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ÉTICA E OUTRAS FORMAS NORMATIVAS DO COMPORTAMENTO HUMANO GILMAR ZAMPIERI A ética-moral se apresenta sempre como um conjunto de princípios, normas e preceitos obrigatórios em vista do bem viver. Essa dimensão da ética que se apresenta como um conjunto de prescrições e normas pode provocar confusão entre as normas éticas e outros tipos de normas (RELIGIOSAS, JURÍDICAS, SOCIAIS). Essa confusão é compreensível pois a vida comporta essa diversidade de relações ao mesmo tempo. Por questão didática, contudo, é importante distinguir e relacionar essas formas de comportamento humano que se inscrevem sob o signo da normatividade. Vamos tratar de três âmbitos normativos e relacionar com a ética e a moral, na tentativa de localizar identificações e diferenças entre os âmbitos. 1-ÉTICA E RELIGIÃO: Tanto a ética quanto a religião trata do que deve ser e o que não deve ser. A religião faz isso através de interditos que orienta a ação, tais como, não roubar, não matar, não levantar falso testemunho e também através de mecanismos de punição para toda a infração tida como proibida. E por que é proibida? Porque Deus assim estabeleceu e quem se atreve a não obedecer, Deus castiga e recompensa conforme a obediência. Isso a grosso modo. É claro que a religião cristã não é tão simples, pois no Novo Testamento o mandamento por excelência é o amor a Deus e ao próximo como a si mesmo. Mais do que uma ética do medo teríamos aqui uma ética positiva e libertadora. Mas o que permaneceu fortemente na ética religiosa são os interditos, as proibições (sobretudo ligados aos desejos sensuais) e os castigos. Para alguns só é possível pensar a ética se relacionada com a religião e como diz Dostoievski “Se Deus não existisse, tudo seria permitido”. A frase de Dostoievski parece querer negar a possibilidade de uma moral laica, uma moral que não tenha outra base senão Deus e por extensão, a religião. O “tudo seria permitido” sugere a impossibilidade de acordos, de normas, de princípios, de valores, de estabelecimento do que é certo e errado, o que é bom e o que é mau fora do vínculo religioso. Dito em outras palavras, a moral seria um subproduto da religião e fora dessa, aquela perderia estatuto de legitimação e fundamento. Ora, é certo que as religiões, todas elas, prescrevem normas morais ancorados em valores (mandamentos divinos) e estes ancorados em princípios legitimadores e, portanto, toda religião hospeda uma moral. Parece não haver desacordo quanto a isto. Mas haverá acordo quanto à afirmação de que a moral só tem sentido, validade, legitimidade e fundamento no âmbito religioso? Se isso fosse verdade estaríamos com um enorme problema nas mãos, afinal o nosso tempo, o tempo moderno e pós-moderno, inscreve-se sob o signo das autonomias regionais de sentido, ou se quiser, num pluralismo de base, inclusive religioso e só por um retorno autoritário poderíamos resolver o problema. Ou então, o que seria pior, estaríamos fadados a impossível tarefa de pensar para além do relativo, pois as normas morais religiosas só tem validade para a comunidades dos que creem. Ora, os tempos atuais requerem soluções morais globais visto que os problemas morais também são globais. Se só fosse possível pensar a moral e a ética no âmbito religioso então estaríamos num grande impasse. O impasse da exigência de uma ditadura de uma religião sobre as demais ou o impasse de ter que nos satisfazer com morais parciais, relativas aos que crêem. Mas os problemas morais dizem respeito não somente aos que professam algum tipo de fé religiosa, mas diz respeito a humanidade de forma geral, inclusive os agnósticos ou ateus. A tarefa está em aberto, mas desde a modernidade impõe-se que se pense a moral e a ética sob o critério da razão, mesmo que uma razão laica e não necessariamente ateia, mas uma razão ampliada e comunicativa em que a comunidade humana possa pensar-se e dar-se a si mesma, regras e normas morais com pretensão universal. Ou a moral se estrutura e se fundamente na razão ou então não haverá moral que não seja relativa. Portanto, se Deus não existisse, nem tudo seria permitido, pois a razão humana tem capacidade de estabelecer o que é melhor para viver e o que deve ser evitado, através de acordos racionalmente firmados. O grande Dostoievski estava errado, graças a Deus... 2- ÉTICA E DIREITO: Tanto a moral-ética quanto a lei-direito são normativos e regulam o comportamento humano. Há entre a ética e o direito elementos comuns, mas há também diferenças substanciais. O que há de comum? Tanto a ética quanto o direito estabelecem normas de conduta permitidas e proibidas. Ambas se apresentam como obrigatórias e imperativas a todos e sem exceção. O direito e a ética respondem a uma mesma necessidade social: regulamentar as relações entre os humanos visando a garantir a convivência e a coesão social. O direito, pela lei, efetiva uma norma moral e ética. Contudo, desse fundo comum advém diferenças fundamentais. As normas morais se cumprem através da convicção íntima dos indivíduos e, portanto, exigem uma adesão interior a tais normas. As normas jurídicas, por sua vez, não exigem esta convicção íntima ou adesão interna. Pode-se falar, por isto, da exterioridade do direito. O importante, no caso do direito, é que a norma se cumpra, seja qual for a atitude do sujeito (voluntária ou forçada) com respeito a seu cumprimento. No caso da aplicação legal, o que leva os indivíduos a seguirem a lei é totalmente irrelevante para a vivência em sociedade. O importante é que sigam