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CADERNOS DO CÁRCERE Caderno 16 Antonio Gramsci Tradução IGS - Brasil 1ª Edição CADERNOS DO CÁRCERE Caderno 16 Antonio Gramsci Tradução IGS - Brasil 1ª Edição International Gramsci Society - Brasil (IGS-Brasil) Gestão 2022-2024 Coordenação Nacional Conselho Nacional Douglas Christian Ferrari de Melo (UFES), Kátia Augusta Curado Pinheiro Cordeiro da Silva (UNB); Marcos Aurélio da Silva (UFSC), Marcos Francisco Martins (UFSCar), Marina Maciel Abreu (UFMA), Matheus Daltoé Assis (UFMS). Conselho Fiscal Helton Messina da Costa (UFF), Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos (Unesp/ Marília), Rodrigo Lima Ribeiro Gomes (UFF). Revisores Helton Messina da Costa, Marília Gabriella Machado e Rodrigo Lima Ribeiro Gomes Projeto e edição gráfica Caliel Machado Luna Diagramação Maria Margarida Machado Imagem de Capa Reprodução da capa do manuscrito original obtida através da biblioteca digital da Fondazione Gramsci — https://gramsci.digital-library.it/it/quaderni-dal-carcere Presidente Coordenação Científica Coordenação de Comunicação Secretária Tesouraria Anita Schlesener (UTP) Maria Margarida Machado (UFG) Marília Gabriella Machado (Unesp/Marília) Michelle Fernandes Lima (UEM) Percival Tavares da Silva (UFF) 24-205320 CDD-320.532 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Gramsci, Antonio, 1891-1937 Cadernos do cárcere [livro eletrônico] : caderno 16 (XXII) : 1933 - 1934 : temas de cultura 1º / Antonio Gramsci ; tradução Ivete Simionatto, Maria del Carmen Cortizo. -- io de Janeiro : IGS-Brasil, 2024. PDF Título original: Quaderni del carcere. ISBN 978-65-83079-23-7 1. Filosofia 2. Gramsci, Antonio, 1891-1937 3. Marxismo 4. Política I. Título. Índices para catálogo sistemático: 1. Antonio Gramsci : Marxista revolucionário : Vida e obra 320.532 Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129 ©1975, 2001 e 2007 Giulio Einaudi editore s.p.a., Torino Este material traduzido pela IGS–Brasil foi licenciado segundo a Creative Commons Atribuição-NãoComercial- SemDerivs 4.0 Internacional (Licença CC BY-NC-ND 4.0). Termos de uso completos disponíveis em: https://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/ Não é permitida a publicação desta tradução em formato impresso sob quaisquer circunstâncias. Sua distribuição em qualquer formato deve ser sempre gratuita, seguindo os termos de licença. I APRESENTAÇÃO A International Gramsci Society – Brasil tem a grata satisfação de apresentar aos leitores dos escritos de Antonio Gramsci a tradu- ção brasileira da edição crítica dos Cadernos do Cárcere, organiza- da por Valentino Gerratana e publicada pela Editora Einaudi, de Turim, em 1975 (Primeira Edição). A tradução aqui apresentada é resultado de um trabalho iniciado em 2019 por iniciativa da Ges- tão da IGS-Br (2019-2022) e que assumimos o compromisso de dar continuidade e finalização. Formou-se na ocasião um grupo de vinte pesquisadores e estudiosos do pensamento de Gramsci que, a partir de uma atividade coletiva e voluntária coordenada pelo Prof. Giovanni Semeraro, realizaram a árdua tarefa de traduzir os 29 Cadernos na ordenação disposta por Gerratana. Ficou para um se- gundo momento a tradução do instrumental crítico, que compõe, ao todo, mais de mil páginas, das quais 592 correspondem a notas ao texto, a parte mais significativa do aparato crítico, por oferecer indicações das fontes utilizadas por Gramsci, bem como esclareci- mentos sobre acontecimentos e personagens mencionados nos Ca- dernos. Esta tradução e disponibilização online dos 29 Cadernos, de forma gratuita na página da IGS/Brasil, contou com a autorização da Fundação Gramsci e da Editora Einaudi, agradecemos ao Dire- tor Francesco Giasi por esta intermediação. A importância e a relevância da tradução dos 29 Cadernos na or- dem estabelecida por Gerratana após pesquisa criteriosa se apresen- tam no fato de que, com a ampliação do interesse pelos escritos de Gramsci no Brasil, tornou-se indispensável transpor para o portu- guês a obra completa, tanto para o aprofundamento teórico quanto para a superação de algumas dificuldades interpretativas. A edição crítica organizada por Gerratana pressupôs uma pesquisa aprofun- dada para a periodização dos Cadernos, escritos entre 1929 e 1935, abrindo o caminho para novos debates e estimulando a compreen- são das ideias e o conhecimento da contribuição do pensamento de II Antonio Gramsci. E não é possível uma análise aprofundada desse autor e uma interpretação pertinente da sua obra, sem instrumen- tos de pesquisa adequados. A primeira edição publicada na página da IGS-BR apresenta os Cadernos em volumes separados para facilitar a consulta; cada vo- lume tem um ISBN1 para eventuais citações. A tarefa a seguir será constituída de Seminários voltados a analisar e retificar possíveis fragilidades da tradução, para a organização da segunda edição re- formulada. Reiteramos a nossa grata satisfação de publicar no site da IGS-BR, para acesso de modo gratuito, a versão brasileira com- pleta da edição crítica dos Cadernos do Cárcere. Anita Helena Schlesener Presidente da IGS/Brasil (Gestão 2022-2024) SOBRE A NOVA TRADUÇÃO DOS CADERNOS DO CÁRCERE NO BRASIL A nova tradução em português dos Cadernos do Cárcere é um evento de grande importância cultural e, em sentido amplo, polí- tico. Testemunhei, em parte, a idealização da primeira tradução par- cial de uma edição não antológica e temática dos Cadernos em lín- gua portuguesa no final de 1997, depois do primeiro colóquio da International Gramsci Society, que ocorreu naquele ano em Ná- poles. Realmente, poucos meses depois, Carlos Nelson Coutinho comunicou-me a ideia de uma ampla tradução (mas não completa) dos Cadernos no Brasil, enriquecida de um amplo aparato crítico, 1 O registro dos ISBNs desta primeira edição contou com a colaboração de Cleide Litiman, funcionária da Secretaria Geral da Anped, que intermediou o processo de cadastro junto à Câmara Brasileira de Livro. III adequado a explicar aos leitores brasileiros os muitos aspectos e referências a fatos e personagens presentes nos Cadernos. Um tra- balho desafiador e muito útil, por mérito – além de Coutinho – de Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, três antigos amigos que, precisamente no colóquio de Nápoles, tinham nova- mente se encontrado renovando uma antiga paixão por Gramsci e o comunismo italiano. Aquela edição idealizada e conduzida por Coutinho, publica- da em seis volumes entre 1999 e 2002, junto à Editora Civiliza- ção Brasileira, porém, não era completa. Foi definida pelo próprio Carlos Nelson como uma edição crítico-temática, pois privilegia- va os “cadernos especiais”, temáticos, em detrimento dos textos de “primeira redação” (que, mais tarde, seriam retomados, reescritos e, algumas vezes, modificados por Gramsci). De qualquer modo, a edição publicada pela Civilização Brasileira teve uma importân- cia relevante para a difusão de Gramsci no Brasil. No entanto, o próprio Coutinho, alguns anos mais tarde, confidenciou-me que tinha se arrependido de não ter inserido nesta edição todas as notas gramscianas de “primeira redação”, isto é, de não haver traduzido integralmente as notas de reflexão crítica e de teoria dos Cadernos do Cárcere. Por que esta mudança de opinião? Esta era fruto de uma impor- tante transformação nos estudos sobre Gramsci que havia envolvi- do o próprio Coutinho. Na verdade, desde o final do século passado havia crescido, em nível internacional, a atenção dos estudiosos de Gramsci no sentido do aspecto “diacrônico” do seu pensamento, na direção do entrelaçamento entre as notas dos Cadernos e a história e a reflexão política de Gramsci, no cárcere ou na clínica de Formia. Em outras palavras, havia crescido notavelmente a atenção para o caráter de work in progress das notas carcerárias do grande mar- xista e comunista sardo. Tanto que, como se sabe, atualmente está em andamento uma nova edição crítica dosGonzales Palencia será muito interessante para o estudo |da contribuição dos árabes à civilização europeia, para se julgar o papel desempenhado pela Espanha na Idade Média e para uma caracterização da Idade Média mais exata do que a corrente. CF. CADERNO 4 (XIII), P. 9 §〈6〉. O capitalismo antigo e uma disputa entre modernos. Pode-se expor, em forma de resenha crítico-bibliográfica, a assim denomi- nada questão do capitalismo antigo. 1) Uma comparação entre as duas edições, a primeira francesa, que foi depois traduzida em algu- mas outras línguas europeias, e a segunda, recente, em italiano, do pequeno livro de Salvioli sobre Capitalismo antigo com prefácio de G. Brindisi (ed. Laterza) [1]. 2) 2 Artigos e livros de Corrado Bar- bagallo (por ex. L’Oro e il Fuoco [2] os volumes sobre a idade clássica da Storia Universale que está em vias de publicação pela Utet de Turim [3] etc.) e a polêmica que houve algum tempo atrás sobre o argumento na «Nuova Rivista Storica» entre Barbagallo, Gio- vanni Sanna e Rodolfo Mondolfo [4]. Em Barbagallo, é importante notar, sobre esta polêmica, o tom desencantado de quem conhece muito bem as coisas deste mundo. A sua concepção do mundo é de que nada é novo sob o sol, que “o mundo todo é uma aldeia”, que “quanto mais as coisas mudam mais permanecem as mesmas”. A po- lêmica parece uma sequência farsesca da famosa “Disputa entre os antigos e os modernos”. Mas, esta disputa teve uma grande impor- tância cultural e um significado progressivo; foi a expressão de uma consciência difusa de que existe um desenvolvimento histórico, de que se tinha entrado plenamente em uma nova fase histórica mun- dial, completamente renovadora de todos os modos de existência, e significava uma estocada contra a religião católica que deve susten- tar que, quanto mais retrocedemos na história, tanto mais devemos encontrar os homens perfeitos, porque mais próximos à comunica- ção do homem com Deus etc. (Com esta finalidade é necessário ver o que escreveu Antonio Labriola no fragmento póstumo do livro não escrito Da un seco- lo all’altro sobre o significado do novo calendário instaurado pela |7| 151933-1934: temas de cultura 1º Revolução Francesa [5]: entre o mundo antigo e o mundo moderno não havia existido, nunca, uma tão profunda consciência de separa- ção, nem sequer pelo advento do cristianismo [6]). Em vez disso a polemica do Barbagallo era o contrário de pro- gressiva, tendia a difundir ceticismo, a tirar aos | fatos econômi- cos todo valor de desenvolvimento e de progresso. Esta posição do Barbagallo pode ser interessante de analisar porque Barbagallo se declara ainda seguidor da filosofia da práxis (cf. sua polemicazinha com Croce na «Nuova Rivista Storica» de alguns anos atrás [7]), escreveu um fascículo sobre o argumento na Biblioteca da Federa- ção das Bibliotecas Populares de Milão [8]. Mas Barbagallo se en- contra ligado por fortes vínculos intelectuais a Guglielmo Ferrero (e é um pouco loriano). É curioso que seja professor de história da economia e se fatigue escrevendo uma Storia Universale que tem, da história, uma concepção pueril e superficialmente acrítica; mas, não seria surpreendente que Barbagallo atribuísse este seu modo de pensar à filosofia da práxis. CF. CADERNO 4 (XIII), P. 34 – 34BIS. §〈7〉. A função mundial de Londres. Como se constituiu histori- camente a função econômica mundial de Londres? Tentativas ame- ricanas e francesas para substituir Londres. A função de Londres é um aspecto da hegemonia econômica inglesa, que continua ainda depois que a indústria e o comercio inglês perderam a posição pre- cedente. Quanto rende à burguesia inglesa a função de Londres? Em alguns escritos do Einaudi anteriores à guerra há amplos acenos sobre este argumento. O livro de Mario Borsa sobre Londres. O livro de Angelo Crespi sobre o Império inglês [1]. O livro de Guido de Ruggiero [2]. O argumento foi tratado, em parte, pelo Presidente da West- minster Bank no discurso proferido na Assembleia societária de 1929: o orador mencionou as lamentações* de que os esforços fei- |7a| * NO MS.: “LAMENTAÇÕES FEITAS”. 16 caderno 16 (xxii) tos para conservar a posição de Londres como centro financeiro internacional impõem sacrifícios excessivos à indústria e ao comér- cio, mas observou, que o mercado financeiro de Londres produz uma renda que contribui em larga escala para saldar o déficit da balança de pagamentos. De uma pesquisa feita pelo Ministério do Comércio resulta que, em 1928 esta contribuição foi de 65 milhões de esterlinas, em 1927 de 63 milhões, em 1926 de 60 milhões; esta atividade deve considerar-se, portanto como uma dentre as maiores indústrias “exportadoras” inglesas. Levando em conta a parte im- portante que corresponde a Londres na exportação de capitais, que usufrui de uma renda | anual de 285 milhões de esterlinas e que fa- cilita a exportação de mercadorias inglesas já que os investimentos aumentam a capacidade de aquisição de mercadorias importadas. O exportador inglês encontra, portanto, no mecanismo que a fi- nança internacional foi criada em Londres, facilidades bancárias, cambiais etc., superiores àquelas existentes em qualquer outro país. É evidente, portanto, que os sacrifícios realizados para conservar a supremacia de Londres no campo da finança internacional são amplamente justificados pelas vantagens derivadas, mas para con- servar esta supremacia, se acreditava que o sistema monetário in- glês tivesse como base o livre movimento do ouro; se acreditava que toda medida que perturbasse esta liberdade resultaria em um dano para Londres como centro internacional do dinheiro à vista. Os depósitos externos realizados em Londres a este título represen- tavam somas notabilíssimas, colocadas à disposição daquela praça. Pensava-se que, caso estes fundos cessassem de afluir, a taxa de juros seria necessariamente mais estável, porém indubitavelmente mais alta [3]. Que aconteceu após a queda da esterlina com todos estes pon- tos de vista? (Seria interessante observar quais termos da lingua- jem comercial se tornaram internacionais devido a esta função de Londres, termos recorrentes nos jornais e na imprensa periódica política geral). CF. CADERNO 4 (XIII), PP. 34BIS – 35. |8| 171933-1934: temas de cultura 1º § 〈8〉. Roberto Ardigò e a filosofia da práxis. (Cf. o volume Scritti varii reunidos e organizados por Giovanni Marchesini, Florença, Le Monnier, 1922) [1]. Reúne uma parte dos escritos ocasionais, tanto do período em que Ardigò era sacerdote (por exemplo, uma interessante polêmica com Luigi De Sanctis, padre católico ex- pulso e tornado um dos propagandistas mais prolixos e impru- dentes do Evangelismo), quanto no período sucessivo à expulsão do mesmo Ardigò e do seu pontificado positivista, escritos que o mesmo Ardigò tinha ordenado e organizado para a publicação. Estes escritos podem ser interessantes para um biógrafo de Ardigò e para estabelecer com exatidão as suas tendências políticas, mas em grande parte são bugigangas sem nenhum valor e escritos em péssimo modo. O livro está dividido em várias seções. Estre as polêmicas (1ª seção) é notável aquela |contra a maçonaria de 1903; Ardigò era anti-maçom de modo vivaz e agressivo. Entre as cartas (4ª seção), aquela endereçada à «Gazzetta di Mantova», com motivo da peregrinação ao tumulo de Vittorio Emanuelle II (na «Gazzetta di Mantova» de 29 de novembro de 1883) [2]. Ardigò tinha aceito fazer parte de uma comissão promotora da peregrinação. “A peregrinação não avançava devi- do a muitos revolucionários bagunceiros que tinham imaginado que eu pensasse como eles e, consequentemente, renunciasse à minha fé político social com a mencionada adesão. Neste senti- do, se expressaram privada e publicamente com ferozes afrontas na minha direção” [3]. As cartas de Ardigò são enfáticas e altis- sonantes: “Ontem, porque me faziam passar por um deles, que nunca fui (e eles sabem ou precisam saber), me proclamaram, com loasque me davam nojo, o seu mestre; e isto sem me enten- der ou me entendendo ao contrário. Hoje, como não me encon- tram pronto para prostituir-me para seus objetivos parricidas, desejam pegar-me por uma orelha para que ouça e aprenda a lição que (muito ingenuamente) se arrogam de recitar-me. Oh! Quanta razão tenho de dizer com Horácio: Odi profanum vul- gus et arceo!” [4]. |8a| 18 caderno 16 (xxii) Em uma carta sucessiva, de 4 de dezembro de 1883 ao “Bacchi- glione”, jornal democrático de Pádua, escreve: “Como sabeis, fui amigo de Alberto Mario; honro a sua memória e defendo com toda a minha alma aquelas ideias e aqueles sentimentos que tinha em comum com ele. E, consequentemente, oponho-me sem dúvidas às baixas facções anarquistas antissociais... Sempre expressei de modo absoluto esta minha aversão. Faz alguns anos, em um encontro da Sociedade da Igualdade Social de Mântua falei assim: “A síntese das vossas tendência é o ódio, a síntese da minha é o amor; por isso eu não estou com vocês”. Porém, continuava-se a pretender que se acreditasse na minha solidariedade com o socialismo antissocial de Mântua. De modo que, senti o dever de protestar etc.” [5]. A carta foi publicada novamente na «Gazzetta di Mantova» (de 10 de dezembro de 1883; a «Gazzetta» era um jornal conservador de extrema direita, nessa época dirigido por A. Luzio) com outro desfecho muito violento, [6] porque os adversários tinham-lhe lem- brado o sacerdócio, etc. |Em julho de 1884 ele escreveu a Luzio que: “nada me impe- diria de assentir” à proposta que tinha recebido de entrar na lista moderada para as eleições comunais de Mântua. Escreveu ainda, que acredita que Luzio é “mais radical que muitos pretensos de- mocratas... Muitos se chamam democratas e não são mais que es- túpidos baderneiros...” [7]. Em junho-agosto de 1883 se servia do jornal socialista de Imola, «Il Moto», para responder a uma série de artigos anônimos da liberal (terá sido conservadora) «Gazzetta dell’Emilia» de Bolonha, na qual se falava que Ardigó era um libe- ral de fresca data, provocando-o brilhantemente, embora com uma óbvia má-fé polêmica. «Il Moto» de Imola, “naturalmente”, defen- de Ardigó a espada desembainhada e o exalta, sem que Ardigó tente tomar distância [8]. Entre os pensamentos, todos fragmentados e banais, destaca-se aquele sobre o Materialismo histórico (p. 271), que sem dúvida deve ser colocado ao lado do artigo sobre a Influência social do aeroplano de A. Loria. Aqui, o pensamento completo: “com a Concepção ma- terialista da História se pretende explicar uma formação natural (!), |9| 191933-1934: temas de cultura 1º que dela depende somente em parte e indiretamente, negligenciando outros fatores essenciais. Me explico: o animal não vive se não tem o seu alimento. E pode procurá-lo, porque nele nasce o sentimento da fome, que o impulsiona a buscar comida. Porém, em um animal, além do sentimento de fome, se produzem muitos outros sentimen- tos relativos a outras operações, as quais, também o levam a mover-se. Assim é que, com a alimentação se mantêm um dado organismo, que tem hábitos próprios, seja em uma espécie, seja em outra. Uma que- da d’agua faz movimentar um moinho que produz farinha e um tear que produz um tecido. De modo que, pelo moinho, além da queda d’agua, é necessário o grão para moer e para o tear são necessários os fios para tecer juntos. Mantendo-se com o movimento, o ambiente, com suas contribuições de outro tipo (!?), determina, como falamos, muitos funcionamentos, que não dependem diretamente da nutri- ção, mas da estrutura especial do aparato funcional, de uma parte, e da ação, ou seja, da contribuição do novo ambiente. Um homem, portanto, por exemplo, é incentivado em muitos sentidos. É movido pelo sentimento da fome, é movido por outros sentimentos, produzi- dos em razão da sua| especial estrutura, e das sensações e das ideias surgidas nele pela ação externa e pelo treinamento recebido etc. etc. (sic). Deve-se obedecer ao primeiro, MAS DEVE-SE OBEDECER TAMBÉM AOS OUTROS, queira ou não. E os equilíbrios que se formam entre o impulso do primeiro e estes outros, como resulta- do da ação, se revelam diversíssimos, conforme uma infinidade de circunstâncias, que fazem jogar mais um que outro dos sentimentos incitados. Em uma vara de porcos predomina o sentimento de fome, em um grupo de homens, muito diversamente, já que têm outros empenhos além daquele de engordar. No homem, o equilíbrio se di- versifica conforme as disposições que podem existir nele, e portanto, com o sentimento da fome, o ladrão rouba e o cavalheiro ao contrário disso trabalha: acontecendo que, para satisfazer a fome, o avaro pro- cura também aquilo não necessário, e o filósofo se contenta com o que tem e dedica a sua obra à ciência. O antagonismo pode ser tal que prevalecem sentimentos diversos daquele da fome, até silenciá-lo, até suportar a morte etc. etc. (sic). A força que autua no animal é aquela da natureza, que o investe e o força a comportar-se em modos multi- |9a| 20 caderno 16 (xxii) formes, transformando-se de diversos modos no seu organismo. Co- loquemos que, em vez da razão econômica, seja a luz do sol, à qual se deveria reduzir a concepção materialista da história. À luz do sol, entendida de modo que até a essa se possa referir o fato da idealidade impulsiva do homem” [9]. (Fim). O fragmento foi publicado por primeira vez em um núme- ro único (tal vez impresso pelo “Giornale d’Italia”) a benefício da Cruz Vermelha, em janeiro de 1915. É interessante não apenas para demonstrar que Ardigò não se havia preocupado nunca em infor- mar-se diretamente sobre a questão tratada e não tinha lido, a não ser algum artigo extravagante de qualquer jornaleco, também serve para documentar as estranhas opiniões difundidas na Itália sobre a “questão de ventre”. |Por que somente na Itália estava difundida esta estranha interpretação “visceral”? Esta não pode deixar de estar re- lacionada aos movimentos pela fome, assim a acusação de “obsessão com o estômago” é mais humilhante para os dirigentes que a faziam que para os governantes que sofriam realmente a fome. E, não obs- tante, Ardigò não foi o primeiro a vir. CFR CADERNO 4 (XIII), P. 47-49. § 〈9〉. Alguns problemas para o estudo do desenvolvimento da fi- losofia da práxis. A filosofia da práxis foi um momento da cultura moderna; em alguma medida determinou ou fecundou algumas correntes. O estudo deste fato, muito importante e significativo, foi negligenciado ou até ignorado pelos assim denominados ortodo- xos pela seguinte razão: que a combinação filosófica mais relevante aconteceu entre a filosofia da práxis e diversas tendências idealistas. Tendências idealistas que, para os assim denominados ortodoxos, vinculados essencialmente à particular corrente de cultura do último quarto do século passado (positivismo, cientificismo), pareceu um contrassenso, se não uma esperteza de charlatães (ainda no ensaio de Plekhanov sobre os Problemi fondamentali existe algum aceno a este fato, porém somente apontado e sem nenhuma tentativa de explica- ção crítica) [1]. Por isso, parece que seja necessário reavaliar a impos- tação do problema assim como foi tentado por Antonio Labriola. |10| 211933-1934: temas de cultura 1º Aconteceu isto: a filosofia da práxis sofreu realmente uma dupla revisão, ou seja, foi subsumida em uma dupla combinação filosófi- ca. De uma parte, alguns dos seus elementos, de modo explícito ou implícito, foram absorvidos e incorporados por algumas correntes idealistas (basta citar Croce, Gentile, Sorel, ou mesmo Bergson, [o pragmatismo]; da outra parte, os assim denominados ortodoxos, preocupados em achar uma filosofia que fosse, segundo o próprio ponto de vista, muito restrito, mais compreensiva que uma “sim- ples” interpretação da história, acreditaram ser ortodoxos, identi- ficando-a fundamentalmente no materialismo tradicional. Uma outra corrente retornou ao kantismo (se podecitar, além do prof. Max Adler vienense, os dois professores Alfredo Poggi e Adelchi Baratono). Pode-se observar, em geral, que as correntes que |ten- taram combinações da filosofia da práxis com tendências idealis- tas são em grande parte 〈de〉 intelectuais “puros”, enquanto aquela constituída pela ortodoxia era de personalidades intelectuais mais distintamente dedicados à atividade prática e em consequência, mais vinculados (por laços mais ou menos extrínsecos) às grandes massas populares (o que aliás, não