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História das preocupações com o mundo natural no Brasil: da proteção à natureza à conservação da biodiversidade José Luiz de Andrade Franco José Augusto Drummond Introdução Este artigo examina o surgimento e o desenvolvimento de preocupações com o mundo natural no Brasil. Elas tomaram formas diversas, representaram e repre- sentam diferentes perspectivas, e evoluíram na medida em que novos conceitos e teorias surgiram nas ciências naturais e naquelas que buscam explicar as relações dos humanos com a natureza. O texto traz um painel amplo de como foram se estruturando, ao longo do tempo, as ideias e práticas sociais relacionadas com a proteção das paisagens naturais e da biodiversidade brasileira, e com as tensões, contradições e deslo- camentos inerentes. Pretendemos, sobretudo, contribuir para que não caiam no esquecimento tradições de pensamento e estratégias de ação, algumas antigas, outras recentes, desenvolvidas com o intuito de garantir o bom uso dos recursos naturais e a proteção do patrimônio natural brasileiro. O conhecimento delas possibilita um melhor entendimento do contexto em que se movem os esforços atuais para a conservação da biodiversidade no Brasil. Diferentes autores, propostas e sensibilidades relacionados com a proteção da natureza no Brasil foram por nós pesquisados. Depois de explorar brevemente alguns autores dos "primórdios", a ênfase recai sobre três gerações de autores e organizações mais recentes, que às vezes se sobrepõem: a) a geração dos anos 1920-1940, que procurava relacionar a proteção da natureza com ideias de cons- trução da nacionalidade e da identidade nacional brasileira; b) a geração dos anos 1950-1980, ligada principalmente à Fundação Brasileira para a Conservação da Natureza (FBCN), que desenvolveu estratégias vigorosas de criação de áreas protegidas, de conservação de espécies ameaçadas de extinção e de proteção de ecossistemas; e c) a geração que surgiu nos anos 1990 e enfoca a conservação da biodiversidade a partir do conhecimento científico gerado por campos como a biologia da conservação e da necessidade de negociar limites ao crescimento 334 História ambientat História das preocupações com o mundo natural no Rrasil 335 econômico desenfreado. São anotadas as convergências e divergências entre autores e organizações, e são levados em conta os contextos políticos invariavelmente hostis em que todos eles operaram, sempre como representantes de minorias e defensores de causas de escassa popularidade. Atenção especial é dada às mui- tas decisões e políticas de proteção à natureza geradas pela divulgação das suas ideias e pelo seu ativismo. à destruição imprevidente do patrimônio natural brasileiro. Eles não tinham um interesse especial pelo valor estético ou intrínseco da natureza, mas sim pelo seu valor político e instrumental para o progresso material do país. Uma parte con- siderável destes intelectuais propunha eliminar o modelo de produção baseado no latifúndio, na monocultura e no trabalho escravo. Defendiam um modelo de economia baseado no uso previdente e racional dos recursos da natureza, no con- texto de uma sociedade essencialmente rural, mas, moderna, com uso intensivo de insumos e tecnologia.' Um bom exemplo de como a sua defesa da natureza, embora não carecesse de uma dimensão estética, estava preocupada, sobretudo, com aspectos mais pragmáticos, foi a resposta deles à criação, em 1872, do Parque Nacional de Yellowstone, nos Estados Unidos da América (EUA). Em 1876, quatro anos depois da instituição deste, que foi o primeiro parque nacional do mundo, André Rebouças propôs a criação de parques nacionais em Sete Quedas (rio Paraná) e na Ilha do Bananal (rio Araguaia). No entanto, justificou a proposta, principalmente, com o argumento da potencialidade turística - ou seja, comercial - dos dois locais." Apesar do viés utilitarista e da inserção política relativamente forte desse grupo, houve apenas avanços pontuais. O mais relevante, visível e duradouro foi a recuperação e proteção da Floresta da Tijuca, na cidade Rio de Janeiro, depois de uma série de medidas de proibição de desmatamento das serras da Carioca e da Tijuca. A iniciativa visava recompor a cobertura florestal, eliminada pela produção de carvão e pelo plantio de café, para preservar as nascentes e garantir a oferta de água à capital imperial. Foram plantadas sistematicamente, entre 1861 e 1889, dezenas de milhares de mudas de árvores, sob o comando inicial de Manuel Gomes Archer (1821-1905).5 Preocupações com os recursos naturais já na Colônia e no Império? Uma primeira "onda" de preocupações com o mundo natural no Brasil- anterior às gerações acima mencionadas - surgiu já nos séculos 18 e 19. Ela foi produzida por brasileiros e portugueses residentes no Brasil que haviam estudado na Europa. Na sua maioria, foram inspirados pelos círculos de debates ocorridos no âmbito da Universidade de Coimbra e da Academia de Ciências de Lisboa, em tomo do cientista italiano (professor de Coimbra) Domenico Agostino Vandelli (1735- 1816) e de Rodrigo de Sousa Coutinho (1745-1812). Em 1803, Coutinho propôs a transferência da sede do reino português para o Brasil. Em 1808, acompanhou a transferência da família real para o Brasil, tomando-se o Conde de Linhares. Foi um dos principais conselheiros do Príncipe Regente João.' A figura mais proeminente do grupo foi José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838). Participavam do grupo, também, Alexandre Rodrigues Ferreira (1756-1815), José Gregório de Moraes Navarro, Baltasar da Silva Lisboa (1761- 1849), Raymundo da Cunha Mattos, Emílio da Silva Maia, Manuel Arruda da Câmara (1752-1811), Manuel Ferreira da Câmara Bittencourt e Sá (1761-1835), José Mariano da Conceição Velloso (I 742-1811), José Azeredo Coutinho (1742- 1821), José Vieira Couto (1752-1827), Antônio Rodrigues Veloso de Oliveira (1750-1824), João Severiano Maciel da Costa (1769-1833), Manoel de Araújo Porto-Alegre (1806-1879), Francisco Freire Alemão (1794-1866), Guilherme Schuch de Capanema (1824-1908), Frederico Leopoldo César Burlamaque (1803-1866), André Rebouças (1838-1898) e Joaquim Nabuco (1849-1910).2 As suas principais influências provinham da história natural- Lineu, Buffon e Humboldt - e da fisiocracia. Ao contrário do que OCOlTeuna Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos, onde a crítica à destruição do mundo natural esteve associada ao ethos romântico, no Brasil, o romantismo, como movimento cultural, alcançou pouca influência nesse campo. Foram, ao contrário, os intelectuais racionalistas, influenciados pela herança do iluminismo, que construíram urna crítica pioneira Pesquisa científica, funcionários do Estado e preocupações com a natureza na Primeira República No Rio de Janeiro dos fins do século 19, ainda antes da geração de prote- tores da natureza dos anos 1920-1940 a ser estudada mais a frente, insti tuições como o Museu Nacional do Rio de Janeiro (MNRJ) e o Jardim Botânico do Rio de Janeiro (JBRJ) já eram importantes centros de pesquisa que ajudaram a ampliar o conhecimento sobre a natureza no Brasil. Para tanto, contribuíram as administrações de Ladislau de Souza Neto, diretor-geral do MNRJ entre 3 Dean, Aferro e fogo; op. eit.; Pádua, Um sopro de destruição, op. cit. 4 Dean, A ferro e fogo, op. eit.; Pádua, Um sopro de destruição, op. cit. André Rebouças, Excursão 00 Solto do Guairá: O Parque Nacional (Rio de Janeiro, 1876). S Dean, A ferro e fogo, op. cit.; Pádua, Um sopro de destruição, op. cito José Augusto Drumrnond, Devastação e preservação ambienta! no Rio de Janeiro (Niterói: EDUFF, t 997). 1 Warren Dean, Aferro e jogo: história e devas/ação da Ma/a Atlântica Brasileira (São Paulo: Cia das Letras, 1996). José Augusto Pádua, Um sopro de destruição: pensamento político e critica ombiental no Brasil escravista (/786-1888) (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002). 2 Dcan, Aferro e fogo. op. cit.; Pádua, Um sopro de destruição,op. cit. ~:.; 336 História ambientat História das preocupações com o mundo natural no Brasil 337 1875 e 1893, e de João Barbosa Rodrigues (1842-1909), diretor do JBRJ a partir de 1890. Eles buscaram equipar e direcionar as instituições para a pesquisa científica. Da mesma forma, o Instituto de Manguinhos, fundado em 1900 e reorganizado a partir de 1902, por Oswaldo Cruz (1872-1917), investiu em pesquisas de biologia aplicada." Esse interesse científico pela natureza coincidiu com o surgimento de preocupações com a proteção do rico patrimônio natural brasileiro, com base em argumentos tanto de utilidade econômica quanto de fruição estética.' Nesse mesmo período, no estado de São Paulo, até alguns setores do poderoso Partido Republicano Paulista percebiam os riscos representados pela agricultura de plantation e pelo crescimento desordenado das cidades para o futuro da economia e a manutenção do seu projeto político. As ferrovias paulistas, cuja quilometragem e volumes de cargas cresciam aceleradamente, modernizavam as paisagens rurais e estimulavam a rápida conversão das formações vegetais nativas e o avanço das fronteiras cafeicultoras.ê Quando viajavam nelas, observadores atentos anotavam os enormes danos que ocorriam nas suas margens imediatas e nas suas faixas mais largas de influência. Em 1901, Euclides da Cunha (1866-1909) chocou-se com as pilhas de lenha e as voçorocas visíveis ao longo da ferrovia. Elas testemunhavam a derrubada das matas para abrir a linha férrea e para abastecer as locomotivas. Cunha considerou-as "cicatrizes" deixadas pelas plantações de café, e foi movido a escrever artigos como "Fazedores de Desertos" e "Entre Ruínas", notáveis registros da destruição ambiental que ocorria no eixo econômico mais dinâmico do país." Identificando-se com o ideal de uma modernização racional, para melhor aproveitar os recursos naturais, o governo paulista começou a contratar técnicos e cientistas. Destacaram-se Orville Adelbert Derby (1851-1915), Franz Wilhem Dafert, Herman von Ihering (1850-1930), Alberto Loefgren (1854- 1918) e Edmundo Navarro de Andrade (1881-1941), dos quais apenas o último era brasileiro. A forte incidência de estrangeiros nesse grupo preocupado com o uso imprevidente do patrimônio natural talvez explique, em parte, porque muitas medidas por eles propostas não foram implementadas.'