de "homem-massa" de Ortega y Gasset estava presente um traço distintivo do conformismo que depois havia de ser considerado como próprio da Sociedade de massa: o fato de que o "outro" a quem a gente se conforma é uma noção geral e vazia e não mais um grupo particular com critérios próprios e peculiares de comportamento. O homem-massa se sente à vontade ² afirma Ortega y Gasset ² quando é igual a "todo o mundo", isto é, à massa indiferenciada. Todavia, um ensaio mais elaborado de descrição do conformismo da Sociedade de massa se encontra na análise do "conformismo de autômatos" levada a efeito por E. Fromm em Fuga da
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