impediu à maior parte dar tom- bos de não pouca importância histórico política). Esta distinção tem uma grande importância. Os intelectuais “puros”, como elabo- radores das mais amplas ideologias das classes dominantes, como líderes dos grupos de intelectuais dos respectivos países, não po- diam deixar de se servir de pelo menos alguns elementos da filosofia da práxis, para robustecer as suas concepções e moderar o pesado filosofismo especulativo com o realismo historicista da nova teoria, para fornecer novas armas do arsenal ao grupo social ao qual eram vinculados. Por outra parte, a tendência ortodoxa se encontrava na luta com a ideologia mais difundida nas massas populares, o transcendentalismo religioso, e acreditava superá-lo somente com o mais cru e banal materialismo, que era também uma estratificação não indiferente do senso comum, mantida viva, mais de quanto se acreditava e se acredita, pela mesma religião que no povo tem uma expressão trivial e baixa, supersticiosa e de bruxaria, na qual a maté- ria tem uma função não pequena. |10a| 22 caderno 16 (xxii) Labriola se distingue de uns e outros pela sua afirmação (não sempre segura, para dizer a verdade) de que a filosofia da práxis é uma filosofia independente e original, que tem em si mesma os elementos de um ulterior desenvolvimento para transformar-se em interpretação da história da filosofia geral. É necessário trabalhar neste sentido, desenvolvendo a posição de Antonio Labriola, do qual os livros de Rodolfo Mondolfo não parecem (ao menos pelo que se lembra) um coerente desenvolvimento. Parece que Mondol- fo nunca abandonou completamente o fundamental ponto de vista do positivismo de aluno de Roberto Ardigò. O livro do discípulo de Mondolfo, o Diambrini Palazzi (apresentado por um prefácio de Mondolfo), sobre a | Filosofia di Antonio Labriola [2] é um do- cumento da pobreza de conceitos e de diretrizes de ensinamento universitário do mesmo Mondolfo. Por que a filosofia da práxis teve esta sorte de ter servido para for- mar combinações, com seus elementos principais, seja com o idea- lismo seja com o materialismo filosófico? O trabalho de pesquisa não pode deixar de ser complexo e delicado: requer muita fineza na análise e sobriedade intelectual. Porque é muito fácil deixar-se levar pelas semelhanças exteriores e não ver as semelhanças escon- didas e os nexos necessários, porém camuflados. A identificação dos conceitos que a filosofia da práxis “cedeu” às filosofias tradicionais e, por que estas encontraram algum instante de rejuvenescimento, deve ser feita com muita cautela crítica, e significa nem mais nem menos que fazer a história da cultura moderna após a atividade dos fundadores da filosofia da práxis. A absorção explícita não é difícil [de rastrear], embora também esse caso deva ser analisado critica- mente. Um exemplo clássico é aquele representado pela redução croceana da filosofia da práxis a cânone empírico de pesquisa histó- rica, conceito que penetrou também entre os católicos (cf. o livro de Mons. Olgiati) [3], que contribuiu a criar a escola historiográfica econômico jurídica italiana que se difundiu também fora da Itália. Mas, a pesquisa mais difícil e delicada é aquela das incorporações “implícitas”, não confessadas, acontecidas precisamente porque a filosofia da práxis foi um momento da cultura moderna, uma at- |11| 231933-1934: temas de cultura 1º mosfera difusa, que modificou os velhos modos de pensar através de ações e reações não aparentes e não imediatas. O estudo de Sorel é especialmente interessante deste ponto de vista, porque através de Sorel e da sua fortuna se podem obter muitos indícios sobre o assunto; o mesmo pode se dizer de Croce. Porém, o estudo mais importante parece deva ser aquele da filosofia bergsoniana e do pragmatismo [para ver em que medida algumas das suas posições seriam inconcebíveis sem o elo histórico da filosofia da práxis]. Outro aspecto da questão é o ensinamento prático de ciência política que a filosofia da práxis deu aos próprios adversários que a combateram duramente por princípio, assim como os jesuítas com- batiam teoricamente Machiavel, ainda sendo na prática os seus me- lhores discípulos. Em uma Opinione publicada por Mario Missiroli na “Stampa” no |tempo em que foi correspondente em Roma (por volta de 1925) diz que, para cima e para baixo caberia ver se, no íntimo da consciência, os industriais mais inteligentes não teriam sido persuadidos de que a Economia Critica não tivesse compreen- dido muito bem seus assuntos e não se serviam dos ensinamentos assim apreendidos [4]. Tudo isso não é para nada surpreendente, porque se o fundador da filosofia da práxis analisou exatamente a realidade, ele não fez mais que sistematizar racionalmente e coeren- temente aquilo que os agentes históricos desta realidade sentiam e sentem confusa e instintivamente e da qual tomaram maior consci- ência após a crítica adversária. Outro aspecto da questão é ainda mais interessante. Por que tam- bém os assim denominados ortodoxos “combinaram” a filosofia da práxis com outras filosofias e prevalentemente, sobretudo com uma do que com outras? Com efeito, aquela que conta é a combinação com o materialismo tradicional; a combinação com o kantismo não teve mais do que um sucesso limitado e vinculado somente a restritos grupos de intelectuais. Sobre este assunto é necessário ver o ensaio da Rosa sobre Progressi e arresti nello sviluppo della filosofia della praxis que nota como as partes constitutivas desta filosofia se desenvolveram em medida diversa, mas sempre segundo as neces- sidades da atividade prática [5]. Portanto, os fundadores da filosofia |11a| 24 caderno 16 (xxii) nova se anteciparam, em grande medida, às necessidades do seu tempo e também do sucessivo, criaram um arsenal com armas que, por serem anacrônicas, ainda não ajudavam e que somente com o passar do tempo seriam aprimoradas. A explicação é um pouco capciosa: não faz mais do que dar [em grande parte] como explica- ção o mesmo fato que pretende explicar de modo abstrato, todavia, existe algo de verdade que se pode aprofundar. Uma das razões his- tóricas parece que deva ser procurada no fato de que, a filosofia da práxis precisou aliar-se com tendências estranhas para combater os resíduos do mundo pré-capitalista nas massas populares, especial- mente no terreno religioso. A filosofia da práxis tinha duas tarefas: combater as ideologias modernas na sua forma mais refinada, para poder constituir|o próprio grupo de intelectuais independentes, e educar as massas populares, cuja cultura era medieval. Esta segunda tarefa, que era fundamental, dado o caráter da nova filosofia, absor- veu todas as forças, não só quantitativamente, mas também qualita- tivamente; por razões “didáticas”, a nova filosofia se combinou em uma forma de cultura que era um pouco superior àquela média po- pular (que era muito baixa), mas absolutamente inadequada para combater as ideologias das classes cultas, entanto a nova filosofia nasce justamente para superar a mais alta manifestação cultural do tempo, a filosofia clássica alemã, e para suscitar um grupo de inte- lectuais próprios do novo grupo social do qual era a concepção do mundo. Por outra parte, a cultura moderna, especialmente idealis- ta, não consegue elaborar uma cultura popular, não consegue dar um conteúdo moral e científico aos próprios programas escolásti- cos, que permanecem esquemas abstratos e teóricos;esta perma- nece a cultura de uma restrita aristocracia intelectual, que às vezes pressiona sobre a juventude somente em quanto se transforma em política imediata e ocasional. É necessário observar se este modo de “esclarecimento” cultu- ral não é uma necessidade histórica e se, na história passada não se encontram esclarecimentos similares, levando em conta as circuns- tancias de tempo e de lugar. O exemplo clássico e anterior à mo- dernidade é, indubitavelmente, aquele do Renascimento na Itália |12| 251933-1934: temas de cultura 1º e o da Reforma nos países protestantes. No volume Storia dell’età barocca in Italia, a p. II, Croce escreve: “o movimento do Renasci- mento tinha ficado aristocrático, de círculos exclusivos, e na mesma Itália, que foi sua madre e nutriz, não saiu dos círculos da corte, não penetrou no povo, não deveio costume ou “preconceito”, ou seja, coletiva persuasão ou fé. A Reforma, em vez disso, teve esta eficácia de penetração popular, porém o pagou com o atraso do seu intrínseco desenvolvimento, com a lenta e, muitas vezes interrompida matu- ração do seu germe vital” [6]. E na p. 8: “e Lutero, como aqueles humanistas, despreza a tristeza e celebra a alegria, condena o ócio e prescreve o trabalho; mas, por outra parte, é conduzido à descon- fiança e hostilidade contra as letras e os | estudos, de modo que Erasmo pode dizer: ubicumque regnat lutheranismus, ibi literarum est interitus; é verdade, se não pelo efeito de aversão na qual entrou seu fundador, o protestantismo alemão foi por um par de séculos quase estéril nos estudos, na crítica, na filosofia. Os reformadores italianos, notavelmente aqueles do círculo de Giovanni de Valdès e seus amigos, reuniram sem esforço o humanismo ao misticismo, o culto dos estudos à austeridade moral. O calvinismo, com a sua dura concepção da graça e a dura disciplina, não favoreceu a livre investigação e o culto da beleza, mas lhe coube, interpretando e de- senvolvendo e adaptando o conceito da graça e aquele da vocação, de vir a promover energicamente a vida econômica, a produção e aumento da riqueza”. A reforma luterana e o calvinismo suscitaram um vasto movimento popular nacional e somente em períodos su- cessivos uma cultura superior; os reformadores italianos foram in- fecundos de grandes sucessos históricos. É verdade que, também a Reforma, na sua fase superior, necessariamente assumiu os modos do Renascimento e, como tal, se difundiu até nos países não pro- testantes onde não tinha existido a incubação popular; mas, a fase de desenvolvimento popular permitiu aos países protestantes resis- tir tenaz e vitoriosamente à cruzada dos exércitos católicos e, assim nasceu a nação germânica como uma das mais vigorosas da Europa moderna. A França foi dilacerada pelas guerras de religião com a vitória aparente do catolicismo, mas houve uma grande reforma popular no século XVIII com o Iluminismo, o voltairianismo, a |12A| 26 caderno 16 (xxii) Enciclopédia, que precedeu e acompanhou a revolução de 1789; se tratou realmente de uma grande reforma intelectual e moral do povo francês, mais completa daquela alemã porque abraçou tam- bém as grandes massas camponesas, porque teve um fundo laico destacado e tentou substituir a religião por uma ideologia com- pletamente laica, representada pelo vínculo nacional e patriótico; mas, tampouco ela teve um florescimento imediato de alta cultu- ra, exceto pela | ciência política na forma de ciência positiva do direito. (Cf. a comparação feita por Hegel das particulares formas nacionais assumidas pela mesma cultura na França e na Alemanha no período da Revolução Francesa; concepção hegeliana que atra- vés de uma cadeia um pouco longa, levou ao famoso verso carduc- ciano: “unidos na mesma fé, - Emmanuel Kant decapitou o deus, Massimiliano Robespierre, o rei”) [7]. Uma concepção da filosofia da práxis como reforma popular moderna (uma vez que são puros abstracionistas aqueles que aguar- dam uma reforma religiosa na Itália, uma nova edição italiana do calvinismo, como Missiroli & Cia.) [8] foi entrevista talvez por Georges Sorel, um pouco (ou muito) dispersamente intelectualis- ticamente, por uma espécie de furor jansenista contra as baixezas do parlamentarismo e dos partidos políticos. Sorel, tomou de Re- nan o conceito da necessidade de uma reforma intelectual e moral, afirmou (em uma carta a Missiroli) que, frequentemente, grandes movimentos históricos são representantes de uma cultura moderna etc. [9]. Porém, me parece que tal concepção esteja im- plícita em Sorel quando se serve do cristianismo primitivo como termo de comparação, com muita literatura, é verdade, mas, toda- via com mais de um grão de verdade, com referimentos mecâni- cos e muitas vezes artificiosos, mas ainda, com algumas faíscas de intuição profunda. A filosofia da práxis pressupõe todo este pas- sado cultural, o Renascimento e a Reforma, a filosofia alemã e a Revolução Francesa, o calvinismo e a economia clássica inglesa, o liberalismo laico e o historicismo que se encontra na base de toda a concepção moderna da vida. A filosofia da práxis é o coroamento de todo este movimento de reforma intelectual e moral, dialetizado |13| 271933-1934: temas de cultura 1º no contraste entre cultura popular e a alta cultura. Corresponde ao nexo Reforma Protestante + Revolução Francesa: é uma filosofia que também e uma política e uma política que é também uma fi- losofia. Atravessa ainda a sua fase popularesca: suscitar um grupo de intelectuais independentes não é coisa fácil, demanda um longo processo, com ações e reações, com adesões e dissoluções e novas formações muito numerosas e complexas: é a concepção de um grupo social | subalterno, sem iniciativa histórica, que se amplia continuamente, porém desorganizadamente, e sem conseguir ul- trapassar certo grau qualitativo que está sempre aquém da posse do Estado, do exercício real da hegemonia sobre a inteira sociedade que somente permite certo equilíbrio orgânico no desenvolvimen- to do grupo intelectual. A filosofia da práxis se tornou também “preconceito” e “superstição”; assim como é o aspecto popular do historicismo moderno, mas contém em si mesma um princípio de superação deste historicismo. Na história da cultura, que é muito mais longa que a história da filosofia, cada vez que a cultura popular aflorou, porque se tratava de uma fase de convulsões e da ganga po- pular, se selecionava o metal de uma nova classe, houve um floresci- mento de “materialismo”, inversamente, ao mesmo tempo, as clas- ses tradicionais se apegavam ao espiritualismo. Hegel, na virada da Revolução Francesa e da Restauração, dialetizou os dois momentos da vida do pensamento, materialismo e espiritualismo, mas a sínte- se foi “um homem que anda sobre a cabeça”. Os continuadores de Hegel destruíram esta unidade retornando-se, por uma parte, aos sistemas materialistas e àqueles espiritualistas da outra. A filosofia da práxis, no seu fundador, reviveu toda esta experiência, de hege- lianismo, feuerbaquismo, materialismo francês – para reconstruir a síntese da unidade dialética: “o homem que anda sobre as pernas”. A dilaceração acontecida pelo hegelianismo se repetiu pela filosofia da práxis, isto é, da unidade dialética se retornou por uma parte ao materialismo filosófico, entanto que a alta cultura moderna idea- lista procurou incorporar aquilo que da filosofia da práxis lhe era indispensável para encontrar algum novo elixir. “Politicamente”, a concepção materialista é próxima do povo, do senso comum; se encontra estreitamente vinculada a muitas crenças e preconceitos, |13a| 28 caderno 16 (xxii) a quase todas as superstições populares (feitiçarias, espíritos etc.). Isto se vê no catolicismo popular e, especialmente | na ortodoxia bizantina. A religião popular é crassamente materialista, contudo, a religião oficial dos intelectuais procura impedir que se formem duas religiões distintas, dois estratos separados, para nãose separar das massas, para não vir a ser, também oficialmente, como o é real- mente, uma ideologia de grupos restritos. Porém, desde este ponto de vista, não se deve confundir entre o posicionamento da filosofia da práxis e aquele do catolicismo. Enquanto aquela mantém um contato dinâmico e tende a elevar continuamente novos estratos da massa a uma vida cultural superior, este último tende a manter um contato puramente mecânico, uma unidade exterior, baseada especialmente na liturgia e no culto pomposamente mais sugestivo sobre as grandes multidões. Muitas tentativas heréticas foram ma- nifestações de forças populares para reformar a igreja e aproximá-la do povo, elevando o povo. A igreja reagiu frequentemente de forma violentíssima, criou a Companhia de Jesus, se armou fortemente com as decisões do Concílio de Trento, contudo organizou um maravilhoso mecanismo de religião “democrática” dos seus intelec- tuais, mas como indivíduos singulares, não como expressão repre- sentativa dos grupos populares. Na história dos desenvolvimentos culturais é necessário levar em conta, especialmente, a organização da cultura e do pessoal no qual tal organização assume forma con- creta. No volume de G. De Ruggiero sobre Renascimento e Refor- ma, pode-se ver qual foi a atitude de muitos intelectuais, liderados por Erasmo: eles se curvaram diante da perseguição e das queima- duras [10]. O portador da Reforma foi, em realidade, o povo alemão no seu conjunto, como povo indistinto, não os intelectuais. Justa- mente esta deserção dos intelectuais de fronte ao inimigo explica a “esterilidade” da Reforma sobre a esfera imediata da alta cultura, enquanto da massa popular, que permaneceu fiel, se seleciona len- tamente um novo grupo de intelectuais que culmina na filosofia clássica. Alguma coisa similar aconteceu até agora pela filosofia da práxis; os grandes intelectuais formados no seu terreno, além de ser pouco numerosos não eram vinculados ao povo, não surgiram do povo, mas foram a expressão de classes intermediárias |tradicionais |14| |14a| 291933-1934: temas de cultura 1º às quais retornaram nas grandes “reviravoltas” históricas; outros permaneceram, para submeter a nova concepção à uma sistemá- tica revisão e não para procurar o desenvolvimento autônomo. A afirmação de que a filosofia da práxis é uma concepção nova, inde- pendente, original, apesar de ser um momento do desenvolvimento histórico mundial é a afirmação da independência e originalidade de uma nova cultura em incubação que se desenvolverá com o de- senvolvimento das relações sociais. Aquilo que de vez em quando existe é uma combinação variável de velho e novo, um equilíbrio momentâneo das relações culturais correspondentes ao equilíbrio das relações sociais. Somente após a criação do Estado o problema cultural se impõe em toda a sua complexidade e tende a uma solu- ção coerente. Em qualquer caso, a atitude precedente à formação estatal não pode não ser crítico-polêmica e nunca dogmática, deve ser uma atitude romântica, nunca um romanticismo que conscien- temente aspira ao seu classicismo ordenado. Nota I. Estudar o período da Restauração como período de ela- boração de todas as doutrinas historicistas modernas, compreendi- da a filosofia da práxis que é o coroamento e que, depois de tudo, foi elaborada justamente na vigília do 1848, quando a Restauração colapsava por todas partes e o pacto da Santa Aliança desmorona- va. É sabido que Restauração é somente uma expressão metafórica, na realidade, não houve nenhuma restauração efetiva do ancien re- gime, mas somente uma nova sistematização de forças na qual as conquistas revolucionárias das classes médias foram limitadas e co- dificadas. O rei, na França e o papa, em Roma tornaram-se líderes dos respectivos partidos e não mais indiscutíveis representantes da França ou da cristandade. A posição do papa foi especialmente aba- lada e, desde então, inicia a formação de organismos permanentes dos “católicos militantes” que após outras etapas intermediarias: o 1848-49, o 1861 (quando acontece a primeira desagregação do Es- tado pontifício com a anexação dos territórios emilianos), o 1870 e o pós-guerra, se transformaram | na potente organização da Ação Católica, potente, porém em posição defensiva. As teorias histo- ricistas da restauração se opõem às ideologias do século XVIII, |15| 30 caderno 16 (xxii) abstratas e utópicas, que continuavam vivendo como filosofia, ética e política proletária, difundida especialmente na França até 1870. A filosofia da práxis se opõe a estas concepções setecentistas como filosofia de massa em todas as suas formas, daquelas mais infantis àquela de Proudhon, que sofreu algumas influências do historicis- mo conservador e que, parece, possa ser denominado o Gioberti francês, mas das classes populares, pelo atraso da história italiana em confronto àquela francesa, como parece no período de 1848. Se os historicistas conservadores, teóricos do velho, estão bem lo- calizados para criticar o caráter utopista das ideologias jacobinas mumificadas, os filósofos da práxis se encontram melhor localiza- dos, seja para apreciar o valor histórico real e não abstrato que o jacobinismo teve como elemento criador da nova nação francesa, isto é, como fato de atividades circunscritas em determinadas cir- cunstâncias e não idolatradas, seja para apreciar a tarefa histórica destes mesmos conservadores, que em realidade, eram filhos ver- gonhosos dos jacobinos, amaldiçoando os excessos enquanto lhes administravam com cuidado a herança. A filosofia da práxis não pretendia somente explicar e justificar todo o passado, mas explicar e justificar historicamente também a si mesma, ou seja, era o “his- toricismo” máximo, a liberação total de todo “ideologismo” abs- trato, a real conquista do mundo histórico, o início de uma nova civilização. CF. CADERNO 4 (XIII), P. 42BIS – 45 E 58 – 58BIS. § 〈10〉. A religião, a loteria e o ópio da miséria. Giulio Lachelier, fi- lósofo francês (sobre o qual cf. o prefácio de G. De Ruggiero ao volu- me do mesmo Lachelier Psicologia e Metafisica, Bari, Laterza, 1915) escreveu uma nota (“aguda” diz De Ruggiero) “no mesmo nível” de Pascal, publicada no volume Du fondement de l’induction (Paris, Al- can, na “Bibliothèque de philosophie contemporaine”) [1]. A objeção, principal a impostação que Pascal deu ao problema religioso, “no mes- mo nível”, é aquela da “lealdade intelectual” para si mesmo. Parece que toda a concepção do “pari”, pelo que me | lembro, seja mais próxima à moral jesuíta que àquela jansenista, seja muito “mercantil” etc. (cf. no caderno precedente outras notas sobre este argumento) [2]. |15a| 311933-1934: temas de cultura 1º § 〈11〉. Relações entre Estado e Igreja. O “Vorwaerts” de 14 de junho de 1929, em um artigo sobre o Acordo entre a Cidade do Vaticano e a Prússia, escreve que “Roma considerava revogada (a legislação precedente, que de fato já constituía um acordo) em sequência às mudanças políticas ocorridas na Alemanha” [1]. Este princípio, admitido, ou melhor, afirmado pelo Vaticano por inicia- tiva própria, pode conduzir a longínquas e inúmeras consequências políticas. Na “Vossische Zeitung”, de 18 de junho de 1929, o ministro das Finanças prussiano Hoepker-Aschoff assim abordava a mesma questão: “Igualmente, não é possível desconhecer o fundamento da tese de Roma, que, em meio às diversas mudanças políticas e territoriais ocorridas, requeria que os acordos fossem adaptados às novas circunstâncias”. No mesmo artigo, Hoepker-Aschoff recorda que “o Estado prussiano sempre sustentara que os acordos de 1821 ainda estavam em vigor” [2]. Para o Vaticano, ao que parece, a guer- ra de 1870, com suas transformações territoriais e políticas (expan- são da Prússia, constituição do Império germânico sob hegemonia prussiana) e o período do Kulturkampf não eram “transformações” capazes de constituir “novas circunstâncias”, ao passo que, essen- ciais teriam sido as transformaçõesocorridas após a grande guerra. Alterou-se, evidentemente, o pensamento jurídico do Vaticano e poderia ainda se alterar conforme as conveniências políticas. “1918 trouxe uma importantíssima inovação em nosso direito, inovação que estranhamente (apesar de que em 1918 havia a censura à imprensa!) sofria uma desatenção | generalizada: o Estado tornava a subsidiar o culto católico, abandonando após sessenta e três anos o princípio cavouriano que havia sido a base da lei sarda, de 29 de maio de 1855: o Estado não deve subsidiar nenhum culto”. A. C. Jemolo, no artigo Religione dello Stato e confessioni ammesse, in «Nuovi Studi di Diritto, Economia, Politica», Ano 1930, p. 30. A inovação foi introduzida com os Decretos-Lei nº 396, de 17 de março de 1918, e nº 655, de 9 de maio de 1918. A propósito, Jemolo remete à nota de D. Schiappoli I recenti provvedimenti economici a vantaggio del clero, Nápoles, 1922, extraída do vol. XLVIII dos Atti della R. Accademia di scienze morali e politiche di Napoli [3]. |16| 32 caderno 16 (xxii) (Acordos e tratados internacionais). A capitulação do Estado moderno que se verifica pelos acordos é mascarada identificando verbalmente acordos e tratados internacionais. Um acordo, no en- tanto, não é um tratado internacional comum: no acordo realiza-se de fato uma interferência de soberania num único território estatal, uma vez que todos os artigos de um acordo se referem aos cidadãos de apenas um dos Estados contratantes, sobre os quais o poder sobe- rano de um Estado estrangeiro justifica e reivindica determinados direitos e poderes de jurisdição (ainda que de uma jurisdição espe- cialmente determinada). Que poderes conquistou o Reich sobre a Cidade do Vaticano em virtude do recente acordo? E, além disso, a fundação da Cidade do Vaticano [4] confere uma aparência de legitimidade à ficção jurídica de que o acordo seja um tratado in- ternacional bilateral comum. Acordos, contudo, eram estipulados antes mesmo que a Cidade do Vaticano existisse, o que significa que o território não é essencial para a autoridade pontifícia (ao menos deste ponto de vista). Aparências, pois enquanto o acordo limita a autoridade estatal de uma parte contratante, no seu próprio ter- ritório, e influi e determina sua legislação e sua administração |, limitação alguma é aventada ao território da outra parte: se limita- ção existe para esta outra parte, essa se refere à atividade desenvol- vida no território do primeiro Estado, seja por parte dos cidadãos da Cidade do Vaticano, seja dos cidadãos do outro Estado que se fazem representar pela Cidade do Vaticano. O acordo, portanto, é o reconhecimento explícito de uma dupla soberania num mesmo território estatal. Certamente, não se trata mais da mesma forma de soberania supranacional (suzeraineté) tal como formalmente reco- nhecida ao Papa na Idade Média, até as monarquias absolutistas e, sob outra forma, mesmo posteriormente, até 1848, muito embora numa necessária derivação de compromisso. Ademais, mesmo nos períodos mais esplêndidos do papado e de seu poder supranacional, as coisas nem sempre correram sem percalços: a supremacia papal, ainda que reconhecida juridicamente, era frequentemente contes- tada de fato, quase sempre muito rispidamente, e na hipótese mais otimista se reduzia aos privilégios políticos, econômicos e fiscais do episcopado de cada país. |16a| 331933-1934: temas de cultura 1º Os acordos afetam de maneira essencial o caráter de autonomia da soberania do Estado moderno. O Estado obtém uma contra- partida? Certamente, mas a obtém em seu próprio território, no tocante a seus próprios cidadãos. O Estado consegue (e, neste caso, melhor seria dizer o governo) que a Igreja não embarace o exercício do poder, ao contrário, o favoreça e o sustente, como uma muleta ampara um inválido. A Igreja, assim, compromete-se perante uma determinada forma de governo (que é determinada externamente, como documenta o próprio acordo) em promover o consenso de uma parte dos governados que o Estado explicitamente reconhece não ser capaz de obter por meios próprios: eis em que consiste a ca- pitulação do Estado, uma vez que este de fato aceita a tutela de uma soberania estrangeira, cuja superioridade praticamente reconhece. A própria palavra “acordo” é | sintomática. Os artigos publicados nos «Nuovi Studi» sobre o acordo estão entre os mais interessan- tes e se prestam mais facilmente à refutação [5]. (Recordar o “trata- do” imposto à República Democrática da Geórgia após a derrota do General Denikin) [6]. Mesmo no mundo moderno, contudo, o que significa na práti- ca a situação criada num Estado a partir das cláusulas de um acor- do? Significa o reconhecimento público a uma casta de cidadãos do próprio Estado de determinados privilégios políticos. A forma não é mais aquela medieval, mas a substância é a mesma. No de- senvolvimento da história moderna, aquela casta testemunhara ser atacado e destruído um monopólio de função social que explicava e justificava a sua existência, o monopólio da cultura e da educa- ção. O acordo reconhece novamente este monopólio, ainda que atenuado e controlado, uma vez que assegura a tal casta posições e condições preliminares, as quais, somente com suas forças, com a adesão intrínseca de sua concepção de mundo à realidade efetiva, não poderia manter ou obter. Compreende-se, assim, a luta surda e sórdida dos intelectuais laicos e laicistas contra os intelectuais de casta para salvar sua auto- nomia e suas funções. É inegável, todavia, sua intrínseca capitula- ção e seu distanciamento do Estado. O caráter ético de um Estado |17| 34 caderno 16 (xxii) concreto, de um determinado Estado, é definido a partir de sua le- gislação vigente e não pelas polêmicas dos franco-atiradores da cul- tura. Se estes afirmam: o Estado somos nós, afirmam somente que o chamado Estado unitário é apenas propriamente “chamado”, pois de fato, em seu seio existe uma cisão muito grave, tanto mais gra- ve enquanto afirmada implicitamente pelos mesmos legisladores e governantes que pregam que o Estado é ao mesmo tempo duas coi- sas: aquele das leis escritas e aplicadas e aquele das consciências que intimamente |não reconhecem tais leis como eficientes e buscam, sordidamente, esvaziá-las (ou no mínimo limitar suas aplicações) de conteúdo ético. Trata-se de um maquiavelismo de pequenos po- litiqueiros; os filósofos do idealismo atual, especialmente do grupo dos papagaios amestrados dos «Nuovi Studi», podem ser reco- nhecidos como as mais ilustres vítimas do maquiavelismo. É útil estudar a divisão do trabalho que se busca estabelecer entre a casta e os intelectuais laicos: à primeira se atribui a formação intelectual e moral dos muito jovens (escola elementar e média), aos outros cabe o desenvolvimento posterior dos jovens na universidade. Mas a escola universitária não é submetida ao mesmo regime de mono- pólio ao qual, por outro lado, se submetem as escolas elementar e média. Existe a Universidade do Sagrado Coração e poderão ser estabelecidas outras universidades católicas em tudo equiparadas às universidades públicas. As consequências são óbvias: as escolas elementar e média são as escolas populares e da pequena burgue- sia, extratos sociais monopolizados educativamente pela casta, uma vez que a maioria de seus elementos não chegam à universidade, ou seja, não conhecerão a educação moderna em sua fase superior crítico-histórica, mas apenas conhecerão a educação dogmática. A universidade é a escola da classe (e do pessoal) dirigente em parti- cular, é o mecanismo através do qual acontece a seleção dos indiví- duos das outras classes a serem incorporados ao pessoal governante, administrativo, dirigente. Com a existência, todavia, em paridade de condições, de universidades católicas, também a formação deste pessoal não será mais unitária e homogênea. E não somente: mas a casta, em suas próprias universidades, realizará uma concentração de cultura laico-religiosa,tal qual não se via há muitas décadas, e |17a| 351933-1934: temas de cultura 1º se encontrará deveras em condições muito melhores que a concen- tração laico-estatal. De fato, nem de longe se pode |comparar a eficiência da Igreja, estabelecida como um bloco de sustentação da própria universidade, com a eficiência organizativa da cultura laica. Se o Estado (mesmo no sentido mais vasto de sociedade civil) não se expressa numa organização cultural segundo um plano centrali- zado e, sequer é capaz de fazê-lo, já que sua legislação em matéria religiosa é aquela que é, e sua imprecisão não pode deixar de ser favorável à Igreja, dada a maciça estrutura desta e o peso relativo e absoluto expresso por sua estrutura homogênea, e se os estatutos desses dois tipos de universidade forem equiparados, é evidente que a tendência será a de que as universidades católicas sejam conside- radas o mecanismo seletivo dos elementos mais inteligentes e ca- pazes das classes inferiores a serem admitidas no pessoal dirigente. Favorecerão esta tendência: o fato de não haver descontinuidade educativa entre a escola média e a universidade católica, ao mesmo tempo em que, tal descontinuidade existe no tocante às universi- dades laico-estatais; o fato de que a Igreja, em toda sua estrutura, já é instrumentalizada para esse trabalho de elaboração e seleção a partir de baixo. A Igreja, de tal ponto de vista, é um organismo perfeitamente democrático (no sentido paternalista): o filho de um camponês ou de um artesão, se inteligente e capaz, e se maleável o suficiente para deixar-se assimilar pela estrutura eclesiástica e para sentir seu peculiar espírito de corpo e de conservação e a validade dos interesses presentes e futuros, pode, teoricamente, tornar-se cardeal e papa. Se na alta hierarquia eclesiástica a origem democrá- tica é menos frequente do que poderia, isso resulta de razões com- plexas, nas quais apenas parcialmente incide a pressão das grandes famílias aristocráticas católicas ou a razão de Estado (internacio- nal): uma razão muito forte é esta, a de que muitos seminários são tão mal equipados a ponto de não poderem educar integralmente uma pessoa inteligente de origem popular, enquanto um jovem | aristocrata de seu próprio ambiente familiar recebe, sem esforço de aprendizagem, uma série de atitudes e de qualidades de primeira ordem para a carreira eclesiástica: a tranquila segurança da própria dignidade e autoridade e a arte de tratar e governar os outros. |18A| |18| 36 caderno 16 (xxii) Uma das razões da fragilidade da Igreja no passado consistia no fato de que a religião oferecia poucas possibilidades de carreira fora da carreira eclesiástica: o próprio clero estava qualitativamente de- teriorado pelas “escassas vocações” ou vocações restritas a elemen- tos intelectualmente subalternos. Esta crise já era deveras visível antes da guerra: era um aspecto da crise geral das carreiras de rendi- mento fixo estruturalmente lentas e pesadas, ou seja, da inquietação social das camadas intelectuais subalternas (professores dos níveis elementar e médio, padres etc.) nas quais se fazia sentir a concor- rência das profissões ligadas ao desenvolvimento da indústria e das organizações privadas capitalistas em geral (jornalismo, por exem- plo, que absorve muitos professores etc.). Já havia começado a inva- são das escolas preparatórias ou das universidades pelas mulheres e, com as mulheres, os padres, aos quais a Cúria (após a Lei Credaro) não podia proibir de obter um título público que lhes permitisse concorrer também a empregos públicos e assim aumentarem o “or- çamento” individual. Muitos destes padres, tão logo conseguiram seus títulos públicos, abandonaram a Igreja (durante a guerra, pela mobilidade e o contato com ambientes de vida menos sufocantes e limitados que os eclesiásticos, tal fenômeno teve certa amplitu- de). A organização eclesiástica sofria, em consequência, uma crise constitutiva que poderia ser fatal à sua potência, se o Estado tivesse mantido íntegra sua posição de laicidade, ainda que sem a neces- sidade de uma luta ativa. Na luta entre as formas de vida, a Igreja estava em vias de ruir automaticamente, pelo próprio exaurimento. O Estado salvou a Igreja |. As condições econômicas do clero fo- ram repetidamente melhoradas, enquanto o padrão de vida geral, particularmente o das classes médias, piorava. A melhoria foi tanta que as “vocações” foram maravilhosamente multiplicadas, impres- sionando até mesmo o próprio pontífice, que as justificava oportu- namente com a nova situação econômica [7]. A base para a escolha dos mais aptos ao sacerdócio foi, por sua vez, também ampliada, permitindo mais rigor e maiores exigências culturais. A carreira eclesiástica, contudo, se é o fundamento mais sólido da potência vaticana, não esgota suas possibilidades. A nova estrutura educativa permite a admissão no corpo dirigente laico de células ca- |19| 371933-1934: temas de cultura 1º tólicas que serão continuamente reforçadas, de elementos que deve- rão sua posição unicamente à Igreja. Lembremo-nos que, a infiltração clerical na formação estrutural do Estado está em vias de aumentar progressivamente, uma vez que na arte de selecionar os indivíduos e de mantê-los permanentemente a ela vinculados, a Igreja é quase imbatí- vel. Controlando os liceus e as outras escolas médias, através de seus membros de confiança, ela acompanhará, com a tenacidade que lhe é característica, os jovens mais valiosos das classes pobres e os ajudará a prosseguir nos estudos na universidade católica. Bolsas de estudo, subsidiadas por internatos educacionais, organizados com a máxima economia, junto às universidades, permitirão tal ação. A Igreja, em sua presente fase, com o impulso dado pelo atual pontífice à Ação Católi- ca, não pode se satisfazer apenas em criar padres; deseja permear o Es- tado (recorde-se a teoria do governo indireto elaborada por Bellarmi- no) e para isso são necessários os laicos, é necessária uma concentração de cultura católica representada pelos laicos. Muitas personalidades podem se tornar auxiliares da Igreja mais preciosos como professores universitários, como altos funcionários da administração etc., do que como cardeais ou bispos. Ampliada a base de escolha das “vocações”, uma tal | atividade lai- co-cultural tem grandes possibilidades de se difundir. A Universidade do Sagrado Coração e o Centro Neoescolástico são apenas as primei- ras células deste trabalho. Foi sintomático, nesse aspecto, o Congresso filosófico de 1929: confrontaram-se idealistas atuais e neoescolásticos e estes participaram do Congresso animados pelo espírito combativo de conquista [8]. O grupo neoescolástico, após o acordo, desejava de fato parecer combativo, seguro de si, para interessar aos jovens. Deve- -se levar em conta que, uma das forças dos católicos consiste no fato de que estes não se importam com as “refutações peremptórias” de seus adversários não católicos: a tese refutada, eles a retomam, imperturbá- veis e, como se nada fosse. Do “desinteresse” intelectual, da lealdade e honestidade científica eles não entendem ou entendem como fragili- dade e ingenuidade dos outros. Contam com a potência de sua orga- nização mundial, que se impõe como se fosse uma prova de verdade, e com o fato de que a grande maioria da população ainda não é “mo- derna”, é ainda ptolomaica como concepção do mundo e da ciência. |19a| 38 caderno 16 (xxii) Se o Estado renuncia a ser centro ativo e permanentemente ativo de uma cultura própria, autônoma, não resta à Igreja senão triun- far substancialmente. O Estado, contudo, não apenas não intervém como centro autônomo, mas destrói qualquer opositor da Igreja que tenha a capacidade de limitar-lhe o domínio espiritual sobre as multidões. Pode-se prever que as consequências de uma tal situação, de fato, restando inalterado o quadro geral das circunstâncias, possam ser da máxima importância. A Igreja é um Shylok, aindamais impla- cável que o Shylok shakespeariano: ela exigirá sua libra de carne mesmo à custa de dessangrar sua vítima e, tenazmente, mudando continuamente seus métodos, tenderá a alcançar seu programa má- ximo. Segundo a expressão de |Disraeli, os cristãos são os judeus mais inteligentes que compreenderam como se devia conquistar o mundo [9]. A Igreja não pode ser reduzida à sua força “normal” com a refutação em termos filosóficos de seus postulados teóricos e com as afirmações platônicas de uma autonomia estatal (que não seja militante): mas somente com a ação prática cotidiana, com a exal- tação das forças humanas criadoras em toda a área social. Um aspecto da questão que se deve bem avaliar é o das possibi- lidades financeiras do centro vaticano. A organização sempre em contínuo desenvolvimento do catolicismo nos Estados Unidos ofe- rece a possibilidade de arrecadar fundos realmente notáveis, além dos rendimentos habituais já assegurados (que, no entanto, desde 1937 diminuíram em 15 milhões ao ano por conta da conversão da dívida pública de 5% para 3,5%) [10] e do óbolo de São Pedro. Poderiam surgir questionamentos internacionais a propósito da intervenção da Igreja nos assuntos internos de cada país, com um Estado que subsidia permanentemente a Igreja? A questão é sutil, como se diz. A questão financeira torna muito interessante o problema da assim chamada indissolubilidade entre Tratado e Concordata, pro- clamada pelo pontífice. Admitindo-se que o papa se encontrasse na necessidade de recorrer a este meio político de pressão sobre o Es- tado, não se revelaria imediatamente o problema da restituição das |20| 391933-1934: temas de cultura 1º somas auferidas (que aliás são associadas ao Tratado e não à Con- cordata)? Trata-se, no entanto, de somas tão vultosas - imagina-se terem sido gastas em grande parte nos primeiros anos -, que sua restituição pode ser considerada praticamente impossível. Nenhum Estado poderia conceder um empréstimo tão grande ao Pontífice para tirá-lo de dificuldades e tampouco um ente privado ou um banco. A denúncia do Tratado desencadearia uma crise tamanha na organização prática da Igreja que sua |solvência, mesmo a longo prazo, seria aniquilada. O acordo financeiro anexado ao Tratado deve ser, portanto, considerado como a parte essencial do próprio Tratado, como a garantia de uma quase impossibilidade de denún- cia do Tratado, revelada por razões polêmicas e de pressão política. Trecho de carta de Leão XIII a Francesco Giuseppe (ao que pare- ce, de junho de 1892, reproduzida na p. 244 e ss. do livro: Francesco Salata, Per la storia diplomatica della Questione Romana, I, Treves, 1929): “e não calaremos que, em meio a tais obstáculos, também nos faltam as condições de suprir, por nossos próprios meios, as in- cessantes e múltiplas exigências materiais, inerentes ao governo da Igreja. É verdade que nos vêm em socorro as ofertas espontâneas da caridade; mas sempre nos torna com angústia a apreensão de que estas representam um fardo para nossos filhos; e além do mais, não se deve pretender que inesgotável seja a caridade pública” [11]. “Pró- prios meios” significa “arrecadação com impostos” dos cidadãos de um Estado pontifício, cujos sacrifícios não provocam angústia, ao que parece: parece natural que as populações italianas paguem as despesas da Igreja universal. No conflito entre Bismarck e a Santa Sé se podem encontrar in- dícios de uma série de questões que poderiam ser levantadas pelo fato de que o Vaticano tem sede na Itália e mantém determinadas relações com o Estado italiano: Bismarck, “fez lançar por seus juris- tas (escreve il Salata, vol. cit., p. 271) a teoria da responsabilidade do Estado italiano pelos atos políticos do papa que a Itália estabele- cera em tal condição de invulnerabilidade e irresponsabilidade por danos e ofensas causados pelo Pontífice a outros Estados”. CF. CADERNO 1 (XVI), PP. 3 - 3 BIS, E CADERNO 4 (XIII), PP. 25 BIS - 29. |20a| 40 caderno 16 (xxii) § 〈12〉. Natural, contra a natureza, artificial, etc. O que significa dizer que uma certa ação, um certo modo de viver, uma certa atitude ou costumes são "naturais" ou, pelo contrário, são "contra a nature- za"? Cada qual, no seu íntimo, pensa saber | exatamente o que isso significa, mas quando se pede uma resposta explícita e fundamen- tada, vê-se que não era tão fácil quanto parecia. Entretanto, deve- -se estabelecer que não é possível falar de "natureza" como algo fixo, imutável e objetivo. Percebe-se que, quase sempre "natural" significa "justo e normal" segundo a nossa consciência histórica atual, mas a maioria não tem consciência dessa realidade historicamente deter- minada e considera seu modo de pensar eterno e imutável. Pode-se observar esta opinião entre alguns grupos fanáticos pela "naturalidade": ações que para a nossa consciência parecem ser "con- tra a natureza", são para eles "naturais", porque são realizadas por ani- mais; e não são os animais "os seres mais naturais do mundo"? Em certos ambientes, esta opinião é frequentemente expressada a pro- pósito, principalmente, de questões relacionadas às relações sexuais. Por exemplo: por que o incesto seria "contra a natureza" se é comum na "natureza"? No entanto, mesmo essas afirmações sobre os animais nem sempre são exatas, porque as observações são feitas em animais domesticados pelo homem para seu próprio benefício e forçados a uma forma de vida que não é "natural" para os próprios animais, mas está de acordo com os propósitos do homem. Mas ainda que fosse verdade que certos atos ocorrem entre os animais, que significado isto teria para o homem? Por que deveria derivar daí uma norma de conduta? A "natureza" do homem é o conjunto de relações sociais que determina uma consciência historicamente definida; somente esta consciência pode indicar o que é "natural" ou "contra a natureza". Além disso: o conjunto das relações sociais é sempre contraditório em cada momento e está em contínuo desenvolvimento, de modo que a "natureza" do homem não é algo homogêneo para todos os homens em todos os tempos. Ouve-se dizer com frequência que certo hábito se tornou uma "se- gunda natureza"; mas a | "primeira natureza" teria sido exatamente a "primeira"? [1] Neste modo de expressão do senso comum, não está implícita a referência à historicidade da "natureza humana"? |21| |21a| 411933-1934: temas de cultura 1º Constatado que, sendo contraditório o conjunto das relações so- ciais, não pode não ser contraditória a consciência dos homens, se coloca o problema de como tal contradição se manifesta e de como se pode, progressivamente, alcançar a unificação: manifesta-se em todo o corpo social, com a existência de consciências históricas de grupo (com a existência de estratificações correspondentes a dife- rentes fases do desenvolvimento histórico da civilização e com antí- teses nos grupos que correspondem ao mesmo nível histórico) e se manifesta nos indivíduos singulares como reflexo de uma desagre- gação "vertical e horizontal". Nos grupos subalternos, devido à au- sência de autonomia na iniciativa histórica, a desagregação é mais grave, e mais forte é a luta para se liberarem dos princípios impostos e não propostos para obter uma consciência histórica autônoma: os pontos de referência nessa luta são diversos, e um deles, justamente aquele que consiste na "naturalidade", em colocar a "natureza" como exemplo, obtém muito sucesso, pois parece óbvio e simples. Como então, deveria ser formada esta consciência histórica proposta au- tonomamente? Como cada qual deveria escolher e combinar os elementos para a constituição de tal consciência autônoma? Todo elemento "imposto" deverá ser rejeitado a priori? Deverá ser rejei- tado como imposto, mas não em si mesmo, isto é, será preciso dar- -lhe uma nova forma que seja própria do dado grupo. O fato de a educação ser obrigatória não significa, com efeito, que deva ser rejeitada, ou de que uma nova forma de obrigatoriedadenão possa ser justificada com novos argumentos: é necessário transformar em "liberdade" o que é "necessário", mas para isso é preciso reconhecer uma necessidade "objetiva", isto é, que seja objetiva precipuamente para o |grupo em questão. É necessário, portanto, referir-se às re- lações técnicas de produção, a um determinado tipo de civilização econômica que, para se desenvolver, exige um determinado modo de vida, determinadas regras de conduta, um certo costume. É pre- ciso convencer-se não somente de que uma certa ferramenta é "ob- jetiva" e necessária, mas também, um certo modo de se comportar, certa educação, certa forma de convivência etc.; nesta objetividade e necessidade histórica (que, ademais, não é óbvia, mas necessita ser reconhecida criticamente e apoiada de modo completo e qua- |22| 42 caderno 16 (xxii) se "capilar") pode-se basear a "universalidade" do princípio moral, ou melhor, jamais houve outra universalidade além desta objetiva necessidade de uma técnica civil, ainda que interpretada com ideo- logias transcendentes ou transcendentais e apresentada, caso a caso, da maneira historicamente mais eficaz para se alcançar o propósito desejado. Uma concepção como a exposta acima parece conduzir a uma forma de relativismo e, portanto, de ceticismo moral. Observa-se que se pode dizer o mesmo de todas as concepções elaboradas até agora pela filosofia, cuja imperatividade categórica e objetiva sem- pre esteve sujeita a ser reduzida, pela "má vontade" a formas de