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XIV CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA 28 a 31 de julho de 2009, Rio de Janeiro (RJ) Grupo de Trabalho: “Questão Urbana” Título do Trabalho: Deslocamento de plantas industriais e espaço urbano: a Azaléia Calçados em Itapetinga, BA Autor: Nelma Gusmão de Oliveira Instituição: Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) nelmaoliveira@hotmail.com Resumo A partir dos anos 1990, atraídos principalmente pela grande disponibilidade de mão- de-obra barata e pouco organizada e pela guerra fiscal, um vasto número de empreendimentos industriais tem se deslocado para o Nordeste do Brasil, especialmente os vinculados àqueles setores que empregam maior contingente de trabalhadores, como o têxtil e o calçadista. O trabalho busca analisar as transformações em curso na Microrregião de Itapetinga, Bahia, a partir da implantação, em 12 de seus municípios, do maior complexo produtivo da atual maior produtora de calçados da América Latina. Apesar das dificuldades de se estabelecer conclusões para processos ainda em curso, observa-se que, mesmo revelando-se incapaz de promover total reestruturação na hierarquia regional, a implantação do complexo industrial tem promovido profundas alterações na estrutura das cidades envolvidas, bem como na articulação dessas cidades com a região. 1 Deslocamento de plantas industriais e espaço urbano: a Azaléia Calçados em Itapetinga, BA Nelma Gusmão de Oliveira Introdução No final do ano de 1996, os habitantes de Itapetinga, cidade de aproximadamente 60 mil habitantes localizada no Sudoeste da Bahia, começaram a viver momentos de expectativa e euforia com a notícia da implantação de um “Distrito Industrial” que teria como principal investimento a instalação da Fábrica de Calçados Azaléia Nordeste S/A. A euforia não foi exclusiva de Itapetinga; ela foi compartilhada por amplos setores da sociedade baiana, a partir da implantação de grandes empreendimentos por todo o estado (têxtil, calçados e eletrônicos), naquele período, que culminou com a instalação da planta industrial da Ford em Camaçari. Esta reorganização espacial do setor produtivo no Brasil tem estado vinculada à adoção da agenda neoliberal que, baseada no argumento de inexorabilidade das conseqüências da globalização, tem apresentado a meta da eficácia competitiva como única possibilidade para o desenvolvimento. O recente deslocamento para o Nordeste de unidades produtivas de indústrias instaladas no Sul e Sudeste do país resulta da agressiva política de disputa por investimentos, assumida pelos governantes de estados e municípios que encarnam uma nova expressão de regionalismo nomeada por Vainer (2007) como “neo-localismo competitivo”. Vainer (2007) e Cano (2007) apontam dois fatores que concorreram, no Brasil, para a assunção dessa via de crescimento que, privilegiando a competitividade em detrimento da cooperação e solidariedade, tem adotado a “guerra fiscal” como principal estratégia. Em primeiro lugar, a ascendente trajetória de desconstituição – política, intelectual e institucional – do planejamento regional nas últimas décadas, culminando na completa ausência de uma política para o desenvolvimento territorial no país. Em segundo, a redefinição das relações entre as escalas sub-nacionais (municipal, estadual, regional), nacional e global, favorecida pela implementação da agenda neoliberal, que estabelece novas formas de articulação entre capitais e forças políticas. A progressiva transferência de responsabilidades da federação para os estados e municípios, sem a correlata transferência dos recursos para o atendimento às novas responsabilidades, tem sido a marca dessas novas relações, 2 cuja tônica está determinada pela imposição da “responsabilidade fiscal” – como extensão do ajuste fiscal impostos pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) ao país – que obriga os entes sub-nacionais a comprometer grande parte de suas receitas ao renegociar suas dívidas com a União. Ao aderirem ao discurso da eficácia competitiva, gestores de estados e municípios, assumindo a condição de protagonistas na promoção do desenvolvimento, são acionados numa guerra competitiva, da qual só saem vencedoras as empresas privadas (Vainer, 2007). É a lógica do crescimento econômico a qualquer custo, que conduz governantes de estados e cidades, a se submeterem a verdadeiros “leilões” (Vainer, 2007; Cano, 2007) promovidos pelas empresas, onde as mais variadas formas de vantagens locacionais – fiscais, creditícias, de infra-estrutura, fundiárias, ambientais, etc. – são oferecidas em troca do investimento. A pesquisa estuda as transformações em curso na Microrregião de Itapetinga, BA, desde a implantação do “Distrito Industrial”, tomando como ponto de partida as seguintes questões: seria a região de Itapetinga uma região vencedora nessa guerra competitiva entre os lugares? Quais os atrativos que concorreram para uma situação “vantajosa” de Itapetinga, dentro do cenário nacional, regional e estadual, na acirrada disputa pelo investimento? Como poderia se articular interna e externamente essa região a partir do empreendimento? Quais as impactos do investimento sobre cidade que polariza a microrregião? O que se pretende mostrar é que, a despeito da grande capacidade de geração de emprego formal e da dinämica que confere à economia regional, este modelo de desenvolvimento, baseado nas metas de “eficássia competitiva”, assume um caráter “espúrio” (Cano, 2007), tendo como resultado a intensa exploração da classe trabalhadora e a transferência de recursos públicos ao setor privado. No caso considerado, dois motivos reforçam a relevância da pesquisa. Em primeiro lugar, o poder impactante, devido à relação entre a magnitude do empreendimento e o volume de empregos – o maior dentre os oferecidos pela indústria privada no Nordeste –, por