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145FGV DIREITO RIO TEORIa GERal Das ObRIGaçõEs E DOs cOnTRaTOs Parte iV: teoria geral dos contratos aUla 20: PrincíPios da noVa teoria contratUal – aUtonoMia da Vontade e FUnçÃo social do contrato EmENtário dE tEmas Autonomia da Vontade e Função Social do Contrato lEitura obriGatória MARTINS-COSTA, Judith. “Reflexões sobre o princípio da função social dos contra- tos”, in Revista Direito GV nº 01 (maio/2005); pp. 41/66. lEituras comPlEmENtarEs SALOMÃO FILHO, Calixto. “Função social do contrato: primeiras anotações”, in Revista de Direito Mercantil nº 132; pp. 07/24. BUENO DE GODOY, Cláudio Luiz. Função Social do Contrato. São Paulo: Saraiva, 2004; pp. 110/130. 1. rotEiro dE aula Ao se iniciar o estudo da teoria e prática dos contratos, é fundamental ter-se em mente a transição pela qual atravessa esse específico e importante campo do Direito Civil. Tradicio- nalmente vinculada à soberania da vontade individual (autonomia da vontade), insculpida nos preceitos que tutelam a liberdade contratual, a disciplina dos contratos atualmente vê-se permeada por uma série de interesses que ultrapassam a vontade do particular, gerando um debate sobre os limites da intervenção de dispositivos de ordem pública na regulação das relações contratuais. Pode-se, em linhas gerais, dizer que os princípios tradicionais, que fundamentaram a construção clássica da teoria dos contratos são os seguintes: (i) autonomia da vontade; (ii) força obrigatória; e (iii) relatividade. Esses princípios encontram hoje diversas áreas de fle- xibilização geradas pela ascensão de novos princípios contratuais, como (iv) a função social do contrato; (v) a boa-fé objetiva; e (vi) o equilibrio econômico-financeiro da relação con- tratual. Todos os seis princípios acima mencionados serão trabalhados nas aulas a seguir. Na presente aula será conferida atenção especial aos princípios da autonomia da vontade e da chamada função social do contrato. A autonomia privada pode ser entendida, segundo lição de Díez-Picaso e Gullón como “o poder de se auto-ditar a lei ou preceito, o poder de governar-se a si próprio.” Conforme complementam os mesmos autores: 146FGV DIREITO RIO TEORIa GERal Das ObRIGaçõEs E DOs cOnTRaTOs “Poder-se-ia também defini-la como um poder de governo da própria esfera jurídica, e como essa é formada por relações jurídicas, que são a causa da realização de interesses, a au- tonomia privada pode igualmente conceituar-se como o poder da pessoa de desregulamentar e ordenar as relações jurídicas nas quais é, ou há de ser, parte.”77 O estudo da autonomia privada assume, na seara contratual, a forma da tutela da li- berdade contratual. Nesse particular é importante não confundir “liberdade de contratar” com “liberdade contratual”. A primeira relaciona-se com o momento formativo da relação contratual, isto é, com o grau de liberdade envolvida na decisão sobre concluir ou não um contrato. Já a segunda diz respeito ao conteúdo do contrato. Segundo Francesco Messineo, existem quatro significados para liberdade contratual: (i) o fato de que nenhuma parte pode impor unilateralmente à outra o conteúdo do contrato, e que esse deve ser o resultado de livre debate entre as partes; (ii) liberdade de negociação, no sentido de que o objeto do contrato é livre, salvo bens indisponíveis e exceções previstas no ordenamento; (iii) o poder de derrogar as normas dispositivas ou supletivas; e (iv) o fato de que, em algumas matérias, é admitida a auto-disciplina, ou seja, a regulação estabelecida pelas partes interessadas.78 Os alicerces sobre os quais se funda a liberdade de contratar podem ser encontrados nos princípios elaborados pela Escola do Direito Natural, responsável por conferir importância crescente à contratualidade, a partir do século XVI, sob a influência do conceito de autono- mia da vontade desenvolvido pelo Humanismo. O primado da vontade individual é conso- lidado no século XVII, quando a própria existência da sociedade passa a ser fundamentada no contrato. Essa tendência é explicita por John Gilissen: “A Idade Média não reconhecia o primado da vontade individual; esta não era respeitável senão nos limites da fé, da moral e do bem comum. Os interesses da comunidade familiar, re- ligiosa ou econômica, ultrapassam os dos indivíduos que a compõem. (...) É à Escola Jusnatu- ralista que a autonomia da vontade deve a sua autoridade, o seu primado. Mas foi sobretudo o jurista holandês Hugo Grócio que desenvolveu a nova teoria: a vontade é soberana; o respeito da palavra dada é uma regra de direito natural; pacta sunt servanda é um princípio que deve ser aplicado não apenas entre os indivíduos, mas mesmo entre as nações”.79 Após a consagração dos ideais da Revolução Francesa e a abolição dos privilégios es- tamentais e corporativos, a promulgação do Código Napoleão em 1804 veio a positivar explicitamente o primado da autonomia da vontade, na máxima de que “o contrato faz lei entre as partes” (art. 1.134), a qual será traduzida na célebre frase de Fouillée: “quem diz contratual diz justo”. A conseqüência imediata desse cenário é a crescente importância conferida pela doutrina contratualista do século XIX para a análise da manifestação da vontade e seus vícios. Com a primazia da autonomia da vontade, interpretar o contrato tornou-se um exercício de des- cobrimento das reais intenções das partes e das formas pelas quais elas foram verbalizadas. Trata-se de uma verdadeira “mística da vontade”. As restrições à liberdade contratual começam a surgir com a mudança do cenário históri- co, assegurando-se, inicialmente, maior igualdade de oportunidades no mercado, em termos da proibição de discriminação em razão de gênero, raça, etnia. Posteriormente, razões sociais passaram a determinar certas discriminações positivas, como o tratamento mais protetivo às partes contratualmente mais vulneráveis (tais como o consumidor, o idoso, o trabalhador). Portanto, razões de justiça e equidade vieram a determinar a intervenção do Estado sobre as relações contratuais, em um movimento que ficou conhecido como dirigismo 77 luis Diéz-Picaso e antonio Gullón. Sistema de derecho civil. Madrid: Editorial Tecnos, s.a., 1994, v. 1, p. 371. 