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Eduardo Marcondes Flávio Adolfo Costa Vaz José Lauro Araujo Ramos Yassuhiko Okay Pediatria Básica Tomo I PEDIATRIA GERAL E NEONATAL Bases da Assistência à Criança Puericultura Saúde e Meio Ambiente Propedêutica: Sintomas e Sinais Pediatria Neonatal Aspectos Peculiares da Atenção ao Pré-Escolar e ao Escolar Adolescência Genética Distúrbios do Crescimento Distúrbios Psicológicos sarvier5 Teorias sobre Desenvolvimento Neuropsicomotor da Criança: Uma Revisão Crítica RAQUEL DIAZ DEGENSZAJN Constitui-se em um consenso o fato de que o ser humano cresce e presentado pelo seio, em um primeiro momento, e mais tarde deve- se desenvolve desde momento da concepção, atravessando um rá ser substituído por inúmeros outros objetos de satisfação. período de total dependência até atingir sua plena capacidade de A demanda também inaugura uma ruptura entre organismo e o autonomia. Convencionou-se chamar esse período de imaturidade sujeito, considerando que muito cedo na vida da criança ocorre uma de infância, etapa compreendida até o momento da adolescência passagem do registro biológico para o simbólico, que chamamos que, marcada por profundas transformações fisiológicas, prepara o pulsional. Em outros termos, que vai definir que um choro significa sujeito para a vida adulta. fome é a subjetividade da mãe; na medida em que o bebê mama, que marca, então, a fronteira entre a criança e o adulto? Seria a diante dessa interpretação, coloca-se em jogo uma resposta da cri- questão cronológica? domínio do raciocínio lógico? A responsabi- ança à demanda da mãe de alimentar seu filho. Nas relações huma- lidade, diante da lei e da justiça, ao assumir seus próprios atos? A nas, essa sutileza é fundamental, pois conhecemos inúmeros fenô- inserção no mundo produtivo, no mercado de trabalho? A possibili- menos patológicos que revelam um curto-circuito nesse jogo de de- dade de exercer sua sexualidade plenamente? Provavelmente, to- manda e contrademanda. dos esses pontos indiquem diferenças importantes entre que se É de fundamental importância papel da instância paterna, que convencionou denominar adulto, que nos levaria a crer que à crian- deve operar um corte na relação mãe-bebê, liberando-os para que ça resta desenvolver-se, ou seja, adquirir funções tais ao longo do possam, a partir de suas próprias falhas, buscar satisfação com au- tempo, que lhe permitirá tornar-se um adulto. tonomia. Esse ponto marca a entrada da criança no mundo social, À luz da psicanálise, ser humano torna-se um sujeito a partir da em que procurará, por meio de novos laços, trilhar seu caminho e sua inserção em um mundo simbólico, mediado primordialmente construir sua história. pela mãe ou por aquele que garantir sua sobrevivência e assu- Nesse sentido, o sujeito emerge como um efeito dessas marcas me sua condição de sujeito desejante, pela intervenção do pai ou simbólicas, que o antecederam no discurso parental, podendo res- por aquele que assumir 0 lugar de representante da lei e da ordem. ponder ou não à posição que lhe foi destinada: cumprindo as insíg- Essas duas funções, materna e paterna, são os operadores neces- nias familiares, rebelando-se, fazendo um sintoma. sários e suficientes para transformar o recém-nascido em sujeito. É por essa fundamentação que, em psicanálise, não compreen- Nesse sentido, não entendemos a criança como um "ser em desen- demos a criança como um ser em desenvolvimento. Na realidade, o volvimento", mas como um sujeito que se constitui ou não. que se desenvolve no humano são funções e, de fato, observa-se desenvolvimento é comumente definido como "as transforma- uma certa seqüência nessa aquisição. Para nós, é fundamental que ções globais que, incluindo crescimento (entendido como mudan- o pediatra inclua no seu entendimento sobre a criança que sua ca- ças pondoestaturais), a maturação e os aspectos psicológicos, con- pacidade de desempenhar essa ou aquela função se articula não duzem a adaptações cada vez mais flexíveis". somente aos aspectos maturativos, mas também ao lugar atribuído A partir do referencial psicanalítico, entendemos que bebê, à criança quanto ao desejo de seus pais. quando vem ao mundo, já tem lugar minimamente definido pelo de- Esse lugar permite ou não que a criança se situe diante do mundo sejo de seus pais, ele "é falado" pelo discurso familiar, muito antes de relações interpessoais e dos estímulos que seu meio lhe oferece. de ter acesso à linguagem. Por exemplo: será o primeiro filho de um A partir disso, ela pode adaptar suas condições maturativas e cogni- casal que tenta engravidar há anos; será fruto de uma gravidez não tivas ao que compreende como demanda vinda de fora e criar seu planejada de um casal que já não se entende mais; terá o nome de repertório próprio e singular. Exemplo disso reside no fato de que um tio querido, morto precocemente, e assim por diante. Qualquer cada conquista do desenvolvimento é acompanhada de uma vivência que seja a particularidade de cada família, quando bebê nasce, individual e familiar que estabelece marcas na história do sujeito. uma certa "rede" de marcas, que chamamos simbólicas, vem sendo Este capítulo visa a redimensionar, por meio das correntes mais tecida pelo desejo e pelo imaginário daqueles que o cercam. aceitas sobre desenvolvimento, os fenômenos observados ao lon- Contudo, recém-nascido, inacabado pela própria natureza, ne- go das diferentes idades da criança, bem como a articular conside- cessita que alguém possa conter seu mal-estar e garantir sua sobre- rações que podem ser úteis à clínica do pediatra. vivência. É no processo da maternagem que outro primordial se estabelece, permitindo vivências satisfatórias, quando alimenta, dá QUESTÃO HISTÓRICA banho, canta para embalar o sono do bebê, que se intercalam com momentos de desprazer insuportável, quando o bebê se manifesta Com o surgimento da escola estandardizada, no final do século XVII com choros e gritos, diante dos desconfortos que é incapaz de loca- e início do século XVIII, que propõe uma substituição do ensino do lizar (fome, frio, calor etc.). Portanto, às necessidades puramente espírito, das condições morais, pelo ensino das variáveis que permi- fisiológicas e situadas no corpo da criança é preciso que se acres- tem caracterizar os objetos, ocorre padronização dos conhecimen- cente uma demanda para que o sujeito emerja. tos a serem ensinados e transmitidos. Jerusalinsky sugere que nes- A demanda inclui uma suposição de que o outro pode dar algo se momento histórico ocorre nascimento das pré-condições ne- que falta ao bebê, no caso a mãe; refere-se a uma dimensão de cessárias para o surgimento de uma psicopatologia propriamente desejo, pois é preciso que à mãe algo também lhe falte para que ela infantil. Ora, a partir da construção de um saber sobre o sujeito su- busque algum tipo de satisfação no cuidado com seu filho e, final- posto normal torna-se possível identificar o que se desse mente, a demanda coloca um objeto em circulação na relação mãe- padrão e, portanto, formular o que seria psicopatológico em relação criança. A função desse objeto será fundamental para o estabeleci- aos desvios. Vale ressaltar que essa normalidade é obtida por meio mento do processo de subjetivação do recém-nascido, ele será re- de comparação com grupos, divididos por faixa etária, sexo, origem 36social etc., portanto, um indivíduo originário de Quadro 1.2 Desenvolvimento motor. medidas de comportamentos, habilidades e assim por diante. Esse Idade Desenvolvimento motor é o fundamento dos testes psicológicos que partem do normal para aferir a extensão das condutas desviantes. 4 semanas A cabeça oscila. Reflexo tonicocervical. Mãos fechadas Entretanto, conceito de criança não existiu desde sempre; se- 16 semanas Cabeça Postura simétrica. Mãos abertas gundo Sauret, "nomear a infância propriamente dita como uma eta- 28 semanas Senta-se, inclinando-se para a apoiando-se sobre da vida individual (...) é um efeito da ciência moderna e da revolu- as Agarra cubo, consegue segurar a bolinha ção francesa". A ciência moderna caracteriza-se pela máxima obje- 40 semanas Permanece sentada sem apoio. Engatinha. em pé tivação de seu objeto de estudo, o que equivale dizer que as bases Liberação grosseira da preensão da razão, fundada por Descartes, engendraram uma investigação 12 meses Caminha com Pega a bolinha com precisão da realidade calcada em uma dicotomia, para simplificarmos, entre 18 meses Caminha sem Senta-se Torre de três cubos causas e efeitos. Com o advento da revolução francesa e a conse- 2 anos Torre de seis cubos ruptura de classes sociais, surge uma nova visão sobre 3 anos Pára sobre um pé. Torre de dez cubos homem que se alia à ciência, na medida em que produz o que seria 4 anos um novo cidadão: livre e responsável, que se opõe à criança, de- Salta sobre um pé pendente e tutelada. 