a lei, se for por medo ou por convicção, isto pouco importa. Agora, do ponto de vista ético tudo se passa de outra forma. Não é nada ético cumprir a lei de trânsito apenas porque se tem medo da multa ou de perder a carteira. Isto não tem nada de ética, isto é prudência técnica. É bom que haja gente que tem medo da lei, ótimo, mais isso não faz das pessoas sujeitos éticos. O que faz a distinção entre a lei e a ética é, nesse caso, a convicção interior da prática da norma. Mas não só isso. Há leis que estão em conflito com a moral-ética e nesse caso, às vezes, em nome da ética é preciso desobedecer a lei. Não se está aqui falando de atitude fora da lei, como é o caso da violência gratuita, o crime organizado etc. O certo é que ética e lei não são sinônimos. O exemplo clássico dessa distinção encontra-se na tragédia grega na peça teatral de Sófocles intitulada Antígona (400 a.C). Rememoremos rapidamente a história. Antígona é filha de Édipo e Jocasta. Passou por todo o drama de saber que o pai tinha matado o avô (Laio), casado com a avó (Jocasta), e que, portanto, era neta e filha da mesma mulher. Édipo rei, seu pai, como desfecho de uma parte da tragédia vaza os olhos, foge para Colono acompanhado das filhas e depois morre. Após a morte de Édipo, Antígona retorna para Tebas. Dois de seus irmãos (Polinice e Etéocles) haviam lutado pelo poder em Tebas e mataram-se um ao outro na batalha decisiva. O rei que governa Tebas, Creonte, decide que um deles (Etéocles, aliado de Creonte na guerra) será enterrado com todas as honras, e outro será abandonado aos abutres, em cima duma lixeira. Antígona vai até onde está o corpo do irmão na lixeira e o retira, enterrando-o e prestando-lhe os últimos cultos. Obviamente todos ficam sabendo que isto aconteceu, mas não quem o fez, e o rei manda avisar que aplicará pena de morte contra quem se atreveu a desobedecer a sua ordem. A solução óbvia de Antígona seria não se acusar. Mas ela vai e se entrega. O óbvio seria pedir desculpas, mas ela não pede, ela disse que agiu corretamente. Creonte, o tio, diz que ela está conspirando para depô-lo. Ela diz que não e o que fizera foi seguir uma lei superior à lei dos homens, a lei divina e da tradição, essa lei é mais importante do que qualquer lei que um ser humano possa fazer. Notem a importância deste texto. É provavelmente a primeira vezna história que alguém diz: “mais importante que a lei do rei é outra coisa”, no caso a lei divina, ou a lei da consciência (ética) como se diz hoje. Isso significa que nós podemos enfrentar a lei humana, com base no valor mais alto. Antígona não recua e paga com a vida. Às vezes entre a lei e a ética há um conflito que pode ser trágico, ou pode ser frutífero se os que detêm o poder souberem incorporar valores éticos que mude inclusive a lei. 3- ÉTICA E TRATO SOCIAL (ETIQUETA): Há também outro tipo de comportamento normativo que não se identifica com o direito, com a moral e com a religião e que abrange as várias formas de saudação, o modo de uma pessoa dirigir-se a outra, de atender a um amigo ou a um convidado em casa, de vestir-se com decoro, bem como as várias manifestações de cortesia, o tato, a fineza, o cavalheirismo, pontualidade, etc. Trata-se, como vemos, de um sem-número de atos e comportamentos, regidos pelas respectivas regras ou normas de convivência que cobrem o vasto setor - muito extenso na vida cotidiana dos convencionalismos sociais ou do trato social. Qual a relação entre ética e trato social? São sinônimos? Em que se identificam e em que se diferenciam? Relação: 1) Tal como o direito e a moral, o trato social cumpre a função de regulamentar as relações dos indivíduos, regulamentação que contribui como a das demais formas de comportamento normativo - para garantir a convivência social no quadro de uma ordem social determinada. 2) As regras do trato social - como as normas morais - se apresentam como obrigatórias e o seu cumprimento é consideravelmente influenciado pela opinião dos demais. Contudo, por mais forte que seja esta coação externa, nunca assume um caráter coercitivo, isso é, não tem poder de lei. 3) Como acontece na moral, o trato social não conta com um dispositivo coercitivo que possa obrigar a cumprir as suas regras ou norma inclusive contra a vontade do sujeito. Estas, por exemplo, exigem que se responda à saudação de um conhecido ou que se chegue na hora marcada, mas nada e ninguém pode obrigar a cumprir esta obrigação por força. Isso não quer dizer que este não cumprimento fique impune, dado que a opinião dos outros o sanciona com a sua desaprovação. 4) As regras do trato social - como as do direito - não exigem reconhecimento, a adesão íntima ou seu sincero cumprimento por parte do sujeito. Ainda que se possa dar à regra uma íntima adesão, o trato social constitui essencialmente um tipo de comportamento humano formal e exterior. Por sua exterioridade, pode entrar em contradição com a convicção interna, como acontece quando se cumprimenta cortesmente uma pessoa que interiormente se detesta. Por esta razão, quanto mais externo e formal é o trato social tanto mais insincero, falso ou hipócrita se torna. Esta a razão porque, na avaliação do comportamento do indivíduo, desempenha um papel inferior ao da moral. Em resumo: o trato social constitui um comportamento normativo que procura regulamentar formal e exteriormente a convivência dos indivíduos na sociedade, mas sem o apoio da convicção e adesão íntima do sujeito (característica da moral) e sem a imposição coercitiva do cumprimento das regras (inerente ao direito).