um lado, e a pequena dimensão espacial e populacional da cidade, por outro. Em segundo, o porte dos recursos públicos envolvidos. Os “modelos” A instalação do “distrito industrial” em Itapetinga tem estado associada a temas freqüentes nas discussões contemporâneas sobre o espaço e a produção, como os 3 referentes à idéia do “distrito industrial” ou da “especialização flexível”. A simples utilização dessas expressões tem suscitado polêmica, principalmente quando utilizadas indiscriminadamente em realidades completamente diversas, como é o caso dos processos em curso na região de Itapetinga. Quando utilizamos expressões como “distrito industrial” ou modelo de “produção flexível”, as estamos emprestando de experiências dos países de centro que têm sido invocadas como modelos universais de uma terceira via do desenvolvimento econômico e social. Esses modelos encontram suas origens nas concepções de Alfred Marshall, na virada para o século XX, que apontava o potencial de obtenção de vantagens, através da concentração espacial de indústrias. Atualmente, eles têm encontrado similaridades nas experiências desenvolvidas nas regiões do Centro e Nordeste da Itália (a chamada 3.ª Itália), que acabaram por difundir a expressão. Entretanto, como alertam Amim e Robins (1994), são grandes os riscos de se amalgamar numa única categoria, processos que acontecem em regiões com condições históricas, econômicas, sociais, políticas e culturais tão diferentes. A expressão “produção flexível” se refere a formas de produção caracterizadas por uma habilidade de rápida mudança no processo produtivo ou no produto final e de fácil ajuste nas quantidades, num curto período de tempo, sem grandes prejuízos ao funcionamento do sistema. O termo “flexível” é atribuído em contraposição às formarígidas adotadas pelo “fordismo”, tanto no que se refere à organização da produção, quanto às relações de trabalho ou à localização espacial. Ela tem sido invocada pelas empresas, como meio para viabilizar a permanente assimilação das alterações necessárias aos “níveis de competitividade exigidos pela globalização da economia”. A acumulação flexível, como vou chamá-la, é marcada por um confronto direto com a rigidez do fordismo. Ela se apóia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. (HARVEY, 1992. p.140). Embora reconhecendo a existência de determinadas características inerentes à “flexibilidade” na produção, acredito, em concordância com autores como Harvey (1992), Santos (1990), Boddy (1990) de que, longe de representar o nascimento de um “novo regime de acumulação” capaz de conter as contradições do capitalismo, 4 como querem alguns autores1 O Distrito Industrial de Itapetinga e a Calçados Azaléia S/A , elas representam apenas ajustes temporários desse sistema à grande crise nele instalada a partir das três últimas décadas do século XX. Localizada numa região de exploração recente, a cidade de Itapetinga, desde a formação de seu núcleo urbano inicial, em 1924, até os dias atuais, tem tido a economia fortemente atrelada ao desempenho da monocultura da atividade pecuária. Apesar de tê-la conduzido, inicialmente, a um período de grande prosperidade, e a tornar-se, em menos de três décadas, o principal centro de criação bovina do Norte e Nordeste do Brasil, esta atividade foi incapaz de se sustentar devido ao modelo de exploração extensiva, esteado na intensa extração dos recursos naturais, no latifúndio e na resistência às inovações. Após sucessivos períodos de crise na pecuária regional, surgia, ao final da década de 1990, em uma área de 50 ha, o “Distrito Industrial” de Itapetinga, cujo principal investimento, a fábrica de calçados Azaléia do Nordeste, era apontado pelo poder público como “a saída definitiva” para a crise. Fundada em 1958 pelas famílias De Paula e Volkart, a Calçados Azaléia já era a maior produtora de calçados femininos da América Latina e líder do segmento de calçados esportivos do Brasil quando ainda se encontrava sob o comando dessas famílias. Em julho de 2007, o controle de suas ações foi adquirido pela Vulcabras S/A, que também comprava, no mesmo período, a totalidade das ações da argentina Indular Manufacturas S/A, formando, sob o comando de Pedro Grandene – detentor do controle acionário da empresa –, o grupo Vulcabras/Azaléia, o maior gigante dos calçados fora da Ásia e um dos três maiores grupos do setor calçadista no mundo. Responsável por 34.000 empregos diretos, o grupo Vulcabras/Azaléia, que tem sede em Jundiaí (São Paulo), teve faturamento bruto de 2 bilhões em 2008 e produz 190 mil pares de calçados por dia em suas 26 unidades fabris localizadas nos estados do Ceará, Sergipe, Bahia e Rio Grande do Sul, no Brasil, e em Coronel Suarez, na Argentina; atualmente, exporta cerca de 15% da sua produção de calçados femininos e esportivos de nove marcas diferentes para mais de 40 países. Em 2000, segundo ano de funcionamento do complexo industrial de Itapetinga, a empresa já empregava cerca de 5.000 pessoas na região, aproximadamente 4.000 1 Argumentos nesse sentido podem ser encontrados em Piore e Sabel (1984) e Storper (1990), dentre outros. 