78 Francesco Messineo. Il con- tratto in genere. Pádua: cEDaM, 1973, pp. 43 e 44. 79 John Gilissen. Introdução his- tórica ao direito. 2a ed. lisboa: Fundação calouste Gulbenkian, 1995, pp. 738 e 739. 147FGV DIREITO RIO TEORIa GERal Das ObRIGaçõEs E DOs cOnTRaTOs contratual. Trata-se da inserção, no ordenamento jurídico, de uma série de normas cogen- tes, a delimitar os assuntos sobre os quais se pode contratar, em que limites se pode dispor de determinados direitos, e que cláusulas serão consideradas intrinsecamente abusivas e, por conseguinte, nulas. Segundo identifica Eros Roberto Grau: “A mudança de perspectiva sobre a compreensão da autonomia da vontade é, portanto, profunda: deixa-se de considerar o indivíduo como senhor absoluto da sua vontade, para compreendê-lo como sujeito autorizado pelo ordenamento a praticar determinados atos, nos exatos limites da autorização concedida.”80 O mesmo diagnóstico dessa fase de transição é realizado por Gustavo Tepedino ao afirmar: “Com o Estado intervencionista delineado pela Constituição de 1988 teremos, então, a presença do Poder Público interferindo nas relações contratuais, definindo limites, diminuin- do os riscos do insucesso e protegendo camadas da população que, mercê daquela igualdade aparente e formal, ficavam à margem de todo o processo de desenvolvimento econômico, em situação de ostensiva desvantagem”.81 Todavia, a flexibilização da autonomia da vontade a preceitos contidos na legislação não representa uma completa anulação desse princípio nas relações contratuais. Muito ao reverso, a autonomia da vontade, e, mais especificamente,a liberdade contratual, permane- cem como princípio, e sua derivação respectivamente, a reger os vínculos contratuais, agora atrelada à função social do contrato, consoante o disposto no art. 421: Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato. Uma constatação de que a autonomia da vontade ainda desempenha papel de destaque na formação dos contratos pode ser encontrado no art. 425 do Código Civil, o qual deter- mina que as partes poderão elaborar contratos atípicos, ou seja, contratos que não seguem os modelos de contrato tipificados na legislação: Art. 425. É lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código. A dinâmica existente entre autonomia da vontade e função social pode ser percebida em alguns exemplos retirados da prática dos contratos de locação. Nesse sentido, vale investigar os limites do direito de retomada do imóvel por parte do locador para uso próprio. A lei de locações (Lei nº 8245/91) prevê, no seu art. 52, §1º, que o locador, salvo se remunerar o locatário pelo fundo de comércio, não poderá exercer o mesmo ramo de atividade desempe- nhado então pelo locatário. É a redação do artigo: “Art. 52. O locador não estará obrigado a renovar o contrato se: (...) II – o imóvel vier a ser utilizado por ele próprio ou para transferência de fundo de comér- cio existente há mais de um ano, sendo detentor da maioria do capital o locador, seu cônjuge, ascendente ou descendente. §1º – Na hipótese do inciso II, o imóvel não poderá ser destinado ao uso do mesmo ramo do lo- catário, salvo se a locação também envolvia o fundo de comércio, com as instalações e pertences”. 80 Eros Roberto Grau. “Um novo paradigma dos contratos”. In Revista Trimestral de Direito civil. Rio de Janeiro: Padma, v. 5, jan/mar 2001, p. 78. 81 Gustavo Tepedino. Temas de Direito Civil. 2a edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 204. 148FGV DIREITO RIO TEORIa GERal Das ObRIGaçõEs E DOs cOnTRaTOs Ao interpretar o referido artigo, Fábio Ulhoa Coelho afirma que, em tela, está-se diante de um conflito entre o direito de inerência ao ponto do locatário e o direito de propriedade do locador. Conforme expressa o autor: “Quando o direito de propriedade do locador entra em conflito com o direito de ine- rência a ponto do locatário, está em oposição uma simples oposição de interesses privados, individuais.”82 Complementa então o autor afirmando que a restrição ao direito de retomada, constante do art. 52 seria inconstitucional, pois imporia restrições ao direito de propriedade. Essa é justamente a espécie de situação em que a ampla autonomia da vontade cede espaço para mandamentos constantes da lei, impondo a preservação de determinados in- teresses. Ao afirmar que o dispositivo que veda o restabelecimento do locador no negócio desenvolvido pelo locatário, o legislador não confronta o direito de propriedade, mas o funcionaliza. Nessa direção, o artigo tutela não apenas a função social da propriedade, mas também a função social do contrato de locação, que se transforma em incentivo para que locatários desenvolvam cada vez melhores negócios, seguros de que não sofrerão a retomada do imóvel sob o argumento de uso próprio para que o locador venha a se aproveitar o tra- balho realizado no ponto. Cláusulas de não restabelecimento, ou cláusulas de não concorrência, atualmente de- sempenham importante papel na configuração dos limites da autonomia da vontade nos contratos. A cláusula de não-concorrência pode ser decorrência natural da venda de um negócio, principalmente nos casos em que seja necessário assegurar ao comprador as con- dições necessárias para que este usufrua integralmente dos benefícios diretos e indiretos da aquisição. A referida cláusula, todavia, deve ser razoavelmente delimitada, no tempo, no espaço e no setor relevante. O próprio código civil estabelece que, salvo estipulação em contrário, na aquisição de estabelecimentos empresariais o alienante não poderá concorrer com o comprador pelo prazo de cinco anos. Essa é a redação do art. 1147 do Código Civil: “Art. 1147. Não havendo autorização expressa, o alienante do estabelecimento não pode fazer concorrência ao adquirente, nos 5 (cinco) anos subseqüentes á transferência.” Ainda na dinâmica dos estabelecimentos empresariais, e mais especificamente nos shop- ping centers, as cláusulas de não concorrência assumem a feição de cláusulas de raio, sendo comum que no contrato de locação com a empresa que administra o shopping center conste uma cláusula que veda a abertura de estabelecimento idêntico ao que o lojista explora no shopping por uma certa distância especificada no contrato. 