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ESTUDO DO MÉTODO DIALÉTICO MARXISTA Trechos extraídos e adaptados do livro PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DA FILOSOFIA de Georges Politezer, Guy Besse e Maurice Caveing. Tradução de João Cunha Andrade Hemus – Livraria Editora Ltda. 2 PRIMEIRA LIÇÃO O MÉTODO DIALÉTICO O materialismo dialético é assim chamado porque sua maneira de consi- derar os fenômenos naturais, seu método de investigação e de conhecimento são dialéticos; sua interpretação, sua concepção dos fenômenos da natureza, sua teoria são materialistas. [Stalin, II, pág. 3.] I. QUE É MÉTODO? Entende-se por «método» o caminho pelo qual se atinge um fim. Os maio- res filósofos, como Descartes, Spinosa, Hegel, estudaram atentamente os proble- mas do método, porque estavam empenhados em descobrir o meio mais racional para atingir a verdade. Os marxistas querem ver a verdade de frente, para além das aparências imediatas, para além das mistificações: o método tem, pois, também pa- ra eles, uma importância muito grande. Somente um método científico lhes permitirá elaborar essa concepção científica do mundo, necessária à ação transformadora, revolucionária. A dialética é, pois, o único método rigorosamente adequado a uma con- cepção materialista do mundo. As seis lições que se seguem, neste trabalho, serão consagradas ao mé- todo dialético. Convém, entretanto, que, para tanto, nos preparemos com uma intro- dução. Introdução que será facilitada por uma comparação entre o método dialético (que é científico) e o método metafísico (que é anticientífico). II. O MÉTODO METAFÍSICO a) Suas características: Compramos um par de sapatos amarelos. Ao fim de certo tempo, depois de muitos consertos, troca de solas, saltos, substituição de outras peças etc., dize- mos ainda: «vou calçar os sapatos amarelos» sem percebermos que já não são mais os mesmos. Esquecemo-nos das modificações sofridas pêlos sapatos e a eles nos referimos como se não tivessem sofrido modificação alguma, como se permane- cessem idênticos. 3 Este exemplo vai-nos ajudar a compreender o que é o método metafísico. Segundo expressão de Engels, o método metafísico considera as coisas «como fei- tas em definitivo», como imutáveis. [Engels, I, pág. 35; II, pág. 46.] Escapam a ele o movimento e, bem assim, as causas da modificação. O modesto par de sapatos ficará bem longe, para trás, e já não nos servi- rá de exemplo quando fizermos um estudo histórico da metafísica. Mostremos, sim- plesmente, que a palavra ―metafísica‖ vem do grego meta (que se pode interpretar como significando para além) e física (ciência da natureza). O objeto da metafísica, principalmente para Aristóteles, era o estudo do ser, que se encontra para além da natureza. Enquanto a natureza é movimento, o ser do além (ser sobrenatural) é imu- tável, eterno. Alguns o chamam Deus, outros, o Absoluto. Os materialistas, que se apóiam exclusivamente na ciência, consideram esse ser como imaginário. Mas, co- mo os gregos antigos não podiam explicar o movimento, pareceu, necessário, a al- guns de seus filósofos, estabelecer, para além da natureza em movimento, um prin- cípio eterno. Quando falamos em método metafísico estamos, com essa expressão, querendo significar um método que ignora ou desconhece a realidade do movimento e da transformação. Não ver que os sapatos já não são os mesmos é uma atitude metafísica. A metafísica ignora o movimento, em favor do repouso, a transformação, em favor do idêntico. «Nada há de novo sob o Sol», diz ela. Acreditar que o capita- lismo é eterno é raciocinar metafisicamente; acreditar que os males e os vícios (cor- rupção, egoísmo, crueldade etc.), engendrados e mantidos entre os homens pelo capitalismo, existirão sempre, também é metafísico. Para o metafísico, o homem é eterno, logo, é imutável. Por quê? Porque separa o homem do seu meio, a sociedade. O metafísi- co diz: ―De um lado, o homem, de outro, a sociedade. Se destruirdes a sociedade capitalista, tereis uma sociedade socialista. E então? O homem continuará sendo o homem.‖ Com isso atingimos o segundo traço da metafísica: separar, arbitrariamen- te, o que é inseparável, na realidade. O homem é, com efeito, um produto da história das sociedades: o que ele é não se realiza fora da sociedade, mas por intermédio dela. O método metafísico separa, arbitrariamente, o que está unido na realidade. A preocupação de separar leva o metafísico, em todas as circunstâncias, a raciocinar assim: ―Uma coisa é, ou bem isto, ou bem aquilo. Ela não pode ser ao mesmo tempo, isto e aquilo.‖ O metafísico, porque define as coisas em definitivo (e- 4 las continuarão sendo sempre o que são), e porque, ciosamente, as isola, é levado a opor umas às outras, como absolutamente inconciliáveis. Ele não admite que dois contrários possam existir ao mesmo tempo. Um ser, diz ele, está vivo ou está morto. Parece-lhe inconcebível que um ser possa estar ao mesmo tempo, vivo e morto; en- tretanto, no corpo humano, por exemplo, a cada instante, novas células substituem as que morreram: a vida do corpo é, justamente, essa luta incessante entre forças contrárias. Rejeição da transformação, separação do que é inseparável e exclusão sistemática dos contrários, eis a característica do método metafísico. Teremos opor- tunidade de estudá-las nas lições que se seguem, cotejando-as com as característi- cas do método dialético. Desde já, entretanto, podemos pressentir os perigos de um método metafísico, na pesquisa da verdade e na ação sobre o mundo. A metafísica deixa escapar, infalivelmente, a essência da realidade, que é a mudança incessante, a transformação. Ela não quer ver senão um aspecto dessa realidade infinitamente rica, e toma uma das partes pelo todo, uma árvore pela floresta inteira. Ela não se amolda à realidade, como o faz a dialética, mas quer forçar a realidade vivente a se fixar nos seus quadros mortos. Tarefa destinada ao fracasso! Conta uma velha lenda grega as proezas de um salteador, Procusto, que deitava as vítimas em um leito de pequenas dimensões. Se a vítima era muito gran- de, cortava-lhe as pernas para que coubesse na cama; se era muito pequena, es- quartejava-a para que, aos pedaços, ocupasse todo o leito. Assim são tratados os fatos pela metafísica. Mas, eles resistem... b) Sua significação histórica Antes de saber desenhar os objetos em movimento, é preciso aprender a desenhá-los imóveis. É, um pouco, a história da humanidade. Quando ela ainda não estava em condições de elaborar um método dialético, o método metafísico prestou- lhe grandes serviços. O antigo método de pesquisa e de pensamento, que Hegel chama de «metafísico», que se ocupava de preferência com o estudo das coisas consideradas como objetos fixos dados, e cujas sobrevivências con- tinuam a perturbar os espíritos, tinham, no seu tempo, sua grande justificação histórica. Era preciso, primeiramente, estudar as coisas, antes de poder estudar os processos (isto é, os movimentos e as 5 transformações). Era preciso, primeiro, saber o que era tal ou qual coisa, antes de poder observar as modificações que nela se opera- vam. Assim, aconteceu com as ciências naturais. A metafísica antiga, que considerava as coisas como feitas em definitivo, era o produto da ciência da natureza, que estudava as coisas, mortas ou vivas, como imutáveis. [Engeis, I, pág. 35; II, pág. 46.] No início, a ciência da natureza não podia proceder de outro modo. Era preciso, primeiro, reconhecer as espécies vivas, distingui-las cuidadosamente umas das outras, classificá-las; um vegetal não é um animal, um animal não é um vegetal etc. Na Física, do mesmomodo, foi preciso, primeiro, distinguir bem o calor, a luz, a massa etc. para evitar confusões e se dedicar, para começar, ao estudo dos fenô- menos mais simples. Assim é que, por muito tempo, a ciência não pôde analisar o movimento. Deu, pois, importância essencial ao repouso. Depois, quando surgiu o estudo científico do movimento (com Galileu e Descartes), a Física se dedicou, pri- meiramente, a mais simples e à mais acessível forma de movimento: a mudança de lugar. Mas, os progressos das ciências levaram à quebra dos quadros me- tafísicos. Quando o estudo da natureza avançou tanto que o progresso deci- sivo se tornou possível, isto é, quando foi possível passar ao estudo sistemático das modificações sofridas pelas coisas no seio da pró- pria natureza, soou, no campo filosófico, o dobre de finados para a velha metafísica. [Engeis, I, pág. 35; II, pág. 46.] III. O MÉTODO DIALÉTICO a) Suas características A dialética considera as coisas e os conceitos no seu encadeamento; suas relações mútuas, sua ação recíproca e as decorrentes modifica- ções mútuas, seu nascimento, seu desenvolvimento, sua decadência. 