re- lativismo e ceticismo. Para que a concepção religiosa pudesse pelo menos parecer absoluta e objetivamente universal, seria necessário que ela fosse monolítica ou, pelo menos, intelectualmente unifor- me em todos os crentes, o que está muito distante da realidade (di- ferença de escola, seitas, tendências e diferenças de classe: simples e cultos etc.): daí a função do papa como mestre infalível. O mesmo pode ser dito do imperativo categórico de Kant: "aja como gostaria que agissem todos os homens nas mesmas circuns- tâncias". É evidente que cada qual pode, de boa-fé, pensar que to- dos deveriam agir como ele, mesmo quando | realiza ações que são repugnantes para as consciências mais desenvolvidas ou para uma cultura diferente. Um marido ciumento que mata sua esposa in- fiel pensa que todos os maridos deveriam matar as esposas infiéis etc. Pode-se observar que não existe delinquente que não justifique interiormente o crime cometido, por mais hediondo que seja: por- tanto, os protestos de inocência de tantos condenados não deixam de ter certa convicção de boa-fé; na realidade, cada um deles co- nhece exatamente as circunstâncias objetivas e subjetivas que leva- ram a cometer o crime e desse conhecimento, que muitas vezes não consegue transmitir racionalmente aos outros, vem a convicção de estar "justificado"; somente se seu modo de conceber a vida mudar, chegará a um juízo diferente, o que muitas vezes acontece e explica muitos suicídios. A fórmula kantiana, analisada de modo realista, não vai mais além de um ambiente dado, com todas as suas supers- |22a| 431933-1934: temas de cultura 1º tições morais e costumes bárbaros; é estática, é uma forma vazia que pode ser preenchida com qualquer conteúdo histórico atual e ana- crônico (com suas contradições, é claro, para a qual o que é verdade do lado de lá dos Pirineus, é mentira do lado de cá dos Pirineus). A fórmula kantiana parece superior porque os intelectuais a preen- chem com seu modo particular de viver e agir, podendo-se admitir que, às vezes, certos grupos de intelectuais são mais avançados e civilizados do que seu meio. O argumento do perigo do relativismo e do ceticismo não é, por- tanto, válido. O problema a ser colocado é outro: uma dada con- cepção moral tem em si características de certa duração? Ou muda a cada dia ou, dentro do mesmo grupo, dá origem à formulação da teoria da dupla verdade? Além disso: com base nela é possível constituir uma elite que conduza as multidões, que as eduque e seja capaz de ser “exemplar”? Resolvidos esses pontos afirmativamente a concepção |é justificada e válida. Mas haverá um período de relaxamento e até, de libertinagem e dissolução moral. Isto está longe de ser excluído, mas também não é um argumento válido. Períodos de dissolução moral, apesar do pre- domínio da mesma concepção moral geral, tiveram lugar com fre- quência na história, tendo-se originado de causas reais e concretas e não de concepções morais: estas últimas muitas vezes indicam que uma concepção envelheceu, se desagregou, tornou-se pura hipo- crisia formalista, mas que ainda tenta se manter no auge de forma coercitiva, obrigando a sociedade a levar uma vida dupla; os perío- dos de libertinagem e dissolução reagem precisamente à hipocrisia e à duplicidade de forma exagerada, quase sempre anunciando que uma nova concepção está se formando. O perigo da falta de vivacidade moral, ao contrário, é repre- sentado pela teoria fatalista daqueles grupos que compartilham a concepção de "naturalidade" segundo a "natureza" dos brutos, para os quais tudo é justificado pelo ambiente social. Todo senso de responsabilidade individual se vê entorpecido e cada responsabi- lidade individual se dilui na responsabilidade social abstrata e im- possível de encontrar. Se essa concepção fosse verdadeira, o mundo |23| 44 caderno 16 (xxii) e a história seriam sempre imóveis. Se, de fato, o indivíduo para mudar precisasse que toda a sociedade mudasse antes dele, meca- nicamente, devido a, sabe-se lá, que tipo de força extra-humana, nenhuma mudança jamais aconteceria. A história, pelo contrário, é uma contínua luta de indivíduos e grupos para mudar o que existe em dado momento, mas para que a luta seja eficiente, estes indiví- duos e grupos devem se sentir superiores ao existente, educadores da sociedade etc. O ambiente, portanto, não justifica, mas apenas "explica" o comportamento dos indivíduos, especialmente daqueles historicamente mais | passivos. A "explicação" servirá, às vezes, para ser mais indulgente em relação aos indivíduos e fornecerá material para a educação, mas não deve nunca se transformar em "justificati- va" sem conduzir necessariamente a uma das formas mais hipócri- tas e revoltantes de conservadorismo e "reacionarismo". O conceito de "natural" contrapõe-se ao de "artificial", de "con- vencional". Mas o que significa "artificial" e "convencional" quando se refere a fenômenos de massa? Significa simplesmente "históri- co", adquirido através do desenvolvimento histórico e inutilmente se tenta dar um sentido pejorativo à questão, já que este também penetrou na consciência comum com a expressão de "segunda na- tureza". Podemos, portanto, falar de artifício e convencionalidade com referência a idiossincrasias pessoais, não a fenômenos de massa já em curso. Viajar de trem é "artificial", mas certamente não é o mesmo que usar maquiagem. Segundo as referências feitas nos parágrafos anteriores, como positividade coloca-se o problema de quem terá que decidir se uma determinada conduta moral é a mais compatível com um determi- nado estágio de desenvolvimento das forças produtivas. Certamen- te não se pode falar em criar um "papa" especial ou um departamen- to competente. As forças dirigentes nascerão do próprio fato de que o modo de pensar será orientado em sentido realístico e nasce- rão do choque de opiniões discordantes, sem "convencionalidade" e "artifício", mas "naturalmente". CF. CADERNO 8 (XXVIII), P. 46-47, 47 BIS - 48 BIS, 49. |23a| 451933-1934: temas de cultura 1º § 〈13〉. Origem popular do "super-homem". Cada vez que se en- contra algum admirador de Nietzsche, é oportuno perguntar e averiguar se suas concepções "super-humanas", contra a moral con- vencional etc. etc., são de pura origem nietzschiana, ou seja, são o produto de uma elaboração de pensamento que se deve pôr no âmbito |da "alta cultura” ou têm origens muito mais modestas, vinculadas, por exemplo, com a literatura defolhetim. (E o pró- prio Nietzsche não teria sido influenciado de alguma forma pelos romancistas folhetinescos franceses? E preciso recordar que essa literatura, hoje degradada às portarias e aos desvãos, foi muito di- fundida entre os intelectuais, pelo menos até 1870, assim como hoje são os romances policiais). De todos os modos, parece que se pode afirmar que muito da suposta "super-humanidade" nietzschia- na tem como única origem e modelo doutrinário não Zaratustra, senão O Conde de Monte Cristo, de A. Dumas. O tipo representado mais completamente por Dumas em Monte Cristo encontra nume- rosas réplicas em outros romances do mesmo autor: pode-se identi- ficá-lo, por exemplo, em Athos, dos Três Mosqueteiros, em Giuseppe Balsamo e, talvez, ainda em outros personagens. Assim, quando se lê que alguém é admirador de Balzac, é preciso estar atento: também em Balzac há muito de romance folhetinesco. Vautrin também é, à sua maneira, um super-homem, e o discurso que ele faz a Rastignac em Papà Goriot tem muito de ... nietzs- chiano em sentido popular; o mesmo deve ser dito de Rastignac e Rubempré. (Vincenzo Morello tornou-se "Rastignac" devido a tal filiação ... popular e defendeu "Corrado Brando") [1]. O êxito de Nietzsche foi muito desigual: suas obras completas foram publicadas pelo editor Monanni e se conhecem as origens culturais e ideológicas de Monanni e de sua clientela mais fiel. Vautrin e o "amigo de Vautrin" deixaram marcas profundas na literatura de Paolo Valera e em sua Folla (lembrar o "amigo de Vautrin" turinense da Folla) [2]. Grande apelo popular teve a ideo- logia do "mosqueteiro", tomada do romance de Dumas. |24| 46 caderno 16 (xxii) Que se tenha certo pudor em justificar mentalmente as pró- prias | concepções com os romances de Dumas e Balzac, é fácil de compreender: por isso se justificam tais concepções com Niet- zsche e se admira Balzac como escritor de arte e não como criador de personagens de romances do tipo folhetinesco. Mas a conexão real parece certa culturalmente. O tipo de "super-homem" é o Monte Cristo, liberado daque- la aura particular de "fatalismo", própria do baixo romantismo, e que 〈é〉 ainda mais acentuada em Athos e em G. Balsamo. Monte Cristo, levado à política é extremamente pitoresco: a luta contra os "inimigos pessoais" de Monte Cristo etc. Pode-se observar como certos países se mantiveram provincia- nos e atrasados também nesta esfera, em comparação com outros; enquanto Sherlock Holmes já se tornou anacrônico em grande parte da Europa, alguns países ainda estão em Monte Cristo e Fe- nimore Cooper (cf. "os selvagens” e “malha de ferro” etc.). Cf. livro de Mario Praz: La carne, la morte e il diavolo nella letteratura romantica (Edizione della Cultura)[3]: junto com a pesquisa de Praz, seria preciso fazer esta outra pesquisa: a do "su- per-homem" na literatura popular e suas influências na vida real e nos costumes (a pequena burguesia e os pequenos intelectuais são particularmente influenciados por tais imagens romanescas, que são como seu "ópio", seu "paraíso artificial", em contraste com a mesquinhez e estreiteza de sua vida real imediata): daí o êxito de alguns ditos como: "é melhor viver um dia como leão do que cem anos como ovelha", êxito particularmente grande, junto a quem é, precisa e irremediavelmente, uma ovelha. Quantas dessas "ovelhas" dizem: ah! se eu tivesse o poder, mesmo que por um só dia etc.; ser "justiceiros" implacáveis é a aspiração de quem sente a influência de Monte Cristo. Adolfo Omodeo observou que existe uma espécie de “mão-mor- ta” cultural, constituída pela literatura religiosa, da qual parece que ninguém quer se ocupar, como se não tivesse [1881] importância e função na vida nacional e popular [4].| Além do epigrama da |24a| |25| 471933-1934: temas de cultura 1º "mão- morta" e da satisfação do clero por sua literatura especial não ser submetida a um exame crítico, existe outra área da vida cultural nacional e popular da qual ninguém se ocupa e preocupa criticamente, e é precisamente a literatura de folhetim propria- mente dita, e também em um sentido mais amplo (nesse sentido também pertencem Victor Hugo e Balzac). Em Monte Cristo, há dois capítulos em que se disserta expli- citamente sobre o "super-homem" de folhetim: o intitulado "Ideologia", quando Monte Cristo se encontra com o promotor Villefort, e o que descreve o café-da-manhã com o Visconde de Morcerf, na primeira viagem de Monte Cristo a Paris. Deve-se ver se existem sugestões "ideológicas" desse tipo em outros romances de Dumas. Em os Três Mosqueteiros, Athos se assemelha mais ao homem genérico fatal do baixo romantismo: neste romance, os humores individualistas populares são bastante estimulados com a atividade aventureira e extralegal dos mosqueteiros como tais. Em Giuseppe Balsamo, o poder do indivíduo está ligado às forças obscuras da magia e ao apoio da maçonaria europeia, por isso o exemplo é menos sugestivo para o leitor popular. Em Balzac, as figuras são mais concretamente artísticas, mas ainda assim cabem na atmosfera do romantismo popular. Rastignac e Vautrin cer- tamente não se confundem com os personagens dumasianos e, precisamente por isso, sua influência é mais "confessável", não só por parte de homens como Paolo Valera e seus colaboradores da Folla, mas também, por intelectuais medíocres como V. Morello que, no entanto, se consideram (ou são considerados por muitos) pertencentes à "alta cultura". Quem está próximo de Balzac é Stendhal, com a figura de Ju- lien Sorel e outras de seu repertório romanesco. Sobre o "super-homem" de Nietzsche, além da influência ro- mântica francesa (e, em geral, do culto à Napoleão) | deve-se ver as tendências racistas que culminaram em Gobineau e, poste- riormente, em Chamberlain e no pangermanismo (Treitschke, a teoria da potência etc.). |25a| 48 caderno 16 (xxii) Mas, talvez, o "super-homem" popular dumasiano deva ser consi- derado uma justa reação "democrática" à concepção de origem feu- dal do racismo, que pode ser unida à exaltação do "espírito gaulês" feita nos romances de Eugenio Sue. Como reação a essa tendência do romance popular francês, de- vemos lembrar de Dostoievski: Raskolnikov é o Monte Cristo "cri- ticado" por um pan-eslavista-cristão. Sobre a influência do romance francês folhetinesco em Dostoievski deve-se verificar o único nú- mero dedicado a Dostoievski pela "Cultura" [5]. O personagem popular do "super-homem" contém muitos ele- mentos teatrais externos, mais como uma "prima donna" do que como um super-homem; muito formalismo "subjetivo e objetivo", ambições infantis de ser o "primeiro da classe", mas principalmente de ser considerado e proclamado como tal. Para a relação entre o baixo romantismo e alguns aspectos da vida moderna (atmosfera de Conde de Monte Cristo), deve-se ler o artigo de Louis Gides, na «Revue des deux mondes», de 15 de dezembro de 1932 [6]. Este tipo de "super-homem" tem sua expressão no teatro (espe- cialmente francês, que continua sob muitos aspectos a literatura folhetinesca de 1848): vale a pena ver o repertório "clássico" de Ruggero Ruggeri, como Il marchese di Priola, L’artiglio etc., e mui- tas obras de Henry Bernstein [7]. CF. CADERNO 14 (I), P. 2-3, 14 BIS, 15 BIS, E CADERNO 8 (XXVIII), P. 80 BIS. § 〈14〉. Relações entre Igreja e Estado. (Cf. pág. 15 bis) [1]. O Di- retor Geral do Fundo para o Culto, Raffaele Jacuzio, publicou um Comentário sobre a nova legislação em matéria eclesiástica com pre- fácio de Alfredo Rocco (Turim, Utet, 1932, 8ª Ed, p. 693, L. 60) em que recolhe e comenta todos os atos, tanto dos órgãos estatais italianos quanto dos órgãos vaticanos | para a implementação da Concordata. Referindo-se à questão da Ação Católica, Jacuzio es- creve (p. 203): “dado que o conceito de política inclui não somente a proteção da ordem jurídica do Estado, mas também tudo o que |26| 491933-1934: temas de cultura 1º diz respeito a ações de ordem econômicoCadernos organizada por Gianni Francioni, Giuseppe Cospito e Fabio Frosini, edição que procura aprofundar as referências cronológicas, a pesquisa das fontes, etc. Desta edição saíram em língua italiana os primeiros oito IV cadernos gramscianos e os Cadernos de Tradução, até agora inédi- tos, enquanto os cadernos seguintes ainda devem ser publicados. Por todos estes motivos mencionados acima, quando eu soube que a IGS-Brasil havia decidido iniciar um grande empreendi- mento coletivo para uma nova tradução integral dos Cadernos do Cárcere, manifestei meu interesse e apoio à iniciativa. O conheci- mento dos Cadernos na forma como foram escritos por Gramsci é, atualmente, o melhor ponto de partida para ler e estudar a maior obra deste autor. Esta obra já está integralmente disponível em es- panhol (onde recentemente foi lançada uma segunda tradução pela Editora Akal). Eu pessoalmente manifesto a esperança de que no- vas traduções completas das obras gramscianas (dos Cadernos, mas possivelmente também das Cartas do Cárcere, dos escritos pré-car- cerários e das cartas precedentes à prisão) estejam disponíveis ao menos em todas as principais línguas do mundo. Uma tradução tão abrangente quanto esta nova edição em lín- gua portuguesa, levada a termo em um período bastante limitado, graças ao empenho militante de muitos estudiosos e estudiosas da IGS-Brasil, apresenta inevitáveis problemas de amálgama da termi- nologia usada pelos vários tradutores, para exprimir temas e pro- blemas gramscianos. Certamente uma atenção especial a esta e a outras questões relacionadas será dada pelo grupo que levou adian- te este esforço coletivo tão relevante. O tempo, o debate público, o cotejo entre os estudiosos e os leitores nos dirá muito – nos próximos anos – sobre o resultado alcançado com esta edição e também, eventualmente, sobre o seu aperfeiçoamento. Contudo, permanecerá válida a direção que esta edição indica: traduzir e ler Gramsci inteiramente, em primeiro lu- gar aquele dos Cadernos, contextualizar sempre mais, no tempo e no espaço os seus escritos, as suas afirmações, as suas palavras, no contexto político e cultural nos quais nasceram, perquirindo tam- bém as variações e inclusive as contradições internas aos seus escri- tos – para melhor compreender o alcance atual do seu pensamento, a sua validade ou a sua tradutibilidade (conceito gramsciano de ex- traordinária relevância) no nosso mundo de hoje. V Desta perspectiva, o trabalho que a IGS-Brasil levou a termo é, sem dúvida, de grande importância e nos faz compreender como as obras de Gramsci devem ser seriamente lidas e estudadas. Por isso, saúdo a nova tradução dos Cadernos do Cárcere para o português e agradeço todas e todos aqueles que dela participaram e à IGS-Bra- sil no seu conjunto por ter dado vida a esta iniciativa. Sigamos em frente com Gramsci: Nino vive conosco se a sua lei- tura também nos ajudar a compreender a realidade da sociedade atual. Guido Liguori International Gramsci Society VI AGRADECIMENTOS A tradução dos Cadernos do Cárcere de Gramsci, realizada vo- luntária e gratuitamente por sócios da IGS-BR, foi submetida a re- visão e padronização de profissionais, aos quais se retribuiu finan- ceiramente. Realizamos uma campanha de arrecadação financeira entre os sócios da IGS-Brasil que ajudou a cobrir, parcialmente, essa despesa. Constam a seguir os doadores a quem se agradece pelo espírito coletivo: André Silva Martins (UFJF); Ascisio dos Reis Pe- reira (UFSCar); Danuta Estrufika C. Luiz (UEPG-PR); Dermeval Saviani (UNICAMP); Dilma Andrade de Paula (UFU); Douglas Christian F. de Melo (UFES); Emilie Faedo della Giustina (UFF); Erika Laurinda Amusquivar (UnB); Eurelino T.; Ivete Simionatto (UFSC); Leonardo Seabra Puglia (FCSMA-RJ); Lincoln Secco (USP); Luzinete de Souza Oliveira (ES); Márcia Aparecida Jaco- mini (UNIFESP); Marcos Aurélio da Silva (UFSC); Marcos Fran- cisco Martins (UFSCar); Marcos Del Roio (UNESP); Mª Del Carmen Cortizo (UFSC); Mª Margarida Machado (UFG); Mª Socorro R. Militão (UFU); Marilia Etienne Arreguy (UFF); Mari- na Maciel Abreu (UFMA); Pedro Cláudio C. B. Bocaiuva Cunha (UFRJ); Raúl Burgos (UFSC); Renê Trentin Silveira (UNI- CAMP); Rodolfo S. P. Darrieux (RJ); Victor Leandro C. Gomes (UFF); Zuleide Simas da Silveira (UFF); Núcleo de Estudos e Pes- quisas em Filosofia Política e Educação (NuFiPE/UFF); Núcleo de Estudos Trabalho, Políticas Públicas e Serviço Social (TRAPPUS/ PUC-Rio). Agradecemos também ao CNPq, pelo financiamento ao projeto: "Contribuições de Gramsci para pensar a educação de pessoas trabalhadoras" – coordenado pela Profª Mª Margarida Ma- chado (UFG), que viabilizou a diagramação desta 1ª Edição, e ao projeto: "Traduzir, atualizar, potencializar os desafios postos pelos Cadernos do Cárcere de A. Gramsci" – coordenado pela Profª Mª Socorro Ramos Militão (UFU), financiado por emenda da Depu- tada Federal por Minas Gerais, Dandara Tonantzin Silva Castro (PT), que viabilizou o lançamento desta 1ª Edição dos Cadernos do Cárcere pela IGS-Brasil. VII PREFÁCIO Etapas das traduções dos Cadernos do cárcere no Brasil Na segunda metade dos anos 1960, quando estava já instaurada a ditadura civil-militar no Brasil, a Editora Civilização Brasileira, além de uma seleção das Cartas do cárcere (1966)1, publicou uma parte substancial2 dos seis volumes dos Quaderni del carcere, de A. Gramsci, organizados por P. Togliatti e F. Platone e publicados pela Editora Einaudi de Turim3. Essa “Edição temática”, estrutura- da com base nos temas centrais tratados nos “cadernos especiais” de Gramsci, havia sido concebida pelos editores italianos para “agrupar as notas gramscianas por assuntos e temas homogêneos, e organizar tais agrupamentos em uma série de volumes indepen- 1 Com a seleção e tradução de Noênio Spínola, a Civilização Brasileira publica 233 Cartas do cárcere, de Gramsci, tendo como base a edição italiana organizada por S. Caprioglio e E. Fubini, Lettere dal carcere, publicada pela Einaudi de Turim, em 1965, que continha 428 cartas. 2 A Editora Civilização Brasileira publicou, em 1966: Concepção dialética da história (Título dado ao 1º volume italiano Il materialismo storico e la filosofia di Benedetto Croce); em 1967: Os intelectuais e a organização da cultura; Maquiavel, a política e o Estado moderno; em 1968: Literatura e vida nacional (contendo só uma seleção da edição original). Os volumes Il Risorgimento e também Passato e Presente não foram traduzidos. Para mais detalhes desse processo de publicação, cfr. C. Nelson Coutinho, “Introdução” a Antonio Gramsci, Cadernos do cárcere, vol. 1, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1999, pp. 32-38. 