2. caso GErador A administradora do Shopping Iguatemi, localizado na cidade de Porto Alegre, tem figurado na imprensa por conta de um litígio instaurado com a cadeia de farmácias Panvel. Segundo consta das notícias veiculadas, ela teria ingressado com ação de despejo contra a empresa que explora a farmácia Panvel localiza no shopping por conta da abertura de uma outra farmácia Panvel no shopping Bourbon Country, construído posteriormente e pratica- mente vizinho do terreno onde se localiza o shopping Iguatemi. 82 Fábio Ulhoa coelho. Curso de Direito Comercial, v. I. são Pau- lo, saraiva, 4ªed., 2000; p. 103. 149FGV DIREITO RIO TEORIa GERal Das ObRIGaçõEs E DOs cOnTRaTOs Alega a administradora do Shopping Iguatemi que a abertura de uma farmácia Panvel no shopping vizinho representaria violação da cláusula de raio estabelecida no contrato de locação. Vale ressaltar que no shopping Bourbon Country também foram abertas lojas das redes O Boticário e McDonalds. Se você fosse o juiz dessa ação judicial, como seria a sua decisão? Fundamente. SHOPPING BOURBON COUNTRY IGUATEMI SHOPPING 150FGV DIREITO RIO TEORIa GERal Das ObRIGaçõEs E DOs cOnTRaTOs aUla 21: PrincíPios da noVa teoria contratUal – contornos da boa-FÉ obJetiVa EmENtário dE tEmas As três funções da boa-fé objetiva – Os deveres anexos de conduta lEitura obriGatória TEPEDINO, Gustavo e SCHREIBER, Anderson. “A Boa-Fé Objetiva no Código de Defesa do Consumidor e no novo Código Civil”, in Gustavo TEPEDINO (org.) Obrigações: Estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; pp. 29/44. lEituras comPlEmENtarEs NEGREIROS, Teresa. Teoria do Contrato. Rio de Janeiro: Renovar, 2002; pp. 115/153. AZEVEDO, Antonio Junqueira de. “Insuficiências, deficiências e desatualização do Projeto de Código Civil na questão da boa-fé objetiva nos contratos”, in Estudos e Pareceres de Direito Privado. São Paulo: Saraiva, 2004; pp. 148/158. 1. rotEiro dE aula A boa-fé tradicionalmente figura como elemento dos estudos jurídicos quando se deve investigar se o indivíduo possui ou não ciência sobre uma determinada condição, como, por exemplo, se o individuo conhece, ou não, um vício que macula a sua posse sobre determina- do terreno. Essa perspectiva da boa-fé convencionou-se denominar boa-fé subjetiva. Existe, todavia, uma outra forma de atuação da boa-fé no direito brasileiro, denominada boa-fé objetiva, a qual foge de qualquer ilação sobre um estado de espírito do agente para se fixar em uma análise voltada para critérios estritamente objetivos. as três funções da boa-fé objetiva É comum delimitar-se três funções típicas desempenhadas pela boa-fé objetiva no direito brasileiro. Sendo assim, pode-se definir a função tríplice da boa-fé objetiva da seguinte forma: A boa-fé objetiva desempenha inicialmente um papel de critério para a interpretação da declaração da vontade nos negócios jurídicos. Essa função é prevista no art. 113 do novo Código Civil: Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. Esse dispositivoganha relevo ao indicar que a primeira função da boa-fé objetiva é dirigir a interpretação do juiz ou árbitro relativamente ao negócio celebrado, impedindo 151FGV DIREITO RIO TEORIa GERal Das ObRIGaçõEs E DOs cOnTRaTOs que o contrato seja interpretado de forma a atingir finalidade oposta àquela que se deveria licitamente esperar. A boa-fé objetiva atua ainda como forma de valorar o abuso no exercício dos direitos subjetivos, conforme consta do art. 187 do Código Civil: Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. E, por fim, a boa-fé objetiva é, ainda, norma de conduta imposta aos contratantes, se- gundo o disposto no art. 422 do Código Civil: Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé. A função desempenhada pela boa-fé objetiva a partir do dispositivo no art. 422 é, sem dúvida, a sua atuação mais comentada pela doutrina e da qual mais se vale a jurisprudência dos tribunais nacionais. os deveres anexos de conduta O motivo pelo qual a terceira função da boa-fé objetiva recebeu tamanho destaque deriva justamente do seu próprio conteúdo: impor às partes contratantes deveres objetivos de conduta, que não necessariamente precisam constar do instrumento contratual para que possam ser cobrados e cumpridos. Tratam-se dos chamados deveres secundários, ou anexos, aos quais todas as partes de um negócio devem manter estrita observância. Essa caracterização da boa-fé objetiva como a disposição de deveres de conduta que as partes devem guardar difere frontalmente daquela concepção clássica de boa-fé subjetiva, ligada a um estado psicológico do agente. Os deveres secundários impostos pelo art. 422 foram gradativamente sendo construídos pela doutrina e pela jurisprudência, podendo-se mesmo falar em quatro deveres básicos: (i) dever de informação e esclarecimento; (ii) dever de cooperação e lealdade; (iii) deveres de proteção e cuidado; (iv) dever de segredo ou sigilo. Todavia, diversas derivações podem surgir desses quatro deveres básicos, como bem ex- plicita Judith Martins-Costa, os deveres secundários podem abranger um vasto leque de condutas que deverão ser observadas pelas partes, como, por exemplo: “a) os deveres de cuidado, previdência e segurança, como o dever do depositário de não apenas guardar a coisa, mas também de bem acondicionar o objeto deixado em depósito; b) os deveres de aviso e esclarecimento, como o do advogado, de aconselhar o seu