6 (Engels, III, pág. 392.) A dialética opõe-se, sob todos os pontos de vista, à metafísica. Não que a dialética não admita o repouso e a separação entre os diversos aspectos do real. Ela vê, no repouso, um aspecto relativo da realidade, enquanto que o movimento é ab- soluto; considera, igualmente, que toda separação é relativa porque, na realidade, tudo se relaciona de uma forma ou de outra, tudo está em interação. As leis da dialé- tica serão estudadas nas seis lições que se seguem. Atenta a todas as formas de movimento, não simplesmente à mudança de lugar, mas, também, às mudanças de estado como, por exemplo, a água líquida transformando-se em vapor de água, a dialética explica o movimento pela luta dos contrários. ―Esta é a mais importante lei da dialética; a ela serão consagradas as li- ções 5ª, 6ª e a 7ª‖. O metafísico Isola os contrários, considerando-os, sistematica- mente, como ''incompatíveis. A dialética descobre que um não pode existir sem o ou- tro, e que todo movimento, toda mudança, toda transformação são explicáveis pela luta dos contrários. Já mostramos no item II desta lição que a vida do corpo humano é produto da luta incessante entre forças de vida e forças de morte, vitória que a vi- da busca, sem cessar, alcançar sobre a morte, vitória que a morte disputa sem ces- sar à vida. Todo ser orgânico a cada instante, é e não é o mesmo; a cada instante assimila matérias estranhas e elimina outras; em cada instante perecem células de seu corpo e outras se constituem; no fim de um tempo mais ou menos longo, a substância desse corpo foi to- talmente renovada, foi substituída por outros átomos de matérias; as- sim, todo o ser organizado é constantemente o mesmo e, também, outro. Considerando as coisas mais atentamente, veremos, ainda, que os pólos de uma contradição, positivo e negativo, são tão insepa- ráveis quanto opostos e que, apesar de manterem todo o valor da an- títese, eles se interpenetram; veremos, paralelamente, que causa e e- feito são representações que não tem valor como tal, senão quando aplicadas a um caso particular; desde, porém, que consideremos es- se caso particular em sua conexão geral com o conjunto do mundo, as representações se fundem e se resolvem em face da ação recípro- ca universal, onde causas e efeitos se permutam continuamente; o 7 que é efeito, agora, ou aqui, passa a ser causa, logo mais, ou em ou- tro lugar, e vice-versa. 1 O mesmo acontece na sociedade; veremos que a luta dos contrários nela se dá sob a forma de luta de classes. A luta dos contrários é ainda o motor do pen- samente. b) Sua formação histórica Aos filósofos gregos cabe o mérito de ter esboçado a dialética. Eles con- cebiam o mundo como um todo. Heráclito ensinava que esse todo se transforma: ―jamais entramos no mesmo rio‖, dizia ele. A luta dos contrários já tinha, para eles, muita importância, principalmente para Platão, que acentua a fecundidade dessa lu- ta; os contrários se geram mutuamente.2 A palavra dialética vem diretamente de dia- legein, que significa discutir. Exprime a luta de idéias contrárias. Entre os mais vigorosos pensadores do período moderno, especialmente Descartes e Spinosa, encontram-se notáveis exemplos do raciocínio dialético. Foi, porém, Hegel (1770-1831), o grande filósofo alemão, cuja obra se desenvolveu no período subseqüente à Revolução Francesa, quem devia formular pela primeira vez, de forma genial, o método dialético. Admirador da revolução bur- guesa que, triunfando na França, pôs abaixo a sociedade feudal, que se supunha eterna, Hegel realizou uma revolução análoga no plano das idéias: destronou a me- tafísica e suas verdades eternas. A verdade não é um conjunto de princípios definiti- vos. É um processo histórico, a passagem de graus inferiores para graus superiores do conhecimento. Seu movimento é o da própria ciência, que não progride senão sob a condição de ser crítica incessante de seus próprios resultados, a fim de poder superá-los. Vemos, assim, que, para Hegel, o motor de toda transformação é a luta 1 Engeis: Anti-Dübring, pág. 54. Dois exemplos muito simples dessa interação onde a causa se torna efeito e o efeito, causa: a água aos mares e dos rios, pela evaporação dá origem às nuvens, que, por sua vez, se condensam em chuva, que volta ao solo O sangue, posto em movimento pelo coração, tem necessidade dos pulmões que lhe dão oxigênio; os pulmões não podem trabalhar sem a circula- ção do sangue. 2 Um una belíssimo exemplo da dialética platônica é dado por um dos seus mais célebres diálogos: Lê Phédon. 8 dos contrários. Entretanto, Hegel foi um idealista; o que equivale a dizer que, para ele, a natureza e a história humanas não eram mais do que uma manifestação, uma reve- lação da Idéia incriada. A dialética hegeliana era, pois, puramente espiritualista. Marx (que foi, a princípio, discípulo de Hegel) soube reconhecer na dialé- tica o único método científico. Mas, ele soube também, como materialista que era, colocá-la em seu devido lugar: repudiando a concepção idealista do mundo, segun- do a qual o universo material é um produto da Idéia, ele compreendeu que as leis da dialética são as do inundo material e que, se o pensamento é dialético, é por que os homens não são alheios a esse mundo, mas fazem parte dele. Para Hegel, escreveu Engels — amigo e colaborador de Marx — o de- senvolvimento dialético, que se manifesta na natureza e na história, isto é, o encadeamento causal do progresso, impondo-se do inferior ao superior, através de todos os movimentos em ziguezague e de to- dos os recuos momentâneos, não é senão o reflexo do automovimen- to pessoal da idéia, prosseguindo por toda a eternidade, não se sabe onde, mas, em todo caso, independentemente de qualquer cérebro humano pensante. Esta era a intromissão ideológica que precisava ser evitada. Consideramos as idéias de nosso cérebro, do ponto de vista materialista, como sendo o reflexo dos objetos, em lugar de considerar os objetos reais como sendo o reflexo de tal ou qual grau da idéia absoluta. Assim, a dialética ficou reduzida à ciência das leis gerais do movimento (tanto do mundo exterior, como do pensamento humano), a duas séries de leis, idênticas no fundo, mas diferentes na sua expressão, no sentido de que o cérebro humano pode aplicá-las conscientemente, enquanto que, na natureza, e até o presente, tam- bém na maior parte da história humana, elas não encontram o seu caminho senão de modo inconsciente,sob a forma da necessidade exterior, no seio de uma série infinita de acasos aparentes. Por isso, a dialética da própria idéia não é mais do que o simples reflexo consci- ente do movimento dialético do mundo real e, assim sendo, a dialéti- ca de Hegel foi posto de cabeça para cima, ou mais exatamente, ela foi recolocada sobre seus pés. [Engeis, I, págs., 33-34; II, pág. 44.] 9 Em resumo, Marx rejeitou o invólucro idealista do sistema hegeliano, para manter o ―núcleo racional‖, isto é, a dialética. Ele mesmo o diz claramente no segun- do prefácio do Capital (janeiro de 1873): Meu método dialético, não só difere basicamente do método hegeliano, como também é, exatamente, o oposto dele. Para Hegel, o movimento do pensa- mento, que ele representa sob o nome de idéia, é o ―demiurgo‖ da realidade, que, por sua vez, não é mais do que forma fenomenal da idéia. Para mim, ao contrário, o movimento do pensamento não é senão o reflexo do movimento real, transportado e transposto para o cérebro do homem.3 De que modo Marx e Engels foram levados a essa modificação decisiva? A resposta está em suas obras. Foi o impulso das ciências da natureza, nos fins do século XVIII, e nas primeiras décadas do século XIX, que os levou a pensar que a dialética tem um fundamento objetivo. Três grandes descobertas tiveram, a respeito disto, um papel determinan- te: 1) A descoberta da célula viva, a partir da qual se desenvolvem os mais complexos organismos; 2) A descoberta da transformação da energia: calor, eletricidade, magne- tismo, energia química etc. são formas qualitativamente diferentes da mesma realidade material; 3) O transformismo de Darwin. Apoiando-se em dados da paleontologia e da pecuária, o transformismo mostrou que todos os seres vivos (entre eles se incluindo o homem) são produtos de, uma evolução natural. (Darwin: A Origem das Espécies, 1859). Essas descobertas, bem como o conjunto das ciências do tempo (por e- xemplo, a hipótese de Kant e de Laplace, que explica o sistema solar a partir de uma nebulosa; ou, ainda, o aparecimento da Geologia que reconstitui a história do globo terrestre), punham em evidência o caráter dialético da natureza, considerado como 3 Marx, I, Livro I, Tomo I, pág. 29. A palavra demiurgo tem, aqui; O sentido de criador; a forma fe- nomenal da idéia significa "a aparência exterior de que a idéia se reveste." (A idéia para Hegel, é a essência das coisas.) 