5 em Itapetinga e as demais em outras cidades próximas. Depois de concluída a ampliação da capacidade de produção em 2008, o número total de funcionários na região é de 15.000 pessoas – 10.000 na cidade de Itapetinga e 5.000 nas outras cidades –, que representam quase metade dos funcionários da empresa e o maior contingente de trabalhadores em uma empresa privada do Nordeste do Brasil. Com esse efetivo a empresa produz 120.000 pares de calçados/dia (quase dois terços do total da produção do grupo), além da matéria prima para as fábricas do Ceará e de Sergipe. A produção se dá em um complexo industrial (matriz), integrado por 23 pavilhões na cidade de Itapetinga, e em um conjunto de 19 galpões, localizados em outros bairros da cidade e em mais onze municípios da microrregião. Os atrativos Os atrativos fiscais e financeiros, estão entre as principais vantagens oferecidas às indústrias instaladas no Nordeste na década de 1990. Dentre eles, destacam-se: o fornecimento de infra-estrutura, os incentivos promovidos com recursos provenientes do Fundo de Desenvolvimento Sócio-Econômico (FUNDESE)2 e do Programa Estadual de Apoio aos Empreendimentos Produtivos que Exportam, parte ou a totalidade de sua produção (PROCOMEX)3; e o crédito presumido do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS)4 Na instalação da Calçados Azaléia em Itapetinga, as condições de infra-estrutura negociadas englobaram: a disponibilização de área para construção do complexo principal; construção e concessão, em regime de comodato, pelo período de 10 a 15 anos, renováveis, de edificações para a implantação de galpões que seriam destinados a cooperativas . 5 2 Criado pelo decreto de 25.321/76, passando a funcionar efetivamente a partir da Lei 6.445/92, sendo regido pelas Leis n.º 7.5737/99 e 7.599/00 e regulado pelo Decreto no. 7.780/00. ; áreas para a instalação de novos módulos industriais; fornecimento de energia elétrica, água, esgoto e rede telefônica; acesso pavimentado às áreas do complexo e infra-estrutura de estradas/portos/aeroportos para recebimento de insumos e escoamento de produtos. 3 Regulamentado pelas Leis 7.024/97 e 7.138/97. Seu objetivo é estimular exportações (exclusive o setor automotivo) de produtos fabricados no estado e financiar o imposto incidente sobre a importação (somente para as empresas do setor automotivo) de produtos destinados à comercialização e industrialização, promovidas por novas indústrias sediadas no Estado. 4 Regulamentado pelas Leis n.ºs 7. 025/97 e 7.138/97, que concede crédito presumido de ICMS, incidente sobre as operações de saída de produtos montados ou fabricados por estabelecimentos industriais sediados no Estado, conforme as atividades e limites definidos. 5 Ver item referente à organização da produção 6 A Azaléia do Nordeste foi a empresa que recebeu o maior volume dos benefícios, dentre as empresas calçadistas na Bahia. Segundo a Secretaria de Planejamento e Tecnologia do Estado da Bahia (SEPLANTEC) a empresa recebeu R$ 17.411.000 em infra-estrutura (correspondendo a 65% do total de R$ 26.597.000 investido na implantação de industrias do setor no estado) e R$ 10.000.000 em recursos do FUNDESE (correspondendo a 28% do total de R$ 36.000.000, investido no setor em todo o estado). O crédito presumido de ICMS foi de 90% (Fonte: Bahia, 2001). O Governo do Estado comprometeu-se, também, com a formação de mão-de-obra, estabelecendo convênios para implantação de cursos de capacitação e treinamento, cuja organização e realização ficou a cargo da Secretaria do Trabalho e Ação Social (SETRAS) e Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI). Além disso, o Estado encarregou-se da remuneração, transporte e alimentação dos profissionais treinados, durante o período do curso. No elenco dos incentivos promovidos pelo Governo Federal, a Bahia e demais estados do Nordeste contaram com o apoio da SUDENE, que no período de instalação da empresa administrava o Fundo de Investimentos do Nordeste (FINOR), e os Incentivos Especiais de Redução do Imposto de Renda. De acordo com informações da empresa (Calçados AzaléiaS/A , 2001, p.3), apenas 50% (R$ 58.320.000) do investimento total empreendido em Itapetinga, representam recursos próprios, os outros 50% vêm do BNDS, FINOR e de financiamento de fornecedores. A organização do trabalho Um dos principais aspectos que caracterizam a indústria calçadista é a intensidade na utilização da mão-de-obra. Esse fato se deve, principalmente, às dificuldades técnicas para a mecanização de determinadas etapas da produção. A segmentação do processo produtivo em várias operações básicas – corte, preparação, costura, montagem e acabamento – obstaculiza a automação; fato agravado, quando o calçado é de couro, devido à falta de homogeneidade da matéria prima. Embora ultimamente tenham surgido alguns avanços da mecanização sobre o trabalho humano, principalmente no corte, tal característica ainda faz da indústria calçadista um dos atuais segmentos industriais com maior potencial de geração de empregos. Dessa forma, apesar de outros fatores como classe da matéria-prima, design e marca serem importantes para um maior valor agregado, o valor da força de trabalho tem sido um fator determinante da “competitividade” dessa indústria. Na Bahia, essa 7 condição conduziu a “baixos níveis salariais, alto índice de rotatividade, parcelização e simplificação do trabalho e a utilização de trabalhadores não qualificados” (Bahia, 2000. p.14). Além da corrida por melhor qualidade a menores custos, a busca da competitividade no setor calçadista implica em constante readequação da estrutura de produção aos novos estilos e modas determinados pelo mercado. Assim, a “flexibilidade” do projeto industrial tem sido invocada como essencial para a contínua adaptação às exigências do consumo em constante mutação. Não sendo possível a utilização plena da tecnologia, a solução para atingir essa “flexibilidade” e reduzir os custos tem sido a “flexibilização” nas relações de trabalho. Para alcançar essa meta, são práticas comuns a terceirização e a subcontratação de partes das operações de produção através de ateliês domésticos e cooperativas. Seguindo esta tendência organizacional, o projeto inicial para a implantação da Azaléia Calçados em Itapetinga determinava a fragmentação do processo de produção, através de uma divisão do trabalho que deixava sob a responsabilidade da empresa apenas a montagem final do calçado no complexo industrial (matriz), ficando a fabricação do cabedal a cargo de cooperativas de trabalho que funcionariam em galpões distribuídos em Itapetinga e vários municípios