cliente acerca das melhores possibilidades de cada via judicial passível de escolha para a satisfação de seu desideratum, o do consultor financeiro de avisar a contraparte sobre os riscos que corre, ou o do médico, de esclarecer ao paciente sobre a relação custo/benefício do tratamento escolhido, ou dos efeitos colaterais do medicamento indicado, ou ainda, na fase pré-contratual, o do sujeito que entra em negociações, de avisar o futuro contratante sobre os fatos que podem ter relevo na formação da declaração negocial; c) os deveres de informação, de exponencial relevância no âmbito das relações jurídicas de consumo, seja por expressa disposição legal (CDC, arts. 12, in fine, 14, 18, 20, 30 e 31, entre outros), seja em atenção ao mandamento da boa-fé objetiva; d) o dever de prestar contas, que incumbe aos gestores e mandatários, em 152FGV DIREITO RIO TEORIa GERal Das ObRIGaçõEs E DOs cOnTRaTOs sentido amplo; e) os deveres de colaboração e cooperação, como o de colaborar para o cor- reto adimplemento da prestação principal, ao qual se liga, pela negativa, o de não dificultar o pagamento, por parte do devedor; f ) os deveres de proteção e cuidado com a pessoa e o patrimônio da contraparte, como, v.g., o dever do proprietário de uma sala de espetáculos ou de um estabelecimento comercial de planejar arquitetonicamente o prédio, a fim de diminuir os riscos de acidentes; g) os deveres de omissão e de segredo, como o dever de guardar sigilo sobre atos ou fatos dos quais se teve conhecimento em razão do contrato ou de negociações preliminares.”83 A imposição desses deveres se reveste de papel fundamental para a ordenação dos contra- tos na prática, uma vez que se busca, com a sua afirmação, proteger um bem que se encontra na própria essência da contratação: a confiança. Por esse motivo, o enquadramento legal da boa-fé objetiva sempre se mostrará atrelada à tutela da confiança, sobretudo no que diz respeito à aplicação desse princípio aos casos de responsabilidade pré-contratual. Mas a redação do art. 422 não está afastada de qualquer espécie de crítica. Muito ao re- verso, Antonio Junqueira de Azevedo afirma que a redação do art. 422 se mostra insuficien- te, deficiente e desatualizada perante às exigências da prática contratual moderna. Segundo o autor, o artigo seria insuficiente em sua redação pois não deixa claro se os seus dispositivos constituem norma cogente ou meramente dispositiva, além de não mencionar as fases pré e pós-contratuais para fins de responsabilização. O artigo seria ainda deficiente por não pre- ver de forma explícita quais são os chamados deveres anexos. E, por fim, o dispositivo seria desatualizado pois confere poderes desmesurados ao juiz para interferir nas relações con- tratuais, abrindo possibilidade para se incrementar a sobrecarga de processos que impede o regular funcionamento do Poder Judiciário, além de não serem os juizes tradicionalmente preparados para decidir casos nos quais figurem contratos de extrema especialidade técnica. Nesse sentido, menciona o autor, a época atual estaria passando do paradigma do juiz para o paradigma do árbitro.84 2. caso GErador85 A Newcell Telecom S/A (“Newcell”) é uma companhia aberta, com ações negociadas em bolsa de valores, que atua no setor de telecomunicações, especificamente na prestação de serviços de telefonia móvel (SMP), Regiões I e II. Até muito recentemente, 50% de suas ações ordinárias pertenciam à acionista Macroservice Ltd. (“Macroservice”), 40% à Celular do Brasil Ltda. (“Celular do Brasil”) e os 10% restantes ao público investidor. A recente mudança no seu quadro acionário deu-se em razão da alienação das ações ordinárias de propriedade da Celular do Brasil (“Ações”), operação esta que permitiu a entrada da Trama Telecom S/A (“Trama”) – orginariamente prestadora da mesma modalidade de serviço ape- nas na Região III. A operação é hoje alvo de uma disputa judicial, iniciada pela Celular do Brasil, conforme os fatos a seguir relatados. Desde julho de 1999, por força de um acordo de acionistas celebrado entre a Ce- lular do Brasil e a Macroservice (“Acordo de Acionistas”), a transferência das ações ordinárias de emissão da Newcell estava sujeita a procedimento prévio, que incluía a realização de um leilão informal e a outorga de direito de preferência entre os acionis- tas acima designados. Assim, dispunha o Acordo de Acionistas que o acionista rema- nescente teria o direito de preferência, podendo adquirir a participação do acionista alienante desde que o fizesse nos mesmos termos e condições constantes da oferta de um terceiro. 83 Judith Martins-costa. A Boa- Fé no Direito Privado. são Paulo: RT, 1999, p. 439. 84 antonio Junqueira de.azevedo. “Insuficiências, deficiências e desatualização do Projeto de código civil na questão da boa-fé objetiva nos contratos”, in Estudos e Pareceres de Direito Privado. são Paulo: saraiva, 2004; pp. 148/158 85 caso gerador extraído da apostila “Princípios contra- tuais”, elaborada por Teresa negreiros para os cursos de educação continuada da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro. 153FGV DIREITO RIO TEORIa GERal Das ObRIGaçõEs E DOs cOnTRaTOsEm janeiro de 2004, desejando alienar a participação de 40% que detinha no capital votante da Newcell, a Celular do Brasil deu início à tentativa de obter a melhor oferta pos- sível pelas suas ações. Entre os analistas que acompanhavam as diligências que antecederam ao leilão promo- vido pela Celular do Brasil, não havia dúvida: todas as apostas convergiam para a Trama, cujos planos de expansão eram notórios. Mediante a aquisição de 40% das ações ordinárias de emissão da Newcell, poderia a Trama aproveitar-se das consideráveis sinergias em jogo para se tornar a maior potência no mercado de telefonia celular do Brasil, operando simul- taneamente nas Regiões I, II e III. Ou seja, a Trama era a maior interessada na aquisição das Ações, e por isso estimava-se que sairia vencedora do leilão. Não