10 unidade de um imenso todo que se desenvolve segundo leis necessárias, gerando, sem cessar, novos aspectos, e sendo a espécie humana e as sociedades humanas um momento dessa universal transformação. Marx e Engels concluíram que, para compreender essa realidade profun- damente dialética, era preciso renunciar ao método metafísico, que quebra a unida- de do mundo e susta-lhe o movimento; tornava-se necessário um método dialético, aquele método que Hegel recolocara em posição honrosa, sem descobrir, contudo, seus fundamentos objetivos. O método dialético não foi, pois, formulado por Marx e Engels arbitraria- mente. Eles o tiraram das próprias ciências, que, por sua vez, têm por campo de es- tudos a natureza objetiva que é dialética.4 É por isso que Marx e Engels, durante toda a vida, acompanharam de muito perto o progresso das ciências; o método dialético foi-se precisando à medida que o conhecimento do universo se tomava mais profundo. De acordo com Marx (que, de seu lado, dedicando-se a fundo à Economia Política, escrevia O Capital), Engels consagrou longos anos de minucioso estudo à filosofia e às ciências da natu- reza. Assim, escreveu (1877-78) o Anti-Dühring e começou a redação de vasta obra de síntese, Dialética da Natureza5, da qual deixou inúmeros capítulos; obra que se inspira nas ciências da época, notavelmente aclaradas pelo método dialético. Essa fecundidade do método dialético devia ser demonstrada por Marx e 4 Os materialistas franceses do século XVIII (Diderot, d'Holbach Helvetius), nos quais Marx reconhe- ce seus antecessores diretos, uma vez que deles toma emprestada a concepção materialista do mundo não puderam descobrir o método dialético. Por quê? Porque a ciência no século XVIII não o permitia. As ciências da matéria viva estavam ainda na infância: ver-se-á o papel que elas deviam re- presentar na formação do materialismo dialético, trazendo a idéia da evolução, idéia dialética por ex- celência (uma espécie transformando-se em outra). A ciência dominante no século XVIII era a Mecâ- nica Racional, de Newton, que apenas conhecia a mais simples forma de movimento: a mudança de lugar, o deslocamento; o universo era, então, comparado a um relógio que se repete. Eis por que o materialismo do século XVIII é chamado mecanicista. Nisso, ele é metafísico uma vez que não com- preende senão a mudança de lugar, e ignora, em particular, a luta dos contrários. Voltaremos ao ma- terialismo mecanicista (metafísico), em particular, na Nona Lição. 5 O estudo desta obra será facilitado pela leitura da conferencia de Georges Cógnito: Lá Dialectique de Ia Nalure, Une O e uvre Geniale de F. Engels, Ed. Sociales, Paris. 1953. 11 Engels. Combatentes revolucionários, tanto quanto homens de pensamento, resol- veram, por serem dialéticos, o problema que seus mais geniais predecessores não tinham sabido propor corretamente; aplicando a dialética materialista à história hu- mana, fundaram efetivamente a ciência das sociedades (que tem por teoria geral o materialismo histórico). IV. LÓGICA FORMAL E MÉTODO DIALÉTICO É útil completar esta primeira lição com algumas notas sobre a Lógica. Já vimos (ponto II, b) que as ciências, no seu início, não podiam empregar senão um método metafísico. Generalizando esse método, os filósofos gregos (principalmente Aristóte- les) formularam certo número de regras universais, que o pensamento devia seguir em todas as circunstâncias, para evitar o erro. O conjunto dessas regras recebeu o nome de Lógica. A Lógica tem por objeto o estudo dos princípios e regras que o pensamento deve seguir na pesquisa da verdade. Esses princípios e regras não de- rivam da fantasia. Originam-se do contrato permanente do homem com a natureza; foi a natureza que tornou o homem ―lógico‖, que lhe ensinou que não pode fazer o que bem entenda. Eis as três principais regras da Lógica tradicional, também chamada Lógi- ca formal: 1) O princípio da identidade: uma coisa é idêntica a si mesma. Um ve- getal é um vegetal, um animal é um animal; a vida é vida, a morte é a morte. Os lógicos, pondo esse princípio em fórmula, dizem: A é A. 2) O princípio da não contradição: uma coisa não pode ser, ao mesmo tempo, ela mesma e seu contrário. Um vegetal não é um animal; um animal não é um vegetal. A vida não é a morte, a morte não é a vida. Os lógicos dizem: A não e não-A. 3) O princípio do terceiro excluído: (Ou exclusão do terceiro caso.) En- tre duas possibilidades contraditórias não há lugar para uma terceira. Um ser é animal ou vegetal; não há lugar para uma terceira possibili- dade. É preciso escolher entre a vida e a morte; não há um terceiro ca- so. Se A e não-A são contraditórios, determinada coisa é A ou não-A. 12 É válida esta lógica? Sim, porque representa a experiência acumulada por séculos e séculos. Porém, ela é insuficiente quando se pretende aprofundar a pes- quisa. Voltando aos próprios exemplos dados, constatamos que há seres vivos que não podem ser classificados, rigorosamente, na categoria dos vegetais, ou na cate- goria dos animais, porque são uma e outra coisa. Do mesmo modo, não há vida ab- soluta, nem morteabsoluta; todo ser vivo se renova a cada instante em luta contra a morte; toda morte leva consigo os elementos de uma nova vida. (A morte não é a abolição da vida, mas a decomposição de um organismo.) Válida dentro de certos limites, a Lógica Formal é insuficiente para penetrar nas profundezas da realidade. Querer que ela dê mais do que pode, é precisamente cair na metafísica. A Lógica tradicional, em si, não é falsa; mas, quando a aplicamos para além de seus limites, ela engendra o erro. É verdade que um animal não é um vegetal; é verdade, e continua sendo verdade, que é preciso, de conformidade com o princípio de não-contradição, evitar as confusões. A dialética não é a confusão. Mas, a dialética diz que é verdade, tam- bém, que o animal e o vegetal são dois aspectos inseparáveis da realidade, a tal ponto que certos seres são um e outro (unidade dos contrários). A Lógica Formal, constituída nos primórdios das ciências, é suficiente pa- ra o uso corrente: permite classificar, distinguir. Quando, porém, queremos aprofun- dar a análise, ela já não pode bastar. Por quê? Porque o real é movimento, e a lógi- ca da identidade (A é A) não permite que as idéias exprimam o real em seu movi- mento. Porque, por outro lado, esse movimento é o produto de contradições inter- nas, como veremos na Quinta Lição; ora, a lógica da identidade não permite conce- ber a unidade dos contrários e a passagem de um para o outro. A Lógica Formal, em suma, não atinge senão o aspecto mais imediato da realidade. O método dialético vai mais longe; ele tem por objetivo atingir todos os aspectos de um processo. A aplicação do método dialético às leis do pensamento chama-se Lógica Dialética. 13 SEGUNDA LIÇÃO A PRIMEIRA CARACTERÍSTICA DA DIALÉTICA: TUDO SE RELACIONA (LEI DA AÇÃO RECÍPROCA E DA CONEXÃO UNIVERSAL) O metafísico separa aquilo que, na realidade, não é separável. Em outu- bro de 1952, tomou parte na Conferência da Ásia e do Pacífico pela Paz um cientis- ta, Joan Hinton, que tinha participado da fabricação da primeira bomba atômica, em Los Alamos. No seu depoimento falou: Trabalhei com minhas mãos na primeira bomba lançada sobre Naga- saqui. Experimento um profundo sentimento de culpa e tenho vergo- nha de ter desempenhado tal papel na preparação desse crime contra a humanidade. Por que aceitei tal missão? É que eu acreditava na fal- sa filosofia da ―ciência pela ciência‖. Esta filosofia envenena a ciência moderna. Foi por causa deste erro que consiste em isolar a ciência da vida social e dos seres humanos, que fui levado a trabalhar para a bomba atômica, durante a guerra. Pensávamos que, como cientistas, devíamos nos consagrar ―à ciência pura‖ e deixar o resto à compe- tência dos engenheiros e dos homens de Estado. Tenho vergonha de dizer que foi necessário o horror dos bombardeamentos de Hiroshima e Nagasaqui, para que eu saísse de minha torre de marfim e compre- ender que não há ―ciência pura‖, que a ciência não tem sentido senão quando serve aos interesses da humanidade. Dirijo-me aos cientistas que, nos Estados Unidos e no Japão, trabalham atualmente na fabri- cação de armas atômicas e bacteriológicas e digo-lhes: ―Pensai bem no que fazeis". O metafísico não pensa que aquilo que ele faz se relaciona com aquilo que os outros fazem; tal é o caso desse sábio da energia atômica que, acreditando estar de acordo com o «espírito científico», tinha, na realidade, uma atitude anticien- tífica, porque se abstinha de perguntar a si mesmo sobre as condições objetivas de sua atividade profissional e sobre a utilização do seu trabalho. Atitudes como essa são muito difundidas. E por quê? Porque, não com- preendendo que seu fazer científico se interrelaciona-se com o poder político e quando descobrir isso, a guerra já terá estourado e seu mundo pode ficar em ruínas. 