5 anos Salta alternadamente sobre cada pé No final do século XIX, surge, então, a "psicologia da criança" como prova do progresso científico, que, na tentativa de isolar uma etapa do desenvolvimento do ser humano, promove a ascensão da setor adaptativo (Quadro 1.3) refere-se ao uso que a criança criança como um objeto da ciência. poderá fazer de suas habilidades motoras, na medida em que faz adaptações aos objetos e situações. Na tentativa de alcançar e pe- DESENVOLVIMENTO E DIAGNÓSTICO gar um objeto de seu interesse, bebê necessita de coordenação visomotora e de um certo cálculo para segurar dito objeto e levá-lo A. Gesell. em seu monumental livro sobre diagnóstico do desen- à boca, para e chupar. volvimento, pesquisou sistematicamente o desenvolvimento normal da criança. A partir da observação da conduta normal, pôde adquirir Quadro 1.3 Desenvolvimento adaptativo. uma certa identidade no processo de desenvolvimento, que, segun- Idade Desenvolvimento adaptativo do ele, "determina os modos de reação tanto de crianças sãs e de- feituosas, das crianças bem dotadas e das menos dotadas, assim 4 semanas Olha a seu Persecução ocular incompleta como afetadas por lesão ou enfermidade". 16 semanas Persecução ocular correta. Olha o chocalho na mão objetivo de sua obra consiste em dar instrumentos para o médico 28 semanas Passa um cubo de uma mão para a outra em sua enfrenta os mais variados problemas relativos ao 40 semanas Combina dois cubos bem-estar evolutivo de crianças normais e anormais. Ou seja, cria re- 12 meses Solta um cubo dentro de uma vasilha cursos para que o clínico possa identificar e intervir, inclusive profilati- 18 meses Tira a bolinha do vidro. Imita uma linha com lápis camente, a partir do amplo e profundo conhecimento da normalidade. autor também dá a devida atenção aos defeitos e desvios do desen- 2 anos Torre de seis cubos. Imita uma linha circular volvimento, dedicando inúmeros capítulos a retardos, le- 3 anos Ponte com três cubos. Imita uma cruz cerebrais, prematuridade e precocidade, entre outros. 4 anos Constrói uma porta com cinco cubos. A escala de desenvolvimento de Gesell, publicada por volta dos Desenha um homem anos 1940, é uma fiel representante da corrente de pensamento da 5 anos Conta dez moedas época. Assim como Binet e Terman, sua inspiração reside na de um paralelismo entre o desenvolvimento neurológico e mental ou, ainda, que ser humano atravessa uma série de etapas evoluti- A avaliação da linguagem (Quadro 1.4), segundo Gesell, nos dá vas traduzidas objetivamente no aparecimento de novas condutas "a chave da organização do sistema nervoso central da criança". ou como um progresso das já existentes. comportamento psicoló- Entende a linguagem como toda forma de comunicação visível e gico baseia-se, portanto, na integridade de certas estruturas neuro- audível gestos, movimentos posturais, vocalizações, palavras, in- lógicas, que justifica a base orgânica da conduta. É importante cluindo também a e a compreensão do que as pessoas notar que estudo de Gesell se concentra mais na faixa etária com- dizem. Nesse campo, a influência ambiental é bastante visível, pois preendida entre 0 e 3 anos de idade (alguns autores indicam até os trata-se de uma função socializada que requer um meio favorável, 5 enquanto Terman e Binet se dedicam à faixa etária poste- mas depende da existência e do estado das estruturas corticais e rior, de 3 anos em diante. sensoriomotoras. Essa seqüência evolutiva segue uma ordem rígida e determina- da, pois, ao se supor que exista uma relação de causa e efeito entre Quadro 1.4 Desenvolvimento da linguagem. estrutura neurológica e conduta, toda alteração orgânica será refle- Idade Desenvolvimento da linguagem tida no comportamento. A proposta do teste indica a possibilidade de se detectar a integridade desse estado estrutural. 4 semanas Pequenos ruídos guturais. Atende ao som da compainha A originalidade de Gesell consiste na divisão da conduta do bebê 16 semanas Murmura. Sorri. Vocalização social em quatro setores diferentes: motor, adaptativo, linguagem e socia- 28 semanas Lalação. Vocaliza e escuta as próprias vocalizações bilidade, que evoluem com relativa independência e ao mesmo tem- 40 semanas Diz uma palavra. Atende seu nome po conservam uma unidade fundamental. 12 meses Diz duas ou mais palavras A conduta motora (Quadro 1.2) representa um campo particular- 18 meses Jargão. Nomeia desenhos mente interessante para o médico, devido às implicações neurológi- 2 anos cas diversas e porque essa capacidade consiste em um ponto de Usa frases. Compreende ordens simples partida natural para a avaliação do desenvolvimento. Exemplo disso 3 anos Usa orações. Responde a perguntas simples abrange dos grandes movimentos corporais, como rolar, sentar-se e 4 anos Usa conjugações e compreende preposição caminhar, às formas mais delicadas de preensão. 5 anos Fala sem articulação infantil. Pergunta: por quê? 37Por último, setor da sociabilidade (Quadro 1.5) consiste nas rea- gem daí, onde sempre falta algo. Do lado da criança, para que a ções pessoais da criança diante da cultura social do meio em que mãe acredite ser capaz de suprir as necessidades de seu filho, e do vive. Gesell acredita que nesse âmbito, como em todos os outros, lado da mãe, que procurará satisfações outras, para além daquilo modelamento da conduta está determinado pelos fatores intrínse- que vive com seu bebê. Uma situação diferente seria a mãe que COS do crescimento. Como exemplo, cita o controle esfincteriano, vê seu filho como uma extensão de si mesma, destinando a ele uma que ocorre por exigências culturais do meio mas que sua aquisição posição de objeto, que vai tamponar suas próprias faltas. A essa depende, primariamente, da maturidade neuromotora. criança não resta outra alternativa, pois, aprisionada no desejo ma- terno e nas compensações que disso decorrem para ambas, não Quadro 1.5 Desenvolvimento da poderá advir como sujeito. No primeiro caso, temos, sucintamente, a Idade Desenvolvimento da sociabilidade construção de uma estrutura neurótica e, no segundo, uma estrutu- ra psicótica ou até mesmo autista. Esses referenciais nos parecem 4 semanas Olha rosto das pessoas que a observam muito mais importantes para a clínica, do que saber se a criança 16 semanas Brinca com as mãos e roupa. Reconhece a mamadeira. está dentro da "normalidade", como preconiza Gesell, em termos de Abre a boca para receber a comida suas habilidades. 28 semanas Brinca com seus pés e com brinquedos. Manifesta expectativa na hora de comer 40 semanas Brincadeira simples. Come uma bolacha sozinha PRIMEIRO ANO DE VIDA DA CRIANÇA 12 meses Ajuda a se vestir. Alcança os brinquedos. Come com Encontramos na literatura certa unanimidade em relação à impor- os dedos tância do primeiro ano de vida da criança. Alguns autores privile- 18 meses Usa a colher, derrama um pouco. Adquire controle giam aspectos de acordo com sua formação teórica, contexto de esfincteriano produção científica ao qual pertencem e a articulação particular que 2 anos Pede para fazer cocô e xixi. Brinca com bonecos a experiência prática fornece a cada um que investiga o assunto. 3 anos Usa bem a Calça os sapatos Para Spitz, a interação da mãe com o bebê fornece os elementos 4 anos Consegue lavar e enxugar o rosto. Dá recados. para a construção das relações objetais; para Melanie Klein, os con- Brinca em grupo flitos intrapsíquicos seriam substrato para o desenvolvimento do 5 anos Veste-se sem ajuda. Pergunta significado das palavras aparelho mental; Piaget acredita em uma evolução do pensamento infantil que se origina nos reflexos fortuitos e difusos do recém-nas- cido. Esses autores sofreram influências de diversas teorias oriun- A técnica do exame consiste em pequenas provas com o uso de das de campos distintos da época, como a Psicanálise postulada materiais simples, como cubos, chocalho, livro infantil, apresenta- por Freud, a a Biologia, entre outros, e seus trabalhos fo- dos à criança de acordo com sua faixa etária, bem como interrogató- ram produzidos dos anos 1930 em diante. Do ponto de vista do estu- rio dirigido à mãe ou ao responsável. A anotação de todas as habili- do da maturação psicomotora, encontramos inúmeros grupos perten- dades observadas durante a avaliação ou referidas pela mãe são centes às diversas escolas de Neurologia. Para não nos estendermos convertidas em pontos positivos, que serão agrupados em cada se- demais sobre essas diferenças, faremos algumas escolhas, visando a tor correspondente. quociente de desenvolvimento (QD) é a rela- transmitir possibilidades de análise e reflexão para o pediatra que in- ção entre a idade de desenvolvimento, apurada no teste, e a idade vestiga a questão do desenvolvimento de seu pequeno paciente. cronológica, multiplicado por 100. Por exemplo, a criança realizou tarefas compreendidas na faixa dos 12 meses, embora tenha 16, AS BASES NEUROLÓGICAS seu QD 75. É possível estabelecer um QD para cada setor em DA MATURAÇÃO PSICOMOTORA casos nos quais ocorrem grandes discrepâncias, e a análise deve Inicialmente, devemos fazer uma distinção entre desenvolvimento e ser qualitativa, pois o QD total não expressaria a realidade do de- maturação, pois primeiro articula aspectos neurológicos com pro- sempenho da criança. Os resultados obtidos na faixa entre 70 e 130 cessos psicológicos, enquanto segundo se refere ao ponto de vis- são considerados dentro da normalidade. ta puramente orgânico. Cabe, neste momento, um comentário sobre as premissas que Segundo Illingworth, a maturação "constitui um processo contí- envolvem teste de Gesell e uso clínico que se pode fazer do QD. nuo desde a concepção até a idade adulta". A maturação neurológi- Primeiramente, as idades-chaves que aparecem nas tabelas em ca compreende os processos de comportamento das estruturas do que o desenvolvimento é subdividido por setores revelam um refe- sistema nervoso central (SNC) e neuromusculares, incluindo pro- rencial puramente cronológico, marcado por atitudes posturais as cessos