próximos, construídos pelo poder público estadual e equipados pela indústria. Contudo, alguns obstáculos inviabilizaram a implementação do projeto. Tanto a Lei nº 5.764/71 como a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT, 1943), no parágrafo único do art. 442, estabelecem que, independente do ramo de atividade ou do tipo de sociedade cooperativa, não se estabelecerá vínculo empregatício entre a cooperativa e seus associados, bem como entre o tomador dos serviços e os respectivos executores (associados cooperados). Entretanto, a mesma lei 5.764/71 estabelece que, nas sociedades cooperativas de trabalho, são características indispensáveis: o caráter democrático na tomada de decisões, a vinculação estritamente eventual e variada com as empresas tomadoras de serviços e a liberdade de adesão dos associados. No entendimento dessa lei, vários juízes de Tribunais Regionais do Trabalho têm considerado que o tipo de relação de trabalho – como a pretendida pela Azaléia –, onde o contrato de prestação de serviços com as cooperativas é “exclusivo” a uma empresa e acontece ingerência da empresa 8 sobre os cooperados, descaracteriza as sociedades como “autênticas cooperativas” e representa uma forma camuflada do verdadeiro contrato de trabalho. Esse tipo de posicionamento, cada vez mais freqüente entre juízes, foi o argumento que a empresa utilizou para justificar o recuo no projeto inicial. Além desse, outros fatores podem ter contribuído na decisão, como o estereótipo do baiano, “preguiçoso” e “desmobilizado”, incapaz de se organizar em cooperativas, ou a tentativa fracassada, de implementação dessa forma de organização nas indústrias do ramo implantadas na cidade de Jequié, devido a questões operacionais. Abortado esse projeto, os galpões onde funcionariam as cooperativas (a esta altura já construídos com recursos do Estado) passaram a funcionar como filiais da empresa e as relações de trabalho foram estabelecidas com base na CLT. Atualmente, a produção acontece em células, compostas de 10 a 20 operários, supervisionadas por um coordenador, que se subordina a um gerente responsável por todo o pavilhão. Cada dois ou três gerentes de pavilhão, por sua vez, são dirigidos por um gerente de divisão, que se reporta ao gerente geral de produção do complexo. Esta estrutura organizacional viabiliza rígido controle sobre os funcionários e pressão para o comprimento de metas de produção que, conforme informações do Sindicato dos Trabalhadores de Calçados de Itapetinga e Região, são cumpridas com base na permanente ameaça de demissão por justa causa. Para a ocupação dos postos de coordenadores ou de envolvidos diretos na produção, a empresa procurou inicialmente selecionar pessoas residentes na região de Itapetinga, cujo perfil se adequasse aos requisitos da empresa. Para os coordenadores, foi exigida escolaridade equivalente ao 2º grau; já para os envolvidos diretos na produção a exigência inicial foi de 1º grau completo e idade entre 18 a 30 anos. Posteriormente, devido à dificuldade em encontrar mão-de-obra que se enquadrasse nesses padrões, a exigência para a produção foi alterada e, quanto aos coordenadores, grande parte deles passou a vir de fora. Para os cargos de gerência, que exigem qualificação de nível superior, também foram convocados profissionais de outras regiões, a maioria do Rio Grande do Sul. Merece destaque a constatação das diferenças de remuneração oferecidas aos gaúchos em relação aos trabalhadores locais para a realização de tarefas similares. Segundo informações do sindicato, estes últimos chegam a receber menos da metade do salário pago aos funcionários do Rio Grande do Sul para o desempenho da mesma função. 9 As questões locacionais O discurso da “descentralização industrial” tem sido invocado, nas sucessivas propostas de desenvolvimento regional no Brasil, como solução para as “desigualdades espaciais” causados pela concentração de investimentos no Sul e Sudeste do país. Mais recentemente, esse discurso vem legitimar a nova organização espacial da produção, definida por uma divisão inter-regional do trabalho – onde a “flexibilização” e as condições locacionais desempenham forte papel na obtenção de mais valia – que, embora nova, de maneira similar aos processos anteriores, reforça a condição periférica do Nordeste. Enquanto no Sul e Sudeste se concentram os principais centros decisórios das empresas e investimentos na área tecnológica e de serviços, ao Nordeste – cujos principais atrativos estão relacionados aos recursos naturais e culturais ou ao baixo custo da mão-de-obra – compete a disputa pela atração de empreendimentos turísticos e de indústrias que impactam fortemente ao meio ambiente, como é o caso da produção de celulose, ou de empresas empregadoras de grande volume de mão-de-obra pouco qualificada, como é o caso das indústrias têxtil e calçadista. Nesses casos, apesar da dispersão espacial das instalações, as decisões e o controle da valorização do capital continuam concentrados socialmente e espacialmente no Sul e Sudeste do país, o que vem corroborar com a afirmação de Lencioni (1988) deque o fato de algumas indústrias deixarem de se localizar nos lugares centrais, em si, não significa um quadro de descentralização industrial, mas sim, de dispersão no processo de produção. Cabe aqui, uma análise mais profunda dos motivos locacionais que conduziram a Calçados Azaléia S/A, dentro desse quadro de dispersão da produção, a escolher a microrregião de Itapetinga para a instalação de um complexo industrial. Inicialmente, observemos a movimentação que envolve a implantação dos grandes empreendimentos calçadistas na Bahia a partir dos anos 1990. No total, onze empresas ligadas ao setor foram atraídas para o estado durante o biênio 1996/1997: Azaléia, Ramarim, Bibi, Piccadilly, Daiby, Fortik, Sisa, Ingenort, Solajit, Kildare e Vinilex. A agressiva