? Ainda assim, a partir da atuação deles, surgiu em São Paulo um conjunto notável de instituições que estimularam e modernizaram os estudos científicos nos campos da geologia e da biologia. Em 1896, instalou-se na serra da Cantareira a Seção Botânica, vinculada à Comissão Geológica e Geográfica (criada em 1886), sob a coordenação de Derby. Com ela surgiu, neste mesmo local, a primeira reserva florestal do estado, cuja principal finalidade era proteger as bacias dos riachos que abasteciam a cidade de São Paulo. Em 1892, nasceu o futuro Instituto Butantã (reorganizado em 1901), um laboratório especializado na produção de vacinas. II Outra instituição importante foi o Museu Paulista, surgido em 1895. Hermann Friedrich Albrecht von Ihering foi o seu fundador e diretor, até 1915. Alemão de nascimento, trabalhara antes no MNRJ. Era um expert em zoolo- gia e botânica. 12 As bem fundamentadas preocupações e propostas de Ihering com relação ao patrimônio natural brasileiro estão registradas em seu texto "Devastação e Conservação das Matas". Ele observava que plantas e animais configuravam o denominado "mundo orgânico", que funcionava de modo tão sutil e tão admiravelmente bem que nada conhecíamos de mais perfeito. Para ele, mecanismo tão complexo como esse não podia ser modificado profunda- mente sem consequências muito sérias." Era nesse tom que lhering condenava a exploração imprevidente dos recur- sos naturais. Ele sabia que o Brasil não era o único país a depauperar as suas riquezas, pois a natureza humana era a mesma por toda parte e visava o lucro imediato, sem se preocupar com as gerações vindouras. Para ele, a situação só se modificaria com a ação firme do Estado, que deveria criar reservas florestais e estimular a silvicultura "racional". Essas medidas garantiriam o que lhering considerava as três metas de conservação das matas: o fornecimento de lenha, a extração de madeiras-de-lei e outros produtos, e a proteção dos mananciais de água." No tocante às reservas florestais, Ihering criou, com fundos próprios, a Estação Biológica do Alto da Serra, situada na Serra do Mar, acima da vila de Cubatão. Em 1909, doou-a ao Museu Paulista. Para ele, a silvicultura poderia utilizar-se de essências exóticas, como o eucalipto, principalmente para a produção de com- bustível. No entanto, considerava necessário conservar o caráter misto e variado das matas brasileiras. Isso demandava, segundo ele, a fundação de um Serviço Florestal de alta capacitação. Ihcring antecipou muitos dispositivos legais adotados no país nas décadas seguintes. Ele propôs, em 1911, um verdadeiro ante-projeto de um código florestal, regulamento que o Brasil só viria a ter 23 anos mais tarde. 15 1I Dean, Aferro e fogo, op. eit. 12 Mário Guimarães FeITi, A Botânica no Brasil, op. cit. In: Azevedo, As Ciências no Brasil, vol. 2, op. cit. Dean, A ferro e fogo, op. cit. Franco e Drummond, Proteção à natureza e identidade nacional, op. cit, 13 Herman von Ihering, Devastação e Conservação das Matas, in Revista do Museu Paulista, '101. Vllt, (São Paulo,1911), p. 485-500. Dean, Aferro e fogo, op. cit. Franco e Drummond, Proteção à natureza e identidade nacional, op. eit. 14 Ihering, Devastação c Conservação das Mata>, op. cit. Dean, Aferro e fogo, op. cit. Franco e Drummond, Proteção à natureza e identidade nacional. op, cit. 15 Dean, Aferro efogo, op. cit. Franco e Drummond, Proteção à natureza e identidade nacional, op. cit. 6 Femando de Azevedo (org.), As Ciência" 110 Brasil. vols. I e 2. (Rio de Janeiro: UFRJ, 1994). 7 José Luiz de Andrade e José Augusto Orummond, Proteção à natureza e identidade nacional no Brasil, anos /920- 1940 (Rio de Janeiro: Fiocruz, 2009). 8 Dean, Aferro efogo, op. cit.; Pierre Monbeig, pioneiros efazendeiros de São Paulo (São Paulo: Hucitec/Polis, t 984). 9 Euclides da Cunha, Obra Completa (Rio de Janeiro: Aguilar, 1995). Dean, Aferro efogo, op. cit.; Franco e Drummond, Proteção à natureza e identidade nacional, op. cit. 10 Dean, A ferro e fogo, op. cit.; franco e Drurnmond, Proteção à natureza e identidade nacionol.. ._,d.· ..·',_~·.· _ I,'·."i·.(r;\.:: I:' ~~;'ti·,i~:; Ei:".,~" ~:;. ~.'."'.'.tr"it,:, ~}: ", iL, t· ~ .•. 1:'; :,~: I; ; ~ " ~ I~ .!i j' ~ ~ f 1., ) I~ ~~ ,j :j ~ 'h'i,.i~t!! ~r'í ~;;:j 1,;;1 ~~'';'I 'I';:;!r~,~J~~lJ ~~j m,'1;' f;'~! 338 Hislória ambienlal Hislória das preocupações com o mundo natural no Brasil 339 Citado por Ihering em seu artigo de 1911, Johan Albert Constantin Lõefgren foi um dos cientistas que mais se preocupou com o cuidado da natureza brasi- leira. Sueco, chegou ao Brasil em 1874 e teve uma carreira longa, diversificada e produtiva. Trabalhou algum tempo como engenheiro-arquiteto da Companhia Paulista de Estradas de Ferro. Em 1886, foi contratado como botânico e meteo- rologista da Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo. Em 1898, fundou um Jardim Botânico na reserva florestal da Cantare ira, mais tarde transformado no atual Horto Florestal. Graças aos seus argumentos, foi criado em São Paulo, em 1899, um Serviço Florestal e Botânico, incumbido de estimular o uso racional das florestas. Atuou também, em 1911, no Serviço de Obras contra a Seca. Em 1916, ingressou no JBRJ, onde chefiou a Seção de Botânica." Loefgren era um pesquisador especialmente ativo. Fazia coletas sistemáticas, publicava numerosas descobertas sobre a flora e traduzia para o português impor- tantes obras da botânica e da ecologia, inclusive o estudo de Eugene Warming (1841-1924) sobre a flora de Lagoa Santa,em Minas Gerais. 17 Além de fundar o Serviço Florestal e Botânico em São Paulo, fez campanha em prol de um código nacional de florestas e de um serviço nacional de florestas. Empenhou-se na cria- ção de parques nacionais. Inspirou o inicio da comemoração do Dia da Árvore no Brasil, em 1902. Conseguiu que fosse estabclecida, em terras adquiridas a seu conselho pelo governo federal, uma "estação biológica", na localidade de Itatiaia, área do primeiro parque nacional brasileiro. As pesquisas realizadas nela anteciparam esse parque. Loefgren enfrentou, no entanto, muitas dificuldades para convencer legisladores brasi leiros sobre a necessidade de proteger as florestas primárias remanescentes. 18 Edmundo Navarro de Andrade se distinguiu pelo fato de que as suas propostas foram mais bem aceitas pela elite paulista, devido às suas posturas políticas libe- rais, identificadas com o Partido Republicano Paulista. Formado em agronomia na Universidade de Coimbra, em 1903, visitou os EUA, em 1910, e a Austrália, em 1913. Dedicou-se fundamentalmente à tarefa de reflorestamento com espé- cies exóticas (eucaliptos e pinheiros), assunto no qual se tornou uma autoridade internacionalmente reconhecida." Como funcionário da Companhia Paulista de Estradas de Ferro (CPEF), Navarro orientou o plantio de milhões de pés de eucalipto, geralmente ao longo dos leitos ferroviários. No Horto de Rio Claro da CPEF, ele mantinha um arboretum com mais de cem espécies de eucaliptos, talvez a coleção mais completa do mundo na época. Nesse horto e em outros sete produziu milhões de mudas de eucaliptos, plantadas, em São Paulo e em outros estados, por iniciativa de particulares que seguiram o seu exemplo. Substituiu Loefgren na direção do Serviço Florestal do Estado e, na Cantareira, transformou o Jardim Botânico em Horto Florestal." Interessava-se também pela flora nativa. Publicou, em colaboração com Otávio Vecchi, outro estudioso das questões florestais, dois livros: Les Bois Indigênes de São Paulo (1916), que descreve e ilustra muitas essências da vegetação nativa de São Paulo; e Os Eucaliptos (1918), sobre a cultura e exploração dos eucalip- tos. Em outro livro, Questões Florestais (1915), aborda assuntos até hoje muito polêmicos, como o problema da relação entre as matas e o clima. Concluiu que a destruição das florestas não era o único, nem o principal fator a influenciar as precipitações atmosféricas, mesmo consciente de que essa conclusão poderia de- sestimular o reflorestamento e a proteção às florestas. Navarro era contra medidas governamentais coercitivas para proteger as florestas, posição que facilitava as suas relações com os proprietários de terras." A trajetória desse grupo e de suas ideias mostra que começava a surgir uma consciência de que o mundo natural devia ser preservado, embora não houvesse ainda possibilidades de aplicar medidas eficazes nesse sentido. Alberto Torres" (1865-1917) foi jurista, escritor e pensador político. As suas principais obras foram publicadas na década de 1910. Apesar de ter um perfil muito diferente dos cientistas naturais examinados até aqui, as ideias de Torres ajudaram a formar um ambiente político-intelectual mais favorável ao debate em torno da proteção à natureza e do uso racional dos recursos naturais. Para ele, o país protagonizava um caso típico de destruição acelerada dos recursos naturais. Em três séculos, tínhamos devastado mais a natureza do que as civilizações do Egito, China e Mesopotâmia em mais de um milhar de anos de exploração continuada. Havia o agravante de que os avanços sociais e tecnológicos não haviam compensado os estragos resultantes do mau uso dos recursos da natureza." Segundo Torres, os brasileiros não deveriam reproduzir os modelos dos países mais adiantados, descuidando do patrimônio natural e do homem. A sociedade brasileira deveria trilhar um caminho próprio. O seu projeto de nacionalidade se .16 Ferri, A Botânica no Brasil ... Dean, A ferro e fogo, op. cit. Franco C Drummond, Proteção à natureza e identidade nacional, op. cit. 17 Sobre a importância de Warming na definição das bases da ciência da ecologia. ver Pascal Acot, História da Ecologia (Rio de Janeiro: Carnpus, 1990), e Donald Worster, Nature s Economy: a history of ecological ideas (Cambridge: Cambridge University Press, 1998) .. 