3 Togliatti, P., - Platone, F. (a cura di), Quaderni del carcere di Gramsci, 6 voll, Ei- naudi, Torino, 1948-1951. Os títulos dos seis volumes da “edição temática” italia- na são os seguintes: Il materialismo storico e la filosofia di Benedetto Croce (1948); Gli intellettuali e l’organizzazione della cultura (1949); Note sul Machiavelli, sulla politica e sullo Stato moderno (1949); Il Risorgimento (1950); Letteratura e vita nazionale (1950); Passato e Presente (1951). Em 1977, com base na “edição crítica” de V. Gerratana, L. Gruppi organiza uma nova edição “riveduta e integrata” da “edição temática”, publicada pela Editora Riuniti de Roma. VIII dentes”(Gerratana, 1975, p. XXXIII)4. Na prática, ao editar os ca- dernos manuscritos de Gramsci produzidos na prisão, a “Edição te- mática” excluía os textos “miscelâneos”, notas de primeira redação, e depurava algumas partes dos cadernos que podiam gerar atritos com a orientação oficial do partido e a ortodoxia soviética (Liguo- ri, 1996, pp. 56-57)5. Embora importante, por ter proporcionado uma aproximação fundamental à obra carcerária de Gramsci, com o tempo, a tradução incompleta da “edição temática” realizada no Brasil se mostrou problemática e insuficiente, não só pelas questões inerentes à edição de Togliatti-Platone,e social, é muito difícil... considerar, a priori, que na Ação Católica esteja excluída qualquer ação política quando esta inclui... a ação social e econômica e a edu- cação espiritual da juventude” [2]. Sobre a Concordata também vale a pena ver o livro de Vincen- zo Morello: Il conflitto dopo il Concordato (Bompiani, 1931) e a resposta de Egilberto Mártir: Ragioni della Conciliazione (Roma, "Rassegna Romana", 1932). Sobre a controvérsia Morello-Mártir, ver o artigo assinado por Novus na «Critica Fascista», de 1° de fevereiro de 1933 (Una polemica sulla Conciliazione) [3]. Morello, destaca não somente aqueles pontos da Concordata em que o Es- tado renuncia a si mesmo, abdica da sua soberania, mas, parece também, destacar como em alguns pontos as concessões feitas à Igreja são mais amplas do que aquelas feitas por outros países da Concordata. Os pontos polêmicos são principalmente quatro: 1) casamento; no art. 43 da Concordata, o casamento é regido pelo direito canônico, ou seja, aplica-se no âmbito estatal uma lei alheia ao Estado. Por isso, os católicos, com base em um direito alheio ao Estado, podem anular o casamento, ao contrário dos não católicos, quando "ser ou não ser católico deveria ser irrelevante para fins ci- vis"; 2) no art. 5º, § 3, existe a proibição de assumir determinados cargos públicos para os sacerdotes apóstatas ou submetidos à cen- sura, ou seja, aplica-se uma "pena" do Código Penal a pessoas que não cometeram, perante o Estado, qualquer ato criminoso punível; O art. 1° do Código afirma, pelo contrário, que nenhum cidadão pode ser punido salvo se cometeu um ato expressamente previsto no direito penal como| crime; 3) para Morello, não fica claro quais são as razões de utilidade que levaram o Estado a fazer tabula rasa das leis subversivas ao reconhecer a existência jurídica, o direito de possuir e administrar seus próprios bens das entidades eclesiásticas e ordens religiosas; 4) ensino; exclusão total e completa do Estado das escolas eclesiásticas, e não apenas daquelas que preparam tec- nicamente os sacerdotes (ou seja, exclusão do controle estatal do ensino de teologia etc.), mas também, das que se dedicam ao en- sino geral. O art. 39 da Concordata também se refere às escolas |26a| 50 caderno 16 (xxii) primárias e médias mantidas pelo clero em muitos seminários, co- légios e conventos, e que são utilizadas para atrair crianças e jovens ao sacerdócio e à vida monástica, mas que, em si mesmas ainda não são especializadas. Esses alunos deveriam ter direito à proteção do Estado. Parece que em outras concordatas foram levadas em con- sideração certas garantias para com o Estado, a fim de que o clero não fosse formado de maneira contrária às leis e à ordem nacional e exigindo, precisamente, para ocupar muitos cargos eclesiásticos, que fosse obrigatório um diploma de estudos públicos (o que dá origem às Universidades). § 〈15〉. Origem popular do super-homem. (Cf. página 23 bis) [1]. Sobre este tema vale a pena ver a obra de Farinelli, Il romanticismo nel mondo latino (3 vols., Bocca, Turim). No vol. 2º, há um capítulo em que se fala do motivo do “homem fatal” e do “gênio incompre- endido” [2]. CF. CADERNO 15 (II), P. 39. § 〈16〉. Os fundadores da filosofia da práxis e a Itália. Uma coletâ- nea sistemática de todos os escritos (incluindo a correspondência) [1] que se referem à Itália ou consideram problemas italianos. Mas uma coletânea que se limitasse a essa escolha não seria orgânica e completa. Existem escritos dos dois autores que, embora não se re- firam especificamente à Itália, têm um significado para a Itália e, naturalmente, um significado não genérico porque, do contrário, poder-se-ia dizer que todas as obras dos dois escritores se referem à Itália. O plano da coletânea poderia ser construído segundo | es- tes critérios: 1) escritos que se referem especificamente à Itália; 2) escritos que se referem a temas "específicos" de crítica histórica e política, que, embora não se refiram à Itália, têm relação com os problemas italianos. Exemplos: o artigo sobre a Constituição es- panhola de 1812 tem relação com a Itália devido à função política que essa Constituição teve nos movimentos italianos até 1848 [2]. Também se relaciona com a Itália a crítica da Miséria da filosofia contra a falsificação da dialética hegeliana feita por Proudhon [3], que tem reflexos em movimentos intelectuais italianos correspon- |27| 511933-1934: temas de cultura 1º dentes (Gioberti; o hegelianismo dos moderados; conceito de re- volução passiva; dialética de revolução-restauração). O mesmo se pode dizer dos escritos de Engels*sobre os movimentos libertários espanhóis de 1873 [4] (após a abdicação de Amedeo di Savoia), [que] estão relacionados à Itália etc. Talvez não seja necessário fazer uma coletânea dessa segunda série de escritos, sendo suficiente uma exposição crítico-analítica. Talvez o plano mais orgânico pudesse ser dividido em três partes: 1) introdução histórico-crítica; 2) escritos sobre a Itália; 3) análise dos escritos indiretamente relacionados com a Itália, ou seja, que se proponham resolver questões essenciais e específicas também para a Itália. CF. CADERNO 9 (XIV), P. 73 BIS - 74. § 〈17〉. A tendência de diminuir o adversário: por si mesma é uma demonstração da inferioridade de quem se deixa possuir por ela. Na verdade, tende-se a diminuir o adversário raivosa- mente para poder acreditar que certamente se sairá vitorioso. Por isso, nesta tendência, é inerente um juízo sobre a própria incapacidade e fraqueza (que se quer passar por coragem); tam- bém se poderia reconhecer nela um início de autocrítica (que se envergonha de si mesma, que tem medo de se manifestar expli- citamente e com coerência sistemática). Acredita-se na "vontade de acreditar" como condição de vitória, o que não estaria errado, se não fosse concebida mecanicamente | e não se tornasse um autoengano (quando contém uma confusão indevida entre mas- sa e líderes e reduz a função do líder ao nível do mais atrasado e incôndito seguidor: no momento da ação, o líder pode buscar incutir nos seguidores a convicção de que o adversário será certa- mente vencido, mas ele próprio deve fazer um juízo exato e cal- cular todas as possibilidades, inclusive as mais pessimistas). Um elemento dessa tendência é de natureza opiácea: com efeito, é próprio dos fracos entregarem-se aos devaneios, sonharem acor- * NO MS.: “E.”. |27a| 52 caderno 16 (xxii) dados que seus desejos são realidade, que tudo se realiza confor- me seus desejos. Por isso vê-se, por um lado, a incapacidade, a estupidez, a barbárie, a covardia etc., e por outro, as qualidades mais elevadas de caráter e inteligência: a luta não pode ser vaci- lante e já se contar com a vitória nas mãos. Mas a luta continua sendo sonhada e vencida em sonho. Outro aspecto dessa ten- dência é ver as coisas holograficamente, nos momentos culmi- nantes de alto caráter épico. Na realidade, por onde quer que se comece a agir, as dificuldades graves aparecem imediatamente, pois nunca se havia pensado concretamente nelas; e visto que é sempre necessário começar pelas coisas pequenas (sobretudo porque as grandes coisas são um conjunto de pequenas coisas), a "coisa pequena" passa a ser desprezada; é melhor continuar sonhando e adiar a ação para o momento da "grande coisa". A função de sentinela é árdua, enfadonha, exaustiva; por que "des- perdiçar" assim a personalidade humana e não a conservar para a grande hora do heroísmo? E assim por diante. Não se reflete em reconhecer que, se o adversário o domina e você o diminui, você foi dominado por alguém que considera- va ser inferior; mas, então, como ele conseguiu dominá-lo? Por que ele o venceu e foi superior a você naquele momento decisivo que deveria dar a medida da sua superioridade e da inferioridade dele? Certamente haverá no meio do caminho o | “rabo do dia- bo”. Pois bem, aprenda a ter o rabo do diabo a seu favor. Uma alusão literária:no capítulo XIV da segunda parte de Dom Quixote, o cavaleiro dos Espelhos afirma ter vencido Dom Quixote: “Y héchole confesar que es más hermosa mi Casildea que su Dulcinea; y en solo este vencimiento hago cuenta que he vencido a todos los caballeros del mundo, porque el tal Don Quijote que digo, los ha vencido a todos; y habiéndole yo venci- do a él, su gloria, su fama y su honra, se ha transferido y pasado a mi persona, Y tanto el vencedor es más honrado Cuanto más el vencido es reputado; |28| 531933-1934: temas de cultura 1º así, que ya corren por mi cuenta y son mías las innumerables hazañas del ya referido Don Quijote”* [1]. CF. CADERNO 8 (XXVIII), P. 48 BIS - 49, E CADERNO 9 (XIV), P. 73. § 〈18〉. “Paritário e paridade”. O significado de paritário e pari- dade é um dos mais interessantes e “significativos” Significa que 1 000 000 tem os mesmos direitos que 10 000 e que, às vezes, um tem os mesmos direitos que 50 000. O que significa paritário nas empresas Schneider de Creusot? O que isso significa no Conselho Nacional da Indústria de Mineração de Carvão, na Inglaterra? O que isso significa no Conselho de Administração da OIT, de Ge- nebra etc.? Entre quem se estabelece a paridade? O curioso é que sejam os católicos os mais ferrenhos defensores da paridade; para eles, uma pessoa humana (uma alma) deveria ser igual à outra etc.; mas já Rosmini queria que o poder representativo fosse estabele- cido não segundo a "alma imortal", igualmente valiosa para Deus, senão segundo a propriedade. Nada de espiritualismo! CF. CADERNO 9 (X1V), P. 31. § 〈19〉. O médico católico e o doente (moribundo) acatólico. Conferir em Civiltà Cattolica,| de 19 de novembro de 1932, p. 381, a resenha do livro de Luigi Scremin, Appunti di morale pro- fessionale per i medici, (Roma, Editora “Studium”, 1932, in 12°, p. 118, 5 L.): “... assim, na p. 95, mesmo citando Prümmer, não é correto dizer que ‘caso um acatólico deseje e exija um ministro de sua religião, é lícito que o médico, na falta de outros, dê a co- nhecer ao próprio ministro o desejo do doente, mas somente está obrigado (sic) a fazê-lo quando julgar que será prejudicial para o doente não satisfazer esse desejo’. A sentença do moralista é bem |28a| * "E DEIXE-ME CONFESSAR QUE MINHA CASILÉIA É MAIS BELA DO QUE SUA DUL- CINEIA; E SÓ COM ESSA VITÓRIA EU CONSIDERO QUE DERROTEI TODOS OS CAVA- LEIROS DO MUNDO, POIS O DOM QUIXOTE, DIGO, DERROTOU TODOS ELES; E TEN- DO-O DERROTADO, SUA GLÓRIA, SUA FAMA E SUA HONRA FORAM TRANSFERIDAS E PASSADAS PARA MIM, E TANTO MAIS HONRADO É O VENCEDOR; QUANTO MAIS O VENCIDO É REPUTADO; DE MODO QUE AS INÚMERAS FAÇANHAS DO SUPRACITADO DOM QUIXOTE SÃO AGORA MINHAS E SÓ MINHAS." 54 caderno 16 (xxii) distinta; de fato, Prümmer (I, 526) diz que não se deve chamar um ministro acatólico, o qual não tem nenhum poder para admi- nistrar os sacramentos: mas antes de tudo, ajudar o doente a fazer um ato de contrição. Que, se o doente exige absolutamente que se chame o ministro acatólico e da recusa pudessem decorrer graves danos, pode-se (já não, deve-se) dar a conhecer a tal ministro o desejo do doente. Também se deveria distinguir se o doente é de boa-fé e pertence a um rito não católico, em que os ministros são investidos de verdadeira ordem sagrada, como entre os gregos separados” [1]. A passagem é significativa. CF. CADERNO 9 (XIV), P. 93 - 93 BIS. § 〈20〉. As inovações no direito processual e na filosofia da práxis. A expressão contida no prefácio à Crítica da Economia política (1859*): "assim como não se pode julgar um indivíduo pelo que ele pensa de si mesmo" [1] pode estar relacionada à transforma- ção ocorrida no direito processual e às discussões teóricas a esse respeito que, em 1859, eram relativamente recentes. O velho procedimento exigia, efetivamente, a confissão do acusado (es- pecialmente no caso de crimes capitais) para emitir a sentença condenatória: o “habemus confitentem reum” parecia ser a cul- minação de qualquer procedimento judiciário, e daí as induções, as pressões morais e os vários graus de tortura (não como pena, mas como meio de instrução). |No procedimento renovado, o interrogatório do acusado passa a ser apenas um elemento a mais, às vezes insignificante, mas, em qualquer caso, útil para conduzir as investigações suplementares da instrução e do processo, tanto que o acusado não presta juramento e lhe é reconhecido o di- reito de não responder, de ser reticente e até mesmo de mentir, enquanto que se dá o peso máximo às provas materiais objetivas e aos testemunhos desinteressados (tanto que os funcionários do Estado não devem ser considerados testemunhas, mas apenas re- latores do Ministério Público). * NO MS.: “1856”. |29| 551933-1934: temas de cultura 1º Deve-se pesquisar, se já foi feita uma aproximação entre o mé- todo da instrução investigativa para reconstruir a responsabili- dade penal dos indivíduos singulares e o método crítico, próprio da filosofia da práxis, para reconstruir a "personalidade" objetiva dos eventos históricos e seu desenvolvimento 〈se já foi realizado〉 e, se já foi examinado*o movimento pela renovação do direito processual como um elemento "sugestivo" para a renovação do estudo da história: Sorel, poderia ter feito essa observação, que encaixa bem com seu estilo. Deve-se observar, como a renovação do direito processual, cuja importância não foi secundária inclusive no âmbito políti- co, determinando um reforço da tendência à divisão dos poderes e à independência da magistratura (portanto, à reorganização geral da estrutura [do aparelho] governamental), havia se debi- litado em muitos países, voltando, em muitos casos, aos anti- gos métodos de instrução e, inclusive, à tortura: os sistemas da polícia americana, com seus interrogatórios em que se admite a coerção física, são bastante conhecidos. Assim, perdeu muito de suas características a figura do promotor público, que deveria re- presentar objetivamente os interesses da lei e da sociedade legal, os quais são prejudicados não só quando um culpado fica impu- ne, mas também e, principalmente, se um inocente é condenado. Parece, ao contrário, que se tenha formado a convicção de que o promotor é um advogado do diabo, que quer mandar para o inferno especialmente os inocentes, para zombar de Deus e, por isso, sempre está querendo |sentenças de condenação. CF. CADERNO 1 (XVI), P. 72 BIS. § 〈21〉. Oratória, conversação, cultura. Macaulay, no seu ensaio sobre Oratori attici (conferir a citação), atribui a facilidade para deixar-se deslumbrar por sofismas quase pueris, própria dos gre- gos, ainda mais cultos ao predomínio que na educação e na vida grega tinha o discurso vivo e falado. O hábito da conversação e da |29a| * NO MS.: “EXAMINOU”. 56 caderno 16 (xxii) oratória gera uma certa faculdade de encontrar com muita rapidez argumentos de certa aparência brilhante, que fecham momenta- neamente a boca do adversário e deixam estupefato o ouvinte [1]. Pode-se transportar esta observação também a alguns fenômenos da vida moderna e à labilidade da base cultural de alguns grupos sociais, como os operários urbanos. Isso explica, em parte, a des- confiança dos camponeses contra os intelectuais nos comícios: os agricultores que meditam largamente as afirmações que ouviram declamar e cujo brilho os afeta momentaneamente, acabam com o bom senso que reprende o barlavento após a emoção suscitada pelas palavras cativantes, encontrando as deficiências e a superficialidade e, portanto, se tornam sistematicamente desconfiados. Outra observação de Macaulay que deve ser considerada: faz re- ferência a uma sentença de Eugenio di Savoia, quem dizia que, se tornaram grandes generais aqueles que foram colocados de repente à cabeça do exército e, portanto, na necessidade de pensar às gran- des e amplas manobras [2]. Ou seja, quem por profissão se tornou escravo das minúcias se burocratiza: vê a árvore e não mais a flores- ta, o regulamento e não o plano estratégico.Contudo, os grandes capitães sabiam complementar uma coisa com a outra: o controle do rancho dos soldados e a grande manobra etc. Pode-se acrescentar ainda que o jornal se aproxima muito | à oratória e à conversação. As matérias de jornal são geralmente apres- sadas, improvisadas, semelhantes, em grandíssima parte, aos dis- cursos de comício, pela rapidez da idealização e da argumentação. Poucos são os jornais que têm redatores especializados e, contudo, também a atividade destes é em grande parte improvisada: a espe- cialização serve para improvisar melhor e mais rapidamente. Fal- tam especialistas nos jornais italianos, as resenhas periódicas mais elaboradas e ponderadas (sobre o teatro, sobre a economia etc.); os colaboradores suprem-nas, somente em parte, e, não existindo uma direção unitária, deixam escassos rastros. A solidez de uma cultura pode ser, portanto medida em três graus principais: a) aquela dos leitores de somente jornais; b) aquela de quem lê também revistas além das de variedade; c) aquela dos leitores de livros, sem levar |30| 571933-1934: temas de cultura 1º em conta a grande multidão (a maioria) que não lê nem sequer os jornais e se forma alguma opinião assistindo às reuniões periódicas e dos períodos eleitorais, realizadas por oradores de diversíssimos níveis. Observação feita no cárcere de Milão, onde se encontrava à venda «Il Sole»: a maioria dos detentos, também os políticos, liam «La Gazzetta dello Sport». Entre aproximadamente 2.500 detentos se vendiam, no máximo, 80 exemplares do «Sole»; além da «Gazzeta dello Sport». As publicações mais lidas eram a «Do- menica del Corriere» e «Il Corriere dei Piccoli». Certo é que, o processo de civilização intelectual se desenvolveu por um período muito longo especialmente na forma oratória e re- tórica, isto é, com nulo ou escassíssimo subsídio de escritos: a me- mória das noções ouvidas verbalmente era a base de toda instrução (e assim continua ainda em alguns países, por exemplo, Abissínia). Uma nova tradição começa com o humanismo, que introduz a “ta- refa escrita” nas escolas e no ensino: porém, pode-se dizer que já no Medievo, com a escolástica, se critica implicitamente | a tradição da pedagogia fundada sobre a oratória e se busca outorgar à faculda- de mnemônica um esqueleto mais firme e permanente. Refletindo, pode-se observar que, a importância dada por parte da escolástica ao estudo da lógica formal é de fato uma reação contra o “descuido” demonstrativo dos velhos métodos de cultura. Os erros de lógica formal são especialmente comuns da argumentação falada. A arte da impressão revolucionou o mundo cultural todo, forne- cendo à memória um subsídio de valor inestimável e permitindo uma extensão da atividade educativa inaudita. Nesta investigação se encon- tra, portanto, implícita outra das modificações qualitativas para além de quantitativas (extensão de massa), aportadas ao modo de pensar do desenvolvimento técnico e instrumental da organização cultural. Ainda hoje a comunicação falada é um meio de difusão ideológi- ca que tem uma velocidade, uma área de ação e uma simultaneidade emotiva enormemente mais vasta que a comunicação escrita (o teatro, o cinematógrafo e o rádio com a difusão de alto-falantes nas praças, vencem todas as formas de comunicação escrita, do livro à revista, ao jornal, ao jornal mural), mas na superfície, não em profundidade. |30a| 58 caderno 16 (xxii) As Academias e as Universidades como organizações de cultu- ra e meios para difundi-la. Nas Universidades as lições orais e os trabalhos de seminário e de laboratório experimental, a função do grande professor e aquela do assistente. A função do assisten- te profissional e aquela dos “veteranos de Santa Zita” da escola de Basilio Puoti, de quem fala De Santis [3], isto é a formação na mesma aula de assistentes “voluntários”, acontecida por seleção espontânea devida aos mesmos alunos que ajudam o professor e continuam suas lições ensinando praticamente a estudar. Algumas das precedentes observações foram sugeridas pela lei- tura do Saggio popolare di sociologia, que sofre precisamente de todas as deficiências da conversação, do descuido argumentativo da oratória, da débil estrutura da lógica formal [4]. Seria curio- so fazer sobre | este livro uma exemplificação de todos os erros lógicos indicados pelos escolásticos, lembrando a justíssima ob- servação que, também os modos do pensamento são elementos adquiridos e não inatos, cujo correto emprego (após a aquisição) corresponde a uma qualificação profissional [5]. Não os possuir, não se dar conta de 〈não〉 possui-los, não se colocar o problema de adquiri-los através de um “aprendizado”, equivale à alegação de construir um carro sabendo empregar e tendo à disposição a ofi- cina e as ferramentas de um ferreiro da aldeia. O estudo da “velha lógica formal” caiu em descrédito, em parte com razão. Mas, o problema de fazer o aprendizado da lógica formal como controle do descuido demonstrativo da oratória que se apresenta nova- mente, apenas coloca o problema fundamental de criar uma nova cultura sobre uma base social nova, que não tem tradições como a velha classe dos intelectuais. Um “bloco intelectual tradicional”, com a complexidade e capilaridade das suas articulações conse- gue assimilar, no desenvolvimento orgânico de cada componente singular, o elemento “estágio da lógica” ainda sem necessidade de um estágio distinto e individualizado (assim como os jovens de famílias cultas apreendem a falar “segundo a gramática”, isto é, aprendem o tipo de língua das pessoas cultas ainda sem neces- sidade de particulares e fatigosos estudos gramaticais, a diferença |31| 591933-1934: temas de cultura 1º dos jovens de famílias nas quais se fala um dialeto ou uma língua dialetizada). Mas, nem sequer isso acontece sem dificuldade, atri- tos e perdas de energia. O desenvolvimento das escolas técnico-profissionais em todos os graus pós-elementares, representou o problema em outros mo- dos. Podemos lembrar a afirmação do Prof. G. Peano, que também no Politécnico e nas escolas superiores de matemática resultam melhor preparados os alunos provenientes do ginásio-liceu, em confronto com aqueles provenientes dos institutos técnicos [6]. Esta melhor preparação se deve ao complexo ensinamento “hu- manista” (história, literatura, filosofia) como se encontra ampla- mente demonstrado em outras |notas (a série sobre “intelectuais” e o problema escolástico) [7]. Por que a matemática (o estudo da matemática) não pode dar os mesmos resultados, se a matemática se encontra tão próxima da lógica formal que se confunde com ela? No critério do fato pedagógico, se há semelhança há também uma enorme diferença. A matemática se baseia essencialmente na série numérica, ou seja, cobre uma série de igualdades (1 = 1) que podem ser combinadas em modos infinitos. A lógica for- mal tende a fazer o mesmo, mas somente até certo ponto: a sua abstração se mantém somente no início do aprendizado, na for- mulação imediata nua e crua dos seus princípios, porém se atua concretamente no mesmo discurso no qual a formulação abstrata é realizada. Os exercícios de línguas que se fazem no ginásio-liceu fazem aparecer, após certo tempo, que nas traduções latino-ita- lianas, greco-italianas, não há nunca identidade nos termos das línguas colocadas em confronto, ou ao menos que tal identidade, que parece existir no início do estudo (rosa italiano = rosa lati- no), vai sempre complicando-se com o progresso do “aprendiza- do”, vai, isto é, afastando-se do esquema matemático para chegar a um juízo histórico e de gosto, no qual os tons, a expressividade “única e individualizada” tem a prevalência. Isto não acontece so- mente no confronto entre duas línguas, mas acontece no estudo da história de uma mesma “língua”, que faz aparecer como varia semanticamente o mesmo som-palavra através do tempo e como |31a| 60 caderno 16 (xxii) varia sua função no período (mudançasmorfológicas, sintáticas, semânticas, além de fonéticas). Nota. Uma experiência realizada para demonstrar quanto seja lá- bil o aprendizado realizado via “oratória”: doze pessoas de um grau elevado de cultura repetem uma para a outra um fato complexo e depois cada uma escreve aquilo que se lembra do fato ouvido: as doze versões diferem da narração | original (escrita para contro- le) frequentemente de modo exagerado. Esta experiência, repetida, pode servir para mostrar como deve desconfiar-se da memória não educada com métodos apropriados. CF. CADERNO I (XVI), P. 80-80 BIS E 97 BIS-99. § 〈22〉. Sentimento religioso e intelectuais do século XIX (até a guerra mundial). Em 1921 o editor Bocca de Turim reuniu em três grossos volumes, com prefácio de D. Parodi, uma série de Confes- sioni e professioni di fede di Letterati, Filosofi, uomini politici ecc., publicadas precedentemente na revista «Coenobium», publicada em Lugano, por Bignami, como respostas a um questionário sobre o sentimento religioso e suas diversas relações [1]. O compêndio pode ser interessante para aqueles que desejam estudar as correntes de opinião no final do século passado e no início do atual entre os intelectuais especialmente “democráticos”, embora seja defeitu- osa em muitos aspectos. No 1o volume estão contidas as respostas dos seguintes literatos etc. italianos: Angiolo Silvio Novaro, Prof. Alfredo Poggi, Prof. Enrico Catellani, Raffaele Ottolenghi, Prof. Bemardino Varisco, Augusto Agabiti, Prof. A. Renda, Vittore Mar- chi, diretor do jornal Dio e Popolo, Ugo Janni, pastor valdense, A. Paulo Nunzio, Pietro Ridolfi Bolognesi, Nicola Toscano Stanziale, diretor da Rassegna critica, Dr. Giuseppe Gasco, Luigi Di Macia, Ugo Perucci, professor primário, Prof. Casimiro Tosini, diretor de Escola Normal, Adolfo Artioli, Prof. Giuseppe Morando, diretor da Rivista Rosminiana, diretor do Liceu Ginásio de Voghera, Prof Alberto Friscia, Virtorio Nardi, Luigi Marrocco, publicista, G B. Penne, Guido Piccardi, Renato Bruni, Prof. Giuseppe Rensi. |32| 611933-1934: temas de cultura 1º No 2º volume: Francesco Dei Greco, prof. diretor de manicô- mio, Alessandro Bonucci, prof. universitário, Francesco Cosentini, prof. universitário, Luigi Pera, médico, Filippo Abignente, diretor do Carattere, Giampiero Turati, Bruno Franchi, redator-chefe da Scuola Positiva di Diritto Criminnle, Manfredi Siotto-Pintor, prof. universitário, Prof. Enrico Caporali, Giovanni Lanzalone, diretor da | revista «Arte e Morale», Leonardo Gatto-Roissard, tenente das tropas