de maturação bioquímica, e, portanto, aperfeiçoamento duas primeiras referem-se ao fato de a criança permanecer deitada, dos sistemas de interconexão que resulta em coordenações cada as duas seguintes relacionam-se à posição sentada, depois à posi- vez mais complexas. Sabemos que, apesar do determinismo gené- ção ereta e dos 2 aos 5 anos a criança estaria numa faixa pré-esco- tico regular ritmo e a direção desses processos, certas condições lar. Ora, do ponto de vista das capacidades e das etapas atravessa- adversas do meio, seja ambiental, seja de estimulação, influem no das durante a infância, esse parâmetro é, no mínimo, pobre e insufi- curso desses processos, modificando funções e até mesmo estrutu- ciente para determinar o quanto o sujeito está apto a exercitar plena- ras. Seria errôneo, portanto, atribuir à bagagem biológica um papel mente seu potencial. Conforme foi destacado, Gesell representa um preponderante no futuro desempenho do indivíduo, já que se faz pensamento de sua época bastante influenciado pela psicometria, necessário articular a esses processos certa adequação de estímu- ou seja, o estabelecimento das relações entre os fenômenos e a los que vêm "de fora". Inúmeros estudos demonstram também catalogação em medidas padronizadas. quanto a plasticidade funcional do SNC e sua capacidade compen- Embora seja evidente que certos comportamentos são espera- satória tornam menos sombrios os prognósticos de lesionados cere- dos e correspondam a determinadas faixas etárias, eles não nos brais, graças aos avanços no trabalho precoce de reabilitação. dizem nada sobre o sujeito-criança que postulamos: alguém situado em seu desejo, graças a um outro, representado pela mãe. É preci- Tono muscular é definido por Barraquer Bordas como "um esta- que se suponha um sujeito no bebê, não somente para que a do de tensão permanente dos músculos, de origem essencialmente mãe consiga se relacionar com ele, mantendo sua própria identida- reflexa, variável, cuja missão fundamental tende ao ajuste das pos- de, mas para que se construa um campo nas inter-relações que sur- turas locais e da atividade geral, e pelo qual são possíveis de forma- 38semiológica diferentes propriedades. Cabe deduzir dessa definição No bebê do primeiro trimestre, a conduta está regida por refle- que o tono, ainda que se expresse nos músculos, é uma atividade XOS arcaicos que se tornam evidentes em suas atitudes posturais. regida pelo SNC". A importância de se conhecer essa qualidade Em decúbito dorsal, acordado e alimentado, faz movimentos, apa- existente desde o início da vida da criança reside no fato de que a rentemente desordenados, que obedecem às mudanças tônicas qualidade da função muscular constitui um fator essencial no estado assimétricas dos músculos do pescoço e aos impulsos flexores e neurológico atual do lactente, mas também na futura integridade de abdutores. A posição assimétrica da cabeça produz assimetria pos- toda a função neurológica. tural dos membros, predominando a extensão nos do hemicorpo presente capítulo não se destina a aprofundar esse tema, pois para qual a criança parece olhar, geralmente os membros se man- exame semiológico do tono pode ser pesquisado segundo a orien- têm simetricamente aduzidos e flexionados. A posição em decúbito tação clínica necessária ao caso; entretanto, vamos destacar al- dorsal favorece os primeiros indícios da comunicação: a fixação guns aspectos que podem contribuir na construção de um diagnós- ocular, sorriso social e os primeiros balbucios. Somente no final do tico sobre desenvolvimento. terceiro mês observa-se controle da cabeça. Em decúbito ventral, tono muscular evolui no decurso dos meses, mantendo certo os membros superiores ficam aproximadamente simétricos: flexio- paralelismo entre suas várias propriedades, particularmente entre nados, aduzidos, os cotovelos dirigidos para trás, as mãos e os pul- passividade e extensibilidade. Depois do parto, recém-nascido SOS apenas em contato com plano de apoio. Essa posição facilita costuma apresentar tono muscular aumentado, que acompanha- ao lactente sugar os dedos da mão que constitui as primeiras expe- rá durante os meses subseqüentes. No final do terceiro mês come- riências orais não-alimentares. Segundo essa autora, a comunica- ça uma progressiva queda do tono que deverá deter-se após o ção visual, auditiva e emocional da criança com as pessoas que a primeiro ano de vida. Nessa fase, ocorre hipotonia fisiológica de- rodeiam deve estar estabelecida nesse trimestre. terminante do pé plano e do geno valgo da criança que inicia a No segundo trimestre, bebê mostra-se mais sereno e pacífico, marcha. sorri e tem interesse especial pelo rosto humano, começa a perce- "A atitude postural do bebê determina uma atitude geral diante de ber a existência de um mundo a sua volta, Os membros superiores e si e do mundo que rodeia, influi e rege aspectos de sua conduta e inferiores e a cabeça permanecem na linha média, permitindo explo- continuará influindo ao longo de sua infância, auxiliando na modela- rações e movimentos das mãos e pés que auxiliam a construção de gem de sua personalidade. (...) As emoções se expressam através sua configuração corporal. Graças à fixação ocular e ao domínio do de sutis variações do tono e atitudes. (...) Constitui a maneira de movimento da cabeça, o bebê é capaz de acompanhar movimento expressão fundamental da criança pequena, cujos vestígios persis- de objetos, no sentido transversal em até No decorrer desse tem por toda a vida como elementos auxiliares de atitude e de ex- trimestre, pode-se estabelecer comunicação verbal com o bebê, pressão corporal." que emite vocalizações com mais e responde aos estí- Concluindo, a qualidade tônica da criança e sua atitude postural mulos verbais, associados à presença do rosto humano. Sorri prefe- determinam como é vista pelos outros, mas também expressam rencialmente para a mãe e solta grandes gargalhadas nas brinca- como ela está assimilando os dados que lhe proporcionam sua deiras corporais. Pouco depois dos 5 meses, com progresso da proprioceptividade para a elaboração da imagem de seu corpo, em coordenação visomotora e com a aquisição da habilidade unima- outros termos, ela diz algo sobre como percebe e sente o mundo. nual, bebê pode alcançar objetos, desde que estejam no seu cam- po de visão. O alinhamento cefalocorporal consiste na rotação late- Coordenação dos reflexos os reflexos são reações automá- ral da cabeça e conseqüente giro do tronco para o decúbito lateral, ticas desencadeadas por estímulos que impressionam diversos essa possibilidade de rolar sobre seu próprio eixo oferece ao bebê receptores e tendem a favorecer a adequação do indivíduo ao am- inúmeras formas de exploração do seu meio. A diminuição do tono biente. Enraizados na filogenia, provêm de um passado biológico muscular permite ao bebê ver os seus joelhos e pés, bem como remoto e acompanham ser humano durante a primeira idade, ampliando a percepção de seu corpo. Na posição sentada, alguns durante toda a vida. À medida que evolui a maturação do a cabeça já não oscila, mas o tronco tende a cair para a frente; no sistema nervoso, as respostas automáticas desencadeadas por final do segundo trimestre, tenta um escoramento bilateral em tripé, reflexos diminuem, o que prova surgimento do componente corti- que geralmente não se sustenta. Em decúbito ventral, os antebra- cal. Os reflexos constituem "um todo harmônico, estando intima- firmemente e permitem à criança utilizar as mãos mente imbricados entre si e inter-relacionados uns com os outros. para pegar objetos. Suas respostas dependem das necessidades fisiológicas do mo- bebê do terceiro trimestre já possui consciência de si mesmo mento em que são solicitados, do estado emocional da criança e, e é capaz de diferenciar as pessoas familiares das estranhas, come- por certo, também das características do contexto ambiental". ça a reagir a estas com choro muito angustiado. As mãos lhe são Assim como outros aspectos do processo da maturação, atual- bastante conhecidas e funcionam como ferramentas para explorar e mente os reflexos são compreendidos segundo um conceito dinâmi- manipular meio que o circunda. Em decúbito dorsal, pode forçar a CO, em que se desenvolvem, se modificam, se adaptam às circuns- elasticidade de músculos e ligamentos, a ponto de segurar os pés tâncias do momento, do meio, da saúde geral da criança, bem como com grande facilidade, chupando-os com grande prazer. Nessa a sua idade e características particulares. Podem informar sobre o fase, a criança tem elementos suficientes para estruturar um esque- estado atual e os elementos prognósticos quanto ao ritmo do desen- ma corporal, ainda que fracionado; possui boa noção das "partes" volvimento psicomotor. que a compõe. Sua posição preferida é a sentada, aos 6 meses Os reflexos podem ser agrupados em arcaicos, como de Moro e recorrerá às mãos abertas, que funcionarão como apoio, e no final tônico-cervical assimétrico; superficiais, como os reflexos orais (de desse trimestre conseguirá manter-se sentada livre de qualquer au- busca, sucção e deglutição); musculares profundos, como o patelar; xílio. A liberação das mãos permite a exploração do próprio corpo e condicionados, como "pestanejar à ameaça". pés, joelhos, genitais e a manipulação de objetos. Sua preensão é L. Coriat propõe uma abordagem do primeiro ano, dividindo-o em do tipo "grasping": aproximação com mãos