se sabia, porém, que, naquele mesmo mês de janeiro de 2004, enquanto a Celular do Brasil organizava o leilão – disponibilizando aos potenciais interessados informações sobre a Newcell –, Trama e Macroservice assinavam, secretamente, uma carta de intenções (“Carta de Intenções”), que dispunha sobre o comportamento de ambas com relação ao iminente leilão. O objetivo da Trama e da Macroservice, ao assinarem a Carta de Intenções, era permitir que, ao final, e fosse quem fosse o vencedor do leilão, ambas – Trama e Macroservice – for- massem o bloco de controle da companhia, possuindo, cada uma, 45% do capital votante da Newcell. Assim, caso fosse a Trama a vencedora do leilão, a Macroservice obrigava-se a não exercer o direito de preferência e a lhe vender 5% da sua participação. Caso, pelo con- trário, a Trama não fosse a vencedora, poderia esta, a seu exclusivo critério, e mediante a entrega dos recursos necessários, obrigar a Macroservice a exercer o direito de preferência e, ato contínuo, lhe transferir as Ações, mais os 5% relativos à sua própria participação origi- nal. Nestes termos, a Macroservice adquiriria as ações com base no seu direito de preferência mas com recursos provenientes da Trama, sendo esta a destinatária final das Ações. E foi o que de fato aconteceu. Realizado o leilão, contrariamente às estimativas do mercado, a oferta apresentada pela Trama não foi nada agressiva, vindo a mesma a perder o certame para outra licitante, a Trim Telecom S/A (“Trim”), companhia de origem alemã recém constituída no Brasil. Foi assim celebrado entre a Trim e a Celular do Brasil, em fevereiro de 2004, contrato de compra e venda de ações, no valor de US$ 400 milhões – contrato este sujeito à condição suspensiva do não-exercício do direito de preferência pela Macroservice. A mencionada compra e venda extinguiu-se com o exercício do direito de preferência pela Macroservice, que, tal como previsto na Carta de Intenções, transferiu ato contínuo as Ações assim adqui- ridas à Trama, mais 5% de sua participação original, de modo a que ambas se tornassem co- controladoras em absoluta igualdade de condições. Tudo conforme havia sido estabelecido na Carta de Intenções, então tornada pública. A operação motivou uma expressiva alta das ações de emissão das sociedades envolvi- das. Em particular, o representante dos acionistas preferenciais da Newcell fez questão de divulgar ao mercado a sua satisfação diante das novas perspectivas que se abriam para a companhia. A Celular do Brasil, contudo, sentindo-se prejudicada, acaba de ingressar em juízo com uma ação civil de reparação de danos em face da Macroservice, pleiteando o ressarcimento de lucros cessantes, no montante de US$ 50 milhões, alegando, em resumo, que a execução da Carta de Intenções entre a Trama e a Macroservice, com o imediato repasse das Ações, violou o acordo de acionistas que até então vigorara entre ela e a Macroservice. Como se resolve o caso acima? Quantos e quais princípios da nova teoria contratual você consegue identificar para o deslinde da questão? 154FGV DIREITO RIO TEORIa GERal Das ObRIGaçõEs E DOs cOnTRaTOs 3. QuEstõEs dE coNcurso 20º Exame da Ordem – OAB/RJ – 2ª fase 3. Estabeleça a distinção entre boa-fé subjetiva e boa-fé objetiva, dando exemplos de situações caracterizadoras de cada uma dessas modalidades de boa-fé. 21º Exame da Ordem – OAB/RJ – 2ª fase 3. Um náufrago, perdido em alto-mar, em uma balsa, em situação desesperadora, a quase míngua de víveres e água, contrata o seu resgate com um comandante de navio de transporte de combustível que passava providencialmente no local nessa ocasião, sob a promessa de transferir-lhe a propriedade de vultuoso apartamento, metade de seu patrimônio. O comandante assim o faz, mesmo sabendo da proibição peremptó- ria de estranhos a bordo por parte da companhia proprietária do navio, que terá que pagar pesada multa contratual pessoal pelo descumprimento de tal regra e do fato que o resgate, efetuado em condições arriscadas, atrasará a viagem em pelo menos um dia, acarretando diversos prejuízos a seu encargo. Chegando são e salvo ao porto, o náufrago posteriormente recusa-se a cumprir o pac- tuado no resgate, sob o argumento de que o contrato efetuado em tais condições não é válido e que conseqüentemente também não é devida ao comandante do navio qual- quer indenização pelos gastos incorridos com o resgate. Estabeleça se o comandante do navio terá êxito judicial em uma eventual ação contra o náufrago objetivando o cumprimento do contrato e o ressarcimento dos gastos efetuados. 128º Exame da Ordem – OAB/SP – 1ª fase 23. Sobre a boa-fé objetiva, é INCORRETO afirmar: a) implica o dever de conduta probo e íntegro entre as partes contratantes. b) significa a ignorância de vício que macula o negócio jurídico. c) implica a observância de deveres anexos ao contrato, tais como informação e segu- rança. d) aplica-se aos contratos do Código Civil e do Código de Defesa do Consumidor. 155FGV DIREITO RIO TEORIa GERal Das ObRIGaçõEs E DOs cOnTRaTOs aUla 22: PrincíPios da noVa teoria contratUal – relatiVidade e sUa FleXibiliZaçÃo EmENtário dE tEmas Flexibilização do princípio da relatividade lEitura obriGatória NEGREIROS, Teresa. Teoria do Contrato. Rio de Janeiro: Renovar, 2002; pp. 229/259. lEituras comPlEmENtarEs AZEVEDO, Antonio Junqueira de. “Os princípios do atual direito contratual e a des- regulamentação do mercado. Direito de exclusividade nas relações contratuais de fornecimento. Função social do contrato e responsabilidade aquiliana do terceiro que contribui para o inadimplemento contratual”, in Estudos e Pareceres de Direito Privado. São Paulo: Saraiva, 2004; pp. 137/147. CORREIA, A. Ferrer. “Da responsabilidade do terceiro que coopera com o devedor na violação de um pacto de preferência”, in Estudo de Direito Civil, Comercial e Crimi- nal. Coimbra: Almedina, 1985; pp. 33/52. 