18 Dean, Aferro efogo, op. cit.; Franco e Drummond, Proteção à natureza e identidade nacional, op. cit. 19 Regina Machado Leão, A Floresta e o homem (São Paulo: Edusp/Ipef, 2000). Dean, Aferro efogo, op. cit., Franco e Drurnmond, Proteção à natureza e identidade nacional, op. cit. 20 Leão, A Floresta e o homem, op. cit.; Dean, Aferro e fogo, op. cit.; Franco e Drurnmond, Proteção à natureza e identidade nacional .. 21 Ferri, A Botânica no Brasil, op. cit.; Leão, A Floresta e O homem, op. cit.; Dean, Aferro efogo, op. cit.; Franco e Drummond, Proteção à natureza e identidade nacional, op. cit. 22 Em 1914, saíram os livros mais influentes de Alberto Torres: O problema nacional brasileiro (Brasília: UnB, 1982) c A organização nacional (Brasilia: UnB, 1982). Em 1915, foi publicado o último livro de Alberto Torres, As fontes da vida no Brasil (Rio de Janeiro, FGV, 1990). 23 Dean, Aferro e fogo, op. cit.; Franco e Drummond, Proteção à natureza e identidade nacional, op. cito 340 História ambientai vinculava estreitamente à valorização das gentes e dos recursos naturais. Ele foi o primeiro brasileiro a utilizar o termo conservação como era usado nos EUA, incluindo-o em sua proposta para uma nova Constituição. A chave do progresso estava para ele no uso previdente dos recursos naturais e no investimento no que hoje chamaríamos de capital humano. A opção por esses caminhos - ao contrário do afã de reproduzir no país os modernos aparatos tecnológicos estrangeiros - deveria conduzir a um desenvolvimento mais lento, porém seguro, e a uma autonomia em relação ao que considerava os "ditames do imperialismo"." Torres rejeitou quase totalmente a industrialização, sustentando que o Brasil tinha uma vocação agrícola, posição relativamente comum naquele momento. O seu projeto nacional tinha, assim, um toque de conservadorismo romântico, pois buscava uma alternativa ao que ele considerava como desequilíbrio rural/urbano, característico da moderna sociedade industrializada. Como José Bonifácio, muitas décadas antes, Torres defendia que a harmonia seria reencontrada em uma nação de pequenos proprietários remediados que cultivassem e fabricassem produtos com matéria-prima nacional. Eles receberiam, via comércio com o estrangeiro, os produtos de difícil aclimatação e os bens industriais que não tinham matéria- -prima no Brasil." Era necessário, portanto, assegurar a produtividade do solo, que para Torres estava diretamente vinculada à manutenção das florestas garantidoras da formação do húmus, das condições climáticas e principalmente dos mananciais de água. Isso exigia um Estado forte, intervencionista, capaz de "organizar" a Nação, ordenar e equilibrar os fatores físicos e humanos, moldar o trabalhador nacional e garantir a conservação das riquezas naturais." O conservacionismo de Torres se opunha à ideologia e à prática predo- minantes de expansão acelerada da fronteira agrícola e do uso imediatista de recursos naturais considerados inexauríveis. Além disso, ele aparecia como uma maneira de resolver o conflito entre o seu nativismo e as ideias de determinismo biológico e geográfico originárias da Europa. A conservação da natureza e os investimentos em capital humano, sobretudo em educação, poderiam suplantar as concepções sobre a impropriedade dos trópicos para a civilização e sobre a inferioridade racial brasileira, surgindo como alternativas ao expansionismo europeu e norte-americano." O pensamento de Torres alcançou impacto depois das crises de abastecimento e financiamento internacionais que o Brasil enfrentou durante a Primeira Guerra Mundial(1914-1918). Os projetos das elites intelectuais nos anos seguintes eram 24 Dean, Aferro efogo, op. cit.; Franco e Drummond, Proteção à natureza e identidade nacional, op. cit. 2S Dean, Aferro e fogo, op. cit.; Franco e Drummond, Proteção à natureza e identidade nacional, op. cit. 26 Dcan, Aferro efogo, op. cit.; Franco e Drummond, Proteção à natureza e identidade nacional, op. cit. 27 Dean, Aferro e fogo, op. cit.; Franco e Drurnmond, Proteção à natureza e identidade nacional, op. cit, História das preocupações com o mundo na!ura! no Brasil 341 inseparáveis da vontade de reestruturar a sociedade e a política. Embora muitos temas fossem discutidos, nacionalismo e cientificisrno formavam um denomi- nador comum. Apesar de inúmeras divergências, os intelectuais convergiam na reivindicação de um status de elite dirigente, em defesa da ideia de que não há outro caminho para o progresso senão o de agir "de cima" (para baixo) e "dar forma" à sociedade." A obra de Torres legitimava esta aspiração de moldar a sociedade de cima para baixo. Ao conclamar os intelectuais para que se integrassem, enfim, à nação a que pertenciam, ele queria fazer deles uma "força social" que promovesse a "organização nacional". O comprometimento com uma postura nacionalista e a crença na ciência, como conhecimento capaz de desvendar as "realidades" fundamentais do país, deveriam capacitar a "elite intelectual" a construir um "projeto de nação" que alçasse a política para além dos interesses particulares, predominantes no liberalismo, em direção aos "interesses coletivos da pátria"." Essa digressão é relevante porque, para Torres, esse papel da "elite intelectual" implicava não apenas em uma participação ativa na construção de instituições políticas, mas, também, na reforma profunda dos padrões de uso dos recursos naturais. Essa conexão do fortalecimento da nacionalidade com o uso prudente dos recursos naturais aproximava Torres daqueles cientistas que, um tanto mais esparsamente, se preocupavam com a proteção à natureza. A penetração intelec- tual do projeto de Torres em alguns setores da elite nacional, depois de 1914, representou para a geração seguinte de cientistas conservacionistas uma espécie de cobertura ou "guarda-chuva" para formulações mais técnicas e mais eficazes no que dizia respeito à proteção da natureza." Se as ideias da Primeira República sobre a proteção da natureza e o uso ra- cional dos recursos naturais não foram efetivadas no seu tempo, formaram uma linhagem de pensamento que ajudou a equacionar e legitimar as preocupações com o mundo natural, em associação com o desenvolvimento da ciência e de um projeto de nação. Elas influenciaram uma nova geração de cientistas que, a partir da década de 1920 e principalmente na era Vargas, aprofundou a preocupação com a proteção à natureza no Brasil." A proteção à natureza e a questão da identidade nacional nos anos 1920-1940 Como mencionado, certas instituições vinham na Primeira República se dedicando ao estudo do mundo natural. A principal foi o MNRJ. Nele militaram 28 Dean, Aferro efogo, op. cit.; franco e Drummond, Proteção à naturezae identidade nacional, op. cit. 29 Franco e Drurnrnond, Proteção à natureza e identidade nacional, op. cit. 30 Franco e Drumrnond, Proteção à natureza e identidade nacional, op. cit. 31 Dean, Aferro e fogo, op. cit.; Franco e Drummond, Proteção à natureza e identidade nacional, op. cit. -------~---_ ..,..,--------------- •...•.........•~------- , ! 342 Hislória ambienlal Hislória das preocupações com o mundo natural no Brasil 343 ~ f;l!, ~~j! 32 Dean, A ferro efogo, op. G;L; Franco e Drurnrnond, Proteção à natureza e identidade nacional, op. Gil. 33 Osny Duarte Pereira, Direito Florestal Brasileiro - Ensaio (Rio de Janeiro: Borsoi, 1950). José Augusto Drummond e Ana Flávia Barros-Platiau, Brazilian Environmental Laws and Policies, 1934-2002: A Critical Overview. In: Law & Policy, v. 28, n. I (January 2006). Dean, Aferro efogo, op. cit.; Franco e Orummond, Proteção à natureza e identidade nacional, op. cit. 34 Wanderbilt Duarte de Barros, Parques Nacionais do Brasil (Rio de Janeiro: Ministério da Agricultura, 1952). Oean, Aferro e fogo, op. cit.; Drummond, Devastação e preservação ambiental, op. cit.; Franco e Dmmmond, Proteção à natureza e identidade nacional, op, cit. 35 Franco e Drummond, Proteção à natureza e identidade nacional, op. cit. formulou um discurso que garantiu a sua inserção no contexto político-intelectual. Esse relativo sucesso se liga ao fato de terem acoplado as suas preocupações com a proteção da natureza à questão da identidade nacional. Isso implicou na apropriação e elaboração de tradições de pensamento que envolviam um conhe- cimento científico do mundo natural e a ideia de que ele devia ser conservado por motivos econômicos e estéticos." A "Primeira Conferência Brasileira de Proteção à Natureza", realizada entre 8 e 15 de abril de 1934, no Rio de Janeiro, refletiu a mobilização e o tipo de pensamento presentes nas organizações da sociedade civil e instituições públicas preocupadas com a conservação da natureza. Organizada pela Sociedade dos Amigos das Árvores, contou com forte apoio e infraestrutura do MNRJ. Alberto José Sampaio foi o relator do evento. Estavam representados a Associação Brasileira de Educação, a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, a Liga Brasileira de Higiene Mental, a Associação Brasileira de Farmacêuticos, a Academia Brasileira de Ciências, o Instituto Histórico de Ouro Preto, o Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, a Sociedade de Amigos de Alberto Torres, o Tijuca Tennis-Club, o Instituto Nacional de Música, a Associação dos Empregados no Comércio do Rio de Janeiro, e a Sociedade Fluminense de Medicina Cirúrgica. Vale notar que o encontro contou com o patrocínio do Chefe do Governo Provisório, Getúlio Vargas." A realização do evento indicava que