excessivamente aber- quatro trimestres, com os quais é possível estabelecer uma relação tas, com os dedos hiperestendidos, fazendo um movimento como o entre progresso estrutural do sistema nervoso e evolução de fun- de varrer. No final dessa etapa, ocorre um aperfeiçoamento do tipo ções. Apresenta, por outra parte, três seqüências psicomotoras: pinça, só que radial inferior, sem oposição do polegar. Geralmente, a desenvolvimento das atividades manuais, as reações de equilíbrio e criança passa 0 objeto de uma mão para a outra, depois de agarrá- 0 conhecimento do corpo. lo, acabando por levá-lo à boca, quando efetua outro tipo de contato 39e conhecimento, além do tato. É que bebê busque for- qüência trata do conhecimento do corpo, baseada no conceito de mas de deslocamento, como arrastar-se, engatinhar, mover-se sen- esquema corporal como a imagem inconsciente que a criança tem tado, pois nesse período se desenvolvem as habilidades equilibra- de seu corpo. As vivências corporais do lactente são sempre parci- tórias, numa combinação entre membros superiores e inferiores. A ais e dependem fundamentalmente daqueles que o rodeiam. Até os próxima aquisição postural da criança será manter-se ereta por con- 6 meses, o lactente não tem consciência de sua individualidade nem ta própria, utilizando as mãos para apoiar-se nos móveis, habilidade noções dos planos de espaço em que vive; depois do segundo se- que começa a ser exercitada por volta dos 8 ou 9 meses. Sua lin- mestre, já esboçou um esquema fragmentado e incompleto do seu guagem oral adquire contornos mais precisos: articula sons linguo- corpo, baseado nas primeiras vivências prazerosas e desagradá- dentais e sílabas vão ter algum sentido de nomeação; por veis, em suas próprias explorações e em suas conquistas. meio de gestos, movimentos e sons entra em comunicação fluente De fato, como já foi amplamente exposto em outro capítulo, du- com as pessoas do seu meio. rante primeiro ano de vida da criança estrutura-se a subjetividade, Durante quarto trimestre, o bebê está aprendendo a deslocar- que servirá de base para todos os desdobramentos posteriores: se, mudando de decúbito com grande facilidade, passando para a capacidades intelectuais, escolhas amorosas, relacionamentos so- posição sentada, na busca do que lhe interessa e desperta sua ciais etc. atenção. Pode dar alguns passos, de forma independente, até fi- Compreendemos essa estruturação como efeito de uma articula- nal dessa etapa, revelando uma aprendizagem que abrange suas ção entre os três registros: simbólico, imaginário e real. A dimensão condições de equilíbrio, um certo impulso em se arriscar e a forma simbólica refere-se a um sistema de lugares, marcado pela história como é estimulado pelos adultos. Nesse período, a criança começa particular de cada um no âmbito do discurso familiar ao qual perten- a adquirir noções de espaço e tempo, fundamentais para situar-se ce, mas referenciado numa cultura. É composto por marcas, chama- no mundo. Ao deslocar-se ou quando joga objetos (vertical ou hori- das de significantes, que se encadeiam em séries, únicas para cada zontalmente), adquire consciência da distância que a separa daqui- um. Essas cadeias e seus entrecruzamentos (como uma rede na lo que busca, bem como, por meio de brincadeiras entre móveis e vertical e na horizontal) compõem o inconsciente, que tem, portanto, "cantos" da casa, pode ter uma idéia de profundidade. Graças ao uma materialidade composta de significantes. imaginário é, de estabelecimento da permanência de objeto (experiência na qual a certa forma, condicionado pelo simbólico, pois toda a construção de criança tem uma imagem mental, portanto, simbolizada de algo que "imagens" que constituem a história do sujeito é feita pela posição desapareceu do campo acessível de seus sentidos que a faz procu- subjetiva em que ele se encontra. A percepção da realidade, seja de rar um brinquedo que atrás do sofá ou se alegrar com o retorno objetos ou situações, será sempre interpretada pelo indivíduo, para da mãe) por meio de recordações, diferencia antes do depois, além de sua concretude. Um bom exemplo disso é o de dois irmãos, compondo as bases da noção de tempo. Até o final dessa etapa, a frutos dos mesmos pais e que compartilham inúmeras vivências du- criança será capaz de pegar objetos pequenos, utilizando a pinça rante sua infância, que vão registrar lembranças distintas, que darão superior polegar e indicador estendidos com grande precisão. consistência imaginária ao universo simbólico em que estão inseri- Também nessa fase, tono extensor ganha relevo, à medida que dos. O imaginário também diz respeito ao caráter ilusório, engana- funciona não só como antagonistas do tono flexor: a criança pode dor, que é uma propriedade da imagem. Finalmente, o real não pode manter-se ereta pela ação dos músculos extensores do dorso e dos ser confundido com realidade, pois esta já é algo "filtrado" pelo sujeito, membros inferiores. Pode lançar objetos, voluntariamente, porque graças ao simbólico, que nomeia, interpreta, dá sentido. O real é que os músculos dos dedos realizam uma nova ação que consiste em é, de certa forma, inapreensível, impossível para o sujeito captar. soltar que segurava, pela atividade antagonista (antagonista dos Entendemos, assim, que as funções surgem no bebê como efeito flexores que se relaxam e dos extensores que se contraem). O jogo de uma inscrição simbólica em seu corpo. Essa operação é realiza- segurar-soltar será automático no início, evoluindo para um contro- da pela mãe que distingue um certo contorno entre ele e o mundo, le. Metaforicamente, consiste em uma base importante das relações ao definir suas necessidades pela palavra, insere o bebê num cam- outros, pois o bebê poderá estabelecer trocas sociais por po simbólico. Isso explica porque o bebê, mesmo satisfeito, chora e meio de dar e receber objetos. Com 1 ano, a criança denomina obje- "pede" colo da mãe, demonstrando que sua satisfação vai além do tos e familiares com sílabas ou sons onomatopéicos, é capaz de registro real (fome Muito precocemente, o sujeito hu- compreender expressões rotineiras, como: Vamos trocar a fralda? mano é capturado pelo desejo (sempre representado pela mãe, Onde está seu irmão? Exercita a preensão bimanual e simétrica a num primeiro momento) que se define por uma busca incessante de um nível superior, como bater palmas. Seus interesses se ampliam: objetos que apaziguem seu mal-estar. Nesse sentido, simbólico participa ativamente da alimentação, detém-se e observa a algazar- pode inibir ou precipitar as funções do bebê, comprometendo, mui- ra de crianças maiores, escuta com atenção uma nova música e tas vezes, "curso natural" do desenvolvimento. Como explicar os assim por diante. bebês vomitadores ou insones, quando os substratos orgânicos não A partir dessa divisão em trimestre, Coriat apresenta três evidenciam qualquer anormalidade? Uma intrusão no ritmo dos flu- cias na maturação psicomotora, que ocorrem ao longo do primeiro XOS do bebê, em que a mãe é a principal regente, pode revelar sinto- ano de vida, de forma simultânea. A primeira refere-se ao desenvol- mas, tratados habitualmente com medicações e condutas, que des- vimento da mão, que encerra claramente "a característica da matu- consideram esse aspecto. ração neuropsíquica: progresso no sentido do proximal ao distal, a Embora seja incontestável a importância das bases neurológicas evolução do reflexo ao cortical e do inconsciente ao voluntário, por para que a maturação evolua, isso não representa qualquer garan- meio de exercitação e superação desses reflexos e da organização tia para que o sujeito surja. Ele é antecipado pelo discurso parental, da conduta". A segunda diz respeito às reações de equilíbrio. Sabe- como alguém que vai ocupar um lugar, ele tem uma corporeidade mos que bebê é suscetível às modificações bruscas de posição e pela sua existência, mas algumas operações devem ocorrer para que aparelho labiríntico, órgão central do equilíbrio, mieliniza-se que a subjetivação se efetue. precocemente, muito antes que todos os núcleos dos nervos crania- Durante primeiro ano, o bebê necessita que alguém exerça a nos. "A maturação das reações de equilíbrio requer um conhecimen- função de mãe simbólica, ou seja, que transforme as necessidades to do próprio corpo, através do exercício dos reflexos labirínticos e, fisiológicas dele em demandas dirigidas a ela, supondo um sujeito em geral, de toda a dotação reflexa, assim como do adequado acú- que tem falhas, É necessário que essa mãe possa se alternar em mulo de impressões recebidas desde os receptores periféricos que presença e ausência, no sentido de permitir a criação de um interva- permitem elaborar um esboço do mundo circundante." A terceira se- lo, no qual a criança poderá buscar outras formas substitutivas de 40satisfação (chupar dedo, sonhar etc.). A partir dos 6 meses, essa partir do qual irradia sua Para ele, haveria processos aná- função de nomear e interpretar que ocorre com o bebê e de ofere- logos no desenvolvimento psíquico do bebê com os concomitantes cer os objetos de satisfação será superada pela consistência de pontos nodais críticos. Esses pontos críticos são de importância fun- uma mãe real, que passará a ser vista pela criança como possuido- damental para a progressão ordenada e livre do desenvolvimento ra de tudo que ela precisa. Nesse momento, um jogo imaginário se da criança. De outra parte, se