1. atividadE Em sala 156FGV DIREITO RIO TEORIa GERal Das ObRIGaçõEs E DOs cOnTRaTOs O contrato é um fenômeno social, econômico e jurídico. Sendo assim, imaginar que a celebração de um contrato apenas interessa às partes contratantes, seria desconsiderar os verdadeiros impactos que um contrato pode ter na própria sociedade. Terceiros não apenas afetam o cumprimento de um contrato, como também podem ser afetados pelos termos que regem uma relação contratual. Dessa forma, surgem duas situações bem distintas: (i) o credor que vê a prestação do contrato ser inadimplida por conta da atuação de um terceiro, estranho ao pactuado na re- lação contratual; e (ii) um terceiro que passa a sofrer algum prejuizo em sua situação jurídica por conta de um inadimplemento em contrato do qual o mesmo não faz parte. A extensão desse transbordamento dos efeitos de uma relação contratual para atingir pessoas não previamente constantes da avença é o objeto de discussão da presente aula. A partir da leitura da reportagem abaixo, buscar-se-á compreender nessa aula a conturbada relação entre os contratos e os terceiros. Tendoem vista que a agência África não fazia parte do contrato entre o cantor Zeca Pagodinho e a cervejaria Schincariol, poderia a referida agência ser acionada judicialmente? Qual seria o fundamento dessa ação? E como enquadrar juridicamente o comportamento do cantor? 157FGV DIREITO RIO TEORIa GERal Das ObRIGaçõEs E DOs cOnTRaTOs aUla 23: resPonsabilidade PrÉ-contratUal e ProibiçÃo do coMPortaMento contraditório EmENtário dE tEmas Responsabilidade pré-contratual – A proibição de comportamento contraditório lEitura obriGatória SCHREIBER, Anderson. A Proibição do Comportamento Contraditório: Tutela da con- fiança e venire contra factum proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; pp. 90/122. lEituras comPlEmENtarEs AZEVEDO, Antonio Junqueira de. “Responsabilidade Pré-Contratual no Código de Defesa do Consumidor: Estudo comparativo com a responsabilidade pré-contratual no direito comum”, in Estudos e Pareceres de Direito Privado. São Paulo: Saraiva, 2004; pp. 173/183. 1. rotEiro dE aula Os negócios jurídicos, em geral, são precedidos por uma fase de entendimentos, de ne- gociações, comumente denominada de “tratativas”. Nessa fase do contrato que ainda há de nascer as eventuais partes de uma futura relação contratual discutem como melhor compor os seus interesses para a formação do contrato. A negociação de um contrato é objeto de estudos que ultrapassam o universo estritamente jurídico e alcançam a seara das técnicas e estratégias de negociação, amplamente difundidas através de diversas publicações e cursos especializados.86 Pode ocorrer, todavia, que as negociações não cheguem ao estágio de formação do con- trato. É natural que alguma eventualidade ocorra e que uma das partes tenha que abandonar as tratativas. Contudo, existem hipóteses em que a própria fase pré-contratual gera para as então futuras partes de um contrato uma vinculação capaz de gerar danos caso seja rompida de forma injustificada. O rompimento injustificado de negociações é apenas uma das hipóteses da chamada res- ponsabilidade pré-contratual. Note-se que nesse momento ainda não existe contrato e que o vínculo existente entre as partes não se baseia na reciprocidade de obrigações devidamente contratadas, mas sim na tutela de um bem cada vez mais relevante para a prática contratual no direito brasileiro: a confiança. responsabilidade pré-contratual A responsabilidade pré-contratual, ou culpa in contrahendo, se distancia das duas es- pécies tradicionais de responsabilização uma vez que não pode ser enquadrada como res- ponsabilidade contratual, pois que contrato ainda não existe, e nem mesmo figurar como responsabilidade extra-contratual pois existe um vínculo prévio entre as partes que a dife- 86 nesse sentido, vide, por to- dos, Robert Mnookin. Beyond Winning: Negotiating to Create Value in Deals and Disputes. cambridge: Harvard University Press; 2000. 158FGV DIREITO RIO TEORIa GERal Das ObRIGaçõEs E DOs cOnTRaTOs rencia da situação peculiarmente encontrada na chamada responsabilidade aquiliana (extra- contratual). Nesse terceiro gênero de responsabilização, portanto, pode-se encontrar uma interação voltada para a formação de um futuro contrato. Esse vínculo específico caracteriza a res- ponsabilidade pré-contratual. Esse vínculo impõe aos indivíduos o dever de não frustrar as expectativas legitimamente criadas pelos seus próprios atos. A partir desse entendimento surgirá a tutela da confiança aplicada à proibição do comportamento contraditório (venire contra factum proprium). Claramente esse vínculo existente entre as partes surge de um im- perativo da boa-fé objetiva, princípio da moderna teoria contratual, já estudado em aulas anteriores. É, portanto, a tutela da confiança o fundamento da responsabilidade pré-con- tratual. Especificamente no que diz respeito ao rompimento das tratativas, Regis Fichtner Pereira identifica quatro hipóteses características dessa forma de responsabilização: (i) quando ocor- re a ruptura injustificada das tratativas; (ii) quando, no desenvolvimento das negociações, um dos interessados cause dano à pessoa ou ao patrimônio do outro; (iii) quando tenha ocorrido o estabelecimento de contrato nulo ou anulável e um dos interessados conhecia, ou deveria conhecer, o vício no negócio jurídico; (iv) quando, mesmo instaurada a relação jurídica contratual, das negociações preliminares tenham surgido eventuais danos a serem indenizados.87 Vale destacar que, mesmo sendo uma terceira forma de responsabilidade, apartada das tradicionais responsabilidades contratual e extra-contratual, a responsabilidade pré-contra- tual não prescinde da análise dos elementos comumente necessários para qualquer pleito de responsabilidade civil, ou seja, a conduta culposa de uma das partes da negociação, o dano causado e o nexo de causalidade entre o dano e a conduta do agente. Sendo a responsabilidade pré-contratual uma derivação do princípio