14 I. A PRIMEIRA CARACTERÍSTICA DA DIALÉTICA Em contraposição à metafísica, a dialética olha a natureza, não como um amontoado acidental de objetos, de fenômenos6 destacados uns dos outros, isola- dos e independentes, mas como um todo unido, coerente, em que os objetos e os fenômenos são organicamente ligados entre si dependendo uns dos outros, e se condicionando reciprocamente. É por isso que o método dialético considera que nenhum fenômeno da natureza pode ser compreendido, quando encarado isoladamente e fora dos fenô- menos circundantes; porque, qualquer fenômeno em não importa que domínio da natureza, pode ser convertido num contra-senso quando considerado fora das con- dições que o cercam, quando, destacado dessas condições; ao contrário, qualquer fenômeno pode ser compreendido e explicado, quando considerado do ponto de vis- ta de sua ligação indissolúvel com os fenômenos que o cercam, quando considerado tal como ele é condicionado pelos fenômenos que o cercam. [Stalin, II, pág. 4] O enunciado da primeira característica da dialética mostra o seu caráter geral: ela se verifica universalmente, na natureza e na sociedade. II. NA NATUREZA A metafísica separa a matéria bruta, da matéria viva e do pensamento; para a metafísica, aí estão três princípios absolutamente isolados, independentes uns dos outros. Mas, existirá o pensamento sem o cérebro? E o cérebro, sem o corpo? A Psicologia (ciência que estuda a atividade pensante) torna-se impossível se ignorar a Filosofia (ciência das funções do ser vivo) que, por sua vez, está estreitamente li- gada à Biologia (ciência da vida em geral). Porém, a própria vida é também incom- preensível, se ignoramos os processos químicos7; a Química, por sua vez, quando 6 Entende-se por fenômeno toda manifestação das leis da natureza (uma pedra que cai, a água que ferve) ou das leis da sociedade (uma crise econômica). 7 Não dizemos que a vida se reduz a um processo químico; seria uma afirmação antidialética. Voltaremos posteriormente, a esse assunto. Não dizemos também que a atividade do pensamento se reduz à filosofia. Dizemos: não há pensamento senão no ser vivo; não há ser vivo e não há organismo sem um universo físico-químico. 15 aborda as moléculas, descobre-lhes a estrutura atômica; ora, o estudo do átomo é da competência da Física. Se, então, pretendemos descobrir a origem desses ele- mentos que a Física estuda, não será preciso ir às ciências que nos ensinam a for- mação da Terra? E, daí, ao estudo do próprio sistema solar (Astronomia), do qual a Terra é parte mínima? Assim, enquanto a metafísica entrava o progresso científico, a dialética se fundamenta cientificamente. Há, sem dúvida, diferenças específicas entre as ciên- cias: a Química, a Biologia, a Fisiologia, a Psicologia têm domínios diferentes, espe- cíficos. Mas, nem por isso, as ciências deixam de constituir uma unidade fundamen- tal, que reflete a unidade universal. A realidade é um todo. É o que se exprime na primeira característica da dialética. Um dos exemplos mais significativos de interação é a relação existente entre os seres vivos e suas condições de existência, seu ―meio‖. A planta, por e- xemplo, fixa o oxigênio do ar, mas, também, lhe dá o gás carbônico e o vapor de á- gua: interação que modifica, ao mesmo tempo, a planta e o ar. Este, porém, é um dos aspectos mais simples da ação recíproca entre a planta e o meio. Servindo-se da energia que lhe proporciona a luz solar, a planta opera, com o auxílio de elemen- tos químicos tirados da terra, uma síntese de matérias orgânicas, que lhe permite desenvolver-se. Ao mesmo tempo, que se desenvolve, transforma, também, o solo e, por conseguinte, as condições do desenvolvimento ulterior de sua espécie. Em resumo, a planta não existe a não ser em unidadecom o meio-ambiente. Esta inte- ração é o ponto de partida de toda a teoria científica dos seres vivos, porque é a condição universal de sua existência: o desenvolvimento dos seres vivos reflete as transformações do seu meio de existência. Este grande princípio de unidade e interação dos fenômenos sempre foi necessário ao progresso de todas as ciências. As descobertas científicas não podem ser realizadas quando a violação da primeira lei da dialética, isto é, o fenômeno es- tudado for isolado das condições que o cercam. III. NA SOCIEDADE A metafísica isola os fenômenos sociais uns dos outros; a realidade eco- nômica, a vida social, a vida política são, para ela, domínios separados. No interior de cada um desses campos, ela introduz, ainda mil divisões. 16 Para o metafísico, a história das sociedades é incompreensível: é um caos de contingências (isto é, de fenômenos sem causa), de acasos absurdos. Há fi- lósofos (como Albert Camus) que afirmam, exatamente, ser o absurdo a essência do mundo. Filosofia muito proveitosa aos promotores de catástrofes. O dialético sabe que, tanto na sociedade, quanto na natureza, tudo se relaciona mutuamente. Se as escolas desmoronam, não é por imperícia dos governos; é porque sua política de guerra sacrifica, necessariamente, as construções escolares. Como observa Aragon, quando os governos aumentam os meios de morte, restringem os meios de vida. ―Tudo depende das condições de lugar e de tempo.‖ A dialética chega à compreen- são, à explicação dos fenômenos sociais, porque os relaciona com as condições his- tóricas que lhes deram origem, das quais estão em interação. O metafísico raciocina em abstrato, sem levar em conta as condições de lugar e de tempo. Ninguém pode separar, abstrair, as formas políticas e os fatos do conjunto das condições históricas que lhe deram origem, e que os explicam. O dialético tem que procurar reconhecer essas condições. IV. CONCLUSÃO Nem a natureza, nem a sociedade são um caos incompreensível: todos os aspectos da realidade prendem-se por laços necessários e recíprocos. Essa lei tem grande importância prática. É sempre preciso, pois, avaliar uma situação, um acontecimento, uma tarefa, do ponto de vista das condições que os determinam e que os explicam. Quando você analisa separadamente um fragmento da realidade, deslo- cado de seu contexto político, você está abandonando a dialética porque, esta, ensi- na que tudo se relaciona. 17 TERCEIRA LIÇÃO A SEGUNDA CARACTERÍSTICA DA DIALÉTICA: TUDO SE TRANSFORMA (LEI DA TRANSFORMAÇÃO UNIVERSAL E DO DESENVOLVIMENTO INCESSANTE) O filósofo Fontenelle conta a história de uma rosa que supunha ser eterno o jardineiro. Por quê? Porque, em sua memória de rosa, jamais lembrava ter visto outro no jardim. Do mesmo modo raciocina o metafísico: nega a mudança. Entretanto, a experiência nos ensina que os jardineiros são perecíveis, tanto quanto as rosas. É bem verdade que há coisas que mudam muito mais lenta- mente do que uma rosa e, disso, o metafísico conclui que são imutáveis; ele leva ao absoluto a imutabilidade aparente; ele fixa apenas o aspecto pelo quais as coisas parecem não mudar; uma rosa é uma rosa, um jardineiro é um jardineiro. A dialética não se detém nas aparências; ela atinge as coisas em seu movimento: a rosa era um botão, antes de tornar-se rosa; desabrochada, a rosa muda constantemente, mesmo que nossos olhos não o possam perceber. E desfolhará inelutàvelmente. Mas, não menos necessariamente, outras rosas nascerão, e, por sua vez, fenece- rão. Poderíamos encontrar, na vida quotidiana, mil exemplos que provam que tudo é movimento, que tudo se transforma. Esta maçã, sobre a mesa, está imóvel. Mas, o dialético dirá: esta maçã imóvel é, entretanto, movimento; dentro de dez dias não será mais o que é hoje. Já foi flor, antes de ser fruto verde; com o tempo, de- compor-se-á e libertará suas sementes. Confiadas ao jardineiro, as sementes darão uma árvore, de onde penderão numerosas maçãs. A princípio, tínhamos uma só maçã; temos agora um grande número delas. É, pois, uma grande verdade que o u- niverso, apesar das aparências, não se repete. Esta é a segunda característica da dialética: a mudança é universal, o de- senvolvimento é incessante. I. A SEGUNDA CARACTERÍSTICA DA DIALÉTICA Em oposição à metafísica, a dialética vê a natureza, não como um es- tado de repouso e imobilidade, de estagnação e de imutabilidade, mas como um estado de movimento e mudanças perpétuas, de reno- 18 vação e desenvolvimento incessante, onde sempre qualquer coisa nasce e se desenvolve, qualquer coisa se desagrega e desaparece. Ê por isso que o método dialético quer que os fenômenos sejam consi- derados, não apenas do ponto de vista de suas relações e de seus condicionamentos recíprocos, mas, também, do ponto de vista do movimento, da mudança, do desenvolvimento; do ponto de vista do seu aparecimento e do seu desaparecimento. Stalin, II, págs. 4-5 Já vimos que tudo se relaciona (primeira característica da dialética). Mas, esse real, que é unidade, é também movimento. O movimento não