a questão da proteção à natureza estava mais presente na opinião pública. Por causa da atuação de entidades da sociedade civil, havia pressão no sentido de uma política governamental efetiva. Duas linhas de argumentação surgiram no evento para justificar a proteção da natureza: em uma delas, o mundo natural era valorizado como recurso econômico a ser usufruído racionalmente, enquanto que, na outra, ele era objeto de culto e fruição estética. Essas formas distintas de perceber a natureza convergiram na elaboração de um projeto comum, dc feição nacionalista e cientificista." As preocupações com o mundo natural ultrapassavam as fronteiras nacio- nais. No Brasil, o grupo acompanhava as iniciativas de outros países. As ideias c práticas que se disseminavam pelo mundo adquiriam contornos particulares na medida em que se ajustavam a contextos regionais diferenciados. Os argumentos usados para justificar um cuidado maior com o mundo natural oscilavam de uma perspectiva mais pragmática, voltada para a conservação dos recursos naturais, ;~i ,'! muitos integrantes de uma nova geração preocupada com a proteção à natureza. Ao desenvolver pesquisas relacionadas com a história natural e a antropologia, os seus cientistas e professores despertaram para o problema da destruição do patrimônio natural. Vários ajudaram a construir um pensamento voltado para a defesa da natureza- como Cândido de Mello Leitão (1886-1948), Edgar Roquette- Pinto (1884-1954) e o seu filho Paulo Roquette-Pinto, Bcrtha Lutz (1894-1976), Heloísa Alberto Torres (1895-1977), Armando Magalhães Corrêa (1889-1944) e Alberto José Sampaio (1881-1946). Houve ainda Frederico Carlos Hoehne (1882-1959), que teve atuação destacada em São Paulo, mas cuja carreira começou como botânico e taxonomista no MNRJn Este grupo atuou, sobretudo, nas décadas de 1920-1940, alcançou relativo su- cesso e influenciou a elaboração de leis e po Iíticas de proteção da natureza - como o Código Florestal, o Código de Caça e Pesca, o Código de Águas eMinas e o Código de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas, editados entre maio de 1933 e outubro de 1934. Vários órgãos governamentais seriam criados ou reformulados para assumir e aplicar esses regulamentos - entre eles o Departamento Nacional de Produção Mineral, o Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica e o Serviço Florestal Federal." Além disso, a Constituição de 1934 encarregou os governos central e estaduais de proteger as "belezas naturais" e "monumentos de valor histórico ou artístico". Poucos anos depois, foram criados os primeiros parques nacionais do país: ltatiaia, em 1937, Serra dos Órgãos e Iguaçu, ambos em 1939.34 Para esta nova geração de protetores da natureza, as ideias dos cientistas- -funcionários públicos da Primeira República e de Alberto Torres tomaram-se um programa de ação, no qual os elogios e a preocupação com as "fontes naturais da nacionalidade" ocuparam posição de destaque. O ambiente político-intelectual brasileiro nas décadas de 1920-1940 era de intenso nacionalismo, aliado ao de- sejo de modernização da sociedade e das instituições do Estado. Diversos temas foram objeto de debate nesse período: o trabalho, a indústria, a educação, a saú- de, o arcabouço jurídico-instihlcional, as manifestações culturais, o patrimônio histórico e a proteção à natureza." No caso da proteção à natureza, esse grupo, razoavelmente organizado, constituído em sua maioria por cientistas, intelectuais e funcionários públicos, :;', f~t!: ·'~t .:~i ,'1: :~1,\ ·'·:;I!!: fi~:jt,~ bl ;/...\':.... 11lt :il "i'i ii:j ti:'.1 ('~ ~~~ 36 Franco e Drurnrnond, Proteção à natureza e identidade nacional, op, cit. 37 Alberto José Sampaio (relator), Relatório Geral da Primeira Conferência Brasileira de Proteção à Natureza. In: Boletim do Museu Nacional, v. XI, n. I (março de 1935). Alberto José Sampaio (re!ator). Relatório Geral da Primeira Conferência Brasileira de Proteção à Natureza. In: Boletim do Museu Nacional, v. XI, n. 2 (junho de 1935), Franco e Drumrnond, Proteção à natureza e identidade nacional, op. cit. 38 Franco c Drumrnond, Proteção à natureza e identidade nacional, op. cit. ~-~.",., ..•..,------------- 3~~ História ambienlal Hislória das preocupações com o mundo natural no Brasil 345 e outra de caráter mais estético, voltada para a preservação de áreas valorizadas pela sua beleza selvagem ou extraordinária." Nos EUA, ocorria desde a virada para o século 20 um debate entre concepções conservacionistas e preservacionistas. As primeiras expressavam, sobretudo, uma preocupação com a utilização racional dos recursos naturais, enquanto as outras voltavam-se mais para uma argumentação baseada nos conceitos de fruição es- tética e de transcendência espiritual proporcionada pelos aspectos sublimes da natureza selvagem - wilderness." Tratar brevemente dessa polêmica é relevante, pois os dois lados influenciaram os cuidados com a natureza no mundo inteiro, inclusive no Brasil. A ideia norte-americana de constituição de parques nacionais, cara aos pre- servacionistas, se disseminou amplamente pelo mundo, servindo de parâmetro para iniciativas de proteção da natureza. Tratava-se de áreas públicas reservadas e proibidas de serem colonizadas, ocupadas ou vendidas, e que, portanto, eram destinadas ao benefício e desfrute da população em geral, e não a interesses par- ticulares. A intenção era preservar, em seu estado selvagem, para a posteridade, áreas dotadas de grande beleza natural. Nos EUA, a criação de parques nacionais recuperava as concepções de autores como George Catlin (1796-1872), Henry David Thoreau (1817 -1862) e George Perkins Marsh (1801-1882), motivadas por um fascínio pelas novas descobertas da biologia e por uma filosofia inspirada no romantismo. Valorizava-se a natureza a partir de uma noção de pertencimento e também pelo prazer estético proporcionado pela contemplação." Tais concepções foram representadas e defendidas por John Muir (1838-1914) e pelo movimento preservacionista que ele ajudou a construir. As primeiras lutas estiveram relacionadas com a criação do Parque Nacional de Yosemite, em 1890. Incentivado por esse sucesso, Muir ajudou a fundar, em 1892, o Sierra Club, que contribuiu para tornar as regiões montanhosas da costa do Pacífico acessíveis àqueles que buscavam usufruir as áreas de wilderness. O clube tornou-se um centro de aglutinação da causa dos preservacionistas, que agiam motivados por um sentimento de que a civiiização havia distorcido o sentido humano da relação com a natureza." Se Muir e os preservacionistas, ao pensarem em altemati vas de proteção à natureza, excluíam as áreas consideradas como wilderness de qualquer ocupa- ção humana, destinando-as quase que exclusivamente ao lazer, a outra corrente, dos conservacionistas, acreditava na possibilidade de uma exploração racional de recursos como o solo, as florestas e a água. Próximos da tradição de manejo florestal desenvolvida na Alemanha, tinham como principal expoente Gifford Pinchot (1865-1946), que sintetizava os objetivos do movimento em três princípios básicos: a) o desenvolvimento, obtido com base no uso eficiente dos recursos peja geração presente; b) a prevenção do desperdício, como garantia do uso dos recursos pela geração futura; e, c) o desenvolvimento dos recursos naturais para o benefício geral, e não para o bem de poucos. Portadores de uma perspectiva instrumental da relação do homem com a natureza, o que estava em questão para os conservacionistas era o uso prudente e criterioso dos recursos naturais, garan- tindo, ao mesmo tempo, a sua existência para as próximas gerações e a melhor distribuição dos seus beneficios entre a totalidade da população." Tanto Muir quanto Pinchot antagonizavam as forças sociais predominantes- principalmente no Oeste dos EUA - interessadas no uso imediatista dos recursos naturais. No entanto, a polêmica entre Muir e Pinchot expressou a cisão entre as duas grandes forças preocupadas com a natureza nos EUA: preservacionistas e conservacionistas. No início do século 20, as duas correntes ganhavam espaço entre as políticas de Estado. Theodore Roosevelt (1858-1919), presidente dos EUA entre 1901 e 1909, admirava a filosofia utilitarista de Pinchot, o seu principal conselheiro para assuntos relacionados com a conservação dos recursos naturais. O presidente seguiu as diretrizes de Pinchot, criando dezenas de florestas nacio- nais (de produção de madeira) e áreas públicas reservadas para pastoreio e outras atividades produtivas. No entanto, Muir e outros preservacionistas também foram ouvidos por Roosevelt. A incorporação de terras ao Parque Nacional de Yosemite e a criação de 53 reservas naturais, 16 monumentos nacionais e cinco novos parques nacionais no mandato de Roosevelt contemplavam as expectativas do grupo." Essa experiência norte-americana, inclusive as polêmicas e divisões, reper- cutiu internacionalmente. Roosevelt e Pinchot trabalharam na organização de duas conferências internacionais sobre conservação da natureza. A primeira, em 39 Roderick Nash, Wilderness anel lhe American Minei (Yale: Yale University Press, 200 I). Alfred Runte, Nalional Porks: The American experience (Lanham: Taylor Trade, 2010). John McCormick, Rumo ao Paraíso: a história do movimento ambientalista (Rio de Janeiro: Relume Oumará,1992). 40 Nash, Wilderness and lhe American Mind. .. Roderick Nash (Edited by). American Environmentalísm: Readings in Conservation Hístory (New York: Mcflraw-Hill, 1990). Runte, National Parks ... McCormick, Rumo ao Paraíso .. Donald Worster, A Passíon for Noture =the li/e 0/John Muir (Oxford: Oxford University Press, 2008). Sarnucl P. Hays, Conservation and lhe Gospe! of Efficiency= lhe Progressive conservation movement. /890-/920 (New York: Atheneurn, 1980). Char Miller, Gijford Pinchot and lhe making of modern environmentaiísrn (Washington: Island Press, 2001). Frederick Tumcr,Rediscovering America - John Muir in Hís Time and Ours. (San Francisco: Sierra Club Books, 1985). Stephen Fox, The American Conservation Movement=John Muir and his Legacy (Madison: University of Wisconsin Press, 1985). Ken Bums, The National Parks= Amerícas Bes! ldea (OVO, 6 disc set, Color and Bland and White.12.5 hours). 