da boa-fé objetiva (tutela da confiança) no direito brasileiro, torna-se imediata a conclusão de que as violações que geram esse tipo de responsabilidade são violações aos chamados deveres secundários (ou anexos), típicos da composição do princípio da boa-fé objetiva. Esses deveres acessórios são basicamente os quatro a seguir destacados: (i) dever de in- formação e esclarecimento; (ii) dever de cooperação e lealdade; (iii) deveres de proteção e cuidado; (iv) dever de segredo ou sigilo. O primeiro dever secundário (dever de informação e esclarecimento) tem por objetivo tornar as comunicações típicas da negociação claras e transparantes, tudo de forma a evitar que a parte contrária venha a incidir em erro na manifestação de sua vontade. O dever de cooperação e lealdade, por seu turno, impõe que as partes apenas permaneçam nas tratativas enquanto possuam um interesse sério e legítimo na formação de um futuro con- trato, contando, ainda, com situação jurídica e econômica apta para o seu cumprimento. O dever de proteção e cuidado comanda às partes a observância de todas as precauções possíveis e razoáveis para que a parte contrária não venha a ser lesionada nas tratativas e no futuro contrato. O quarto e último dever secundário, ou seja, o dever de sigilo tem por escopo assegurar que as informações obtidas pelas partes durante as negociações sejam mantidas, salvo dispo- sição em contrário, e de forma razoável, em regime de estrita confidencialidade, não sendo as mesmas utilizadas para fins outros que venham a ser estranhos à conclusão do contrato. a proibição de comportamento contraditório A proibição do comportamento contraditório representa uma das principais contribui- ções dos estudos sobre boa-fé objetiva para a prática contratual. O instituto possui especial 87 Regis Fichtner Pereira. A Responsabilidade Civil Pré- Contratual – Teoria Geral e Responsabilidade pela Ruptura das Negociações Contratuais. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 102. 159FGV DIREITO RIO TEORIa GERal Das ObRIGaçõEs E DOs cOnTRaTOs aplicação na fase de negociações que antecede a formação do contrato, coibindo as partes de frustrar expectativas legitimamente criadas no pólo contrário das negociações. A expressão nemo potest venire contra factum proprium consolida a idéia de que a nin- guém é permitido agir contra a sua própria conduta prévia. Trata-se da reprovação social à adoção de comportamentos contraditórios com efeitos perniciosos a terceiros. O fundamento do venire contra factum proprium, como visto, reside no princípio da boa-fé objetiva, especialmente na sua vertente voltada para a tutela da confiança. A ausência de regula- mentação no direito positivo não impede a aplicação do instituto, o qual vem sendo amplamente utilizado para casos de responsabilidade pré-contratual. A doutrina, contudo, tem adotado en- tendimento no sentido de que a proibição de comportamentocontraditório derivaria do precei- to contido no art. 3o, I, da Constituição Federal, o qual consagra a solidariedade social.88 Os pressupostos para aplicação do venire contra factum proprium, de acordo com An- derson Schreiber, são os seguintes: (i) um factum proprium,; (ii) a geração na outra parte de confiança legítima no sentido de manutenção da conduta inicialmente adotada; (iii) um comportamento contraditório violador desta confiança; e (iv) dano ou ameaça concreta de dano derivado da contradição.89 A proibição de comportamento contraditório surge, portanto, em casos em que a con- duta adotada por uma das partes gera legítimas expectativas na outra parte, as quais termi- nam por serem quebradas. Nesse sentido, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul decidiu favoravelmente a agricultores uma ação com base na quebra das expectativas geradas por uma empresa especializada na fabricação de extratos de tomates, uma vez que a empresa tinha por hábito entregar-lhes sempre as sementes para plantio, e comprar o resul- tado da posterior colheita. No ano em que a empresa entregou as sementes e não comprou a colheita, os agricultores alegaram ter sofrido prejuízos pela quebra de expectativas geradas pela empresa. Segundo consta do acórdão em questão: “Tanto basta para demonstrar que a ré, após incentivar os produtores a plantar safra de tomate – instando-os a realizar despesas e envidar esforços para plantio, ao mesmo tempo em que perdiam a oportunidade de fazer o cultivo de outro produto – simplesmente desistiu da industrialização do tomate, atendendo aos seus exclusivos interesses, no que agiu dentro do seu poder decisório. Deve, no entanto, indenizar aqueles que lealmente confiaram no seu procedimento anterior e sofreram o prejuízo.”90 A aplicação da vedação ao comportamento contraditório surge na complementação do voto vencedor, ao afirmar que, no caso, “confiaram eles lealmente na palavra dada, na repe- tição do que acontecera em anos anteriores.” 2. caso GErador91 Severino José dos Santos Neves, agricultor do Município de Várzea Grande, Mato Grosso, possuía plantações de batata, milho e tomate em sua modesta propriedade. Plantava os ali- mentos com a ajuda de sua família e, na época da colheita, contratava alguns empregados. No início do ano de 1998, a empresa CEIA – Catchups e Extratos Indústria Alimentícia Ltda. procurou Severino e forneceu-lhe sementes de tomate, manifestando sua intenção de, posteriormente, firmar, com ele, contrato de compra e venda. Alguns meses depois, a sociedade empresária celebrou o contrato com Severino e adqui- riu a safra de tomates de 1998/1999. Assim se deu também com relação às safras de 99/00 e 00/01. 88 anderson schreiber. A proibi- ção de comportamento contra- ditório – Tutela da Confiança e Venire Contra Factum Proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; p. 101. 89 anderson schreiber. Ob. cit.; p. 124. 90 TJRs, ap. 591028295; j. em 06/06/91. 