estratégia de incentivos fiscais e financeiros adotada para atração destes investimentos se deve ao seu potencial de geração de empregos. Estudos da Secretaria de Planejamento, Ciência e Tecnologia do Estado da Bahia (SEPLANTEC) apontam, além do fornecimento de condições de infra-estrutura e dos 10 incentivos fiscais e creditícios, mais três fatores que motivaram a vinda da indústria calçadista para o Estado da Bahia: a proximidade dos emergentes centros de consumo após o Plano Real; a disponibilidade de mão-de-obra a custos mais baixos e a menor pressão exercida pelos sindicatos de trabalhadores, comparados com os principais centros produtores do País (Bahia, 2000) . Devido à sensibilidade do setor aos custos de mão-de-obra, a pressão por aumentos salariais, é apontada pela SEPLANTEC (Bahia, 2000) como tendo sido o principal elemento responsável pelas mudanças locacionais das empresas calçadista no Brasil e no mundo a partir da década de 1980. Apesar da existência de outros fatores – a exemplo dos atrativos fiscais e creditícios – determinantes nas disputas locacionais intra-regionais, a escolha do Nordeste como principal destino das empresas calçadistas no Brasil se dá, especialmente, devido à baixa organização sindical e baixos salários praticados, principalmente nas cidades pequenas e médias, que permitem a redução dos custos de mão-de-obra, fator fundamental para o melhor posicionamento no mercado interno e inserção no mercado internacional. A opção pela Bahia, dentre os Estados do Nordeste, está inserida na política de desenvolvimento industrial desse Estado, cuja dimensão, na capacidade de induzir novos investimentos e definir sua localização, tem sido determinada, principalmente, pela guerra fiscal. Por outro lado, a maior proximidade dos mercados do Sudeste, principal destino da produção da empresa, também pode ter influenciado na decisão. Também merece ser considerado o motivo pelo qual a maior inversão de recursos da industria calçadista na Bahia, a Azaléia do Nordeste S/A, escolheu a cidade de Itapetinga, contrariando a lógica da desconcentração concentrada utilizada pela maioria dessas empresas, que estão desconcentradas a nível municipal, mas encontram-se concentradas regionalmente, principalmente no eixo do Grande Recôncavo. Na busca de respostas a essa questão, consideram-se alguns aspectos. O principal deles foi o grande esforço despendido pelo grupo no poder no estado da Bahia na época6 6 Ligado ao Partido da Frente Liberal (PFL) , em levar o empreendimento para Itapetinga. O objetivo era mostrar força política e dar exemplo dos “benefícios” que podiam ser adquiridos através da eleição de forças a ele alinhadas para o comando da administração municipal. Ao lado de Itapetinga, outras cidades baianas, também administradas pelo mesmo grupo, foram oferecidas à empresa, nas mesmas condições vantajosas. Entretanto, 11 em condições de igualdade, outros fatores interferiram na escolha dessa cidade. O primeiro deles, talvez explique não só a localização da Azaléia, como também a da Ramarim em Jequié e a da Piccadilly em Juazeiro7 As condições de trabalho e a saúde do trabalhador . Contrariando a lógica utilizada pela maioria das empresas do setor – a da localização desconcentrada a nível municipal, mas concentrada a nível regional, a fim de obter vantagens que resultariam da formação de um aglomerado de empresas inter-relacionadas que competem, mas que também cooperam entre si – a Azaléia assim como as outras duas mencionadas, por empregarem os maiores contingentes de funcionários, buscaram a desconcentração, também a nível regional, para evitar a disputa por mão-de-obra e a pressão sindical que a concentração de empresas propiciaria. Por outro lado, o fato de ter vivido um período de baixo crescimento populacional, possibilitou a implementação de uma eficiente infra-estrutura urbana que, juntamente com a proximidade do porto de Ihéus podem também ter contribuído para a opção da empresa. Uma vez que o projeto das cooperativas foi sacrificado, e com ele a grande possibilidade de divisão do trabalho entre empresas, alternativas foram buscadas no sentido de assegurar a “flexibilidade” no sistema. Com este objetivo, a indústria passou a tirar proveito da fraca organização sindical e de sua condição de única alternativa para aquele contingente de trabalhadores na região para impor regimes e contratos de trabalhos mais flexíveis. Além dos baixos salários praticados8, sistemas como jornadas de trabalho que envolviam a compensação do trabalho com folgas9 A mobilidade potencial, acrescida da condição de ser o único grande gerador de empregos na região, confere à empresa a capacidade de exercer o que Henri ; trabalho em tempo parcial, temporário ou terceirizado e alta rotatividade da mão-de- obra passaram a ser comumente aplicados. A permanente ameaça de emigração do investimento, em caso de fortalecimento da organização dos trabalhadores ou de pressão por melhores salários, tem funcionado como garantia para esta situação. A ameaça, por sua vez, só se viabiliza devido à possibilidade de mobilidade locacional da empresa a qualquer momento para onde lhe for mais lucrativo. 7 Juntamente com a Azaléia estas duas empresas, correspondiam, na época da instalação, às três maiores do ramo calçadistas no Estado 8 Os salários dos envolvidos na produção direta se aproximam do mínimo. 