41 Nash, Wildemess and lhe American Mtnd. .. Runte, National Parks ... McCorrnick, Rumo ao Paraíso .. 42 Nash, Wildemess and lhe American Mind .. Nash, American Envíronmentaiism ... Runte, National Parks ... M~Cormick, Rumo ao Paraíso ... Worster, A Passíon for Nature ... Turner, Rediscovering Ameríca .. 43 Nash, Wilderness and lhe American Mind. .. Runte, National Parks ... McCormick, Rumo ao Paraíso .. Miller, Gifford Pínchot .. 44 Nash, Wilderness and lhe American Mind. .. Runte, National Parks ... McCormick, Rumo ao Paraíso .. Worster, A Passíon for Nature ... Miller, Gijford Pinchot ... Turner, Rediscovering America .. Burns, The National Parks ... Fox, The American Conservation Movement .. • - 346 História ambiental História das preocupações com o mundo natural no Brasil 347 1909, reuniu delegados dos Estados Unidos, México e Canadá. A segunda, que deveria ter caráter de fórum mundial, seria realizada em 1910, em Haia, mas foi cancelada por William Howard Taft, sucessor de Roosevelt. Os parques na- cionais acabaram por se disseminar pelo mundo como modelos de preservação do ambiente natural. O Canadá criou o seu primeiro parque nacional em 1885, a Nova Zelândia, em 1894, a África do Sul e a Austrália em 1898. Na América Latina, os primeiros parques surgiram no México, em 1894, na Argentina, em 1903, no Chile, em 1926. Tinham objetivos semelhantes aos de Yellowstone, ou seja, proteger áreas consideradas selvagens e de grande beleza cênica." As práticas e ideias norte-americanas, principalmente no campo das florestas produtivas e da silvicultura, eram conhecidas pelos brasileiros preocupados com a proteção da natureza. O conceito de parques nacionais também tinha adeptos no Brasil. As duas concepções - preservacionistas e conservacionistas - aparecem nas formulações e estratégias discutidas na conferência de 1934, fundindo-se em uma visão única sobre o que a proteção à natureza deveria representar. No Brasil dos anos 1920-1940, portanto, os concei tos de proteção, conservação e preservação eram intercambiáveis, indicando o entendimento de que a natureza deveria ser protegida, tanto como conjunto de recursos produtivos a serem explo- rados racionalmente no interesse das gerações presentes e futuras, quanto como diversidade biológica a ser objeto de pesquisa científica e contemplação estética." Na conferência de 1934, houve referências numerosas a José Bonifácio, Joaquim Nabuco, André Rebouças, Francisco Freire Alemão, Euclides da Cunha e Alberto Torres, em função das suas críticas às devastações da natureza no Brasil. Numerosos congressos internacionais c leis de proteção da natureza de outros países foram citados como exemplos. Foi ao passado e às iniciativas que estavam ocorrendo em outros países que os protetores brasileiros da natureza recorreram para fundamentar os seus argumentos." A noção de proteção à natureza que perpassou o evento envolvia tanto uma ideia de preservação das belezas naturais quanto a de melhoramento da natureza pelos humanos. Os argumentos utilitários coexistiam em harmonia com os de ordem estética. Enquanto nos EUA essas perspectivas se opunham, gerando tensões entre órgãos de governo e entre correntes de pensamento, no Brasil elas eram partes de um projeto maior que vinculava a natureza à construção da nacionalidade. O interesse em contribuir para a realização deste projeto foi um importante elemento catalisador de ideias e práticas sociais relacionadas com a questão da proteção à natureza, uma aposta no futuro, na reconciliação entre natureza e nação." Quatro personagens se destacaram no grupo preocupado com a proteção da natureza. Alberto José Sampaio, professor e chefe da Seção de Botânica do MNRJ, foi um dos mais importantes botânicos do Brasil. Dedicou-se, sobretudo, aos estudos de taxonornia e fito geografia. Armando Magalhães Corrêa foi escultor, desenhista e escritor. Era também um naturalista autodidata. Os seus conhecimentos de his- tória natural e a capacidade de produzir imagens sobre a natureza o transformaram em professor do MNRJ e da Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro. O zoólogo Cândido de Mello Leitão foi professor do MNRJ, estudioso da ecologia, dos arac- nídeos e da distribuição geográfica dos animais. Erudito, escreveu uma história do saber biológico produzido até então sobre o Brasil. Frederico Carlos Hoehne foi um autodidata devotado à pesquisa nas áreas de botânica, biogeografia e ecologia. Ao estilo dos viajantes naturalistas do século 19, percorreu todas as regiões do Brasil e coletou farto material para a organização de herbários e coleções científicas. A sua vasta produção científica alcançou reconhecimento nacional e internacional. Teve uma breve passagem pelo MNRJ, mas após viajar com a Comissão Rondon, pelo Mato Grosso e Amazonas, fixou-se em São Paulo, onde construiu uma carreira intimamente vinculada ao Instituto de Botânica do Estado de São Paulo."? As ideias de Sampaio sobre a proteção da natureza vinculavam-se a uma corrente de pensamento nacionalista que ganhava importância no cenário político brasileiro. A sua intenção era institucionalizar medidas de cuidado com o mundo natural, articulando-as ao projeto de Alberto Torres de construção da nacionali- dade. Sampaio teve papel de destaque na concepção da legislação de proteção dos recursos naturais emitida a partir de 1934. Participou, como representante do MNRJ, da elaboração do Código Florestal de 1934.50 O seu ponto de partida foi a defesa da efetivação do Serviço Florestal Federal (SFF), criado em 1921, mas atuante apenas a partir de 1925. Sampaio pretendia construir um programa por meio do qual o SFF se responsabilizasse pela pes- quisa, pelo controle e pela implernentação de florestas produtivas, bem como pela criação de parques e reservas que conservassem as características da fauna e da flora indígenas. Com o tempo, o conceito de proteção à natureza assumiu maior importância no seu pensamento. Ganharam destaque as essências nativas e o conjunto formado pela fauna e pela flora brasileiras." Sampaio pensava que o conhecimento das regiões florísticas do Brasil daria mais fundamento às ações de proteção à natureza. Descreveu com maestria os 45 Nash, Wilderness and the American Mind ... Runte, National Parks .. McCormick, Rumo ao Paraíso ... Mil1er, Gifford Pinchot... Barros, Parques Nacionais do Brasil... 46 Franco e Drummond, Proteção à natureza e identidade nacional. 47 lbidem. 48 lbidem. 49 Ibidem. 50 Ibidem. 51 lbidem. -------------------_--..;;-~,,~.=~,.,,~,~,c," _ 348 História ambienlal História das preocupações com o mundo natural na Brasil 349 aspectos da flora nacional em sua inter-relação com o clima e o solo, os diversos tipos de vegetação e as formas de inserção dos humanos em cada região. Isto lhe permitiu delinear, em torno do ideal de proteção à natureza, um projeto amplo de nação, motivado por objetivos que eram, ao mesmo tempo, científicos, estéticos, econômicos e sociais. A sua principal intenção era alcançar uma integração maior dos humanos com o mundo natural, por meio de uma educação que possibilitasse a circulação das informações necessárias à utilização racional dos recursos natu- rais, bem como a formação de valores éticos de respeito e amor pela natureza. 52 Corrêa expôs a sua perspectiva sobre a proteção da natureza no livro O Sertão Carioca." ao mesmo tempo simples e instigante. O objetivo era chamar a atenção para o que ele julgava ser o principal problema do Brasil, ou seja, o da falta de assistência, por parte dos poderes públicos, às gentes e às terras do sertão. No entanto,fez isso por meio do estudo de uma região vizinha à cidade do Rio de Janeiro, capital nacional, que compreendia os maciços da Tijuca e da Pedra Branca e a baixada de Jacarepaguá. Queria destacar que os problemas dos sertanejos e dos sertões não ocorriam apenas em lugares ermos e distantes, mas também nas vizinhanças da capital federal." Corrêa descreveu, com base em trabalho de campo e com forte carga empá- tica, o ambiente e a faina diária dos habitantes desse insuspeitado sertão carioca. Sustentou que a retirada de matérias primas das florestas, restingas e mangues empobrecia o ambiente e colocava em perigo a reprodução do modo de vida dos próprios sertanejos. Defendia uma regulamentação eficaz que garantisse a sobrevivência do que considerava uma natureza inigualável. Para ele, os parques nacionais deviam ser criados com o objetivo de proteger uma natureza que, além de preencher as necessidades econômicas, era fonte de conhecimento científico, apreciação estética e de identidade nacional. Ele argumentava que a sociedade brasileira deveria se desenvolver a partir de um projeto político original, que levasse em conta as particularidades do meio natural e valorizasse a população nacional, especialmente os sertanejos, que viviam em contato mais direto com a natureza, "fonte de toda a riqueza e beleza de um pOVO".55 Mello Leitão procurou estabelecer um vínculo entre os investimentos na ciên- cia, a vaiorização da natureza e a consciência da nacionalidade. Quis demonstrar a necessidade da pesquisa científica e o valor da diversidade de formas de vida encontradas no Brasil. Pretendia, por meio da observação dos comportamentos de várias espécies de animais, compreender as formas de organização dos seres vivos, cuja sobrevivência, julgava ele, dependia, sobretudo, da capacidade de articular vínculos cooperativos.f A biologia lhe possibilitava desvelar os segredos da natureza e o desenvolvi- mento dessa ciência implicava em uma valorização