a consolidação do organizador fracas- estabelece entre mãe e bebê e as trocas entre eles estarão carrega- sa, desenvolvimento é interrompido, embora a maturação conti- das de uma ilusória complementaridade, em que a demanda de um nue em seu ritmo constante e determinado, conforme sua tendência visa a suprir o desejo do outro, impedindo o aparecimento da falta. hereditária. Tem-se, então, um desequilíbrio que revelará descom- Isso deverá sofrer um abalo posteriormente, quando a entrada do passo entre os processos de maturação e de desenvolvimento. pai desestabiliza uma certa harmonia conquistada, mas que libera primeiro organizador da vida do bebê consiste na reação de cada qual ao romper com a dependência subjacente a essa etapa. sorriso, por volta do terceiro mês, como resposta ao estímulo da face humana. Esse sorriso é primeira manifestação comportamen- tal, ativa, dirigida e intencional, portanto, um primeiro indicador da o DESENVOLVIMENTO DAS RELAÇÕES OBJETAIS transição da completa passividade do bebê para o início do compor- tamento ativo. Essa resposta da criança indica, também, progres- Com o objetivo de investigar estágio não-verbal da vida humana, da maturação e do desenvolvimento, pois lhe permite coordenar R. Spitz elaborou um instigante estudo baseado em observações de algo de seu equipamento somático para utilizá-lo na expressão de bebês. Iniciado em 1935, publicou uma primeira versão resumida uma experiência psíquica. Essa experiência revela o estabeleci- em 1954, que foi reeditada nos anos 60, acrescentada de colabora- mento do primeiro precursor do objeto, com conseqüente início de ções. mérito de sua pesquisa e de suas descobertas evidenciou- um ego rudimentar e uma certa capacidade do bebê em suportar a se pelo acolhimento em diversos Alguns de seus conceitos frustração advinda da não-satisfação imediata das suas necessida- são amplamente utilizados, inclusive na anamnese pediátrica, em- des, intervindo, portanto, o princípio da realidade. bora sem a fundamentação necessária para que se compreenda Outra mudança decisiva no comportamento do bebê em seu rela- alcance de suas formulações. cionamento com os outros ocorre por volta do oitavo mês, quando Spitz defende a idéia do recém-nascido como um ser em estado diante de um rosto estranho reage com veemência, chorando e pro- inicial indiferenciado e de desenvolvimento lento e contínuo das fun- testando a qualquer tentativa de contato. A essa manifestação con- ções, impulsos e estruturações sucessivas, ou seja, de processos vencionou chamá-la de ansiedade do oitavo mês, que correspon- psicológicos que emergem progressivamente dos protótipos fisioló- de a uma resposta à percepção do bebê de que a face do estranho gicos que lhe são subjacentes. Acredita na diferenciação do bebê a não é igual aos traços de memória da face da mãe. Ou seja, um partir de dois processos distintos: maturação, como desdobra- objeto da percepção no presente é comparado com os traços de mento de funções inatas das espécies, que emergem no curso do memória do passado. Essa manifestação marca um estágio peculiar desenvolvimento embrionário ou que aparecem após nascimento, no desenvolvimento da organização psíquica, pois no confronto do como tendência, e se tornam manifestas nos estágios posteriores de estranho com que ficou memorizado, reconhecido como diferente, vida; e desenvolvimento, como a emergência de formas, de função será imediatamente rejeitado pela criança. Há evidências, portanto, e de comportamento, que constitui o resultado de interações entre de que bebê estabeleceu uma consistente relação objetal, em que organismo, de um lado, e ambiente interno e externo, de outro. a mãe ocupa lugar de todo o seu investimento de amor. Em termos Baseado nas proposições de Freud, foi influenciado, porém, pela de ego, ocorre franco progresso, pois essa capacidade do bebê re- corrente norte-americana denominada "Psicologia do ego". De acor- vela funções como julgamento e decisão, remetendo essa instância do com essa orientação, não existiria ego no recém-nascido, enten- psíquica para níveis mais elaborados de relação com o Como dido como um todo também não haveria linguagem desse avanço, verificam-se inúmeros desdobramentos durante todo o primeiro ano de vida, bem como pensamento de funções da criança, como a compreensão que passa a ter da co- lico, pois os símbolos seriam contingentes à aquisição da lingua- municação social e as respostas que dá às proibições e às ordens. gem. que marca a diferença dessa corrente de pensamento é a Finalmente, o terceiro organizador postulado por Spitz consiste ênfase dada do ponto de vista adaptativo, ou seja, a explicação dos no aparecimento do "não", que ocorre por volta dos 15 meses, fenômenos psicológicos inclui, necessariamente, proposições que quando bebê já possui ampla capacidade de locomoção e certa se refiram a sua relação com o ambiente. autonomia para explorar ambiente. A mãe passará a lhe proibir Os determinantes que entram em cena para a boa evolução do uma série de ações, mediante gestos de proibição, uso da palavra bebê, do ponto de vista psíquico, seriam os fatores congênitos, isto ou da restrição física. A criança torna-se apta a reconhecer tais é, equipamento hereditário, as influências intra-uterinas e as que interdições por meio de um processo de identificação, ao revelar operam durante o parto e os fatores ambientais, representados pela imitação da mãe (o gesto com a cabeça que acompanha a pela relação mãe-filho. primeiro ano de vida, segundo Spitz, é atitude da mãe). "Para a criança, esse meneio de cabeça torna-se marcado por intensa simbiose, na qual se evidencia uma relação o símbolo e o duradouro da ação frustradora da mãe", re- assimétrica, pois, enquanto a mãe tem uma estrutura de persona- presentando o conceito de negação, de recusa, não sendo apenas lidade organizada e um ambiente amplo, bebê, sem estrutura, um sinal, mas um signo da atitude da criança. Do ponto de vista do não tem nenhum intercâmbio social, estabelecendo com a mãe um desenvolvimento mental e emocional da criança, essa manifesta- sistema fechado. ção demonstra que ela adquiriu a primeira capacidade de julga- Nessa perspectiva, não existe objeto nem relações objetais no mento e de negação e conseqüentemente implica uma substitui- universo do ocorrendo ou não um desenvolvimento ção da ação pela mensagem, fundando um tipo de comunicação, progressivo no primeiro ano de vida. Isso se realiza em três estágios que pode ser feita a distância. "não" expressa, também, o primei- distintos: pré-objetal (sem objeto), do precursor do objeto é do pró- ro conceito abstrato pela criança. Para Spitz, esse consiste no prio objeto libidinal. mais importante ponto crítico da evolução tanto do indivíduo como Spitz introduz conceito de organizador, emprestado da embrio- da espécie, pois marcaria a humanização da espécie. Representa logia, que se refere "à convergência de várias linhas de desenvolvi- "o início de trocas recíprocas de mensagens, intencionais, dirigi- mento biológico em um ponto específico no organismo do das; com advento dos símbolos semânticos, efetua-se a origem ou seja, um marco para determinado eixo de desenvolvimento a da comunicação verbal". 41Embora a importância dos estudos de Spitz seja incontestável, quando, por exemplo, elege um paninho ou um brinquedo como principalmente para os profissionais que se dedicam à infância, al- preferido para realizar rituais para dormir. Ele representa a mãe gumas observações merecem ser Em primeiro lugar, o pro- nesse objeto, apazigua-se com sua presença e tem certo controle cesso de diferenciação do bebê seria possível, segundo ele, a partir em manipulá-lo. Ao brincar de dar comida para adulto, reproduz dos processos de maturação e desenvolvimento, conseqüentemen- uma situação vivida, onde ele também simboliza algo. São com- te não existiria ego no e tampouco linguagem ou portamentos corriqueiros de bebês com menos de 1 ano de idade pensamento simbólico. e que demonstram uma certa apropriação do universo de repre- A proposta de "organizadores", como marcos no desenvolvimen- sentação, que nada mais é do que o simbólico. to, corresponde, de certa forma, aos três momentos de constituição da subjetividade, já referida várias vezes anteriormente, e váli- A CONSTRUÇÃO DA INTELIGÊNCIA do estabelecer uma relação entre elas. PELA CRIANÇA O bebê que responde ao outro com sorriso social faz porque já é capaz de discriminar minimamente seu semelhante, "preferencial- Piaget, fundador da "Epistemologia Genética", desenvolveu uma mente à mãe" implica certo reconhecimento daquela que antecipa teoria do conhecimento consciente como produto de uma estrutura uma vivência prazerosa para a criança. sorriso revela um compor- cognitiva, que vai do simples para o complexo, pelo exercício de tamento dirigido e, portanto, podemos pensar num esboço de discri- ações e por sua progressiva adaptação ao meio exterior. Edificou minação eu-mundo em curso no bebê. uma teoria sobre desenvolvimento da inteligência no ser humano, Essa experiência de identificação fundamental, durante a qual a valendo-se de conhecimentos de filosofia, sobretudo lógica e epis- criança faz a conquista da imagem de seu próprio corpo, é realiza- temologia, na tentativa de fazer uma interlocução com a biologia, da entre que Spitz denomina primeiro e segundo organizador, fonte primeira de sua formação acadêmica. Pesquisou a produção que coincide