é, portanto, um aspecto secundário da realidade. Não há natureza mais movimento; sociedade mais movimento. Não; a realidade é movimento, processo. Ele se mani- festa, portanto, na natureza e na sociedade. II. NATUREZA O movimento, no sentido mais geral, concebido como modo de exis- tência da matéria, como atributo inerente a ela, envolve todas as mu- danças e todos os processos que se produzem no universo, da sim- ples mudança de lugar, até ao pensamento, Engeis, IV, pág. 75. Descartes já constatava que o repouso é relativo ao movimento. Se estou sentado à popa de um barco, que se afasta da praia, estou imóvel em relação ao barco, mas em movimento em relação à Terra; a própria Terra está em movimento em relação ao Sol. O próprio Sol é uma estrela em movimento, e assim, ao infinito. Mas, para Descartes, o movimento se reduzia à mudança de lugar: o bar- co que se desloca, a maçã que rola sobre a mesa. É o movimento mecânico. Mas, a realidade do movimento não se limita a isso. Um automóvel roda a setenta quilôme- tros por hora: movimento mecânico. Não é tudo, porém: o auto que se desloca trans- forma-se lentamente: seu motor, suas rodas, seus pneus se desgastam. Está, tam- bém, exposto à chuva, ao sol... Outras tantas formas de movimento. Um veículo que tenha percorrido mil quilômetros não é o mesmo do momento da partida, ainda que digamos: ―é o mesmo‖. Dia virá em que será preciso renovar peças, refazer a carro- ceria etc... Até o dia era que o veículo será posto fora de uso. 19 Pois bem, o mesmo acontece na natureza. O movimento tem aspectos muito variados: mudança de lugar, mas, também, transformação da natureza e das propriedades das coisas. (Por exemplo: a eletrização de um corpo, o crescimento das plantas, a mudança da água em vapor, o envelhecimento etc.). Para o grande sábio inglês Newton (1642-1727), o movimento se reduzia ao movimento mecânico, à mudança de lugar. O universo era, pois, comparável a um imenso relógio que reproduzia, sem cessar, o mesmo processo: assim, ele con- siderava as órbitas dos planetas como eternas. Ora, desde o século XVIII, o progresso das ciências tem contribuído con- sideravelmente para enriquecer a noção de movimento. Em primeiro lugar, tivemos a descoberta da transformação da energia, no início do século XIX. Retomemos o exemplo do automóvel que roda. Lançado em grande velo- cidade, choca-se contra uma árvore e incendeia-se. Haverá nisso ―dissipação da matéria‖? Não; o automóvel em chamas é uma realidade tão material quanto o au- tomóvel que rodavaem perfeitas condições; é um aspecto novo, uma qualidade no- va da matéria. A matéria é indestrutível, mas muda de forma. Suas transformações não são outra coisa que as transformações do movimento, que se confunde com a matéria: a matéria é movimento, o movimento é matéria. A Física moderna ensina que há transformação da energia; a energia ou quantidade de movimento conserva- se, mesmo assumindo nova forma; as formas que ela pode assumir são muito varia- das. No caso do automóvel, cuja gasolina se inflamou pelo choque, a energia química, que, no motor a explosão, se transforma em energia cinética (isto é, em movimento mecânico), transforma-se, agora, totalmente, em calor (em energia calo- rífica). A energia calorífica (o calor) pode, por sua vez, transformar-se em energia ci- nética: o calor existente na locomotiva transforma-se em movimento mecânico, que faz com que a locomotiva se desloque. A energia mecânica pode se transformar em energia elétrica: o caudal que movimenta a usina produz energia elétrica... Em troca, a energia elétrica (cor- rente elétrica) se transforma em energia mecânica, isto é, aciona motores. Ou, ain- da, a energia elétrica se transforma em energia calorífica, produz, de fato, o calor (aquecimento elétrico). 20 Além disso, a energia elétrica pode produzir a energia química: em de- terminadas condições, uma corrente elétrica decompõe a água em oxigênio e hidro- gênio. Mas, a energia química, por sua vez, pode-se transformar em energia elétrica (pilha hidroelétrica), ou em energia mecânica (motor de explosão), ou em energia calorífica (combustão do carvão no fogareiro) etc. Todas essas transformações não são mais do que a matéria em movi- mento. Vê-se, pois, que são muito mais ricas do que o simples deslocamento ou mudança de lugar, ainda que elas o incluam. 8 Além da descoberta da transformação da energia, a descoberta da evolu- ção também contribuiu, profundamente, para o enriquecimento da noção de movi- mento. Em primeiro lugar, consideremos a evolução do universo físico. Pelo fim do século XVIII, Kant e Laplace descobriram que o universo tem uma história. Longe de se repetir, como supunha Newton, o universo é mudança: as estrelas (entre elas, o Sol), os planetas (entre eles, a Terra) são produtos de prodigiosa evolução que continua. Não basta, pois, dizer, como Newton, que as partes do universo se deslo- cam; é preciso acrescentar: e se transformam. Assim sendo, esta pequena porção do universo, a Terra, tem uma longa história (cinco milhões de anos, aproximadamente), que é estudada pela Geologia. Também as estrelas se constituem, se desenvolvem, morrem e sempre nascem novas estrelas. É, exatamente, porque o universo muda sem cessar que ele não tem ne- cessidade de um ―primeiro impulso‖, como Newton ainda acreditava. Ele traz em si mesmo a possibilidade de movimento, de transformação. Ele é sua própria mudan- ça. 8 "Todo movimento encerra o movimento mecânico", diz Engeis em Dialectique de La Nature pág. 257. De fato, uma reação química, por exemplo, põe em ação os átomos que constituem as moléculas da matéria. No interior do átomo, no núcleo, produzem-se deslocamentos muito rápidos, estudados pela Física Nuclear. Assim a energia é inseparável do deslocamento de pequenos corpúsculos: os elétrons. 21 A matéria viva está, igualmente, submetida a um incessante processo de evolução. As espécies vegetais e animais se constituíram a partir das mais simples formas de vida. Hoje, não é mais possível acreditar no mito, espalhado pela religião, há séculos: Deus criando, em definitivo, espécies que não variam. Graças a Darwin (século XIX), a ciência provou que a prodigiosa diversidade das espécies vivas origi- nou-se de um pequeno número de seres muito simples, de germes unicelulares (a célula como unidade, ―de onde se desenvolve, pela multiplicação e pela diferencia- ção, todo organismo vegetal e animal‖), [Engels, I, pág. 36.] Esses germes, por sua vez, originam-se de uma albumina informe. As espécies se transformaram e conti- nuam a se transformar, em conseqüência de sua interação com o meio.9 A espécie humana não escapa a essa grande lei da evolução. A partir dos primeiros animais, desenvolveram-se, essencialmente por diferenciação contínua, inúmeras classes, ordens, famílias, gêne- ros e espécies de animais, até atingir a forma em que o sistema ner- voso alcança o mais completo desenvolvimento, a dos vertebrados, finalizando no vertebrado em que a natureza chega à consciência de si mesma: o homem. (Engeis, IV, pág. 41.) Assim, pois, toda a natureza — universo físico, natureza viva – é movi- mento. O movimento e a maneira de ser da matéria. Jamais, em parte alguma, houve matéria sem movimento, nem poderá haver. Movimento no es- paço do universo, movimento mecânico de massas menores em cada corpo celeste, vibração molecular sob forma de calor, de corrente elé- trica, de corrente magnética, decomposição e combinação química, vida orgânica: cada átomo singular de matéria, no universo, em cada instante, participa de uma ou de outra forma do movimento ou de vá- rias a um s, ó tempo. A matéria, sem movimento, é tão inconcebível como o movimento sem matéria. Engeis, III, pág. 92. 9 Os trabalhos de Mitchurin e seus discípulos mostram, experimentalmente, que pode haver, em certas condições, transformação de uma espécie em outra. 22 Em Astronomia ou em Física, em Química ou em Biologia, o objeto da ci- ência é sempre o movimento. III. NA SOCIEDADE A mudança é tão inerente à realidade social quanto à natureza, mas as sociedades evoluem muito mais depressa do que o universo físico. Depois da disso- lução da comuna primitiva, sucederam-se quatro formas de sociedade: sociedade escravagista, sociedade feudal, sociedade capitalista e sociedade socialista. A soci- edade feudal, entretanto, julgava-se intangível, e os teólogos viam, nela, uma obra de Deus, o que não impediu que a sociedade feudal fosse substituída pela socieda- de capitalista, e esta, pode se substituída pelo socialismo. Por ser um ser social, é que o homem não é eterno. 