de seu objeto, os seres vivos. Havia em Mello Leitão, para além da racionalidade técnica implícita no métier do cientista, uma sensibilidade para os aspectos estéticos da sua atividade. A pesquisa procurava entender o funcionamento da natureza para melhor aproveitá-Ia, mas, nesse ímpeto, ela o ensinava a admirar os seus encantos e harmonias." Ele criticava o pragmatismo e o imediatismo das condutas predominantes no Brasil, que incitavam o desconhecimento e a destruição do patrimônio na- tural. Alertava para a necessidade de uma mudança de hábitos, para a qual as autoridades deveriam contribuir: educando, investindo na pesquisa científica, fiscalizando e orientando a produção econômica para atividades e técnicas que não comprometessem os recursos naturais e a diversidade de espécies." Mello Leitão foi também um cientista sintonizado com a produção de conhecimento e os movimentos internacionais para a proteção da natureza, até o fim da sua vida. No mesmo ano em que faleceu, 1948, ele esteve presente, como representante do governo brasileiro, na conferência de fundação da International Union for the Protection ofNature (IUPN).59 Hoehne preocupava-se com a preservação de espécies e com a diversidade biológica, o que fez com que, desde cedo, defendesse a necessidade da criação de reservas da flora e fauna nativas. Escreveu sobre muitos temas: a) reservas florestais e estações biológicas; b) ornamentação de ruas, parques urbanos e estradas de rodagem; c) reflorestamento com essências nativas; d) proteção de florestas, com destaque para a necessidade de leis de proteção à natureza; e) combate aos hábitos da derrubada e queimada de florestas; f) defesa das florestas como fatores determinantes do clima, da agricultura e da estética; g) defesa de florestas no Estado de São Paulo, especialmente as do Jabaquara e do morro do Jaraguá, em prol das quais organizou campanhas de preservação." A sua percepção do mundo natural era intimamente ligada a um sentimento moral que articulava utilidade e estética. Para ele, era fundamental que os humanos 56 lbidem. 57 Ibidern. 58 Dean, A ferro e logo ... Franco e Drummond, Proteção à natureza e identidade nacíonal., 59 Unesco, lnternational Union for lhe Protection of Nature established at Fontainebteau 5 October 1948 (Brussels: IUCN Library I Unesco Archives, 1948. http://data.iucn.orgldbtw-wpd!edocsIl948-001.pdi). José Cândido de Meio Carvalho, Dia Mundial do Meio Ambiente: Considerações sobre a participação internacional do Brasil em Organizações, Programas e Convenções relativas à conservação do ambiente, ln: FBCN (Fundação Brasileira para a Conservação da Natureza). Boletim lnformatívo FBCN, vol. i4 (Rio de Janeiro, ano 1979). 5-16. Regina Horta Duarte, Zoe-geografia do Brasil: fronteiras nacionais, percursos pau-americanos, In: Latin American Research Review, 49(2), no prelo. 60 Dean, Aferro e fogo ... Franco e Drummond, Proteção à natureza e identidade nacional ... 52 Ibidern. 53 Armando Magalhães Corrêa, O Sertão Carioca (Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1936). 54 Franco e Drumrnond, Proteção à natureza e identidade nacional ... 55 Ibidem. 350 História ambiental História das preocupações com o mundo nalural no Brasil 351 agissem de modo harmônico com a natureza que os circunda, procurando conhecê- -Ia e admirá-Ia. Criticava a destruição de um patrimônio natural muito rico, pouco conhecido e equivocadamente explorado, sem que houvesse consciência sobre as suas múltiplas potencialidades. Exerceu certa influência nos círculos governamen- tais, por intermédio de Fernando Costa que, além de Ministro da Agricultura, foi Secretário de Agricultura, Indústria e Comércio e Interventor no Estado de São Paulo. A causa da proteção à natureza aproximou os dois homens. As ideias de Hoehne contribuíram para a criação dos primeiros parques nacionais brasileiros. Costa incentivou os projetos do amigo, tendo participado diretamente da criação do Jardim Botânico e do Instituto de Botânica de São Paulo." Hoehne não foi um preservacionista strictu sensu. Defendia o uso, desde quc previdente, dos recursos naturais, bem como a fruição estética e a pesquisa científica. Ele era a favor da produção, numa modalidade que hoje chamaríamos de sustentável. Em suas viagens pelo território brasileiro costumava identificar os espaços que julgava destinados à produção, separando-os daqueles onde deviam ser criadas reservas. Nas estradas e nas cidades, sempre se preocupava com o aspecto estético: paisagens, arborização, parques e jardins. Insatisfeito com o ritmo do progresso, ele sugeria meios de torná-lo menos destrutivo. Embora de- fendesse o uso dos recursos naturais, o que deu a sua obra um tom de objetividade e pragmatismo, isso tinha como base uma percepção estética do mundo natural, na qual os humanos eram parte da totalidade, e cada uma das outras partes, todas inter-relacionadas, valia por si própria e por ser parte do todo." O pensamento elaborado por esses protetores da natureza dos anos 1920- 1940 vinculava preocupações pontuais, como, por exemplo, o estabelecimento de reservas naturais, a um projeto mais amplo de construção da nacionalidade. Desse modo, foi capaz de mobilizar o sentimento de grupos e associações cívicas, garantir espaço junto às instâncias deliberativas do governo Vargas e ajudar a aprovação de uma série de leis, decretos e regulamentos de proteção da natureza e de criação dos primeiros parques nacionais.f No entanto, no plano mais geral da sociedade e da economia nacionais, esse grupo teve a sua visão frustrada ou, ao menos, eclipsada por muitas décadas. Prevaleceu o projeto político mais amplo do desenvolvimentismo, que se tomou hegernônico até os dias atuais. Esse projeto prioriza o crescimento econômico, mesmo que às custas da devastação da natureza. Fosse a iniciativa privada ou o Estado a explorar os recursos naturais, a nossa sociedade e os seus governos apoiaram e continuam a apoiar o crescimentoeconômico a qualquer custo." Embora estivesse em sintonia com o discurso nacionalista e cientificista em voga na época, esse grupo e as suas aspirações submergiram na "maré desenvol- vimentista" das décadas seguintes. Isso justifica a frustração do grupo frente à insuficiência das medidas adotadas para proteger a natureza. Ficou para eles e os seus seguidores a impressão de que os imperativos da ciência não estavam sendo ouvidos no processo de "reorganização" do Brasil e de que a natureza, "fonte da vida", na verdade, contava pouco como componente da "identidade nacional"." A geraçõo do FBCN AFundação Brasileira para a Conservação da Natureza (FBCN) foi criada em 1958. Principalmente a partir da publicação do seu boletim (uma revista perió- dica sobre a conservação da natureza), em 1966, a entidade se tomou o principal ponto de concentração e disseminação das preocupações conservacionistas no Brasil. Com ela, o discurso conservacionista ganhou um corpo conceitual bem definido, engajou-se em ações e estratégias que buscavam a preservação de áreas naturais protegidas e de espécies da fauna e da fiora e o uso racional e previdente dos recursos naturais.s" O discurso conservacionista, corno acabamos de ver, surgira antes de a FBCN assumir esse papel aglutinador, enunciado por umas tantas instituições e por um punhado de autores (Mello Leitão, Corrêa, Sampaio e Hoehne) e seus alunos. Algumas instituições eram científicas, eomo o MNRJ, a Universidade de São Paulo (USP), a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e o Museu Paraense Emílio Goeldi. Outras eram governamentais, como o Serviço Florestal Federal, vinculado ao Ministério da Agricultura, e o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), que o substituiu em 1967; mais tarde, em 1973, surgiu a Secretaria Especial de Meio Ambiente (Sema), vinculada ao Ministério do Interior; por fim, foram criados, em 1989, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama), que incorporou o IBDF e a Sema, e, em 1992, o Ministério do Meio Ambiente (MMA), responsável por executar as políticas ambientais do país.v' Existiam outras instituições estaduais e federais. Houve também ONGs de cunho conservacionista, às vezes até mais antigas que a FBCN, como é o caso 61 Franco e Drumrnond, Proteção à natureza e identidade nacional. .. 62 Ibidem. 63 Franco e Drummond, Proteção à natureza e identidade nacional ... Regina Horta Duarte, A biologia militante: O Museu Nacional, especialização cientifica, divulgação do conhecimento e práticas políticas no Brasil- 1926-·1945 (Belo Horizonte: UFMG, 2010). 64 Franco e Drummond, Proteção à natureza e identidade nacional .. 65 Ibidem. 66 José Luiz de Andrade Franco e José Augusto Drummond. O Cuidado da Natureza: A Fundação Brasileira para a Conservação da Natureza e a Experiência Conservacionista no Brasil: 1958-1992. In: Revista Textos de História (Brasília, segundo semestre de 2009, p. 59-84). 67 Ibidem. 352 História ambiental História das preocupações com o mundo natural no Brasil 353 I' das pioneiras Sociedade de Amigos das Árvores (fundada, no Rio de Janeiro, em 1931, por Alberto José Sampaio), a Sociedade de Amigos da Flora Brasílica (fundada, em São Paulo, em 1939, por Hoehne), e a Associação de Defesa da Fauna e Flora de São Paulo (Adeflora), fundada, em São Paulo, em 1956, por Paulo Nogueira Neto (1922), Lauro Pereira Travassos Filho e José Carlos Reis de Magalhães (1921-2002), que mais tarde mudou o seu nome para Associação de Defesa do Meio Ambiente de São Paulo (Ademasp)." Essa linhagem de cuidado com a natureza no Brasil parece ter dependido de indivíduos, na sua maioria cientistas ou técnicos ligados às instituições gover- namentais, que construíram entidades civis capazes de pressionar os governos. Tem ocorrido também que a consciência "ambienta lista" de técnicos e cientistas atuantes em órgãos do governo se choque com interesses mais fortes dentro do bloco hegemônico de poder. Isso difere em parte do padrão norte-americano de emergência de indivíduos privados "carisrnáticos" que conseguiram propor e levar à frente ideias conservaeionistas, como Henry David Thoreau (1817-1862), John Burroughs (1837-1921), John Muir (1838-1914), Aldo Leopold (1887- 1948), Robert Marshall (1901-1939) e outros. Mesmo quando foram funcionários públicos, desenvolveram e publicaram ideias conservacionistas originais e/ou criaram organizações civis de grande porte e influência. Houve nos EU A ainda a contribuição de poetas, pintores, ensaístas, "nature writers" e jornalistas de viés romântico que, como mencionamos, não engrossaram as fileiras dos amantes da natureza no Brasil."