alpinas, Pietro Raveggi, publicista, Widar Cesa- rini-Sforza, Leopoldo De Angelis, Prof. Giovanni Predieri, Orazio Bacci, Giuseppe Benetti, publicista, Prof. G. Capra-Cordova, Cos- tanza Pafazzo, Pietro Romano, GiuIio Carvaglio, Leone Luzzatto, Adolfo Faggi, prof. universitário, Ercole Quadrelli, Carlo Frances- co Gabba, senador, prof. universitário, dr. Ernesto Lattes, publicis- ta, Settimio Corti, prof. de Filosofia, Bruno Villanova d'Ardenghi (Bruno Brunelli), publicista, Paolo Calvino, pastor evangélico, Prof. Giuseppe Lipparini, Prof. Oreste Ferrini, Prof. Luigi Rossi Casè, Prof. Antioco Zucca, Vittoria Fabrizi de' Biani, Prof. &ido FaIorsi, Prof. Benedetto De Luca, publicista, Giacomo Levi Minzi, bibliófilo (!) da Biblioteca de São Marcos, Prof. Alessandro Arrò, Bice Sacchi, Prof. Ferdinando Belloni-Filippi, Nella Doria- Cam- bon, Prof. Romeo Manzoni. No 3º volume: Romolo Murri, Giovanni Vidari, professor uni- versitário, Luigi Ambrosi, professor universitário, Salvatore Fari- na, Angelo Flavio Guidi, publicista, Conde Alessandro d'Aquino, Baldassarre Labanca, prof. universitário de História do Cristia- nismo, Giannino Antona-Traversi, autor dramático, Prof. Mario Pilo, Alessandro Sacchi, prof. universitário, Angelo De Guberna- tis, prof. universitário, Giuseppe Sergi, prof. universitário, Adolfo Zerboglio, prof. universitário, Vittorio Benini, prof. universitário, Paolo Arcari, Andrea Lo Forte Randi, Arnaldo Cervesato, Giu- seppe Cimbali, prof. universitário, Alfredo Melani, arquiteto, Sil- vio Adrasto Barbi, professor, Prof. Massimo Bontempelli, Achille Monti, prof. universitário, Velleda Benerti, estudante, Achille Lo- ria, Prof. Francesco Pietropaolo, Prof. Aimilcare Lauria, Eugenio Bermani, escritor, Ugo Forrini dcl Giglio, Luigi Puccio, advogado, |32a| 62 caderno 16 (xxii) Maria Nono-Villari, escritora, Gian Pietro Lucini, Angelo Valdar- mini, prof. universitário, Teresina Bontempi, inspetora de escolas maternais no Cantáo Ticino, Luigi Antonio Villãri, Guido Podrec- ca, Alfredo Panzini, Amedeo Massari, advogado, Prof. Giuseppe Barone, Giulio Caprin, Gàbriele Morelli, advogado, Riccardo Gra- dassi Luzi, Torquato Zucchelli, tenente-coronel honorário (sic), Ricciotto | Canudo, Prof. Felice Momigliano, Attilio Begey, An- tonino Anile, prof. universitário, Enrico Morselli, prof. universi- tário, Francesco Di Gennaro, Ezio Maria Gray, Roberto Ardigò, Arturo Graf, Pio Viazzi, Innocenzo Cappa, Duque Colonna Di Cesarò, PasquaIe Villari, Antonio Cippico, Alessandro Groppali, prof. universitário, Angelo Marzorati, Italo Pizzi, Angelo Crespi, E. A. Marescotti, F. Belloni-Filippi, prof. universitário, Francesco Porro, astrônomo, Prof. Fortunato Rizzi. Um critério metodológico a ter presente ao examinar a atitude dos intelectuais italianos sobre a religião (anterior ao Concordato) está dado pelo fato que, na Itália, as relações entre o Estado e a Igre- ja eram muito mais complexos que nos outros países: ser patriota significou ser anticlerical, ainda sendo católico, sentir “nacional- mente” significava desconfiar do Vaticano e das suas reivindicações territoriais e políticas. Lembrar como o «Corriere della Sera», em uma eleição parcial em Milão, antes de 1914, combateu a candida- tura do marquês Cornaggia, favorável à restauração do poder tem- poral do papa, preferindo que fosse eleito o candidato socialista [2]. CF. CADERNO I (XVI), PP. 9-10BIS. § 〈23〉. Cavaleiros azuis (ou príncipes azuis), vespas e besouros de esterco. Luigi Galleani, por volta de 1910, compilou em uma confu- sa mistura titulada Faccia a faccia col nemico (editado por as “Cro- nache Sovversive” nos Estados Unidos, em Chicago ou Pittsburgh) em que coletou de diversos jornais sem método e crítica, relatórios dos processos de uma série dos chamados libertários individualistas (Ravachol, Henry, etc.) [1] (1). O compilado deve ser tomado com pinças, mas pode-se extrair alguma ideia curiosa. |33| 631933-1934: temas de cultura 1º 1) O hon. Abbo, no seu discurso de Livorno, em janeiro de 1921, repetiu literalmente a declaração de “princípios” do individualista Etievant, reportada em apêndice do livro Galleanesco; também a frase sobre a “linguística” que suscitou hilaridade geral, é repetida literalmente [2]. Certamente o hon. Abbo sabia de cor a peça e isto pode servir para indicar qual seria a cultura dos tipos como o hon. | Abbo e como essa literatura foi difundida e popular. 2) Das declarações dos imputados, resulta que um dos motivos fundamentais das ações “individualistas” era o “direito ao bem-es- tar” concebido como um direito natural para os franceses se en- tende, que ocupam a maior parte do livro). Vários réus repetem a frase: “uma orgia de cavalheiros consome aquilo que seria suficiente para mil famílias operárias”; falta qualquer aceno à produção e às relações de produção. A declaração de Etievant, reportada ao texto escrito integro é típica, porque nela se busca construir um ingênuo e pueril sistema justificativo das ações “individualistas”. Porém, as mesmas justificativas são válidas para todos, para os gendarmes, para os juízes, para os jurados, para o carrasco: cada indivíduo está fechado em uma rede determinista de sensações, como o porco em um barril de ferro, e não pode evadir-se: o individualista lança a “bomba”, o gendarme arresta, o juiz condena, o carrasco corta a cabeça, e nenhum pode operar de outro modo. Não existeesca- patória, não pode haver ponto de resolução. É um libertarianismo e individualismo que para justificar-se moralmente a si mesmo se nega em modo piedosamente cômico. A análise da declaração de Etievant mostra, como a onda de ações individualistas se abateu sobre a França, em certo período, era a consequência episódica do desconcerto moral e intelectual que ocorreu à sociedade francesa desde 1871 até o dreyfusismo, no qual achou um desafogo coletivo. 3) A propósito de Henry, se relata no volume, a carta de um cer- to Galtey (verificar) ao “Figaro” [3]. Parece que Henry amava a mu- lher de Galtey, reprimindo “no próprio peito” este amor. A mulher tomando conhecimento que Henry tinha estado enamorado dela (parece que não se tinha dado conta) declarou a uma jornalista que, de ter sabido, talvez se tivesse entregado. Galtey, na carta, declara |33a| 64 caderno 16 (xxii) | que não há nada a objetar à mulher e argumenta: se um homem não conseguiu encarnar o sonho romântico de sua mulher sobre o cavaleiro (ou príncipe) azul, pior para ele: deve admitir ser substi- tuído por outro. Esta mistura de príncipes azuis, de racionalismo materialista vulgar e de furtos nas tumbas de Ravachol é típico, e deve ser levado em conta. 4) Na declaração no processo de Lion de 1894 (verificar) o prín- cipe Kropotkin anuncia, com tom de segurança, que nos próximos dez anos aconteceria a sublevação final [4]. CF. CADERNO I (XVI), P. 2 BIS-3. § 〈24〉. Apólogo do Cadí, da bolsinha esquecida no mercado, dos dois Benedetti, dos cinco caroços de azeitona. Refazer a novelinha das Mil e uma Noites [1]. CF. CADERNO 9 (XIV), P. 37 BIS. § 〈25〉. O mal menor ou o menos pior (de emparelhar com a outra fórmula imprudente do “quanto pior melhor”). Poderia ser trata- do como forma de desculpas (lembrar o ditado popular de que “o pior nunca está morto”). O conceito de “mal menor” ou de “menos pior” é dos mais relativos. Um mal é sempre menor que outro sub- sequente maior, e um perigo é sempre menor que outro subsequen- te possível maior. Cada mal se transforma em menor em confronto com outro que se projeta maior e assim até o infinito. A fórmula do mal menor, do menos pior, não é outra coisa que a forma que assume o processo de adaptação a um movimento historicamente regressivo, movimento guiado por uma força audazmente eficiente no seu desenvolvimento, entanto as formas antagônicas (ou me- lhor, os líderes delas) estão decididas a capitular progressivamente, em pequenas etapas e não de um único golpe (o que teria outro sig- nificado pelo efeito psicológico condensado, e poderia fazer nascer uma força concorrente ativa àquela que passivamente se adapta à “fatalidade”, a fortalece-la |se já existe). Desde que seja justo o prin- cípio metodológico que os países mais avançados (no movimento |34| |34a| 651933-1934: temas de cultura 1º progressivo ou regressivo) são a imagem antecipada dos outros paí- ses, onde o mesmo movimento se encontra no início [1], a compara- ção é correta neste campo, pelo que pode servir (servirá sempre do ponto de vista educativo). CF. CADERNO 9 (XVI), P. 11. § 〈26〉. O movimento e o fim. É possível manter vivo e eficiente um movimento sem a prospectiva de fins imediatos e mediatos? A afirmação de Bernstein, segundo a qual o movimento é tudo e o fim nada, sob a aparência de uma interpretação “ortodoxa” da dialética, oculta uma concepção mecanicista da vida e do movimento histó- rico: as forças humanas são consideradas passivas e inconscientes, como um elemento não diverso das coisas materiais, e o conceito de evolução vulgar, no sentido naturalista, substitui o conceito de desempenho e de desenvolvimento. Isto é mais interessante de assinalar enquanto Bernstein tomou as suas armas do arsenal do revisionismo idealista (esquecendo as teses sobre Feuerbach), que o teriam levado a valorizar a intervenção dos homens (ativos e, portanto, que perseguem certos fins imediatos e mediatos) como decisiva no desenvolvimento histórico (entende-se dadas as condi- ções). Porém, analisando mais a fundo, se vê que em Bernstein e seus seguidores a intervenção humana não está excluída totalmen- te, ao menos implicitamente (o que seria muito bobo) se admite em modo unilateral porque se admite como “tese”, mas se exclui como “antítese”; entendido eficiente como tese, ou seja, no momento da resistência e da conservação é renegado como antítese, ou seja, como iniciativa e impulso progressivo antagonista. Podem existir “fins” para a resistência e a conservação (as mesmas “resistências e conservações” são fins que precisam uma organização especial civil | e militar, o controle ativo do adversário, a intervenção tempestiva para impedir que o adversário se reforce demasiado, etc.), não para o progresso e a iniciativa inovadora. Não se trata de outra coisa que de uma sofisticada teorização da passividade, de um modo “astuto” (no sentido das “astucias da providencia” de Vico) de modo que, a “tese” intervém para debilitar a “antítese”, desde que a antítese (que |35| 66 caderno 16 (xxii) pressupõe o despertar de forças latentes e adormecidas de estimular corajosamente) precise colocar-se alguns fins imediatos e mediatos, para reforçar seu movimento superador. Sem a perspectiva dos fins concretos não pode existir movimento completo. CF. CADERNO 9 (XVI), P. 10 BIS-11. § 〈27〉. Max Nordau. Grande difusão dos livros de Max Nordau na Itália, nos estratos mais cultos do povo e da pequena burguesia urbana. Le menzogne convenzionali della nostra civiltà e Degenera- zione encontravam-se (em 1921-1923) respectivamente na oitava e na quinta edição, na publicação regular dos Fratelli Bocca de Tu- rim [1], mas, estes livros passaram no pós-guerra às mãos de edi- tores como Madella e Barion e foram lançados pelos vendedores ambulantes a preços baixíssimos em quantidade notável. Contribu- íram assim, para introduzir na ideologia popular (sentido comum) certas crenças e “cânones críticos” ou preconceitos, que aparecem como a mais exótica expressão da intelectualidade refinada e da alta cultura, assim como estes são concebidos pelo povo, para quem Max Nordau é um grande pensador e científico. CF. CADERNO 9 (XIV), P. 15. § 〈28〉. Angherie. O termo ainda é empregado na Sicília para in- dicar certas prestações obrigatórias do trabalhador agrícola nas suas relações contratuais com o proprietário ou locatário ou sublocatá- rio de quem se obteve uma terra em meação (não é outra coisa que um contrato de participação ou de simples aluguel com pagamento in natura, | fixado na metade, ou ainda mais, da colheita além das prestações especiais ou “angherie”). O termo ainda é aquele dos tempos feudais, do qual deriva na linguagem comum o significa- do deteriorado de “vexame”, que não parece existir ainda na Sicília onde é considerado costume normal. No que diz respeito à Toscana, berço da meação (cf. os estudos recentes feitos por iniciativa da Academia de Georgófilos), é ne- cessário citar o fragmento de um artículo de F. Guicciardini (na |35a| 671933-1934: temas de cultura 1º «Nuova Antologia», de 16 de abril de 1907: Le recenti agitazio- ni agrarie in Toscana e i doveri dela proprietà): “dentre os pactos acessórios do pacto colonial, não menciono aqueles que chamarei angáricos, enquanto constituem obrigações do colono, que não tem como correspondência alguma vantagem especial: tal seria a lavanderia gratuita, a circulação da água, o corte da lenha e dos gravetos para a lareira do patrão, a contribuição a favor do vigia, o fornecimento de palha e feno para a escuderia da fazenda e, em ge- ral, todos os fornecimentos gratuitos a favor do patrão. Eu não po- deria afirmar se estes pactos são os últimos restos do sistema feudal, sobreviventes à destruição dos castelos e à liberação dos colonos, ou se são incrustações formadas pelo abuso dos patrões e preguiça dos colonos em tempos mais próximos a nós no tronco genuíno do contrato” [1]. Segundo Guicciardini, estas prestaçõesdesapare- ceram em quase todos os lugares (em 1907), o que é duvidoso para a Toscana. Mas, além destas angherias, é preciso lembrar outras, como o direito do patrão de trancar os colonos em casa a certa hora da tarde, a obrigação de solicitar permissão para noivar e fazer amor etc., que parece terem sido restabelecidas em muitas regiões (Tosca- na, Úmbria) após terem sido abolidas, depois dos motins agrários da primeira década do | século, dirigidos pelos sindicalistas. CF. CADERNO 9 (XIV), P. 9. § 〈29〉. Discussões prolixas, dividir o cabelo em quatro etc. É atitu- de de intelectual ficar entediado com discussões muito longas, que se esmigalham analiticamente nos mínimos detalhes e não querem acabar até que, entre os disputantes, se chega a um acordo perfeito sobre todas as questões controversas, ou pelo menos, até as opini- ões em contraste se enfrentaram totalmente. O intelectual profis- sional acredita suficiente um acordo sumário sobre os princípios gerais, sobre as linhas diretrizes fundamentais, porque pressupõe que o trabalho individual de reflexão levará necessariamente ao acordo sobre “minúcias”; por isto, nas discussões entre intelectuais se procede frequentemente por rápidos sinais: sonda-se, por assim dizer, a formação cultural recíproca, a “linguagem” recíproca e, fei- |36| 68 caderno 16 (xxii) ta a constatação que se encontram sobre um terreno comum, com uma linguagem comum, com modos comuns de raciocinar, se pros- segue mais expeditamente. Mas, a questão essencial consiste nisso, que as discussões não acontecem entre intelectuais profissionais, na verdade, é necessário criar preventivamente um terreno cultural co- mum, uma linguagem comum, modos comuns de raciocinar entre as pessoas que não são intelectuais profissionais, que não adquiri- ram ainda o hábito e a disciplina mental necessários para conectar rapidamente conceitos aparentemente diferentes, como vice-versa, para analisar rapidamente, decompor, intuir, descobrir diferenças essenciais entre conceitos aparentemente semelhantes. Já foi assinalado em outro parágrafo [1], a íntima debilidade da formação falada da cultura e os inconvenientes [da conversação ou diálogo] com respeito à escrita: todavia, aquelas observações, justas em si mesmas, devem ser integradas com estas acima expostas, ou seja, com a consciência da necessidade, para difundir organicamen- te uma forma |cultural, da palavra falada, da discussão minuciosa e “pedante”. Equilíbrio certo da palavra falada e daquela escrita. Tudo isso se observa nas relações entre intelectuais profissionais e intelectuais não formados, que é o caso de qualquer nível do ensino, do elementar ao universitário. O intelectual não técnico, em seu trabalho "pessoal" com livros, depara-se com dificuldades que o interrompe e, muitas vezes, o im- pede de ir adiante, porque ele não consegue resolvê-las imediata- mente, o que é possível em discussões por voz imediata. Observa-se, além da má-fé, como as discussões por escrito são prolongadas por esse motivo normal: que um mal-entendido exige esclarecimento e, no decorrer da controvérsia, as dificuldades de entender uns aos outros e ter que explicar. CF. CADERNO 9 (XIV), PP. 35-36. § 〈30〉. Tempo. Em muitas línguas estrangeiras a palavra “tempo”, introduzida no italiano através da linguagem musical, tem assumi- do um significado próprio, geral, mas nem por isso menos determi- |36a| 691933-1934: temas de cultura 1º nado, que a palavra italiana “tempo”, que pela sua generalidade não pode expressar (nem se poderia dizer “tempo em sentido musical ou como se entende na linguagem musical” porque daria lugar a equívocos). É necessário, portanto, traduzir em italiano a palavra “tempo”: “velocidade do ritmo” parece ser a tradução mais exata, e que, depois de tudo corresponde ao significado que a palavra tem na música, e somente “ritmo” quando a palavra “tempo” é adjetiva- da: “ritmo acelerado” (o tempo acelerado), “ritmo lento” etc. Ou- tras vezes, “velocidade do ritmo” é usada em sentido elíptico por “medida da velocidade do ritmo”. CF. CADERNO 9 (XIV), P. 36.mas, principalmente, ante a “Edição crítica do Instituto Gramsci”, realizada sob os cuidados de Valentino Gerratana e publicada pela Editora Einaudi, em 19756. Essa “Edição crítica” reproduz integralmente as anotações conti- das nos Cadernos do cárcere “tal como foram escritas por Gramsci”, dispondo-as conforme uma “ordem cronológica da redação recons- truída na base de dados objetivos [...] e conservando entre parên- tese as velhas numerações postas por Tânia” (Gerratana, Ibid., p. XXXV). Além disso, enumera todas as notas e as organiza de modo a colocar em evidência as de primeira redação (Textos A), sinalizadas com fonte menor, as de redação única (Textos B) e as de segunda redação (Textos C). Com os três volumes que reproduzem as anotações de Gramsci contidas nos 29 cadernos manuscritos e um “Apêndice” de oito páginas, posto no final do último caderno, contendo alguns “Extratos dos Cadernos de tradução”7 , a “Edição crítica” publicou no quarto volume um precioso “Apparato critico” com os seguintes conteúdos: Descrição dos Cadernos; Notas ao 4 Gerratana, V., “Prefazione” in: Id (org.), Antonio Gramsci. Quaderni del carcere, Edizione critica dell’Istituto Gramsci, 4 voll, Einaudi, Torino, 1975. 5 Liguori, G., Gramsci conteso. Storia di um dibattito 1922-1996, Riuniti, Roma, 1996. 6 Gerratana, V. (a cura di), Antonio Gramsci. Quaderni del carcere, Edizione critica dell’Istituto Gramsci, 4 voll, Einaudi, Torino, 1975. 7 Além dos 29 cadernos, há quatro cadernos (A, B, C, D) contendo só traduções feitas por Gramsci entre 1929 e 1932. Na “Descrição dos Cadernos” que consta no “Apparato critico”, encontra-se uma documentação analítica desses exercícios de tradução. IX texto; Índice das obras citadas nos Cadernos; Livros e opúsculos do Fundo Gramsci não citados nos Cadernos; Índice dos periódicos citados nos Cadernos; Índice por assuntos; Tábua das concordân- cias; Índice dos nomes. Assim, para suprir os diversos problemas que apresentava a tradu- ção parcial da “Edição temática” realizada no Brasil nos anos 1960, entre os anos de 1999 e 2002, foram publicados, sempre pela Edito- ra Civilização Brasileira, seis volumes contendo uma nova tradução dos Cadernos do cárcere, de Antonio Gramsci8. Responsáveis pelo desenho da edição e pela tradução, C. Nelson Coutinho (editor), M. Aurélio Nogueira e L. Sérgio Henriques (coeditores) optaram por uma solução em que, “embora tome certamente como base a edição Gerratana, a presente edição brasileira incorpora não só os critérios adotados na velha ‘edição temática’, mas também algumas das sugestões propostas por Gianni Francioni” (Coutinho, 1999, p. 32)9. Dessa forma, tendo “como eixos articuladores os ‘cadernos especiais’”, os seis volumes da nova edição brasileira traduzem todos os “cadernos especiais” como se encontram na edição Gerratana e, no final de cada um, acrescenta-se uma seção intitulada “Dos ca- dernos miscelâneos”, na qual são alocadas as notas de redação úni- ca (Textos B) relacionadas com o tema do “caderno especial” em questão (Ibid., p. 40), e “Notas ao texto”, em sua maioria, extraídas das notas explicativas do “Apparato critico” de V. Gerratana e da edição norte-americana de J.A. Buttigieg (2007)10. Nos apêndices do último volume (6º), estão situados: “Uma antologia de textos A” (pequena amostra dos Textos A, de primeira redação); um “Índice geral dos Cadernos” (inclusive dos Textos A, indicando os parágra- fos dos Textos C, nos quais foram reelaborados); uma “Datação dos 8 Coutinho, C. Nelson (editor) - Nogueira, M. Aurélio e Henriques, L. Sérgio (coeditores): Antonio Gramsci: Cadernos do cárcere, 6 vols., Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1999-2002. 9 Coutinho, C. N., “Introdução” a Antonio Gramsci: Cadernos do cárcere, vol. 1, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1999. 10 Buttigieg, J. A., Prison Notebooks (vols. 1-3) por Antonio Gramsci, Columbia University Press, New York, 1992-2007. X parágrafos segundo a proposta de G. Francioni”11; um “Índice dos principais conceitos” e o “Índice onomástico”. Não há dúvida de que, levando também em conta a tradução em dois volumes das Cartas do cárcere12, baseados na edição italiana organizada por A. A. Santucci (1996)13, e uma seleção de textos pré-carcerários reunidos nos dois volumes de Escritos Políticos14, o admirável empreendimento de C. Nelson Coutinho, M. Aurélio Nogueira e L. Sérgio Henriques representa um enorme avanço em relação aos textos de Gramsci postos à disposição dos leitores bra- sileiros até então. No entanto, sem diminuir o valor dessa tradução, nem o reconhecimento e a nossa gratidão aos autores desse traba- lho, suscita perplexidade o critério que levou essa nova edição a su- primir - por “não ter maiores méritos científicos” (Coutinho, 1999, p. 41) - as notas de primeira redação (Textos A) aproveitadas e ree- laboradas por Gramsci nos textos de segunda redação (Textos C) e a seleção feita pelos editores das notas de redação única (Textos B) que teriam alguma relação com o tema do caderno em questão. Pas- sadas mais de duas décadas, a estruturação dessa edição, motivada essencialmente para “não ampliar quantitativamente nossa edição, tornando-a assim menos acessível a um público que pretendemos o mais amplo possível” (Ibid., p. 41) e intencionada a evitar que “o leitor iniciante” se perca “no labirinto das anotações carcerárias” (Ibid., p. 44), vem apresentando alguns limites e não atende plena- mente às novas demandas de estudos e às exigências das pesquisas que foram evoluindo. De fato, inclusive graças à publicação dessa nova edição, na medida em que a difusão da obra e do pensamento de Gramsci foi se ampliando no Brasil e os estudos e pesquisas fo- ram se tornando mais abrangentes e minuciosos, sentiu-se a neces- 11 Francioni, G., L’officina gramsciana. Ipotesi sulla struttura dei “Quaderni del carcere”, Bibliopolis, Napoli, 1984. 12 Henriques L. Sérgio (org.), Antonio Gramsci: Cartas do cárcere, 2 vols., Civili- zação Brasileira, Rio de Janeiro, 2005. 13 Santucci, A. A., Antonio Gramsci: Lettere dal carcere, 2 voll, Ed. Sellerio, Pa- lermo, 1996. 