9 O artigo 59 da CLT assegura a possibilidade de acordo para a compensação, com folgas, de até duas horas extras trabalhadas por dia. 12 Acserald denomina de “chantagem locacional”, referindo-se à capacidade do capital de “aprisionar parcelas importantes das populações locais no interior da ‘alternativa’ de aceitar a promessa de emprego e renda a qualquer custo [...] ou não ter nenhuma fonte de renda apropriada” (ACSERALD, 2007). Desta forma, lhe são asseguradas condições para obter, não apenas as maiores condições de lucro, mas também as menores resistências sociais ou políticas. Chamo a atenção, especialmente, para as questões referentes às condições de segurança no trabalho e proteção à saúde do trabalhador. O Relatório Técnico elaborado pelo Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador (CESAT) 10 Em relação às doenças “músculo-esqueléticas” vinculadas com o trabalho, como a Lesão do Esforço Repetitivo (LER) ou Doenças Ortomusculares Relacionadas ao Trabalho (DORT), o relatório indica uma “certa gravidade” (BAHIA, 2001, p.34) no risco de sua ocorrência que as condições do ambiente de trabalho apresentam. Por último, ainda de acordo com o relatório, há riscos de acidentes durante o desenvolvimento de atividades operacionais e de manutenção nos maquinários. A empresa busca explicar parte dos acidentes com base no comportamento individual do trabalhador,enquanto o CESAT aponta uma série de fatores “multicausais”, a , referente às inspeções de 27 e 28/07/1999 e 19 e 20/10/2000 na fábrica Calçados Azaléia S/A (BAHIA, 2001), apontava uma série de riscos aos quais os trabalhadores da empresa estariam expostos durante o desempenho de suas funções. Em relação ao ruído, a maioria das medições nos setores de produção apresentou pressão sonora acima do determinado pela norma regulamentadora do Ministério do Trabalho para 8 horas de exposição. O relatório aponta, também, a exposição a produtos químicos de toxidade elevada em parte “significativa” dos postos de trabalho, chamando a atenção para os efeitos toxicológicos das substâncias utilizadas. Dentre os efeitos, destacam-se os associados ao n-hexano que, além de agir sobre o sistema imunológico, pode causar problemas crônicos ao sistema nervoso periférico e até evoluir para a paralisia e perda de sensibilidade nos membros inferiores. Associado a esses e outros problemas de saúde, os trabalhadores estariam também sujeitos a desconforto térmico em certas etapas do processo produtivo, onde são utilizadas máquinas que funcionam à temperatura de 160oC emitindo calor para o ambiente. 10 Órgão vinculado à Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (SESAB) 13 exemplo da pressão sofrida pelo trabalhador para atender um ritmo acelerado e constante de trabalho. O documento sugeria condições de adequação para que estes riscos fossem minimizados. Após o relatório, algumas providências foram tomadas, como os intervalos para alongamentos durante a jornada, mas, graças à chantagem locacional, a empresa conseguiu obter, por algum tempo, a suspensão de visitas do CESAT para avaliação da satisfatoriedade das respostas dadas às recomendações. Foi a pressão, devida à grande recorrência de acidentes de trabalho, que concorreu para o retorno da ação fiscalizadora do órgão público junto à empresa. Desta vez, numa articulação conjunta do Fórum de Proteção ao Meio Ambiente do Trabalho do Estado da Bahia (FORUMAT)11 Se a guerra dos lugares por investimentos parece impor uma condição de resignação e impotência em troca da sobrevivência, as condições de exacerbada exploração, que propicia, criam também as oportunidades para o surgimento de algumas formas de resistência. No caso da Calçados Azaléia em Itapetinga, a despeito de uma inicial subsunção da classe trabalhadora a todas as imposições da empresa, a organização dos trabalhadores em torno do sindicato tem produzido . Segundo o Sindicato de Trabalhadores de Calçados de Itapetinga e Região, desde implantação da Azaléia na região, 82 funcionários já foram vítimas de acidentes que provocaram mutilações como a perda falanges, dedos, mãos e antebraços, além do grande número de doenças ocupacionais. Ainda segundo o sindicato, a mensuração do número dos atingidos se torna difícil devido às dificuldades em se conseguir laudo médico que comprovem a relação da doença às atividades desenvolvidas na empresa. Em relação aos acidentes, em concordância com o CESAT, o sindicato chama a atenção para os riscos produzidos pela pressão para o atendimento das metas e a falta de treinamento para a segurança na realização do serviço. Em contrapartida, a empresa tem seguido na tentativa de atribuir responsabilidade a descuidos pessoais das vítimas e nega a ineficiência do sistema de segurança dos equipamentos. Vale ressaltar que, a Portaria n° 84/09, de 04 de março de 2009, do Ministério do Trabalho e Emprego retira a expressão "ato inseguro" das Normas Regulamentadoras (NR), relativas à segurança e medicina do trabalho, assim como os demais subitens que atribuíam ao trabalhador a culpa pelo acidente de trabalho. 11 Rede de proteção e melhoria ao meio ambiente do trabalho, instalada em junho de 2002, envolvendo entidades públicas e privadas comprometidas com o tema 14 algumas vitórias da categoria. Em 2008 foi barrado o acordo de compensação de horas trabalhadas com folgas. Também foi considerado como conquista para a categoria, o fim dos contratos temporários, realizados, durante os três primeiros meses de serviço na empresa, através da AST Serviços Terceirizados12 O novo cenário e a cidade de Itapetinga que liberavam a Azaléia de vínculo com os trabalhadores durante a vigência do contrato, além de negar ao trabalhador alguns direitos trabalhistas, como a licença maternidade e o auxílio por doença ou acidente de trabalho. Tendo em vista o caráter “flexível” do empreendimento instalado em Itapetinga, seus reflexos tornam-se difíceis de serem analisados com largos horizontes de duração. Graças ao emprego da “flexibilidade”, o projeto tem estado em constante mutação. Mesmo com tais dificuldades, pode-se observar uma tendência a reorganização espacial dos fluxos econômicos na Região Sudoeste da Bahia e, mais especificamente, nos municípios envolvidos. Mesmo considerando que esse movimento apenas se inicia e que seus verdadeiros resultados só o tempo exporá com clareza, sabe-se que as