91 O presente caso gerador foi extraído da apostila “Respon- sabilidade Pré-contratual e Proibição do comportamento contraditório”, elaborada por sergio negri para os cursos de educação continuada da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, do Rio de Janeiro. 160FGV DIREITO RIO TEORIa GERal Das ObRIGaçõEs E DOs cOnTRaTOs Em 2001, novamente a CEIA entrou em contato com o agricultor e distribuiu-lhe as sementes. Severino, animado com o novo negócio, deixou de lado as plantações de batatas e milho e passou a se dedicar exclusivamente ao cultivo de tomates. Implantou a mais nova tecnologia de cultura em sua plantação e contratou empregados para o plantio e a colheita da safra de 01/02. Contudo, para sua surpresa, a CEIA, naquele ano, resolveu não industrializar os tomates e, por conseguinte, não comprar a safra. Severino, ao receber a notícia, ficou muito chateado com a situação e foi até a sede da empresa em São Paulo para obter alguns esclarecimentos com o encarregado da compra dos produtos. Foi então informado de que a última distribuição de sementes fora, na verdade, uma doação. O funcionário esclareceu, ainda, que infelizmente não poderia fazer nada, mesmo porque não havia assumido nenhum compromisso de, naquele ano, comprar a produção de Severino. Com base no caso descrito, analise as seguintes questões: a) Poderia a sociedade empresária, após a distribuição de sementes, deixar de celebrar o contrato com Severino? b) A distribuição de sementes pela empresa e a aceitação do agricultor configurariam algum tipo de contrato? c) Haveria, entre Severino e a CEIA, algo que os vinculasse? Em caso positivo, qual seria a natureza desse vínculo e o fundamento que legitima essa vinculação? d) O fato de Severino ter efetuado algumas despesas por acreditar que a CEIA iria ad- quirir a safra de tomates teria alguma relevância? e) Imagine agora que, assim como no caso descrito, desde 1998, a empresa vinha dis- tribuindo sementes de tomate e, em seguida, celebrado o contrato de compra e venda do produto. Todavia, no ano de 2001, a CEIA não efetuou tal distribuição. Mesmo assim, Severino, pensando que, também nesse ano, venderia tomates à empresa, fez, por conta própria, a compra das sementes e o plantio do produto. Essa circunstância altera sua linha de raciocínio referente ao caso? 3. QuEstõEs dE coNcurso 20º Exame da Ordem – OAB/RJ – 2ª fase 4. Uma grande empresa privada abre um processo seletivo para preenchimento do car- go de Diretor de Relações Externas. Um candidato é selecionado. As partes acordam o salário, demais condições de contratação e é fixada a data para a admissão. Intempes- tivamente, sem motivar, a empresa desiste da contratação. O candidato ajuíza em face dela ação de danos materiais e morais. Discorra sobre a fundamentação jurídica dessa pretensão e sua possibilidade de êxito judicial. 21º Exame da Ordem – OAB/RJ – 2ª fase 5 – Disserte sobre o instituto da responsabilidade civil pós-contratual, após cumpridas todas as prestações principais da avença, e estabeleça a validade ou não desta no orde- namento brasileiro a partir da aprovação do Novo Código Civil. 6 – João e Pedro celebram a compra e venda de um fundo de comércio por R$ 300.000,00 (trezentos mil reais) descrevendo condicionalmente no instrumento contratual que a aquisição teve por motivo determinante a perspectiva de boa e numerosa freguesia, garantida e apontada pelo vendedor Pedro no próprio contrato. 161FGV DIREITO RIO TEORIa GERal Das ObRIGaçõEs E DOs cOnTRaTOs Decorridos seis meses, não se caracteriza tal perspectiva. João intenta agora anular o negócio. Estabeleça qual o fundamento de tal pretensão e discorra sobre se terá êxito judicial ou não a pretensão de João. 22º Exame da Ordem – OAB/RJ – 2ª fase 5 – Disserte sobre o instituto da responsabilidade civil pré-contratual, no rompimen- to abrupto das negociações durante as tratativas para a celebração de um contrato, e estabeleça a validade ou não desta no ordenamento brasileiro a partir da aprovação do Novo Código Civil. 162FGV DIREITO RIO DANILO DONEDA Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná (1995), Mestre em Di- reito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1998) e Doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2004). Atualmente é professor do mestrado da Faculdade de Direito de Campos, do bacharelado em Direito da UniBrasil, e de diversos cursos de especialização. Foi pesquisador visitante na Università degli Studi di Camerino e na Autorità Garante per la Protezione dei Dati Personali, ambas na Itália. É consultor do Ministério da Ciência e Tecnologia/ UNESCO e membro da Comissão de Comércio Eletrônico do Ministério da Justiça. Tem experiência na área de Direito Civil, atuando principalmente nos seguintes temas: direito civil, privacidade, bancos de dados, dados pessoais, direitoda in- formática e direitos da personalidade. TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS 163FGV DIREITO RIO TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS FICHA TÉCNICA Fundação Getulio Vargas Carlos Ivan Simonsen Leal PRESIDENTE FGV DIREITO RIO Joaquim Falcão DIRETOR Sérgio Guerra VICE-DIRETOR DE PÓS-GRADUAÇÃO Evandro Menezes de Carvalho VICE-DIRETOR DA GRADUAÇÃO Thiago Bottino do Amaral COORDENADOR DA GRADUAÇÃO Rogério Barcelos Alves COORDENADOR DE METODOLOGIA E MATERIAL DIDÁTICO Paula Spieler COORDENADORA DE ATIVIDADES COMPLEMENTARES E DE RELAÇÕES INSTITUCIONAIS Andre Pacheco Mendes COORDENADOR DE TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO Marcelo Rangel Lennertz COORDENADOR DO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA – CLÍNICAS Cláudia Pereira Nunes COORDENADORA DO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA – OFICINAS Márcia Barroso NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA – PLACEMENT Diogo Pinheiro COORDENADOR DE FINANÇAS Rodrigo Vianna COORDENADOR DE COMUNICAÇÃO E PUBLICAÇÕES Milena Brant COORDENADORA DE MARKETING ESTRATÉGICO E PLANEJAMENTO
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