14 Coutinho C. Nelson (org.), Antonio Gramsci: Escritos Políticos, 2 vols., Civili- zação Brasileira, Rio de Janeiro, 2004. XI sidade crescente de traduzir integralmente a “Edição crítica do Ins- tituto Gramsci” (aos cuidados de V. Gerratana), padrão mundial de referência e base para traduções em diferentes línguas, enquanto se espera que a ciclópica Edizione Nazionale delle opere di Antonio Gramsci venha a ser finalizada15. Quando, portanto, a equipe eleita na Assembleia de Marília/SP para a Direção da IGS-Brasil (2019-2022) apresentou a proposta de realizar a tradução integral da “Edição crítica” dos Quaderni del carcere de A. Gramsci organizada por V. Gerratana, houve imedia- to e amplo consenso. De fato, mesmo com algumas imperfeições e diante das questões levantadas, principalmente, pelos estudos filológicos de G. Francioni (1984, pp. 15-46) em relação ao mé- todo genético-diacrônico e às novas propostas de cronologia dos Cadernos do cárcere, a “Edição crítica” oferece o material completo das anotações que Gramsci registrou progressivamente tanto nos cadernos “especiais” como nos cadernos “miscelâneos” e nos de re- dação única. Ao apresentar integralmente os textos que Gramsci es- creveu nos 29 cadernos16 e distinguir as notas de primeira redação (Textos A), de redação única (Textos B) e as de segunda redação (Textos C), a “Edição crítica” revela melhor o modo de trabalhar de Gramsci, possibilita perceber as modificações nos seus planos de estudos e a evolução do seu pensamento, além de proporcionar 15 Edizione Nazionale delle opere di Antonio Gramsci, planejada para publicar o corpus inteiro da obra gramsciana, com a colaboração de vários grupos de trabalho coordenados por G. Francioni e sua equipe (G. Cospito e F. Frosini). O projeto, em andamento, promovido pelo Istituto della Enciclopedia Italiana e o IstitutoFondazione Gramsci di Roma, tem a previsão de numerosos volumes divididos nas três seções: escritos antes do cárcere, obras do cárcere e epistolário. Até hoje, vieram a público os quatro Quaderni di traduzione que não constam da edição crítica de Gerratana; dois vols. do epistolário: as cartas escritas entre 1906 e 1922 (vol. I) e os escritos do ano de 1917 (vol. II); os primeiros quatro cadernos de no- tas teóricas na nova edição crítica de G. Francioni, todos publicados pelo Istituto della Enciclopedia Italiana. 16 Gramsci escreveu 33 cadernos, sendo quatro dedicados a exercícios de tradu- ção, excluídos da “Edição crítica” de Gerratana. Só no final do caderno 29, como Apêndice, Gerratana coloca poucas páginas de alguns “Extratos dos Cadernos de tradução”. XII uma visão geral dos assuntos que desenvolveu mais amplamente, dos que abordou parcial e sucintamente e dos numerosos pró-me- mórias deixados para ulteriores pesquisas. Acima de tudo, o acesso à leitura integral das notas carcerárias permite verificar que o traba- lho de coleta do material de primeira redação registrado nos “cader- nos miscelâneos”, como o próprio Gramsci os denomina, não é um depósito aleatório de notas, um amontoado caótico e amorfo de reflexões reunidas a esmo, mas um extenso campo de pesquisa que já revela uma orientação básica de objetivos e uma metodologia de trabalho, reúne um conteúdo significativo de investigações interco- nectadas, mostra o amplo laboratório das suas ideias e as linhas de fundo que irão confluir na articulação dos temas aglutinadores sis- tematizados nos “cadernos especiais”, assim chamados por Gramsci. Motivada pela importância significativa desses aspectos, a pro- posta de traduzir integralmente a “Edição crítica” dos Cadernos do cárcere, mesmo sem nenhum suporte financeiro, recebeu a adesão generosa de 22 professores estudiosos da obra de Gramsci, todos sócios da IGS-Brasil, que se dispuseram voluntariamente a fazer parte da equipe de tradutores17. Nesse trabalho coletivo, além da “Edição temática”, da “Edição Crítica” (inclusive eletrônica) e da “Edizione anastatica dei ma- 17 Tradutores dos Cadernos “especiais”: 10 (Ana Maria Said/Gianni Fresu) – 11 (Giovanni Semeraro/Rodrigo Lima) – 12-20-21 (Maria Margarida Machado) – 13 e 18 (Anita Schlesener/Maria Socorro Militão) – 16 (Ivete Simionatto/Maria del Carmen Cortizo) – 19 (Marcos Del Roio/Leandro Galastri/Tatiana Oliveira) – 22 (Lincoln Secco/Silvia de Bernardinis) – 23 (Rocco Lacorte/Alex Calheiros/ Lucas Moura Vieira) – 24 e 25 (Massimo Sciarretta/Ricardo Salles) – 26-27-28- 29 (Luciana Aliaga/Deise Rosálio). Tradutores dos Cadernos “miscelâneos”: 1 (Rocco Lacorte/Alex Calheiros/Lucas Moura Vieira) – 2 (Massimo Sciarretta/ Giovanni Semeraro) – 3 (Ivete Simionatto/Maria del Carmen Cortizo/Giovanni Semeraro) – 4 (Rita Coitinho/Marcos Aurélio da Silva) – 5 (Ana Maria Said/ Marcos Aurélio da Silva/Giovanni Semeraro) – 6 (Luciana Aliaga/Deise Rosálio/ Maria Margarida Machado/Giovanni Semeraro/Helton Messini) – 7 (Ana Ma- ria Said/Marcos Aurélio da Silva) – 8 (Giovanni Semeraro/Rodrigo Lima) – 9 (Leandro Galastri/Tatiana Oliveira/Giovanni Semeraro) – 14 (Anita Schlesener/ Maria Socorro Militão) – 15 (Ivete Simionatto/Maria del Carmen Cortizo) – 17 (Maria Margarida Machado). XIII noscritti” (Francioni, 2009)18, tivemos a vantagem de consultar traduções anteriores, empreendimentos editorais realizados em outros idiomas, especialmente, nas línguas espanhola e inglesa, e a possibilidade de levar em conta numerosos estudos filológicos que nesses últimos anos se multiplicaram e lançaram muita luz sobre a complexidade do pensamento de Gramsci e a intensa trama con- ceitual que permeia a sua obra. Como se sabe, nas notas dos Ca- dernos, além do trânsito nas mais diversas áreas do conhecimento e da ampla visão que Gramsci tem da política, da filosofia, da histó- ria, da cultura, da educação, da literatura, do universo popular etc., Gramsci é protagonista de primeira linha em um período crucial da história contemporânea: as duas grandes guerras, a Revolução de 1917, a fundação do Partido Comunista da Itália (PCd’I), a ex- pansão e a crise do movimento operário na Itália e na Europa, o surgimento e a dominação do fascismo e do nazismo. Traduzir, portanto, uma obra extensa e complexa como os Ca- dernos do cárcere com uma equipe numerosa de tradutores não deixa de ser um exercício fecundo e promissor, mas a tarefa não está isenta de problemas. Por um lado, de fato, oferece a vantagem de tornar o trabalho menos oneroso, promove uma interlocução enri- quecedora entre seus integrantes e proporciona uma diversidade de pontos de vista. Mas, por outro lado, exige um ritmo que respeite as condições de trabalho de cada um e um delicado acordo para estabelecer convergências básicas em relação à organização formal do texto, à interpretação de questões complexas e controvertidas, à heterogeneidade de estilos, ao uso de linguagem, à pontuação e mo- delagem da escrita, ainda mais pelo fato de que a maioria das notas carcerárias foram escritas “ao correr da pena” (Q 11, p. 1365) e nas condições precárias da vida carcerária. Com o passar do tempo e a maior habilidade adquirida no trabalho de tradução, as dúvidas e incertezas que cercavam o início do novo empreendimento foram se desfazendo e deram lugar a sentimentos de entusiasmo e gratifi- 18 Francioni, G.(org.), Antonio Gramsci: Quaderni del carcere. Edizione anastatica dei manoscritti, 18 voll, Istituto della Enciclopedia Italiana - L’Unione Sarda, Ro- ma-Cagliari, 2009. XIV cação. De certa forma, traduzir os Cadernos do cárcere nos fez sen- tir parte de uma experiência singular e de uma viagem incomum, áspera, desafiadora e fascinante: partilhar com o autor o tormento da elaboração dos conceitos, a responsabilidade na busca de expres- sões mais adequadas, o labor e a alegria ao vislumbrar novos hori- zontes de conhecimento e revolucionárias propostas sociopolíticas. Avanços e desafios da tradução dos Cadernos do cárcere Para entrar no emaranhado de questões que surgem para traduzir a extensa obra derivada das anotações carcerárias que Gramsci dei- xou com suas peculiares características, entre outros cuidados, le- vamos em conta os critérios metodológicos e as cautelas filológicas que o próprio autor apontou em diversas ocasiões, principalmente, no Caderno 16. No §2 desse caderno, de fato, apresenta-se um con- junto de recomendações quando “se quer estudar o surgimento de uma concepção de mundo que nunca foi exposta sistematicamente pelo seu fundador”, alertando para que se busque o seu autêntico sentido “em todo o desenvolvimento do trabalho intelectual” e que se possa “fazer preliminarmente um trabalho filológico minucioso e conduzido com o máximo escrúpulo de exatidão” (p. 1840). E tais cuidados adquirem ainda mais importância “quando se trata de uma personalidade na qual a atividade teórica e a prática estão indissoluvelmente entrelaçadas, de um pensamento em contínua criação e perpétuo movimento, que sente vigorosamente a autocrí- tica” (p. 1841). Embora Gramsci esteja se referindo essencialmente aos escritos de Marx, essas indicações se tornam demasiadamente oportunas quando se analisa a sua própria obra, uma vez que, na prática, Gramsci não deixou nenhum livro definitivo e impresso da sua imensa produção. Trata-se, portanto, de um autor póstumo, cuja obra foi progressivamente editada pelas mãos de diversos es- tudiosos e continua sendo organizada e editada integralmente até hoje. Juntamente com os avanços da hermenêutica, da moderna crí- tica literária e dos estudos filológicos, essas considerações são fun- damentais para reconstruir a trama complexa e dinâmica que cons- titui o projeto de estudos e o modo de escrever de Gramsci, para XV percorrer as etapas da evolução do seu pensamento e se adentrar no contexto histórico, político e cultural no qual se situam seus escri- tos e a sua atuação de intelectual e militantepolítico. Por isso, além da bagagem técnica e filológica, do domínio das línguas e de uma boa dose de conhecimentos sobre a obra do autor, a tradução exige também decifrar a linguagem típica da sua época e visitar os basti- dores do intenso trabalho de outros tradutores e os problemas en- frentados pelos editores. Nesse sentido, o nosso trabalho não tem a pretensão de invalidar as traduções anteriores, mas de oferecer mais um instrumento de leitura e pesquisas para um público que vem se ampliando e aprimorando no Brasil. Pois, com a tradução integral da edição Gerratana, será possível ler os cadernos de Gramsci como foram escritos, não como foram selecionados e organizados. Ter em mãos e poder percorrer todas as notas e apontamentos de primeira (Textos A) e segunda redação (Textos C) e os de reda- ção única (Textos B) oferece a possibilidade de observar não só a forma peculiar e admirável de “Como trabalhava Gramsci” (Fran- cioni, 2009)19, mas de captar melhor a interligação inseparável en- tre os cadernos “miscelâneos”, os “especiais” e de redação única, de descobrir as recorrências e as sucessivas abordagens de assuntos, a incansável reelaboração de ideias, a “estrutura reticular” das notas e a “escritura em espiral” (Francioni, 1984, p. 22) do autor, o refina- mento da sua argumentação, a ampliação de conceitos, as comple- xas articulações das partes em torno de temas aglutinadores, a linha unitária que perpassa os seus planos de estudos, as artérias centrais da reflexão carcerária, as questões inacabadas, as que ficaram apenas mencionadas e deixadas em aberto. Tendo a visão da arquitetura geral, ainda que incompleta e truncada em algumas partes, apare- cem mais claramente não só a conexão e o desenvolvimento das vér- tebras principais da obra de Gramsci, mas emergem também a visão poliédrica e a sua personalidade permanentemente crítica e aberta que se adentra com perspicácia nas mais diversas esferas da polí- tica e do conhecimento, evidenciando, assim, também, o valor de 19 Francioni, G., “Come lavorava Gramsci”, in: “Introduzione” ao vol. 1 de Gramsci, A., Quaderni del carcere. Edizione anastatica dei manoscritti, cit., 2009. XVI muitas notas, assuntos, questões e páginas consideradas de pouca importância e secundárias, inclusive as tiradas divertidas e bem-hu- moradas. Nesse sentido, adquirem também valor, por exemplo, a extensa coleta de bibliografias, o amplo repertório de revistas, pe- riódicos, jornais e artigos consultados, a visão geral da história e o interesse por questões de caráter nacional e internacional, a interlo- cução com os mais diversos autores, o elenco dos livros escolhidos e encomendados por ele, minutas de cartas20, inclusive, as pequenas observações registradas telegraficamente, os breves apontamentos de pró-memória, as referências a assuntos aparentemente banais. Até as páginas interrompidas e não preenchidas dos cadernos aca- bam revelando intenções e limites do autor. Dessa forma, todo o conjunto do material levantado nas investigações de Gramsci, in- clusive o meramente sinalizado e incompleto, assume grande signi- ficação para entender melhor o intenso retículo de temas tratados, a trama complexa das notas e o amplo leque de esferas exploradas pelo pensador encarcerado, tornando, assim, essa obra gigantesca não só uma fonte de inspiração, mas também a base fundamental da elaboração de uma nova concepção de mundo, herança a ser completada, aprofundada e levada coletivamente mais adiante. Na verdade, tanto o conteúdo como o método utilizado e o projeto desenvolvido por Gramsci nos Cadernos, longe de serem um produto improvisado e circunstancial, apresentam todos os conotados de uma cuidadosa investigação científica, de ampla do- cumentação, de refinada fundamentação teórica e de pesquisa de longo respiro que “demanda grandes bibliotecas” (Santucci, 1996, p. 441, carta de 03/08/1931), um incalculável legado que exige o envolvimento e a parceria dos leitores na mesma tarefa. As repeti- das recomendações sinalizadas por Gramsci de que suas notas são “primeiras aproximações” e as inúmeras insistências para “verificar”, “pesquisar”, “consultar”, “aprofundar”, “levar em conta”, além da fre- quente recorrência de “aspas”, de “parece-me”, de “etc.” e das inúme- 20 Minutas de cartas, elencos de livros, contas, cálculos etc., anotados por Gramsci em diversas páginas dos Cadernos, são transferidos por Gerratana na “Descrição dos Cadernos” do “Apparato critico”. XVII ras referências bibliográficas, não representam apenas indicações de pistas abertas a serem retomadas quando ele tivesse melhores condições de tempo e de trabalho, mas revelam também a consci- ência de que, mais do que deixar o legado de um conteúdo acabado e solidificado, Gramsci está apontando para um imenso território a ser explorado e aprofundado não só por um indivíduo isolado no cárcere, mas por um trabalho “coletivo” e de longo prazo. Nes- se sentido, os Cadernos do cárcere podem ser considerados como um mapa precioso que aponta caminhos imprescindíveis para as “classes subalternas” e os povos subjugados se organizarem politi- camente para reivindicar seus direitos fundamentais, conquistar a hegemonia e construir uma nova civilização. Por isso, embora Gramsci tenha reelaborado e agrupado muitas das suas anotações preliminares em torno de temas aglutinadores nos “cadernos especiais”, ao estudar todo o conjunto das notas, fica evidente que o processo permanente de investigação e de aprendi- zagem adotado por Gramsci não permite estabelecer uma divisão rigorosa entre o “método de pesquisa” e o “método de exposição”. Entre os cadernos “miscelâneos”, “especiais” e de redação única, a distinção é só metodológica, não orgânica e substancial. Mesmo se concentrando e confluindo na redação dos cadernos “especiais”, por questão de tempo e pressionado pela saúde que vinha se debi- litando rapidamente, Gramsci nunca deixou de continuar a inves- tigar e explorar novas fronteiras de conhecimento e reelaborar as suas reflexões. Adotando, portanto, o critério de separação entre os “miscelâneos” e os “especiais” na edição da obra de Gramsci, corre- -se o risco de desconsiderar a extensão dos seus horizontes e reduzir o significado da multiplicidade dos assuntos abordados, mesmo os rascunhados, menos elaborados e aprofundados. Além disso, ao descartar a parte dos seus escritos considerada preliminar, acabam sendo obscurecidos aspectos fundamentais do seu pensamento: a visão histórica, dialética e orgânica da realidade sempre em mo- vimento, imbricada com a “complexidade molecular da vida real” (Santucci, 1996, p. 222, carta de 19/11/1928) e o árduo labor para o seu entendimento e a sua transformação. Como se sabe, de fato, XVIII um dos principais objetivos da vida política e da obra carcerária de Gramsci foi aprofundar e levar adiante a concepção de mundo inaugurada por Marx. Quando, portanto, Gramsci resolve se dedicar a um traba- lho “desinteressado” e “für ewig” (Santucci, 1996, p. 55, carta de 19/03/1927), de longo respiro e alcance duradouro, não está sendo tomado por um surto de titanismo e delírio de grandeza, males dos quais nunca padeceu, mas da clara consciência de que, como ele co- menta muitas vezes, a partir de Marx, se desencadeia na história um movimento que “renova de cima a baixo” (Q 11, §27, p. 1436) toda a concepção de mundo existente até então e inicia-se um período revolucionário “que provavelmente durará séculos” (Q 6, §33, p. 882). Ou seja, deu-se início a uma enorme e desafiadora tarefa que investe todos os aspectos da vida humana e que demanda todas as energias das classes subjugadas com seus intelectuais para elaborar também as armas teóricas mais avançadas e refinadas. Ter, portanto, acesso aos escritos integrais e à obra completa de Gramsci, que inclui os escritos pré-carcerários e o epistolário, leva a não se limitar a leituras parciais, a pesquisas centradas em assun- tos segmentados e análisesapressadas, a estudos de conceitos e de temas isolados, ao atalho dos verbetes e a frases fora de contexto. Contrariamente a quem pratica uma anatomia de partes separadas do corpo inteiro, o método de Gramsci ensina a se dedicar incan- savelmente a estudar e pesquisar, com visão histórica, abrangente e progressiva, a natureza processual e dialética da realidade, conec- tando a multiplicidade das suas expressões na totalidade do contex- to no qual estamos inevitavelmente inseridos. Portanto, poder entrar na mina escavada por Gramsci, propicia- da pela “Edição crítica” de Gerratana, além de uma visão de conjun- to, oferece aos estudiosos de Gramsci no Brasil “um instrumento de leitura que permita seguir o ritmo de desenvolvimento com o qual a pesquisa gramsciana se desdobra nas páginas dos Cadernos” (Ger- ratana, 1975, p. xxv). Ou seja, como o próprio Gramsci sinaliza, XIX cria as condições para sintonizar-se com o seu “ritmo do pensamen- to em movimento” (Q 16, §2, p.1841) e para “reviver seu fluxo e seu continuum” (Baratta, 2004, p. 101)21. Abraçamos, de fato, a complexa e delicada tarefa de traduzir a obra carcerária de Gramsci conscientes de que o trabalho não se reduz a uma transposição técnica e mecânica do texto, a resgatar o sentido mais exato das suas ideias no seu contexto, mas implica realizar um transplante de matéria viva de um campo teórico, polí- tico, histórico e linguístico para um outro corpo vivo e palpitante, ou seja, operar a passagem para um diferente universo cultural que comporta inevitavelmente não só a mediação de uma interpreta- ção cuidadosa, propriedade conceitual e atualização terminológica, mas, também, a empatia com o projeto de sociedade que emana dos escritos de Gramsci, hoje, como nunca, de grande atualidade e urgência. Assim, além das “cautelas filológicas” (Q 16, §2, pp. 1840-44) e da contextualização no ambiente no qual Gramsci ope- rou, para sermos fiéis ao pensamento e ao seu método, precisamos também praticar o que ele chamava de “filologia vivente”, ou seja, traduzir concretamente o seu legado, levando em conta as interpe- lações provenientes do nosso contexto histórico e da atuação teóri- ca e política realizadas pelo “organismo coletivo através da ‘coparti- cipação ativa e consciente’, da ‘copassionalidade’, da experiência dos particulares imediatos, por um sistema que se poderia chamar de ‘filologia vivente’” (Q 11, § 25, p. 1430). Esperamos, portanto, que a tradução integral dos textos de Gramsci contidos na “Edição crítica do Instituto Gramsci” (aos cuidados de V. Gerratana) não leve os leitores e estudiosos a se enclausurar no seu laboratório, mas, sem dissociar as “cautelas fi- lológicas” da “filologia vivente”, possam desenvolver a capacida- de de interagir, atualizar, desdobrar, potencializar e recriar o seu pensamento na teoria e na prática do próprio contexto histórico. Como já observei, “não podemos cair na contradição de encarcerar Gramsci nas grades de um texto canônico e definitivo, até porque 21 Baratta, G., As rosas e os Cadernos – o pensamento dialógico de Antonio Gramsci, Editora DP&A, Rio de Janeiro, 2004. XX toda a atividade filológica, por mais rigorosa e exitosa que seja, é sempre histórica, datada e sujeita a ser questionada e reconstruída. Sendo inseparavelmente intelectual e político militante, Gramsci solicita não só um trato cuidadoso com seus textos, mas nos de- safia a ‘ler e continuar a escrever’ uma obra deixada incompleta, a ser atualizada com o nosso labor teórico e a nossa atuação política” (Semeraro, 2019, p. 56)22. Giovanni Semeraro Coordenador do GT de Tradução IGS - Brasil 22 Semeraro, G., “A ‘tradução’ de Gramsci no mundo”, in Bianchi, A.- Mussi, D.- Areco, S., Antonio Gramsci: filologia e política, Zouk, Porto Alegre, 2019. XXI NOTA A ESTA EDIÇÃO Esclarecimentos sobre a padronização utilizada Como já destacado na Apresentação e no Prefácio, a tradução em língua portuguesa e a disponibilização online dos Cadernos do Cárcere de Antonio Gramsci, têm por finalidade contribuir para que leitores, pesquisadores e militantes possam acessar esses escri- tos na íntegra. O trabalho de padronização dos textos está, essencialmente, baseado no ordenamento das notas realizado pela Edição Crítica do Instituto Gramsci, a cura de Valentino Gerratana. Assim, com algumas adaptações, a nossa edição utilizou os seguintes critérios: ▶ A indicação das páginas de seu início e término de cada caderno, conforme a Edição Gerratana, na folha de rosto. ▶ Manutenção de parêntese angulado no número do parágrafo de cada nota, como consta na edição Gerratana. Ex.: §〈1〉. ▶ Sinalização do número de página correspondente ao texto manuscrito de Gramsci que está posto na margem da página pela edição Gerratana. Ex.: |1|, |1A| (“A” no lugar de “bis”) etc. ▶ Manutenção das referências bibliográficas nas línguas utilizadas por Gramsci. ▶ Manutenção das palavras em itálico que constam no corpo das notas. ▶ Para poder diferenciar os títulos de livros, deixados em itálico, foram colocados os títulos de artigos em letra de fonte regular e entre parênteses curvas “ ”. ▶ Manutenção dos parênteses angulados « » que Gramsci usa quando cita as revistas e jornais. XXII ▶ Inclusão em rodapé da tradução das citações mais extensas feitas por Gramsci em outras línguas, para deixar fluir a leitura do texto. ▶ Posicionamento entre colchetes [ ] de alguma palavra ou expressão do italiano sem correspondência na língua portuguesa, antes de operar a conversão na expressão consoante no português. ▶ Quando estritamente necessário, para tornar uma frase mais clara, recorreu-se à possibilidade de colocar entre colchetes [ ] algum termo de acréscimo sinalizado como N.T. ▶ Manutenção das referências postas por Gerratana a (os) outro (s) caderno (s) no fim das notas, mas, com fonte em caixa alta na cor roxa. ▶ Vertidos para o português os nomes dos autores mencionados por Gramsci (salvo nomes já usados no original, como por exemplo, K. Marx, F. Engels, V. Lenin). ▶ Enumeração em cor roxa e entre colchetes [ ] para indicar as “Note al Testo” que constam no “Apparato Critico” do volume IV da edição de Gerratana. Assim que nos for possível, pretendemos traduzir também estas “Note al Testo”. ▶ Sinalização a partir de asterisco verde no corpo das notas para indicação dos comentários/observações do editor em rodapé, expressos como: “No ms” (Nel manoscritto). Resolvemos não traduzir a “Cronologia della vita de Antonio Gramsci” que consta no Iº volume da Edição Crítica de Gerratana, considerando que os leitores podem encontrar esses dados na bi- bliografia a respeito disponível no Brasil. Além da Edição Crítica de Gerratana e de outras traduções, os leitores podem consultar os Cadernos do Cárcere na versão anas- tática dos manuscritos, disponibilizados pela Fundação Gramsci/ Itália, no endereço: https://gramsci.digital-library.it/en/quaderni- -dal-carcere. XXIII No processo de tradução e revisão podem ter ocorrido even- tuais falhas e erros. Receberemos, portanto, com gratidão as si- nalizações que nos forem enviadas ao E-mail da IGS/Brasil: igs.brasil1@gmail.com para corrigir e melhorar os textos em pró- ximas edições. Maria Margarida Machado Coordenação Científica da IGS/Brasil (Gestão 2022-2024) CADERNO 16 (XXII) 1933-1934 Temas de cultura 1º Corresponde à Edição Gerratana: pp. 1835-1904 31933-1934: temas de cultura 1º | § 〈1〉. A religião, a loteria e o ópio da miséria. Em [1] Conver- sazioni critiche (Série II, p. 300-301), Croce procura a "fonte" do Paese di Cuccagna de Matilde Serao e a encontra num pensamento de Balzac. No conto La Rabouilleuse, escrito em 1841 e posterior- mente intitulado Un ménage de garçon, falando de Madame Des- coings, que há 21 anos jogava seu famoso terno (jogo de três nú- meros), o "sociólogo e filósofo romancista" observa: "Cette passion, si universellement condamnée, n 'a jamais été étudiée. Personne n’y avu l'opium de la misère. La loterie, la plus puissante fée du monde, ne développerait-elle pas des espérances magiques? Le coup de roulette qui faisait voir aux joueurs des masses d'or et de jouissances ne durait que ce que dura un éclair: tandis que la loterie donnait cinq jours d'exis- tence à ce magnifique éclair. Quelle est aujourd’hui la puissance sociale qui peut, pour quarante sous, vous rendre heureux pendent cinq jours et vous livrer idéalement tous les bonheurs de la civilisation?"