? Com isto, o andamento das políticas de proteção da natureza no Brasil acabou dependendo de articulações intemas ao Estado e apenas secundariamente do eco que esses indivíduos alcançavam na sociedade. Isso criou uma dinâmica em que os técnicos e cientistas empregados pelos governos buscaram respaldo na socie- dade civil, criando associações civis atuantes. Já os governos, quando sensíveis à conservação da natureza, procuraram assessoria e mesmo pessoal especializado nessas associações. Esse tipo de articulação política emerge quando estudamos a trajetória das propostas e práticas ligadas à proteção da natureza, por meio das ideias de cooperação e conflitos interinstitucionais e interburocráticos." O primeiro número do Boletim Informativo da FBCN, publicado em 1966, explicava que "em agosto de 1958, na cidade do Rio de Janeiro, foi criada a FBCN, por um grupo de idealistas resolvidos a fazer face ao crescente desafio que o uso descontrolado dos recursos naturais lançava à capacidade de planeja- mento e execução do nosso pOVO"71Definindo-se como um grupo de idealistas contrapostos ao padrão imprevidente das atividades produtivas correntes no país, os conservacionistas da FBCN estabeleciam que "a finalidade única da FBCN é promover uma ação nacional para a conservação dos recursos naturais e para a implantação de áreas reservadas de proteção à natureza"." Isso indica que o espaço de que desfrutavam no interior das instituições governamentais e mesmo da sociedade civil era reduzido e de pouca visibilidade. Os objetivos principais da FBCN eram: a) criar e estabilizar parques, reservas, monumentos e semelhantes, com especial atenção para as espécies raras ou ame- açadas de extinção; b) promover cooperação entre os governos e as organizações nacionais, estrangeiras e internacionais interessadas na conservação da natureza e dos recursos naturais; c) realizar estudos e pesquisas sobre a conservação dos recursos naturais; d) difundir os conhecimentos conservacionistas." A fundação da FBCN representou um esforço para enfrentar, organizadamente, os fortes apelos desenvolvimentistas do governo do presidente Juscelino Kubitschek (1956-1961). A inspiração partiu do exemplo de associações que participavam da luta pela proteção às aves, em Londres. Mas, tratava-se, sobretudo, de uma tentativa de disciplinar a ação humana para impedir a devastação do patrimônio natural brasileiro. Havia a preocupação de que as prioridades econômicas de produzir e exportar o máximo possíve1- o que chamamos de "desenvolvimen- tismo a qualquer custo" - continuassem a minar a capacidade de planejamento e de uso racional dos recursos naturais." O grupo que instituiu a FBCN era composto por profissionais de meia idade, de variadas áreas de atuação, embora prevalecessem os engenheiros agrônomos: Harold Edgard Strang (1921, agrônomo), Luiz Hernany Filho (industrial), Victor Abdennur Farah (1905-1967, agrônomo), Fuad Atala (jornalista), Wanderbilt Duarte de Barros (1916-1997, agrônomo), Arthur Miranda (agrônomo), Francisco Carlos Iglésias de Lima (industrial), Rossini Pinto (J 937-1985,jomalista e mú- sico), Rosalvo de Magalhães (biólogo), Eurico de Oliveira Santos (1883-1968, escritor), Luiz Simões Lopes (190 1-1994, agrônomo),Jerônimo Coimbra Bueno (1909- 1963, engenheiro civil) e F emando Segadas Vianna (ecólogo). Mais tarde incorporaram-se à FBCN Alceo Magnanini (1925, agrônomo), Adelmar Coimbra Filho (1924, zoólogo), Femando Ávila Pires (biólogo), Luiz Emygdio ! 71 FBCN (Fundação Brasileira para a Conservação da Natureza), Boletim Informativo FECN, n" I (Rio de Janeiro, ano 1966), p. 2. 72 lbidem, p. 2. 73 Ibidern, p. 2. 74 Urban, Saudade do Matão ... Franco e Drummond, O cuidado da natureza ... Cristina Xavier de Almeida Borges, Por trás do verde: discurso e pratica de uma ONG - o caso da Fundação Brasileira para a Conservação da Natureza. (Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Viçosa, 1995). 68 Dean, Aferro efogo Franco e Drummond, Proteção à natureza e identidade nacional... Franco c Drumrnond, O Cuidado da Natureza Teresa Urban, Saudade do Matão: relembrando a história do conservacionismo no Brasil (Curitiba, UFPRlFundação O Boticário/Fundação MacArthur, 1998). 69 Nash, Wilderness and lhe American Mind. .. Runte, National Parks ... Worster, A Passion for Nature .. 70 Dean, Aferro efogo ... Franco e Drummond, Proteção à natureza e identidade nacíonai.: Franco e Drumrnond, O cuidado da natureza ... Urban, Saudade do Motão.. -----------------_.~,-".".."."",.",._."'" ...~._----------- 354 Hislória ambientar História das preocupações com o mundo natural no Brasil 355 de Mello Filho (1914-2002, biólogo), José Cândido de Meio Carvalho (1914- 1994, zoólogo), José Piquet Carneiro (1912-1974, empresário), Augusto Ruschi (19 L5-1986, biólogo), José de Paula Lanna Sobrinho (botânico), Carlos Mannes Bandeira (jornalista, arqueólogo e espeleólogo), Paulo Nogueira Neto (1922, advogado e biólogo), José Luiz Belart (oficial da Marinha de Guerra), lbsen de Gusmão Câmara (1923, oficial da Marinha de Guerra) e Maria Tereza Jorge Pádua (1943, agrônoma)." Note-se nessa listagem duas importantes continuidades com o passado da preocupação com a natureza no Brasil - a presença marcante de cientistas naturais ou da tecnologia e a ausência de cientistas sociais ou humanos. A primeira fase da FBCN foi de dorrnência. Poucas atividades foram desen- volvidas. O primeiro presidente, de 1958 a 1960, foi Luiz Hernany Filho, seguido do senador Jerônirno Coimbra Bueno, de 1960 a 1966. Neste período a fundação ficou praticamente inativa. Mas, ainda que indiretamente, ela marcou presença em inúmeros atos e decisões." O "dedo" da FBCN esteve presente na criação de 11 parques nacionais (Aparados da Serra, Araguaia, Ubajara, Brasília, Caparaó, Chapada dos Veadeiros, Emas, Monte Pascoal, São Joaquim, Sete Cidades e Tijuca) e uma Floresta Nacional (Caxiuanã), entre 1959 e 1961. Houve ainda a elaboração do anteprojeto de lei que instituiu o novo Código Florestal (Lei n° 4.771, 15/09/1965). Estes encaminhamentos foram influenciados por Victor Abdennur Farah, primeiro diretor-executivo da FBCN. Nesse momento, no entanto, ele era o presidente do Conselho Florestal Federal, além de ser amigo pessoal do Presidente Jânio Quadros." Isto influenciou importantes esferas dentro do Estado. Foi com a gestão de José Cândido de Melo Carvalho (professor do MNRJ), entre 1966 e 1969 (de 1978 a 1981 ele exerceu um segundo mandato), que a FBCN aprimorou a sua organização e alcançou mais dinamismo e maior capacidade de ação. Ela começou a desenvolver projetos e a editar o seu Boletim." Entre os dias 26 e 31 de outubro de 1968, ocorreu, no Rio de Janeiro, o Simpósio sobre Conservação da Natureza e Restauração do Ambiente Natural, organizado pela Academia Brasileira de Ciências, com o apoio da FBCN e do IBDF Este evento foi muito importante, por pelo menos dois motivos. Foi o primeiro encontro conservacionista de âmbito nacional realizado no Brasil desde a mencionada conferência de 1934. Além disso, marcou o início de uma colabo- ração entre FBCN e o recém-criado IBDF, que herdara todas as incumbências conservacionistas espalhadas por diversas seções e departamentos do Ministérío da Agricultura. Principalmente a partir dessa colaboração, a FBCN passou a contar com recursos para desenvolver projetos e alcançou duradoura influência nas esferas de governo." No entanto, esse simpósio foi importante também em si mesmo. Ele seguiu, em linhas gerais, a pauta da Conferência Intergovernamental de Especialistas sobre as Bases Científicas e Utilização Racional e Conservação dos Recursos Naturais, evento realizado pela Unesco, em setembro de 1968, em Paris. Buscou definir, com ênfase na situação brasileira, áreas de ação e indicar meios para a coordenação multidisciplinar e institucional para a conservação e o aproveitamento racional dos recursos naturais, assegurando a sua renovação para as futuras gerações.t" Com esse evento, o movimento conservacionista brasileiro ingressou na nas- cente arena internacional das questões ambientais globais. Foram tratados assuntos como proteção de espécies ameaçadas de extinção; recenseamento de animais selvagens em regiões tropicais; legislação e cumprimento das leis; reconstrução de paisagens rurais; poluição na cidade do Rio de Janeiro; parques nacionais e reservas equivalentes; criação em cativeiro de animais da fauna brasileira; papel dos jardins zoológicos na preservação de espécies ameaçadas; educação para a conservação; manejo de recursos naturais; florestas tropicais e áreas úmidas; prímatas neotropicais; uso de e legislação sobre terras públicas; o papel do Estado no planejamento da recreação popular; e impactos humanos sobre a natureza." Carvalho propôs o seguinte enunciado para o conceito de conservação: Entende-se por Conservação da Natureza e Recursos Naturais [...] a preservação do mundo vivo, ambiente natural do homem, e dos recursos naturais renováveis da terra, fator primordial da civilização humana. As belezas naturais, por outro lado, constituem fonte de inspiração da vida espiritual e da satisfação indispen- sável das necessidades, essas cada dia mais intensificadas devido à mecanização crescente da vida moderna." {', J 1 Ele tentava unir as pontas das duas correntes que influenciaram as preocupa- ções com a natureza e os recursos naturais durante o século 20, o preservacionismo de Muir e o conservacionismo de Pinchot. No âmbito internacional, a ideia de uma organização para a proteção da natureza se concretizara com o surgimento da International Union for the Protection ofNature (IUPN), em 1948. A IUPN deveria promover a preservação da vida selvagem e do ambiente natural, o co- nhecimento público das questões, educação, pesquisa científica e legislação, e 79 ABC (Academia Brasileira de Ciências). Simpósio sobre Conservação da Natureza e Restauração do Ambiente Natural. Suplemento dos Anais da Academia Brasileira de Ciências, vol. 41 (Rio de Janeiro, 30109/1969). 