transformações têm afetado de maneira irreversível as cidades que sediam o empreendimento. Com base no número de 3.309 empregos oferecidos na cidade de Itapetinga até maio de 200113 Ao gerar empregos formais diretos, a empresa está também influenciando no volume de postos de trabalho gerados em outros setores que, indiretamente, se beneficiam dos recursos injetados na economia graças ao poder de compra de seus trabalhadores. A dificuldade de precisar o nível de comprometimento existente entre e na população economicamente ativa nessa cidade de 36.991 pessoas, por ocasião do senso do IBGE de 2000, observa-se que apenas os empregos diretos oferecidos pela Azaléia já ocupavam em torno de 9% dessa população. A falta de dados recentes sobre a população economicamente ativa inviabiliza a atualização desse cálculo, entretanto, considerando a população total de 63.243 habitantes na cidade (IBGE, 2007) e o número de 10.000 funcionários que aí trabalham deduz-se que 15,81 % destes habitantes estariam vinculados à empresa. Considerando só a parte dessa população em condições de atividade econômica, o percentual de pessoas comprometidas com a empresa seria bem superior a esse. 12 Empresa especializada na disponibilização e administração de pessoas. 13 Fonte: CALÇADOS AZALÉIA S/A, 2001 15 o incremento de novos postos nesses setores e os empregos formais gerados pela empresa, não só na cidade de Itapetinga, como também de outras da região, cujos habitantes também se utilizam do seu comércio e serviços para a satisfação de parte de suas necessidades, não impede de reconhecer a existência dessa relação. Se a oferta de empregos diretos e indiretos se eleva, há que se considerar o decorrente processo migratório inevitável e imprevisível nas duas direções, que promove alterações, não apenas no crescimento populacional, mas também no perfil da população e na organização social – costumes, cultura e comportamentos – das cidades envolvidas. Em Itapetinga, a implantação da Azaléia implicou na consolidação de uma classe trabalhadora de baixa renda, até então pouco expressiva, uma vez que o emprego de mão-de-obra assalariada era reduzido quando a economia da cidade girava em torno da atividade pecuária extensiva. As alterações na demografia têm se refletido na forma como se estrutura a região. Novas demandas são produzidas no comércio e nos serviços, implicando em progressivo adensamento dos fluxos dentro da microrregião, com uma maior convergência em direçãoa Itapetinga e crescente independência em relação aos dois grandes pólos regionais mais próximos, Vitória da Conquista e Itabuna. Entretanto, isto não significa uma redefinição hierárquica em relação a estes pólos, visto que seu porte é por demais elevado frente a Itapetinga. Se por um lado, o reforço na economia local impulsiona a reestruturação regional, principalmente a descentralização das atividades econômicas, por outro, revela novas questões tipicamente urbanas, como as demandas por habitação, infra- estrutura e serviços públicos, o que implica em novo organização no território e em novas prioridades no investimento dos recursos públicos. As prioridades estabelecidas, entretanto, nem sempre são determinadas conformes as demandas da população. A capacidade de “chantagem locacional” da empresa lhe possibilita, não só o controle sobre as relações de trabalho e formas de organização dos trabalhadores, mas também a determinação das prioridade nos investimentos públicos conforme seus interesses. Cita-se, a exemplo, o investimento de 7 milhões de reais na reforma e equipamento do aeroporto para a aterrissagem e decolagem de jatos, que atende apenas às eventuais vindas de diretores da empresa à cidade. Outro exemplo dessa capacidade da empresa em determinar as prioridades no investimento público pode ser observado no primeiro contrato de recuperação da 16 Rodovia da BA 262, por ocasião da instalação da empresa. Esta obra viria atender a antiga reivindicação dos usuários, se contemplasse todo o percurso ou ao menos priorizasse os trechos mais precários do trajeto que liga a microrregião a Vitória da Conquista e a Itabuna, cidades que, além de polarizarem economicamente a região, fazem o entroncamento com os dois principais eixos rodoviários responsáveis pela articulação com Salvador e com o Sudeste do País, a BR 116 e 101, respectivamente. Entretanto, por exigência da empresa, a prioridade do contrato foram os trechos que ligam Itapetinga a suas filiais, ficando os trechos críticos para serem recuperados quase 10 anos depois, quando o nível de precariedade chegava perto de inviabilizar o tráfego de veículos. Por outro lado, graças aos incentivos fiscais e creditícios concedidos à empresa, o incremento nas demandas para os serviços públicos não vem acompanhado de crescimento na arrecadação, o que acentua as dificuldades de atendimento à população. Esta situação pode ser percebida no que se refere à saúde pública. Além do aumento da população local, reforçando as demandas para o setor14 Colapso similar ocorre na área de habitação. A baixa oferta de moradia para atender às demandas da nova classe operária, tem convertido imóveis e terrenos populares em elemento de especulação, produzindo incrementos nos valores de aluguel e de compra que variaram na ordem de 200 a 300%, nos últimos 10 anos. Essa situação tem conduzido ao adensamento e ampliação das áreas de ocupação informal e de habitação precária, que quase inexistiam antes da implantação da indústria. , outras cidades, cuja população também cresceu devido à implantação de galpões da empresa, não estão habilitadas a oferecer determinados serviços médico- hospitalares a seus habitantes que, por sua vez, vão recorrer aos serviços prestados em Itapetinga. Esta situação tem provocado grande sobrecarga no sistema de saúde do município que, impossibilitado de atender às constantes solicitações, entrou em colapso, tornando-se o principal objeto de desgaste dos sucessivos gestores que assumem a administração municipal desde a implantação do empreendimento. A alimentação dos processos migratórios para a região tem sido reforçada pela alta rotatividade dos empregados na Azaléia, com renovação mensal estimada entre 120 e 150 operários, que acontece devido às demissões por iniciativa da empresa ou dos próprios funcionários, na maioria das vezes por não suportarem os sintomas 14 A Azaléia não subsidia nenhum tipo de plano privado de assistência à saúde de seus trabalhadores e familiares. 