* Croce, já havia observado (em seu ensaio sobre Serao, Lettera- tura della nuova Italia, III, p. 51) que o Paese di Cuccagna (1890) tivera sua origem inspirado em um trecho de outro livro de Serao, Il ventre di Napoli (1884), no qual “se destaca o jogo da loteria como ‘o grande sonho de felicidade’ que o povo napolitano ‘repete todas |2| * "ESSA PAIXÃO, TÃO UNIVERSALMENTE CONDENADA, NUNCA FOI ESTUDADA. NIN- GUÉM AINDA COMPREENDEU O ÓPIO DA MISÉRIA. A LOTERIA, A MAIS PODEROSA FADA DO MUNDO, NÃO DESENVOLVIA ESPERANÇAS MÁGICAS? A JOGADA DE ROLE- TA, QUE ACENAVA AOS JOGADORES COM MONTÕES DE OURO E DE PRAZERES, NÃO DURAVA MAIS QUE UM CLARÃO; AO PASSO QUE A LOTERIA DAVA UMA DURAÇÃO DE CINCO DIAS A ESSE MAGNÍFICO CLARÃO. QUAL É, ATUALMENTE, A POTÊNCIA SOCIAL QUE PODE, POR QUARENTA SOLDOS, TORNAR-VOS FELIZES DURANTE CIN- CO DIAS E CONCEDER-VOS IDEALMENTE TODAS AS FELICIDADES DA CIVILIZAÇÃO?" BALZAC, HONORÉ DE. UM CONCHEGO DE SOLTEIRÃO. A COMÉDIA HUMANA. RIO DE JANEIRO-PORTO ALEGRE- SÃO PAULO: GLOBO, 1955, VOL. VI, P.56. 4 caderno 16 (xxii) |2a| as semanas’, vivendo ‘por seis dias uma esperança crescente, invasi- va, que se expande e sai dos limites da vida real’; o sonho ‘em que estão todas as coisas das quais ele é privado, uma casa limpa, ar fres- co e saudável, um belo raio de sol cálido no chão, uma cama branca alta, uma cômoda brilhante, macarrão com carne todos os dias, e o litro de vinho, e o berço para o bebê, e as roupa de cama e mesa para a esposa, e o chapéu novo para o marido’"[1]. O trecho de Balzac também poderia estar vinculado com a ex- pressão “ópio do povo”, empregada na Critica della Filosofia del Diritto de Hegel, publicada em 1844 (verificar a data), cujo autor era um grande admirador de Balzac: "Tanta era sua admiração por Balzac que se havia proposto a escrever um ensaio crítico so- bre a Comédia humana”, escreve Lafargue, em | [suas memórias] sobre Karl Marx*publicadas na conhecida coletânea de Riazanov (p. 114 da edição francesa) [2]. Recentemente (talvez em 1931) foi publicada uma carta inédita de Engels na qual se fala exten- samente de Balzac e sobre a importância cultural que se lhe deve atribuir [3]. É provável que a passagem da expressão “ópio da miséria”, usada por Balzac para a loteria, à expressão “ópio do povo” para a religião, tenha sido ajudada pela reflexão de Pascal sobre o “pari”, que com- para a religião com o jogo de azar, com as apostas. Deve-se recordar que, precisamente, em 1843, Victor Cousin divulgou o manuscrito autêntico das Pensées de Pascal, editado pela primeira vez em 1670 por seus amigos de Port-Royal, repleto de incorreções, e republica- do em 1844 pelo editor Faugère, segundo o manuscrito indicado por Cousin. As Pensées, em que Pascal desenvolve seu argumento sobre o "pari" (aposta), são fragmentos de uma Apologie de la Re- ligion chrétienne que Pascal não chegou a concluir. Eis a linha do pensamento de Pascal (de acordo com G. Lanson, Storia della let- teratura francese, 19ª ed., p. 464): "Les hommes ont mépris pour la religion, ils en ont haine et peur qu'elle soit vraie. Pour guérir cela, o faut commencer par montrer que la religion n’est point contraire à * NO MS.: “K.M.”. 51933-1934: temas de cultura 1º la raison; ensuite, qu'elle est vénérable, en donner respect; la rendre ensuite aimable, faire souhaiter aux bons qu'elle fût vraie, et puis montrer qu'elle est vraie"*. Depois do discurso sobre a indiferença dos ateus, que serve de introdução geral à obra, Pascal expunha sua tese sobre a impotência da razão, incapaz de saber tudo e de saber alguma coisa com certe- za, reduzida a julgar pelas aparências oferecidas pelo ambiente das coisas. A fé é um meio superior de conhecimento: ela se exerce para além dos limites que a razão pode alcançar. Mas, mesmo que assim fosse, mesmo que não houvesse nenhum meio de se chegar a Deus, seja através da razão ou de qualquer outro meio, na impossibilidade absoluta de saber, ainda seria necessário agir como se se soubesse. Porque, segundo o cálculo de probabilidades, há uma vantagem em apostar que a religião é verdadeira e em reger | a própria vida como se o fosse. Vivendo de maneira cristã, arrisca-se infinitamente pou- co, alguns anos de prazeres túrbidos (plaisir mêlé), para ganhar o infinito, a alegria eterna [4]. Note-se que Pascal foi muito perspicaz ao dar forma literária, justificativa lógica e prestígio moral a este argumento da aposta, que na verdade é modo difuso de pensar a religião, mas um modo de pensar que "se envergonha de si mesmo” porque, ao mesmo tempo em que satisfaz, parece indigno e baixo. Pascal abordou a "vergonha" (se assim se pode dizer, pois é possível que o argumento do "pari" (aposta), hoje em dia popular, em for- mas populares, tenha derivado do livro de Pascal, não sendo conhe- cido antes) e tentou dar dignidade e justificativa ao pensamento popular (quantas vezes já se ouviu dizer: “o que você perde em ir à igreja, em crer em Deus? Se não existe, paciência; mas, se existe, quão útil terá sido para você ter acreditado? etc.)”. Esse modo de pensar, mesmo na forma pascaliana de "pari", tem um quê de voltai- rianismo, e lembra o modo de se expressar de Heine: "quem sabe se o padre eterno não nos prepara uma bela surpresa depois da morte" * "OS HOMENS DESPREZAM A RELIGIÃO, ODEIAM-NA E TEMEM QUE ELA SEJA VER- DADEIRA. REMEDIAR ISTO, DEVEMOS COMEÇAR MOSTRANDO QUE A RELIGIÃO NÃO É CONTRÁRIA À RAZÃO; EM SEGUIDA, QUE ELA É VENERÁVEL, DAR-LHE RESPEITO; DEPOIS, TORNÁ-LA AGRADÁVEL, FAZER COM QUE OS BONS DESEJEM QUE ELA SEJA VERDADEIRA E, POR FIM, MOSTRAR QUE ELA É VERDADEIRA." |3| 6 caderno 16 (xxii) [5] ou algo semelhante. (Ver como os estudiosos de Pascal explicam e justificam moralmente o argumento do "pari". Deve haver um es- tudo de P. P. Trompeo no volume Rilegature gianseniste, em que se discute o argumento do "pari" em relação a Manzoni [6]. Veja-se também Ruffini por seu estudo sobre o Manzoni religioso) [7]. De um artigo de Arturo Marescalchi, Durare! Anche nella bachi- coltura, publicado no "Corriere della Sera", de 24 de abril de 1932: “para cada meia onça de ovos cultivados na criação de bichos-da-se- da, concorre-se a prêmios, que vão desde uma cifra modesta (há de 400 mil liras) a outros que chegam a 10 mil e 20 mil liras, e cinco [prêmios], que variam entre 25 mil e 250 mil liras. No povo ita- liano está sempre vivo o sentimento de tentar a sorte; mesmo hoje em dia, no campo, não há quem se abstenha das rifas e dos bingos. Aqui se obterá o bilhete gratuito que permite tentar a sorte" [8]. Ademais, há uma estreita conexão entre a loteria e a religião, os prêmios recebidos mostram que, se foi "eleito", recebeu uma graça particular de um santo ou de Nossa Senhora. Seria possível fazer uma comparação entre a concepção ativista da graça entre os pro- testantes, que deu forma moral ao espírito de empreendimento | capitalista, e a concepção passiva e indolente da graça, própria do católico comum. Observe-se o papel da Irlanda no revigoramento das loterias nos países anglo-saxões e os protestos dos jornais que re- presentam o espírito da Reforma, como o Manchester Guardian [9]. Além disso, deve-se ver se Baudelaire, no título de seu livro I pa- radisi artificiali (bem como, no tratamento do tema), não teria se inspirado na expressão "ópio do povo": a fórmula poderia ter chega- do a ele indiretamente através da literatura política ou jornalística. Não me parece provável (mas não se pode excluir)que, já antes do livro de Balzac, existisse alguma expressão para apresentar o ópio e outras drogas e estupefacientes como meios para desfrutar de um paraíso artificial. (Por outro lado, convém lembrar que, até 1848, Baudelaire participou de certa atividade prática, foi diretor de se- manários políticos e tomou parte ativa nos acontecimentos pari- sienses de 1848). CF. CADERNO 8 (XXVIII), P. 66 - 66 BIS, 75 - 75 BIS, 75 BIS - 76. |3a| 71933-1934: temas de cultura 1º § 〈2〉. Questões de método. Se se quer estudar o nascimento de uma concepção do mundo que nunca foi sistematicamente exposta por seu fundador (e cuja coerência essencial deve ser buscada não em cada escrito particular ou em uma série de escritos, mas sim no completo desenvolvimento do variado trabalho intelectual em que os elementos da concepção estão implícitos), é preciso realizar pre- liminarmente um trabalho filológico minucioso e conduzido com o máximo escrúpulo de exatidão, de honestidade científica, de leal- dade intelectual, de ausência de qualquer preconceito e apriorismo ou tomada de partido. Antes de mais nada, é necessário reconstruir o processo de desenvolvimento intelectual de determinado pensa- dor, a fim de identificar os elementos que se tornaram estáveis e "permanentes", isto é, que foram assumidos como pensamento pró- prio, diferente e superior ao “material” estudado anteriormente e que havia servido de estímulo; somente esses elementos são mo- mentos essenciais do processo de desenvolvimento. Essa seleção pode ser feita considerando-se períodos mais ou menos longos, segundo o que emergir do intrínseco e não de informações externas (que também podem| ser utilizadas ) e dá lugar a uma série de "des- cartes", isto é, doutrinas e teorias parciais pelas quais aquele pensa- dor possa ter tido em certos momentos uma simpatia, ao ponto de tê-las aceitado provisoriamente, servindo-se delas para o seu traba- lho crítico ou de criação histórica e científica. É observação comum de todo estudioso, como experiência pessoal, que toda nova teoria estudada com "fúria heroica" (isto é, quando não se estuda por mera curiosidade exterior, mas por um interesse profundo) por um certo tempo, especialmente quando se é jovem, atrai por si mesma, apo- dera-se de toda a personalidade e é limitada pela teoria estudada sucessivamente, até que se estabeleça um equilíbrio crítico e se es- tude em profundidade, mas sem se render de imediato ao fascínio do sistema ou do autor estudado. Esta série de observações é tanto mais válida quanto mais impetuoso demonstrar-se dado pensador, quanto mais possuir caráter polêmico e carecer do espírito do siste- ma, quando se tratar de uma personalidade para a qual a atividade teórica e prática estão inextricavelmente entrelaçadas e cujo intelec- to está em contínua criação e em movimento perpétuo, que sente |4| 8 caderno 16 (xxii) fortemente a autocrítica do modo mais implacável e consequen- te. Dadas essas premissas, o trabalho deve seguir estas linhas: 1) a reconstrução da biografia, não só no que diz respeito à atividade prática, mas, especialmente, à atividade intelectual; 2) o registro de todas as obras, mesmo as mais insignificantes, em ordem cronoló- gica, dividido segundo razões intrínsecas: de formação intelectual, de maturidade, de possessão e aplicação do novo modo de pensar e conceber a vida e o mundo. A busca do lei-tmotiv, do ritmo do pensamento em desenvolvimento, deve ser mais importante do que as simples afirmações casuais e aforismos isolados. Este trabalho preliminar torna possível qualquer pesquisa pos- terior. Entre as obras do pensador dado é necessário, além disso, distinguir aquelas que ele tenha concluído e publicado daquelas que permaneceram inéditas, porque não concluídas, e [que foram] publicadas por algum amigo ou discípulo, mas não sem revisões, modificações, cortes etc., ou seja, não sem uma intervenção ativa do editor. É evidente que o conteúdo destas obras póstumas deve ser visto com muita discrição e cautela, pois não pode | ser consi- derado como definitivo, mas apenas como material ainda em ela- boração, ainda provisório; não se pode excluir que essas obras, es- pecialmente se elaboradas por muito tempo sem que o autor tenha se decidido em terminá-las, houvessem sido total ou parcialmente rejeitadas pelo autor ou consideradas insatisfatórias. No caso específico do fundador da filosofia da práxis, a obra li- terária pode ser dividida nas seguintes seções: 1) obras publicadas sob responsabilidade direta do autor: entre estas devem ser consi- deradas, em linhas gerais, não apenas as obras materialmente en- viadas à imprensa, mas também aquelas "publicadas" ou postas em circulação através de qualquer meio pelo autor, tais como cartas, circulares etc. (um exemplo típico são as Críticas ao programa de Gotha e a correspondência) [1]; 2) obras não publicadas sob a res- ponsabilidade direta do autor, mas por terceiros, postumamente; delas, no entanto, seria conveniente ter o texto diplomático, o que já está em via de ser feito, ou pelo menos uma descrição minuciosa do texto original feita com critérios diplomáticos. |4a| 91933-1934: temas de cultura 1º Ambas as seções devem ser reconstruídas segundo períodos cro- nológico-críticos, de modo a se poder estabelecer comparações vá- lidas e não puramente mecânicas e arbitrárias. Deveria também ser minuciosamente estudado e analisado o trabalho de elaboração realizado pelo autor sobre o material das obras editadas posteriormente por ele mesmo: este estudo daria pelo menos orientações e critérios para avaliar criticamente a cre- dibilidade dos textos das obras póstumas compiladas por terceiros. Quanto mais o material preparatório das obras editadas pelo au- tor se afasta do texto definitivo redigido pelo próprio autor, tanto menos confiável é a redação de outro escritor de um material do mesmo tipo. Uma obra nunca pode ser identificada com o material bruto recolhido para a sua compilação: a escolha final, a disposição dos elementos que a compõem, o maior ou menor peso dado a este ou a aquele elemento recolhido no período preparatório é o que precisamente constitui a obra efetiva. Mesmo o estudo da correspondência deve ser feito com certa cautela: uma afirmação taxativa feita em uma carta talvez não fosse repetida em um livro. A vivacidade estilística das cartas, se em geral é artisticamente mais eficaz que o estilo mais comedido e pondera- do | de um livro, conduz, às vezes, a deficiências de argumentação; nas cartas, assim como nos discursos e conversas, ocorrem erros ló- gicos com mais frequência; a maior rapidez de pensamento muitas vezes se dá em detrimento de sua solidez. Só em segundo plano, no estudo de um pensamento original e inovador, aparece a contribuição de outras pessoas para sua do- cumentação. Assim, ao menos como questão de princípio, como método, deve ser considerada a questão das relações de homoge- neidade entre os dois fundadores da filosofia da práxis. A afirmação deste ou do outro sobre o acordo recíproco é válida apenas para o argumento dado. Mesmo o fato de um ter escrito algum capítulo do livro do outro não é uma razão peremptória para que todo o livro seja considerado como resultado de um acordo perfeito. Não se deve subestimar a contribuição do segundo, mas, tampouco se deve identificar o segundo com o primeiro, nem pensar que tudo o |5| 10 caderno 16 (xxii) que o segundo atribuiu ao primeiro seja absolutamente autêntico e sem infiltrações. É certo que o segundo deu provas de desinteresse e falta de vaidade pessoal únicos na história da literatura, mas não se trata disso, nem de pôr em dúvida a absoluta honestidade cien- tífica do segundo. Trata-se de que, o segundo não é o primeiro e, se se quer conhecer o primeiro, deve-se procurá-lo especialmente em suas obras autênticas, publicadas sob sua direta responsabilidade*. Dessas observações derivam várias advertências de método e algu- mas indicações parapesquisas correlatas. Por exemplo, que valor tem o livro de Rodolfo Mondolfo sobre o Materialismo histórico de Federico Engels*editado por Formiggini, em 1912? [2] Sorel, (em uma carta a Croce) [3] põe em dúvida que se possa estudar um tema dessa espécie, devido à escassa capacidade de pensamento original de Engels*, e repete frequentemente que não se deve confundir os dois fundadores da filosofia da práxis. Independentemente da questão levantada por Sorel, parece que, pelo próprio fato de que se supõe (se afirmar) uma escassa capacidade teórica do segundo dos dois amigos (pelo menos uma posição subordinada em relação ao primeiro), é indispensável investigar a quem corresponde o pensa- mento original etc. Na realidade, nunca se realizou uma pesquisa sistemática desse tipo (exceto o livro de Mondolfo) no mundo da cultura; pelo contrário, as exposições do segundo, algumas relati- vamente sistemáticas, são agora trazidas a primeiro plano|, como fonte autêntica e mesmo como única fonte autêntica. O volume de Mondolfo, portanto, parece muito útil, ao menos pela diretriz que traça. CF. CADERNO 4 (XIII), P. 41-42. § 〈3〉. Um repertório da filosofia da práxis. 〈1〉. Seria utilíssimo um inventário crítico de todas as questões que foram levantadas e discutidas em torno da filosofia da práxis, com amplas bibliografias * NO MS.: “PERSONALIDADE”. * NO MS.: “MAT. ST. DE F.E.” * NO MS.: “ENG.”. |5a| 111933-1934: temas de cultura 1º |6| críticas. O material para uma obra enciclopédica especializada do gênero é tão extenso, díspar, de valor muito diverso, em tantos idio- mas, que somente um comitê editorial poderia elaborá-lo, em um tempo longe de ser breve. Mas a utilidade de tal compilação seria de imensa importância, tanto no campo científico quanto no campo educativo, bem como para os estudiosos independentes. Tornar-se- -ia um instrumento de primeira linha para a divulgação dos estudos sobre a filosofia da práxis e para a sua consolidação numa disciplina científica, separando claramente duas épocas: a moderna daquela anterior, de imparcialidades, de “papagaismos” e de diletantismos jornalísticos. Para construir o projeto seria necessário estudar todo o material do mesmo tipo publicado pelos católicos de vários países sobre a Bíblia, os Evangelhos, a Patrologia, a Liturgia, a Apologéti- ca, as grandes enciclopédias especializadas de diversos valores, mas que são continuamente publicadas e mantêm a unidade ideológica de centenas de milhares de padres e outros dirigentes que formam a estrutura e a força da Igreja Católica. (Para a bibliografia da filoso- fia da práxis na Alemanha, veja-se as compilações de Ernst Drahn, citadas pelo próprio Drahn na introdução aos números 6068-6069 da Reklams Universal Bibliothek) [1]. 2. Deveria ser feito para a filosofia da práxis um trabalho como o que Bernheim fez para o método histórico (E. Bernheim: Lehrbuch der historischen Methode, 6ª. ed., 1908, Leipzig, Duncker u. Hum- blot, traduzido para o italiano e publicado pela editora Sandron, de Palermo) [2]. O livro de Bernheim não é um tratado da filoso- fia do historicismo, embora implicitamente a ela relacionado. A chamada "sociologia da filosofia da práxis" deveria |estar para essa filosofia como o livro de Bernheim está para o historicismo em ge- ral, ou seja, ser uma exposição sistemática dos cânones práticos de pesquisa e interpretação da história e da política; uma compilação de critérios imediatos, precauções críticas etc., uma filologia da história e da política, tais como concebidas pela filosofia da práxis. Para certos aspectos de algumas tendências da filosofia da práxis (e casualmente as mais difundidas por seu caráter grosseiro) seria necessário fazer a mesma crítica (ou tipo de crítica) que o historicis- 12 caderno 16 (xxii) mo moderno fez ao velho método histórico e à velha filologia, que haviam conduzido a formas ingênuas de dogmatismo e substituí- am a interpretação e a construção histórica pela descrição externa e catalogação das fontes primárias, frequentemente acumuladas de forma desordenada e incoerente. A força maior destas publicações consistia numa espécie de misticismo dogmático que se foi criando e popularizando, e se expressava na afirmação injustificada de que era fiel ao método histórico e à ciência. 3. Com relação a esses temas deve-se recordar algumas observa- ções da série «Riviste tipo»e aquelas em torno de um «Dizionario critico»[3]. CF. CADERNO 4 (XIII), P. 50 BIS E 45 BIS - 46. § 〈4〉. Os jornais das grandes capitais. Uma série de ensaios sobre jornalismo das capitais dos mais importantes Estados do mundo, segundo os seguintes critérios: 1) Análise dos diários que em um determinado dia (não escolhidos ao acaso, mas quando se registra algum acontecimento importante para o Estados em questão) saem em uma capital - Londres, Paris, Madri, Berlim, Roma etc., a fim de estabelecer um termo de comparação o mais homogêneo possível, ou seja, entre o evento principal e a relativa similaridade dos ou- tros, para se ter um quadro do modo diverso como os partidos e as tendências refletem suas opiniões e formam a chamada opinião pú- blica. Como, no entanto, nenhum jornal diário, especialmente em certos países, é cotidianamente o mesmo do ponto de vista técnico, será necessário obter exemplares de cada jornal de toda uma sema- na ou do período que abranger o ciclo completo de certas colunas especializadas e de certos suplementos, cujo conjunto nos permita compreender o efeito que tiveram sobre os leitores assíduos. 2) Análise de |toda a imprensa periódica, de toda espécie (desde a esportiva aos boletins paroquiais), que completa a análise dos diá- rios, na medida em que são publicados após o diário-tipo. 3) Informações sobre a tiragem, sobre o pessoal, sobre a dire- ção, sobre os financiadores, sobre a publicidade. Em suma, é preciso |6a| 131933-1934: temas de cultura 1º reconstruir para cada capital o conjunto do mecanismo editorial periódico que difunde as tendências ideológicas que operam contí- nua e simultaneamente sobre a população. 4) Estabelecer a relação da imprensa da capital com a das pro- víncias; esta relação varia de país para país. Na Itália, a circulação dos jornais romanos é muito inferior a dos jornais milaneses. A organização territorial da imprensa francesa é muito diferente da alemã etc. O tipo de semanário político italiano talvez seja único no mundo e corresponde a um tipo específico de leitor. 5) Para certos países é necessário levar em consideração a exis- tência de outros centros dominantes além da capital, como Milão para a Itália, Barcelona para a Espanha, Munique para a Alemanha, Manchester e Glasgow para a Inglaterra etc. 6) Para a Itália, o estudo poderia ser estendido a todo o país e a toda a imprensa periódica, classificando a exposição de acordo com a importância dos centros: por ex: 1 ° Roma, Milão; 2 ° Turim, Gênova; 3 ° Trieste, Bolonha, Nápoles, Palermo, Florença etc.; 4ª Imprensa política semanal; 5 ° Revistas políticas, literatura, ciência, religião etc. CF. CADERNO 4 (XIII), P. 8 § 〈5〉. A influência da cultura árabe na civilização ocidental. Ezio Levi publicou no volume Castelli di Spagna (Treves, Milão) [1] uma série de artigos publicados dispersamente em revistas e outros meios sobre as relações culturais entre a civilização europeia e os árabes, ocorridas, principalmente na Espanha, onde os estudos so- bre o assunto são numerosos e contam com muitos especialistas: os ensaios de Levi se inspiravam quase sempre nas obras de arabis- tas espanhóis. No «Marzocco», de 29 de maio de 1932, Levi faz uma resenha à introdução do livro L’eredità dell’Islam, de Angel Gonzales Palencia (introdução que foi publicada em um livreto in- dependente com o título: El Islam y Occidente, Madri, 1931), em que enumera toda uma série de contribuições feitas à Europa pelo mundo oriental na culinária, na medicina, na química etc. [2] O li- 14 caderno 16 (xxii) vro completo de