com a passagem da mãe simbólica para a mãe real, do conhecimento enquanto construção psíquica, mediante observa- conhecido como "estadio do espelho". Nessa fase (entre 6 meses ções desde nascimento da criança. Utilizou um mé- e 2 anos), a criança vive um processo "de identificação primordial todo clínico e não experimental, rompendo com uma tradição que com sua própria imagem que irá promover a estruturação do eu". animava as pesquisas psicológicas de sua época, representada Ocorre uma conquista progressiva da imagem de seu corpo, pois, pelas correntes psicométricas. até então, a criança viveu seu corpo de forma fragmentada e de- Para esse autor, "a construção da inteligência pode ser esquema- sintegrada a mão passa na frente de seu campo de visão, sem tizada como uma espiral crescente, voltada para a equilibração re- que ela tenha controle ou mesmo noção de que pode movimentá- sultante da combinação dos processos de assimilação e acomoda- la voluntariamente. ção". Em outras palavras, a ação humana é movida por alguma ne- Num primeiro momento, a imagem do espelho é percebida como cessidade que rompe com um equilíbrio. O sujeito, ao buscar formas a de um ser real, como outro semelhante, que indica uma confu- novas de se adaptar ao mundo, visa a resgatar um estado de equilí- são entre si mesma e outro e um assujeitamento da criança ao brio; entretanto, essas ações assumem uma qualidade diferente, registro imaginário. No segundo momento, ela percebe que o outro mais aperfeiçoadas, na medida em que atingem níveis cada vez do espelho é uma imagem, e já não procurará apossar-se dela mais complexos de organizações das experiências, dai a idéia da como na etapa anterior, pois pode distinguir a imagem do outro da "espiral crescente". realidade do outro. Finalmente, no terceiro momento, a criança reco- Alguns conceitos são importantes para compreender melhor a a si mesma na imagem refletida pelo espelho, o que lhe con- teoria piagetiana. Estruturas são o aspecto variável do desenvolvi- fere uma noção de totalidade unificada, que está representada pelo mento, ou seja, são os estados característicos de equilíbrio, mó- corpo. veis em função do processo de equilibração. Nos estágios de de- Existem várias que podemos extrair dessa expe- senvolvimento, formulados por Piaget, estruturas básicas apare- riência, principalmente toda a dimensão imaginária que funda a per- cem em cada etapa e se sucedem, marcadas por equilibrações cepção da criança sobre si mesma, Nessa idade, a criança não tem específicas cada estrutura se desenvolve até dar lugar à nova. condições de ter um conhecimento específico e integrado sobre Os processos que promovem a passagem de uma estrutura para seu próprio corpo, portanto, a imagem projetada antecipa uma uni- outra são denominados mecanismos funcionais, isto é, os aspec- dade que não é vivida como tal, mas que permite à criança identifi- tos invariáveis do desenvolvimento. Eles atuam constantemente car-se. Ora, a imagem óptica não é ela enquanto tal, mas será onde nos diferentes estágios, permitindo as transformações das estrutu- ela poderá reconhecer-se. Essa fase representa a pré-formação do ras em novas organizações. Conforme enfatizado, é a partir de um "eu" e "a dimensão desse reconhecimento prefigura, para sujeito dado novo que surge na criança a necessidade de resolvê-lo, isto que advém, na conquista de sua identidade, o caráter de sua aliena- é feito por uma ação nova; assim, sujeito modifica algumas de ção imaginária, de onde delineia-se desconhecimento crônico que suas ações existentes para dar conta do problema. conjunto de não cessará de alimentar em relação a si mesmo". Importante res- ações organizadas e que fazem parte de um "repertório" conheci- saltar que essa vivência será sustentada pelo olhar do outro, a mãe, do da criança é chamado de esquema. Graças aos esquemas for- que "investe" na imagem e não no filho real. Essa metáfora poderia mados é que ela pode agir e por meio da criação de esquemas se traduzir numa situação em que mãe e filho se olham através da novos poderá encontrar uma forma de equilíbrio diferente da ante- imagem refletida no espelho e onde todas as "ilusões" pudessem rior e, portanto, mais complexa. ficar ali depositadas a mãe, naquilo que ela projeta, e filho, naqui- Dois mecanismos funcionais entram em jogo para que a criança lo que ele deveria ser para corresponder à imagem. passe de um estado de equilíbrio para outro. Por meio da assimila- Concluindo, em relação à inexistência de ego e da linguagem no ção, a criança faz com que uma situação ou objeto novo se tornem primeiro ano de vida, vimos que a formação de uma identidade familiares à ela, de modo a incorporá-los ao seu organismo para ocorre precocemente e será um processo a ser vivido, de forma utilizá-los na sua adaptação ao mundo. Trata-se de uma assimila- reiterada, ao longo de toda a vida do sujeito. A idéia de que os ção do ambiente por meio de sua experiência com ele, seus es- "símbolos são contingentes à aquisição de linguagem" baseia-se quemas são ampliados em função de novas incorporações. Nesse no de que a criança só teria pensamento simbólico ao movimento de incorporação, alguns esquemas são modificados falar. símbolo é aquilo que representa algo para alguém, nesse ou criados, portanto, o outro mecanismo funcional complementar é sentido, o bebê é capaz de "emprestar" um significado a um objeto da acomodação, em que há combinação de esquemas ou sua 42modificação para resolver problemas que venham de experiências ção prática de espaço. Finalmente, a criança descobre também que novas. Assim, a nova experiência assimilada incorpora-se real- pode alcançar um objeto, utilizando um percurso diferente do dele mente ao sujeito, transformando-o, por meio de modificações de reversibilidade por compensação. Nessa fase, inicia-se a constru- esquemas, de forma que ele possa interagir com o mundo. ção de categorias básicas para a construção do mundo da criança: Esses aspectos referem-se ao desenvolvimento cognitivo, embo- objeto, espaço, causalidade e tempo. ra Piaget dê grande relevo aos desenvolvimentos afetivo e social, que se processam paralelamente ao primeiro. Para ele, sujeito, Período pré-operatório (2 a 6 anos) aparecimento da ativi- por meio de suas ações, constrói a inteligência ao mesmo tempo dade representativa, nessa fase, redimensiona a experiência, do que se constrói como sujeito social e afetivo. "O elemento que sem- ponto de vista qualitativo. Ocorre, simultaneamente, a reprodução pre é preciso focalizar na análise da vida mental é a conduta propria- de situações ausentes por meio da brincadeira simbólica e da imita- mente dita, concebida como um restabelecimento ou fortalecimento ção, sem a presença do modelo e da verbalização. A ação da crian- do equilíbrio. Toda conduta supõe instrumentos ou técnica: são os ça passa a ser socializada por meio da palavra; a internalização da movimentos e a inteligência. Mas toda conduta implica também mo- palavra lança bases para pensamento, como um sistema articula- dificações e valores finais, que são os sentimentos. Afetividade e do; as percepções motoras organizadas contribuem para a constru- inteligência são, assim, indissociáveis e constituem os dois aspec- ção no plano intuitivo. Esse período tem grande importância, na tos complementares de toda conduta humana." medida em que marca um ponto de virada para a criança, pois, pela A evolução do pensamento divide-se em períodos distintos que tentativa de reproduzir o que percebe no mundo, demonstra uma obedecem uma seqüência, nos quais se distinguem características transformação dos esquemas sensoriomotores. É pela representa- específicas, expressando uma etapa do desenvolvimento, que é a ção que o sujeito coloca algo no lugar do objeto, a palavra, por exce- extensão das precedentes. Convém destacar que cada período re- lência, indicando que está apto a fazer substituições. Tem-se, as- constrói as construções do período anterior, integrando-as como sim, surgimento do jogo simbólico, muito enfatizado por Piaget e conteúdo necessário à elaboração de novas formas de conheci- seus seguidores, como fundamental para a articulação entre ação e mento, ao mesmo tempo que abre possibilidades para apareci- pensamento. "Através do jogo simbólico, a criança assimila a reali- mento do próximo. Portanto, cada aquisição nova tem uma ligação dade, imitando-a por meio de esquemas simbólicos que forma e uti- com as conquistas que a precederam e prepara o terreno para os liza para representar os objetos", ela pode reconstruir o que expe- subseqüentes. Os quatro grandes períodos são: sensorio- rimenta em seu mundo, influenciada pelo egocentrismo, ou seja, motor, pré-operatório, operatório concreto e hipotético dedutivo. muito distante de uma objetividade conceitual. Exemplo disso são os tipos de raciocínio desse estágio, como animismo (atribuição Período sensoriomotor (0 a 2 anos) a inteligência começa a de vida aos objetos: bater no boneco porque ele foi malvado, por ser construída nesse período, que se caracteriza por uma amplia- exemplo). Pela interação da criança com o mundo físico e social e ção constante de esquemas. Inicialmente, a criança interage com graças aos processos de asssimilação e acomodação cada vez mundo por meio daquilo que dispõe, seus reflexos, como por exem- mais complexos, ela começa a se deslocar do centro de seu mundo plo sugar. Nessa atividade, ela forma esquemas