23 QUARTA LIÇÃO A TERCEIRA CARACTERÍSTICA DA DIALÉTICA: A MUDANÇA QUALITATIVA Se aqueço a água, sua temperatura se eleva gradativamente. Quando a- tinge 100 graus centígrados, entre em ebulição e se transforma em vapor de água. São duas espécies de mudanças. O aumento progressivo de calor consti- tui mudança de quantidade, isto é, a quantidade de calor existente na água aumen- ta. Em dado momento, porém, a água muda de estado: sua qualidade de líquido de- saparece; ela se transforma em gás, sem contudo mudar sua natureza química. Chamamos de mudança quantitativa o simples aumento (ou simples di- minuição) de quantidade. Chamamos de mudança qualitativa a passagem de uma qualidade para outra, a passagem de um estado para outro. (No exemplo, a passa- gem do estado líquido para o gasoso.) O estudo da segunda característica da dialética mostrou-nos que a reali- dade é mudança. O estudo da terceira característica vai mostrar-nos que existe uma relação entre as mudanças quantitativas e as mudanças qualitativas. Efetivamente, e isto é importante lembrar, a mudança qualitativa (a água líquida transformando-se em vapor de água) não é obra do acaso: decorre necessa- riamente da mudança quantitativa, do aumento progressivo do calor. Quando a tem- peratura atinge determinado número de graus (100 graus centígrados), a água ferve, supondo-se a pressão atmosférica normal. Se mudar a pressão atmosférica, então, como tudo se relaciona (primeiracaracterística da dialética), muda o ponto de ebuli- ção; mas, para dado corpo e dada pressão atmosférica, o ponto de ebulição será sempre o mesmo. Isto mostra bem que a mudança de qualidade não é uma ilusão; é um fato objetivo, material, de acordo com uma lei natural. É, por conseguinte, um fa- to previsível: a ciência pesquisa quais são as mudanças de quantidade necessárias para que dada mudança de qualidade se produza. No caso da água em ebulição, a relação entre as duas espécies de mu- dança é clara e incontestável. A dialética considera que essa relação entre mudança quantitativa e mu- dança qualitativa é uma lei universal da natureza e da sociedade. 24 O universo é, pois, metafisicamente falando, comparável a um pêndulo que, em movimento, percorre sempre a mesma trajetória. Tal concepção aplicada à sociedade faz da história humana um ciclo sempre recomeçado, uma eterna repeti- ção. Em outras palavras, a metafísica não pode explicar o novo. Quando o novo se lhe impõe, ela vê nele um capricho da natureza ou a resultante de um decreto divino, de um milagre. Em oposição, a dialética não se espanta, nem se escandaliza, com o aparecimento do novo. O novo decorre necessariamente da acumulação gradual de pequenas mudanças quantitativas, aparentemente insignificantes; assim é que, pelo seu próprio movimento, a matéria cria o novo. I. A TERCEIRA CARACTERÍSTICA DA DIALÉTICA Em oposição à metafísica, a dialética considera o processo de desen- volvimento, não como um simples processo de crescimento, em que as mudanças quantitativas, não chegam a se tornar mudanças quali- tativas, mas como um desenvolvimento que passa, das mudanças quantitativas insignificantes e latentes, para as mudanças aparentes e radicais, as mudanças qualitativas. Por vezes, as mudanças qualitati- vas não são graduais, mas rápidas, súbitas, e se operam por saltos de um estado a outro; essas mudanças não são contingentes, mas necessárias; são o resultado da acumulação de mudanças quantitati- vas insensíveis e graduais. Stalin, II, pág. 5. A mudança qualitativa, dizíamos no item anterior, é uma mudança de es- tado, a água líquida torna-se vapor de água ou, também, a água líquida torna-se á- gua sólida (gelo). O ovo torna-se pinto. O botão torna-se flor. O ser vivo, ao morrer, torna-se cadáver. A flor desabrocha de repente, após lenta maturação. Isso, porém, não quer dizer que todas as mudanças qualitativas assumem a forma de crises, de ex- plosões. Há casos em que a passagem para a qualidade nova se opera através de mudanças qualitativas graduais. Vê-se que é preciso estudar, em cada caso, o caráter específico que cada mudança qualitativa assume. Não é preciso identificar, mecanicamente, cada mu- dança qualitativa a uma explosão. Mas, qualquer que seja a forma de que se revista a mudança qualitativa, jamais há mudança qualitativa sem preparação. O que é uni- 25 versal é a relação necessária entre a mudança quantitativa e a mudança qualitativa. II. NA NATUREZA Consideremos um litro de água. Dividamo-lo em duas panes iguais: a di- visão em nada muda a natureza do corpo; meio litro de água continua sendo água. Podemos assim continuar a divisão, obtendo frações cada vez menores: um dedal, uma gotinha... é sempre água. Não há mudança qualitativa. Em determinado mo- mento, chegamos à molécula de água10: ela contém dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio. Poderemos prosseguir na divisão, dissociando a molécula? Sim, por método apropriado, mas, então, já não será mais água. São o hidrogênio e o oxigê- nio. O hidrogênio e o oxigênio que são obtidos pela análise da molécula de água não têm as propriedades da água. Todos sabem que o oxigênio alimenta a chama e que a água apaga incêndios. Este exemplo é uma ilustração da terceira lei da dialética: a mudança quantitativa (neste exemplo; a divisão gradativa da água) leva, necessariamente, à mudança qualitativa. (Libertação súbita de dois corpos, qualitativamente diferentes da água.) A natureza é pródiga em processos semelhantes a este. ...na natureza, de maneira nitidamente determinada para cada caso, as mudanças qualitativas não podem ocorrer senão pela adição ou pela subtração quantitativas de matéria ou de movimento ou, como se diz, de energia. Engeis, IV, pág. 70. O próprio Engeis apresenta inúmeros exemplos: Seja o oxigênio: se, em lugar de dois átomos, se unirem três, para constituir uma molécula, teríamos o ozona, corpo que, pelo cheiro, e 10 Um corpo, qualquer que seja ele, é composto de moléculas. A molécula é a menor quantidade de uma combinação química. Ela própria se constitui de átomos; um átomo é a menor porção de um elemento que pode entrar em combinações. As moléculas de um corpo simples (oxigênio, hidrogênio, azoto) encerram átomos idênticos (oxigênio, de hidrogênio, de azoto). As moléculas de um corpo composto (sal de cozinha, água, benzina) contêm átomos dos diversos componentes. 26 pelos efeitos, se distingue, de forma bem determinada, do oxigênio comum. E que dizer das diferentes proporções nas quais o oxigênio combina-se com o azoto ou com o enxofre, dando, de cada vez, um corpo qualitativamente diferente dos outros! Que diferença entre o gás hilariante (protóxido de azoto: N20) e o anidrido azótico (pentóxi- do de azoto: N2O55). O primeiro é um gás, o segundo — à temperatura habitual — é um corpo sólido e cristalizado. Entretanto, toda a dife- rença na combinação está em que o segundo contém cinco vezes mais oxigênio do que o primeiro. Entre os dois óxidos de azoto se co- locam outros três (NO, N203, NO2), diferentes qualitativamente dos dois primeiros e diferentes entre si. Engeis, IV, pág. 72 Essa relação necessária, entre quantidade e qualidade, foi o que permitiu a Mendeleiev fazer uma classificação dos elementos químicos11; os elementos se classificam por pesos atômicos crescentes.12 Essa classificação quantitativa dos elementos, do mais leve (hidrogênio) ao mais pesado (urânio), faz com que apareçam suas diferenças qualitativas, as di- ferenças entre suas propriedades. A classificação assim estabelecida tinha, entre- tanto, alguns vazios: Mendeleiev concluiu daí, que havia, na natureza, elementos qualitativamente novos por descobrir; ele descreveu, antecipadamente, as proprie- dades químicas de um desses elementos, que, efetivamente, veio a ser descoberto. Graças à classificação metódica de Mendeleiev foi possível prever e obter artificial- mente mais de dez elementos químicos, que não existam na natureza. A Química Nuclear (que estuda o núcleo do átomo), ao mesmo tempo em que aumentava consideràvelmente o campo dos nossos conhecimentos permitiu compreender melhor toda a importância da relação necessária entre quantidade e qualidade. Foi assim que Rutherford, bombardeando átomos de azoto com hélions (corpúsculos atômicos produzidos pela desintegração do átomo do radium), realizou 11 O elemento é a parte comum a todas as espécies de corpos simples e aos corpos compostos que deles derivam. Exemplo: o enxofre se conserva em todas as variedades de enxofre e nos compostos de enxofre. Há 92 elementos naturais: eles se conservam mesmo nas reações químicas com outros corpos. Sob certas condições, porém, há transmutação dos elementos (radioatividade). 12 O peso atômico de um elemento representa a relação entre o peso de um átomo desse elemento, comparado com o peso do átomo de um elemento típico (hidrogênio ou oxigênio). 