17 decorrentes das doenças relacionadas ao trabalho ou à intensa pressão imposta pelas rigorosas metas estabelecidas por seus superiores. Ribeiro (1996) chama a atenção para os perigos da alta rotatividade no emprego, lembrando que estas características, que fazem da exclusão um elemento estruturante da modernizarão brasileira, atingem “a identidade do trabalhador, a sua crença na real garantia de direitos sociais e nos processos de organização e reivindicação da classe trabalhadora e cria a impossibilidade de projetos individuais e familiares” (RIBEIRO, 1996, p.21). Em Itapetinga, a situação tem sido ainda mais complexa devido à incapacidade do mercado de absorver, não só aos funcionários afastados da Azaléia, como também à população que aí chega na esperança de encontrar uma colocação na indústria e não consegue uma vaga. Estas pessoas, quando não retornam para o lugar de origem, acabam ficando na cidade, muitas vezes na condição de desempregados ou participantes do mercado informal. Os problemas urbanos podem se intensificar, caso a empresa decida, no futuro, migrar para outros centros que venham a oferecer maiores vantagem, deixando grande massa de desempregados e inúmeros problemas sociais a serem enfrentados pelo poder público e a sociedade local. Ao estudar a indústria calçadista na Bahia a SEPLANTEC (Bahia, 2000), já alertava para os riscos de prejuízos que essa possibilidade acarretaria para as cidades envolvidas. Devido ao alto nível de comprometimento da mão-de-obra de Itapetinga com a empresa, uma possibilidade como essa, que se tornará mais concreta quando vencidas as vantagens fiscais, provocaria danos sem precedentes, não só para a cidade, mas para toda a região. Breves conclusões Grandes foram as expectativas estabelecidas em relação a possíveis benefícios decorrentes da implantação da Calçados Azaléia na região de Itapetinga. O observador cuidadoso, entretanto, ainda que ofuscado pela euforia graças aos empregos gerados e ao elevado volume de recursos estaduais investidos na região, não pode deixar de estar atento a outras questões relacionadas ao empreendimento. A principal delas é que a cidade possui agora novos agentes sociais: uma elite de quadros da empresa, oriunda do Sul do país e detentora de hábitos e cultura que se diferenciam das tradições locais, e uma classe proletária pouco qualificada e remunerada a baixos salários, que, se por um lado, cria as condições necessárias para uma mobilização social, por outro, traz para o espaço urbano novas demandas 18 até então desconhecidas. Se o grande contingente de trabalhadores empregados e a alta rotatividade da mão de obra têm provocado intensos fluxos migratórios, que causam problemas urbanos de nova ordem e intensidade – como carência de moradia, infra-estrutura e serviços básicos, além de desemprego e violência –, as facilidades fiscais e creditícias vieram impedir que a arrecadação crescesse na mesma intensidade das demandas, o que coloca o poder público na condição de incapacidade para atendê-las. Por outro lado, a constante ameaça de que o investimento migre para outras localidades tem colocado os habitantes da região na condição de reféns da empresa que, devido a tal situação, consegue legitimar sua capacidade de definir, não só as condições de trabalho oferecidas aos seus empregados, mas também grande parte das políticas públicas que envolvem a área onde se localiza. Esta capacidade de transferência dos recursos públicos para atender às necessidades da empresa privada cria, por sua vez, novos obstáculos ao atendimento das demandasgeradas. Os fatos descritos comprovam que crescimento econômico e justiça social podem seguir caminhos antagônicos. A constatação de que o crescimento acelerado, desordenado e mal regulado, aumenta os riscos de desigualdade e exclusão social, impõe cautela. Chama-se atenção para as questões aqui colocadas em relação às transformações que o espaço urbano de Itapetinga vem sofrendo. Elas não apresentam respostas fáceis e apontam a necessidade de investigação contínua. No momento, o grande desafio que se impõe àqueles que se preocupam com os destinos da região é a investigação de alternativas que possam, se não anular, ao menos reduzir esse nível de comprometimento de sua economia com a empresa. Diante das infinitas possibilidades de pesquisa ainda inexploradas, este trabalho se coloca apenas como uma das possíveis contribuições para o entendimento do cenário, ainda opaco, onde se encontram inseridas algumas cidades da microrregião de Itapetinga e outras do Nordeste, que têm passado por processos semelhantes dentro da dinâmica urbano-industrial estabelecida no Brasil na contemporaneidade. Referências Bibliográficas ACSELRAD, Henri. O movimento de resistência à monocultura do eucalipto no Norte do Espírito Santo e Extremo Sul da Bahia – uma sociologia da recusa e do consentimento em contexto de conflito ambiental. In: Anais do XIII Congresso Brasileiro de Sociologia. Recife: UFPE, 2007. 19 AMIN, Ash. e ROBINS, Kevin. Regresso das Economias Regionais? A Geografia Mítica da Acumulação Flexível. In: BENKO G. e LIPIETZ A.(Org). As regiões Ganhadoras. Distritos e Redes: os Novos Paradigmas da Geografia Urbana. Oeiras: Celta Editora, 1994. 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