sensoriomotores de ação e pensamento, sendo capaz de colocar-se no lugar dos ligados à ação de sugar, que se incorporam ao seu organismo, de objetos e do outro. Mas atribui aos objetos referências humanas, tal forma, que poderá estendê-lo ao chupar objetos, as próprias pois ainda não tem domínio da objetividade. pensamento intuitivo mãos, e mais tarde generalizando essa ação na coordenação viso- funciona como uma transição entre o estágio pré-conceitual para motora (quando agarra algo que vê e leva à boca). Olhar, ouvir e conceitual, preparando-se para o período posterior. As experiências manipular constituem atividades sensoriomotoras que se tornam da criança organizam-se de modo interiorizado, ou seja, enquanto cada vez mais complexas a partir dos reflexos (já relatados anterior- representações mentais, embora seu pensamento ainda seja bas- mente neste capítulo). A formação e a complexidade dos esquemas tante rígido, com interpretações e explicações fixas. Como ainda seguem uma sistemática baseada na repetição, no início, sem fina- não possui a reversibilidade como um operador que movimenta as lidade, para depois se repetir graças ao resultado obtido no ambien- possibilidades de ação, seu pensamento é entendido como pré- te externo. "Nesses dois momentos, a assimilação atua mais porque operacional. a criança está tentando incorporar novas situações externas a si própria. Posteriormente, o reflexo se repete, mas para atender a Período das operações concretas (6 a 12 anos) a presen- uma necessidade da criança. Então, deixa de ser reflexo e transfor- ça do mundo objetivo impõe-se cada vez mais à criança, cedendo ma-se em ação aprendida, mesmo que Diante de um lugar às formas de raciocínio baseadas em suas percepções. As problema assimilação que provoca desequilíbrio dos esquemas relações de causalidade entre eventos são justificadas utilizando-se organizados, a criança pode chegar a uma equilibração ao transfor- outras formas de raciocínio, como por exemplo transmutação, mar acomodação modificando os esquemas para solucionar baseada em características das substâncias envolvidas, e atomis- Esse processo denomina-se reação circular. Origina-se mo, fundamentado na composição de partes. Este último implica um daí egocentrismo, que consiste na peculiaridade como a criança processo dedutivo de composição para realizar operações. É impor- vê mundo sempre baseada nas suas próprias percepções, sem tante notar que a criança sempre procura estabelecer relações utili- nenhuma objetividade. Esse período caracteriza-se por uma inteli- zando os recursos que dispõe para tanto. As operações implicam gência prática, pois se desenvolve antes do aparecimento da lin- relações que ocorrem no pensamento. Para que a criança possa guagem, coordenando percepções e movimentos. Na experiência realizar ações em pensamento, o que entra em jogo são os esque- com os objetos, a criança constrói esquemas de ações puxar, ba- mas motores e perceptivos incorporados, que representam a estru- ter, encaixar que se constituem como ações que se coordenam tura simbólico-intuitiva enquanto representação psíquica do mundo. gradativamente, fundando as bases de todas as construções poste- "Para que as intuições se transformem em operações, elas passam riores. No final do período sensoriomotor, surge a primeira noção a constituir sistemas que se compõem e que são revistos". Uma fundamental de conservação, a do objeto permanente, ou seja, as brincadeira simples como colocar pedrinhas, uma a uma, dentro de coisas continuam a existir mesmo quando estão fora do alcance da um balde explicita uma operação, isto é, a reunião de partes a um visão da criança e ela as procura mesmo que não tenha observado todo. Seu pensamento efetiva as bases de conceitos: a ação de reu- seus Importante também é o aprendizado de que nir (adição) é uma simples operação, assim como várias reuniões uma ação pode ser feita e desfeita reversibilidade ligada à no- sucessivas equivalem a uma reunião (composição das adições), e 43as reuniões podem ser invertidas em dissociações (subtração). A dades biológicas ocorre, inexoravelmente, um desdobramento, pois operação de classificação divisão em classes, em que as partes não é possível uma satisfação plena. Disso se depreende um resto, formam um todo é inversa da composição reunião de partes um resíduo que insiste em retornar no próprio corpo, engendrando a para compor um todo e demonstram aspecto das ope- busca de satisfação por novos objetos, dando um caráter de parcia- que permite ao sujeito transformar as situações por meio de lidade à pulsão e ao objeto. Esse movimento caracteriza a inscrição operações mentais, conservando o todo, simultaneamente. A rever- de "bordas" no corpo, privilegiada pelas funções de alimentação, ex- sibilidade torna-se possível na medida em que a criança se descen- creção, higiene, respiração e perceptivas (ver, ouvir), entre outras, tra de si mesma para buscar relações nos objetos e naquilo que demarcando limites entre o externo e interno, também conhecidos realiza, ou seja, na sua própria ação, passando-a para pensamen- como zonas erógenas. O ordenamento dessas regiões corporais to. "Em sua forma mais alta de organização a inteligência pen- relacionadas a suas funções correspondentes é realizado pela ope- samento consiste na construção e na reconstrução de agrupamen- ração da mãe que "organiza" campo pulsional. tos que viabilizam as classificações e a construção de sistemas. Os Essa digressão permite acrescentar que no período sensoriomo- agrupamentos são esquemas assimiladores, de maneira que os tor, considerado ponto de partida para toda a evolução da elementos que surgem são assimilados por esses conjuntos de gência do sujeito, ocorre a determinação de uma lógica pulsional operações e organizados numa forma característica de equilíbrio." sobre os esquemas, concebidos por Piaget, e não contrário, como Comvém lembrar que, para a realização das operações, nesse pe- se poderia supor. a criança necessita do material concreto, isto é, dos objetos Em relação ao período pré-operatório, destaque dado ao surgi- presentes, passíveis de serem manipulados e experimentados por mento do jogo simbólico constitui um advento consistente e definiti- ela própria. quanto às possibilidades que se abrem para a criança na sua constante exploração do mundo. Entretanto, nessa fase, um fato Período das operações formais (12 anos em diante) é mais marcante deve ocorrer para que a criança possa advir como a fase em que ocorre a passagem crucial do pensamento baseado um sujeito, no sentido mais amplo do conceito, com atravessamento nas operações concretas para raciocínio A do complexo de Édipo e suas saídas possíveis. relação do adolescente com mundo passa a se fundamentar em Encerramos, assim, terceiro momento da constituição da subje- generalizações amplas e na construção de teorias, substituindo a tividade com a entrada do pai, na relação mãe-criança, em que cir- presença do concreto por princípios abstratos. Essa capacidade cula um terceiro elemento: a falta, representada pelo falo, enquanto de abstração se funda na organização das experiências sensorio- significante. Na realidade, muito cedo, nos cuidados que a mãe dis- motoras, que se desprende da percepção, pela via da representa- pensa à criança, coloca-se a questão de que algo falta em ambas ção mental, até atingir a qualidade abstrata formal. O adolescente para que possam relacionar-se, daí a variabilidade de objetos que é capaz de trabalhar com várias relações ao mesmo tempo, em se sucedem para "dar conta" dessa falha fundamental e estrutu- nível abstrato, adquirindo maior mobilidade, que lhe permitirá ela- rante. que vai marcar a entrada no complexo de é a tentati- borar hipóteses. Estas passarão a nortear pensamento do jo- va de responder ao enigma sobre que a mãe deseja, já que a partir vem, que não mais utilizará o método de tentativa e erro para solu- do segundo momento, mãe real, ocorre uma alienação da criança cionar problemas. ao que supõe ser o desejo da mãe, procurando colocar-se como objeto desse desejo, "por inteiro", digamos assim. Essa posição pe- Fica demonstrada, assim, de forma bastante sucinta, a tese cen- culiar é um efeito do "estadio do espelho", trabalhado anteriormente, tral da teoria piagetiana de que a inteligência se constrói por meio de que se conclui graças a uma conquista da criança de seu um processo de relações progressivas, a partir das quais os objetos próprio corpo, que se antecipa como totalidade no espelho. Ora, adquirem significações, podem ser compreendidos e que a base quem dá suporte a essa identificação é olhar da mãe, que esboça, das operações formais é a ação sensoriomotora. a partir de seu desejo, os contornos desse "eu". Portanto, corres- Essa teoria tem sido fartamente utilizada para fins pedagógicos, ponder a esse projeto será o desencadeante da trama edípica, pois, no sentido de direcionar as atividades escolares de acordo com a em seguida, a criança vai procurar no pai uma resposta para a ques- "vida mental" da criança. Tais conhecimentos também têm sido apli- tão sobre o desejo materno. Ela verá no pai um possível rival para a cados a técnicas psicopedagógicas, que visam a trabalhar as difi- inglória tarefa de satisfazer que falta à mãe. Qual será, então, a culdades de aprendizagem a partir de uma ótica mais global, consi- função dessa instância paterna? Será fazer intervir uma lei que situe derando a criança