27 a transmutação dos átomos de azoto em átomos de oxigênio. Notável mudança qua- litativa! Ora, o estudo dessa mudançamostrou que ela está condicionada a uma mudança quantitativa: sob o efeito do hélion, o núcleo do azoto — que possui sete prótons13 — perde um deles, mas ―fixa‖ os dois prótons do núcleo do hélion. Isso dá um núcleo de oito prótons, isto é, um núcleo de oxigênio. As ciências da vida também poderiam nos proporcionar grande quantida- de de exemplos. O desenvolvimento da natureza viva não é, em verdade, assimilá- vel a uma repetição pura e simples dos mesmos processos: tal ponto de vista torna ininteligível a evolução. A teoria clássica da Genética (principalmente a de Weis- mann), para o qual o porvir do ser vivo está todo inteiro, e por prévia determinação, contido numa substância hereditária (os genes), substância essa que não é passível de alteração e é indiferente à ação do meio, reduz à impossibilidade o aparecimento do novo. De fato, o desenvolvimento da natureza viva explica-se pela acumulação de mudanças quantitativas, que se transformam em mudanças qualitativas. A respei- to disso escrevia Engeis: ... é loucura querer explicar o nascimento, ainda que de uma célula, partindo diretamente da matéria inerte, ao invés de partir da albumina viva não diferenciada, acreditar que com um pouco de água pútrida poder-se-ia obrigar a natureza a fazer, em 24 horas, o que lhe custou milhões de anos para realizar. Engeis, IV, pág. 305 Deve-se notar que esse desenvolvimento da natureza viva, quantitativo e qualitativo a um só tempo, leva a compreender o que, em dialética, se entende por passagem do simples para o complexo, do inferior para o superior. As espécies ge- radas pela evolução são, em verdade, cada vez mais complexas; a estrutura dos se- res vivos diferenciou-se cada vez mais. Assim, a partir do ovo, constitui-se um gran- de número de órgãos, qualitativamente distintos, tendo cada um sua função especí- fica: o crescimento de um ser vivo não é, pois, a simples multiplicação de células, mas um processo que passa por numerosas mudanças qualitativas. Se abordarmos o estudo do sistema nervoso e da psicologia, reencontra- remos a lei da quantidade-qualidade sob as mais diversas formas. Por exemplo; a 13 O próton e o nêutron constituem o núcleo do átomo. 28 sensação (sensação de luz, de calor, sensação auditiva, tátil etc.), que é um fenô- meno peculiar ao sistema nervoso, não aparece sem a excitação, isto é, sem que a ação física do excitante sobre o sistema nervoso atinja certo nível quantitativo, que se chama limiar. Assim, uma excitação luminosa não se pode transformar em sen- sação, se não tiver certa duração e certa intensidade mínimas. O limiar da sensação é o ponto em que se opera a passagem da quantidade do excitante para a qualidade da reação: abaixo desse limiar, ainda não há sensação, por ser o excitante ainda muito fraco. Do mesmo modo, é pela prática repetida que se constitui o conceito, par- tindo das sensações. A continuidade da prática social leva os homens à repetição múltipla de coisas que eles percebem por seus sentidos e que sobre eles pro- duzem um efeito; em conseqüência, tem lugar no cérebro humano um salto no processo do conhecimento, e surge o conceito. Mao Tse Tung, I, pág. 242 A sensação ê, com efeito, um reflexo parcial da realidade, que não nos dá, da realidade, senão os seus aspectos exteriores. Mas, pela prática social, pelo trabalho, os homens se aprofundam nessa realidade; conseguem conquistar a inteli- gência dos processos internos, que, a princípio, lhes escapava; ascendem às leis que, para além da aparência, explicam o real. Esta conquista é o conceito, qualitati- vamente novo, em relação às sensações, se bem que estas sejam, pela repetição múltipla, necessárias à elaboração do conceito. O conceito de calor, por exemplo, jamais poderia ter-se constituído se os homens não tivessem tido, em circunstâncias infinitamente numerosas e variadas, a sensação, de calor. Mas, para passar das sensações ao conceito atual de calor, como forma de energia, foi preciso uma práti- ca social milenar, que tornou possível a assimilação das propriedades fundamentais do calor: os homens aprenderam a ―fazer fogo‖, a utilizar os efeitos dele de mil mo- dos diferentes, para a satisfação de suas necessidades, muito mais tarde aprende- ram a medir o calor, a transformar o calor em trabalho, o trabalho em calor etc. Da mesma forma, a passagem da agrimensura, nascida das necessida- des sociais (medir as terras), para a Geometria (ciência das figuras), é a transforma- ção, em conceitos, das sensações progressivamente acumuladas pela prática. O mesmo se dá com os princípios da Lógica, que, aos olhos dos metafísi- 29 cos, são idéias inatas. Por exemplo: este axioma universalmente difundido ―o todo é maior do que a parte, a parte é menor do que o todo‖ é, ao mesmo tempo em que fi- gura de lógica, um produto qualitativamente novo, de uma prática que se impôs às mais antigas sociedades, sob as mais diversas formas: é preciso menos alimento para alimentar um homem, do que para alimentar vinte. Lenine escreveu em seus Cahiers Philosophiques: A atividade prática do homem, por milhares de vezes, deve ter levado a consciência do homem a repetir diferentes figuras de lógica, para que essas figuras tivessem podido assumir o valor de axiomas.14 E ainda: A prática do homem, ao se repetir milhares de vezes, se fixa na cons- ciência do homem em figuras de lógica. É a terceira característica da dialética, que nos permite uma interpretação racional da invenção; o metafísico considera o aparecimento de idéias novas, a in- venção, como uma espécie de revelação divina, ou, então, a atribui ao acaso. A in- venção (nas técnicas, nas ciências, nas artes, e em outros setores) não é, antes, a mudança qualitativa que se opera no reflexo mental da realidade, mudança que vem sendo preparada pela acumulação de mudanças insignificantes decorrentes da prá- tica humana? Eis por que as grandes descobertas não se realizam senão depois de realizadas as condições objetivas que as tornam possíveis. Os últimos exemplos que escolhemos (passagem da sensação ao concei- to; invenção suscitada por longa prática) permitem pôr em relevo um importante as- pecto do processo quantidade-qualidade. A passagem do antigo estado qualitativo, para o novo, é, na verdade, muitas vezes, um progresso. É, então, uma passagem do inferior para o superior. Isso acontece quando o homem ultrapassa a sensação (forma inferior do conhecimento), para atingir o conceito (forma superior do conhe- cimento). Acontece, igualmente, na passagem qualitativa do não-vivo para o vivo; 14 Os "axiomas" são as mais gerais e as mais fundamentais verdades da Matemática. O idealismo vê nos axiomas uma revelação do espírito. Mas, como toda verdade, os axiomas são os frutos de laboriosa conquista. 30 essa mudança de estado constitui um progresso decisivo. O movimento que leva a tais transformações qualitativas é, pois, como bem o escreveu Stalin, ―um movimen- to progressivo, ascendente‖. (Stalin, II, pág. 6.) Veremos que o mesmo acontece no desenvolvimento das sociedades. III. NA SOCIEDADE Constatamos, na lição precedente, que, como a natureza, a sociedade é movimento. Esse movimento consiste na transformação de mudanças quantitativas em mudanças qualitativas. A passagem do estado qualitativo velho, para o novo, constitui um progresso. O Estado capitalista é superior ao Estado feudal; o Estado socialista é superior ao Estado capitalista. A revolução assegura a passagem do in- ferior para o superior. Por quê? Por que faz concordar o regime econômico da soci- edade, com asexigências do desenvolvimento das forças de produção. É muito importante não separar nunca o aspecto qualitativo, do aspecto quantitativo do movimento social, e considerá-los em suas relações necessárias. Ver apenas um ou outro, é cometer erro fundamental. V. CONCLUSÃO Temos dito que as pequenas mudanças quantitativas levam às mudanças qualitativas radicais. A realidade é, ao mesmo tempo, quantitativa e qualitativa. É preciso com- preender bem que a mudança qualitativa é passagem de uma qualidade, para outra qualidade. A qualidade ―líquido‖ torna-se qualidade ―gás‖, quando o líquido, por a- cumulação quantitativa de calor, atinge determinada temperatura. Mesmo em Matemática, (que os metafísicos pretendem ser a ciência da quantidade pura) a quantidade e a qualidade são inseparáveis. Adicionar números (5 + 7 + 3 +...) é um processo quantitativo; mas há, também, nele, um aspecto qualitati- vo, porque os números inteiros são números de certa espécie, que têm uma quali- dade diferente da dos números algébricos, da dos números fracionários etc. A diver- sidade qualitativa dos números é considerável; cada espécie tem propriedades pró- 31 prias. Somar números inteiros, ou números fracionários, ou números algébricos, ain- da é somar, dirão alguns; mas a adição se faz, de cada vez, sobre qualidades dife- rentes. Assim: somar 5 chapéus ou somar 5 locomotivas é sempre somar, mas os objetos são, qualitativamente, muito diferentes. A quantidade é sempre quantidade de qualquer coisa, é quantidade de uma qualidade. A quantidade se transforma em qualidade. Mas, reciprocamente, a quali- dade se transforma em quantidade, uma vez que ambas são inseparáveis. 