80 ABC, Simpásio sobre Conservação ... Carvalho, Dia Mundial do Meio Ambiente ... José Cândido de Meio Carvalho, Algumas Reminiscências Conservacionistas, In: FBCN (Fundação Brasileira para a Conservação da Natureza), Boletim Informativo FBCN, v. 23 (Rio de Janeiro, ano 1988), p. 121-137. 81 ABC, Simpôsio sobre Conservação Carvalho, Algumas Reminiscências Conservacionistas .. 82 ABC, Simpósio sobre Conservação , p. 7. 75 Urbano Saudade do Matão ... Franco e Drummond, O cuidado da natureza ... Borges, Por trás do verde ... 76 FBCN (Fundação Brasileira para a Conservação da Natureza). lnfonnatívo FBCN, vol, 2, n" 3 (Rio de Janeiro, julho-setembro de 1978), 6. 77 Urban, Saudade do Matão .. 78 Urban, Saudade do Matão .. Franco e Drumrnond, O cuidado da natureza ... Borges, Por trás do verde ..- 356 História ambiental História das preocupações com o mundo natural no Brasii 357 i' coletaria, analisaria e divulgaria dados e informações. Nos seus primeiros anos, ela priorizou as questões de cunho preservacionista, porém na medida em que se disseminava uma consciência mais ampla sobre as consequências ecológicasdas atividades humanas, a ênfase recaiu na conservação. Isso levou a União a mudar o seu nome, em 1956, para International Union for Conservation of Nature and Natural Resources - IUCN.83 A IUCN ainda se dedicava às questões de proteção da natureza. No entanto, principalmente nos países menos desenvolvidos, foi ficando clara a necessidade de articular a proteção de certas áreas (parques nacionais, por exemplo) com uma política conservacionista dos recursos naturais, como parte integrante do desenvolvimento econômico. Essa perspectiva levou a IUCN a traçar estratégias simultaneamente preservacionistas e conservacionistas, unindo pólos até então de difícil conciliação.t" Ao conceituar a conservação da natureza, Carvalho não se refere a esses pólos. No entanto, fica clara a sua intenção de, seguindo os rumos da IUCN, abarcar as preocupações utilitárias e pragmáticas com o uso dos recursos naturais, de um lado, e o imperativo de proteger paisagens de grande beleza cênica e espécies ameaçadas de extinção, Na gestão de Carvalho, a FBCN passou a funcionar nos moldes da IUCN, pois adotou a estrutura dela - um Conselho Superior e cinco Comissões Técnicas - Educação, Ecologia, Parques Nacionais e Reservas Equivalentes, Espécies Raras ou Ameaçadas de Extinção, e Legislação." Embora se empenhasse por assegurar "o uso racional, com base científica, dos recursos naturais e sua renovação para as gerações futuras"," a FBCN ado- tou primordialmente a concepção de conservar os recursos naturais por meio da criação de espaços reservados, fechados à exploração econômica direta e abertos à pesquisa científica e à fruição estética. Nesses espaços ocorreria a difusão de conhecimento e de uma consciência mais ampla sobre a necessidade da conserva- ção, o que poderia ser alcançado principalmente pela cooperação entre governos e instituições, tanto nacionais quanto internacionais. R? Desse modo, a FBCN ocupou simultaneamente espaços governamentais e não governamentais. É importante notar que ela não copiou meramente os padrões da IUCN, pois os conservacionistas brasileiros parecem ter desem- penhado, a partir de certo momento, influência pronunciada nas comissões da IUCN. Maria Tereza Jorge Pádua e Paulo Nogueira Neto são exemplos de quadros da FBCN que exerceram influência desde o nível local até o in- ternacional. Eles atuaram em ONGs, ocuparam cargos importantes no apa- relho de Estado e tiveram papel destacado nos fóruns internacionais sobre a conservação da natureza. Pádua chefiou a Diretoria de Parques Nacionais e Reservas do IBDF, de 1968 a 1981, e voltou ao órgão em ] 985 como secre- tária geral. Em 1992, ela foi presidente do Ibama. Nogueira Neto chefiou a Sema de ] 974 até 1986. Os dois participavam ati vamente de comissões da IUCN e receberam, juntos, em 1982, o J. Paul Getty Wildlife Conservation Prize, concedido pelo WWF (World Wildlife Fund) às personalidades mais importantes no campo da conservação." Os convênios realizados pela FBCN, sobretudo, com o IBDF e a Sema, foram fundamentais para a sua estruturação e o seu funcionamento durante os anos seguintes. Houve parceria, também, com o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). Além disso, o auxílio internacional de instituições como a IUCN e o WWF ajudou na execução de projetos importantes." A FBCN viveu o seu auge entre 1966 e 1989. As suas comissões técnicas estiveram ativas e a ONG chegou a ter cerca de 4.000 afiliados, embora a maioria não fosse militante ou assídua às assembleias. Ela realizou numero- sos projetos e trabalhos, voltados, sobretudo, para a conservação de espécies raras ou ameaçadas de extinção, a criação e implantação de áreas protegidas, e a educação ambienta\. Um exemplo de serviço importante é o da redação dos primeiros planos de manejo de unidades de conservação brasileiras. Coordenou a criação de onze núcleos conservacionistas em vários estados da União. Alguns deles deram origem, na década de 1980, a novas e atuantes ONGs conservacionistas, como a Biodiversitas (1989), em Belo Horizonte, e a Funatura (1986), fundada por Maria Tereza Jorge Pádua, em Brasília. A FBCN teve também uma linha de publicações importantes para a informa- ção e o debate sobre conservação da natureza. Manteve a edição do Informativo FBCN (bimestralltrimestral - a partir de 1977) e do Boletim FBCN (anual - 1966/1989). Vale lembrar que, durante o período em que circulou, o Boletim FBCN abordou em suas páginas as questões mais cruciais para a conservação da natureza. Publicava os artigos das personalidades mais engajadas e reconhecidas nos meios políticos e científicos relacionadas com a ternática." A FBCN assumia a defesa dos parques nacionais e oferecia uma tribuna para os cientistas que trabalhavam na burocracia do Estado. Dessa parceria resultaram a formulação de políticas ambientais, geralmente na área de administração de 83 MeCorrnick, Rumo ao Paraíso, . Martin Holdgate, The Green Weh: A Union for World Conservation (London: Earthscan, 1999). 84 McCorrnick, Rumo ao Paraíso ... Holdgate, The Green Web .. 85 ASC, Simpàsio sobre Conservação .. Urban, Saudade do Matàv _. Franco c Drummond, O cuidado da natureza .. Borges, Por trás do verde .. 86 ABC, Simpôsio sobre Conservação .. , p. 21. 87 Urban, Saudade do Motão .. 88 Ibidem. 89 Urban, Saudade do Matão .. Franco e Drummond, O cuidado da natureza .. Borges, Por trás do verde .. 90 Urban, Saudade do Matão .. Franco e Drumrnond, O cuidado da natureza .. Borges, Par trás do verde .. 358 História amblental História das preocupações com o mundo natural no Brasil 359 parques nacionais e reservas equivalentes, e pesquisas sobre a biodiversidade. A FBCN, diferente de boa parte das ONOs surgi das nos anos 1980, pautava a sua ação pela colaboração com o Estado, e não pelo confronto. Até 1992, quando da realização da ECO-92 (Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento - CNUMAD), a FBCN ainda desempenhou um papel de liderança entre as ONOs ambientalistas brasileiras participantes do evento. No entanto, a essa altura enfrentava sérias dificuldades para manter o seu alto status no cenário nacional das ONOs ambientalistas. Um dos principais problemas da FBCN foi a falta de fundos para o financiamento de seus projetos. Com a crise econômica vivida pelo Brasil, sobretudo na segunda metade dos anos 1980, o Estado retraiu-se e as possibilidades de parceria e finan- ciamento para as atividades da FBCN diminuíram consideravelmente." Um convênio assinado com o Jardim Botânico do Rio de Janeiro e o IBDF, em 1988, foi quase fatal- a FBCN assumiu inadvertidamente a responsabilida- de por encargos trabalhistas e sociais. Ela mergulhou em uma crise financeira e administrativa. Ainda foram assinados convênios com o Ibama, com as Centrais Elétricas de Fumas, com ONOs internacionais (como a WWF dos Estados Unidos), com a Fundação Ford e com algumas prefeituras do estado do Rio de Janeiro. No entanto, os recursos escassearam." O surgimento de novas ONOs ambientalistas, no contexto da redemocratização, intensificou a concorrência pelos parcos recursos. Os integrantes da FBCN enca- ravam o surgimento dessas organizações de maneira positiva, pois elas tornavam as reivindicações pela conservação da natureza mais visíveis e difíceis de serem ignoradas pelos governos. Ao mesmo tempo, algumas ONOs eonservacionistas ganharam autonomia em relação à FBCN e profissionalizaram a sua atuação, como as citadas Biodiversitas e Funatura, captando os seus próprios recursos. ONOs estrangeiras, como WWF, The Nature Conservancy, Conservation International e Greenpeace abriram sedes próprias no Brasil e passaram a financiar os seus próprios projetos." Isto limitou ainda mais o espaço de ação da FBCN. A FBCN perdeu a capacidade de liderança e coordenação das demais ONOs ambientalistas e, embora ainda tivesse assento no Conarna (Conselho Nacional do Meio Ambiente),
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