como sujeito do saber e sujeito do desejo. cada qual em seu lugar, rompendo uma distância imaginária, em Em relação ao período sensoriomotor, destacamos que as ações que se busca incansavelmente um tamponamento da falta. O pai da criança, pontuada por progressos significativos resultantes dos priva a mãe de colocar a criança no lugar de objeto e a lança para processos de assimilação e acomodação, segundo Piaget, sofrem um mais-além, ao obrigá-la a renunciar-se de sua posição. Este pai efeito de uma certa organização pulsional. Ou seja, há uma ênfase deve operar como um representante da lei, que interdita incesto e desse autor no aspecto biológico da inteligência como condição ne- que tem como consequência fato de que ele também se submete cessária ao desenvolvimento da inteligência, aliada aos "fatores a ela. À criança resta identificar-se com o pai e abandonar a mãe ambientais". É evidente que a relação com outro está compreendi- como objeto de amor, no caso do menino, direcionando seus inte- da em tais fatores, mas não recebe a devida atenção. resses baseado no modelo masculino. Para a menina haverá uma Uma das características do ser humano é a passa- dupla tarefa, na medida em que seu primeiro objeto de amor, a mãe, gem do registro do real organismo para um processo de investi- também será seu modelo de identificação. Nesse sentido, temos mento libidinal que a mãe efetua no corpo da criança corpo eróge- nessa etapa um importante trabalho a ser elaborado e que no graças ao circuito de demanda e desejo instalado desde cedo será decisivo nas escolhas amorosas e sexuais futuras. É compre- nessa interação. No reino animal, instinto determina o objeto cor- ensível que nessa etapa ocorra a emergência de sintomas, fobias e respondente à necessidade, no campo restrito de uma homeostase problemas de comportamento, entre outros, como expressão dos fisiológica. Assim, à fome corresponde um determinado tipo de ali- conflitos vividos nesse processo de elaboração. mento, jamais outro; ao ciclo reprodutivo associa-se acasalamen- O período das operações concretas corresponde a uma etapa to com o sexo oposto, numa fixidez ordenada pela natureza. denominada por Freud como "fase de latência", caracterizada por Por outro lado, no humano, a pulsão é definida como limite entre um desvio das pulsões sexuais para fins mais "civilizados", como a somático e psíquico, pois na experiência de satisfação das necessi- escolarização e a aprendizagem. sujeito, livre da problemática 44estaria apto a desenvolver raciocínios mais complexos, objeto material, tangível, no qual poderá investir e criar inúmeras como operatórios. O interesse em aprender, baseado na curiosi- possibilidades de relação. Em breve, colocará uma palavra no lugar dade, e a capacidade de investigação da criança seriam efeito de da coisa, de tal forma que esta poderá circular no mundo das rela- uma saída edípica satisfatória, que resulta num desejo de saber. ções interpessoais, estabelecendo uma outra modalidade para a Saber sobre quê? Basicamente, sobre próprio desejo, sobre o criança efetivar sua posição de desejo. Uma vez socializada pelo outro, sobre a vida, a morte e sexo, questões caras e fundamen- uso da palavra, ela passará a responder de maneira mais clara, tais para todo e qualquer sujeito humano. como elaborou a separação da mãe, pela lei do desejo do pai. Finalmente, período das operações formais marca a entrada na Essa concepção de infância é entendida como período no qual adolescência, na qual o jovem resgatará sua história familiar e os o sujeito se diante das demandas parentais e como se organi- determinantes engendrados por outros contextos, como o cultural e za na passagem que deverá fazer para as demandas sociais, de social, perguntando a si mesmo e aos outros o sentido de tudo que seus pares. cerca. Para pediatra, pode ser útil procurar tecer como a história do seu pequeno paciente está se estruturando, ao levar em conta que CONSIDERAÇÕES FINAIS ela é singular para cada um. Portanto, ficar preso aos dados do que se espera de uma "criança normal" poderá empobrecer sua visão Gesell, Spitz e Piaget têm méritos incontestáveis, sobretudo pela clínica, sobretudo no entendimento dos chamados "distúrbios". Na difusão de conceitos, que são amplamente utilizados e que contri- prática, essa criança não existe, pois trata-se de uma abstração, buem para a compreensão da complexidade do que a criança repre- entretanto, pode ajudar muito para estabelecer parâmetros na cons- senta para o adulto. trução de hipóteses ter em mente processo de formação do sujei- Parece-nos útil resgatar que esses autores têm em comum to, ao investigar por que uma criança, em determinado momento de pressuposto de uma evolução contínua no processo de formação sua vida, encontra-se impedida de exercer suas capacidades e fun- da criança, seja pelos aspectos maturativos que se revelam pelas ções de forma livre e plena. condutas, como postula Gesell, seja pelos avanços na constituição da relação do bebê com a mãe, como acredita Spitz, ou ainda que a BIBLIOGRAFIA inteligência se constrói a partir de relações progressivas, segundo Piaget. que rege esse tipo de premissa é a convicção num certo 1. AJURIAGUERRA, citado por Jerusalinsky A. Psicoanalisis en Proble- paralelismo entre biológico e o mental, que vai do simples para mas del Desarrollo Infantil, ibid, p. 291. 2. COSTA, M.L.A. Piaget e a Inter- complexo, conforme já enfatizamos. venção Psicopedagógica. São Paulo, Editora Olho 1997, p. 9, 18, Se partirmos da idéia de que o sujeito se constitui pela ação de 22,32 e 33. 3. DOR, J. Introdução à Leitura de Es- truturado como Linguagem, Porto Alegre, Artes Médicas, 1989, p.79 e 80. operadores, como função materna e paterna, muito precocemente JERUSALINSKY, A. Psicoanalisis en Problemas del Desarrollo Infantil. entendemos esse ser como isto é, único, capaz de se co- Una Clínica Transdisciplinaria. Buenos Aires, Ediciones Nueva Visión, 1988, locar no mundo e de interagir com os que cercam. bebê que p.290. 5. A. et al. O sujeito infantil e a infância do sujeito. procura brinquedo embaixo da almofada e se diverte ao encontrá- Estilos da Clinica, n° 4, São Paulo, USP, 1998, p. 148. 6. GESELL, A. lo revela que possui a noção de permanência de objeto, como bem Diagnostico del Desarrollo. Buenos Aires, Editora Paidós, p. 25 e formulou Piaget. No entanto, nos fala que já é capaz de se colocar GWORTH, citado por Coriat L. Maturação Psicomotora no Primeiro Ano de como sujeito de uma ação lúdica, na medida em que re- Vida da Criança. São Paulo, Cortez & Moraes, 1977, p. 16. 8. PIAGET, J. Seis Estudos em Psicologia. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1973. 9. presenta no objeto alguém que lhe é muito caro, no caso a mãe. SAURET, M.J. e a Estrutura, São Paulo, Escola Brasileira de Demonstra que está utilizando seus recursos não-verbais, como o Psicanálise, 1988, p.12. 10. SPITZ, R. O Primeiro Ano de Vida. Um Estudo jogo, para lidar com o problema que a ausência materna lhe provoca Psicanalítico do Desenvolvimento Normal e Anômalo das Relações Obje- e, mais ainda, constrói uma solução representa-a por meio de um tais. São Paulo, Livraria Martins Fontes Editora, 1979, p. 114, 169 e 174. 6 A Relação Médico-Paciente em Pediatria ANA CECÍLIA SILVEIRA LINS SUCUPIRA A análise da literatura sobre ensino médico evidencia, nos últimos çoa ao longo do tempo, através do seu exercício diário e conscien- anos, uma preocupação crescente com a questão da relação médi- te... Trata-se de algo difícil de definir, algo etéreo que se sente, po- co-paciente na formação do médico. Em geral, nos currículos médi- rém que não se pode palpar nem quantificar". A relação médico- COS, pouco espaço é destinado ao ensino da relação médico-paci- paciente é vista como algo abstrato, dependente apenas de carac- ente, sendo seu aprendizado visto como uma decorrência natural terísticas pessoais do médico e do paciente, tais como a formação das vivências com o paciente na enfermaria e no ambulatório. As moral, educacional e cultural, independente do contexto social em tentativas de introdução de disciplinas específicas para discutir a que ela ocorre. relação médico-paciente vinham de áreas externas Cuevas-Urióstegui e cols. ponderam que uma das razões para a ao campo médico, tais como a psicologia ou a sociologia, e, por isso escassez de estudos mais rigorosos e sistemáticos sobre os aspec- mesmo, eram colocadas numa situação marginal na grade curricu- tos dessa relação é fato de ela ser considerada como parte da lar. Essa posição sobre ensino da relação médico-paciente ex- chamada "arte da medicina". Clark e cols. assinalam que muitas das pressa a concepção tradicional e idealizada dessa relação, ainda pesquisas nessa área assumem que os médicos são profissionais dominante em muitos meios acadêmicos e que pode ser apreendida autônomos exercendo a medicina em verdadeiras "ilhas sociais", nesta citação de artigo publicado em 1993: a relação médico- uma abordagem consistente com a visão dominante da natureza paciente é fundamental, já que contempla aspectos profissionais, social da prática médica, mas que ignora trinta anos de pesquisa morais e éticos da maior Não se trata de uma ciên- sociológica sobre a relação médico-paciente e as grandes mudan- cia, é uma arte que se inicia com exemplo do mestre e se aperfei- ças históricas na prática médica. 45

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