32 QUINTA LIÇÃO A QUARTA CARACTERÍSTICA DA DIALÉTICA: A LUTA DOS CONTRÁRIOS Vimos que toda realidade é movimento, e que esse movimento, que e u- niversal, assume duas formas: quantitativa e qualitativa, necessariamente ligadas entre si. ...Mas, por que há movimento? Qual o motor da mudança e, em particular, da transformação da quantidade em qualidade, da passagem de uma qualidade para outra qualidade nova? Responder a esta pergunta é enunciar a quarta característica da dialética, a lei fundamental da dialética, a que nos dá a razão do movimento. Um exemplo bem concreto vai-nos levar a formular essa lei. Estou estudando a filosofia marxista, o materialismo dialético. Isso só é possível se, simultaneamente, eu tiver consciência de minha ignorância no assunto e vontade de superá-la, vontade de conquistar o saber. O motor do meu estudo, a condição absoluta de nele progredir, é a luta entre a ignorância e o desejo de supe- rá-la; é a contradição entre a consciência que tenho de minha ignorância, e a vonta- de que tenho de sair dela. Essa luta dos contrários, essa contradição, não é exterior ao estudo. Se progrido, é exatamente à medida que, sem cessar, essa contradição se põe. Por certo, cada uma das aquisições que balizam meu estudo é solução de determinada contradição (sei hoje o que ignorava ontem); imediatamente, porém, se estabelece uma nova contradição entre o que sei e o que tenho consciência de igno- rar, daí, novo esforço no estudo, nova solução, novo progresso. Aquele que julga saber tudo jamais progredirá, porque não, procurará superar sua ignorância. O prin- cípio desse movimento — o estudo — o motor da passagem gradual de um saber menor, para um saber maior, é, pois, a luta dos contrários, a luta entre minha igno- rância (de um lado) e (do outro lado) a consciência de que devo ultrapassar essa ig- norância. I. A QUARTA CARACTERÍSTICA DA DIALÉTICA Em oposição à metafísica, a dialética parte do ponto de vista de que os objetos e os fenômenos da natureza supõem contradições internas, porque todos têm um lado negativo e um lado positivo, um passado e um futuro; todos têm ele- mentos que desaparecem e elementos que se desenvolvem; a luta desses contrá- 33 rios, a luta entre o velho e o novo, entre o que morre e o que nasce, entre o que pe- rece e o que evolui, é o conteúdo interno do processo de desenvolvimento, da con- versão das mudanças quantitativas, em mudanças qualitativas. O estudo da contradição, como princípio do desenvolvimento, vai-nos permitir destacar seus principais caracteres: a contradição é interna, é inovadora, há unidade entre os contrários. II. CARACTERES DA CONTRADIÇÃO a) A Contradição é interna Toda realidade é movimento, já o vimos. Ora, não há movimento que não seja conseqüência de sua contradição, de uma luta de contrários. Essa contradição, essa luta é interna, isto é, não é exterior ao movimento considerado, mas, é a sua essência. Será arbitrária tal afirmação? Não. Um pouco de reflexão mostra, com e- feito, que se não houvesse nenhuma contradição no mundo, não haveria mudanças. Se a semente não fosse mais do que semente, permaneceria semente, indefinida- mente; mas, ela traz em si mesma o poder de mudar, pois será planta. A planta sur- ge da semente e sua eclosão implica no desaparecimento da semente. Isso aconte- ce com toda realidade; se ela muda, é por ser, em essência, ao mesmo tempo, ela própria e outra coisa, diferente dela. Por que a vida, depois de dar flores e frutos, en- tra em decadência até morrer? Porque não é apenas vida. A vida se transforma na morte, porque a vida traz em si uma contradição interna, porque ela é a luta quotidi- ana contra a morte. (A cada instante morrem células, que são substituídas por ou- tras, até o dia em que a morte sobrevém.) O metafísico opõe a vida à morte, como dois absolutos, sem lhes ver a unidade profunda, unidade de forças contrárias. Um universo completamente vazio de qualquer contradição estaria condenado a se re- petir; jamais poderia ocorrer algo de novo. A contradição é, pois, interna a toda mu- dança. A causa fundamental do desenvolvimento das coisas não está fora delas, mas está dentro delas, na natureza contraditória, inerente a es- sas mesmas coisas. Toda coisa, todo fenômeno, tem contradições in- ternas que lhe são inerentes. São elas que geram o movimento e o desenvolvimento das coisas. As contradições inerentes às coisas e 34 aos fenômenos são as causas fundamentais do seu desenvolvimento. Mao Tse Tung, II, págs. 780-781. Lenine já dizia, em Matérialisme et Empirocriticisme, que: ―O desenvolvi- mento é a luta dos contrários". Retomando o exemplo do homem que estuda, não é verdade que esse homem seja, ao mesmo tempo, ignorância e necessidade de aprender? Enquanto estuda, ele é a luta das duas forças contrárias. É bem essa, a essência do homem que estuda. (Essência: natureza profunda.) Se voltarmos ao processo examinado na lição precedente: a transforma- ção da água, seja em vapor, seja em gelo, constataremos que essa transformação se explica pela presença de uma contradição interna; contradição entre as forças de coesão das moléculas da água, de um lado, e, do outro, movimento próprio de cada molécula (energia cinética, que impele as moléculas para a dispersão); contradição entre as forças de coesão e as de dispersão. Certamente, quando nos limitamos a considerar a água no estado líquido, entre O e 100 graus centígrados, esta luta não se manifesta; tudo parece calmo, inerte. O que aparece é a estabilidade do estado líquido. O aspecto aparente (e fenômeno) dissimula a realidade profunda, a essên- cia, isto é, a luta entre as forças de coesão e as de dispersão. Esta contradição in- terna é o conteúdo real do estado líquido. E é esta contradição que explica a trans- formação súbita da água líquida, em água sólida, ou em vapor de água. A passagem qualitativa, para um novo estado, só é possível pela vitória de uma das forças con- trárias, sobre a outra.Vitória da força de coesão, na passagem do estado líquido, para o sólido; vitória das forças de dispersão, na passagem do líquido, para o estado gasoso. Vitó- ria que não destrói as forças contrárias, mas muda-lhes, de certa forma, o «sinal»: no estado sólido, o movimento das moléculas é o aspecto negativo (ou secundário); no estado gasoso, a tendência à coesão passa a ser o aspecto negativo, ou secun- dário. A água, qualquer que seja o seu estado momentâneo, é, pois, luta de for- ças contrárias, que são forças internas pelas quais se explicam suas transforma- ções. Representam as condições externas algum papel nesse fenômeno? Sim. 35 O estudo da primeira lei da dialética (tudo se relaciona) mostrou-nos que jamais se deve isolar uma realidade das condições que a cercam. No caso da água, há uma condição externa, necessária à mudança de estado: é a diminuição ou a elevação da temperatura. A elevação da temperatura possibilita o aumento da energia cinética das moléculas, portanto, sua velocidade. O resfriamento tem conseqüência inversa. Mas, é preciso não esquecer que, se não houvesse contradições internas no objeto considerado (no caso, a água) – como ia filemos ver anteriormente – a ação das condições externas seria inoperante, A dialética considera, pois, como essencial, a descoberta das contradições internas, inerentes ao processo estudado, que são as únicas que levam à compreensão da especialidade desse processo. As contradições inerentes às coisas e aos fenômenos são a causa fundamental de seu desenvolvimento, enquanto que o liame mútuo, e a ação recíproca, de uma coisa ou de um fenômeno com ou sobre ou- tros fenômenos, ou coisas, são causas de segunda ordem. Mão Tse Tung, II, pág. 781. b) A contradição é inovadora A luta dos contrários é tomada como ―luta entre o velho e o novo, entre o que morre e o que nasce e entre o que perece e o que se desenvolve‖. A luta dos contrários, efetivamente, se desenvolve no tempo, Já vimos (Terceira Lição) que, assim como a sociedade, assim como a natureza viva, o uni- verso físico tem uma história. As mudanças qualitativas põem, assim, em evidência, em dado momento do processo histórico, aspectos novos que são resultantes da vi- tória sobre o que é velho. Mas, isto não é possível, a não ser pelo fato de as forças ao novo se desenvolverem contra o velho, no próprio seio do velho. Foi no seio da velha sociedade feudal, e contra ela, que cresceram as forças novas de produção e as correspondentes relações de produção, das quais deveria sair a sociedade capi- talista. Do mesmo modo, é na criança, e contra ela, que cresce o adolescente; é o adolescente, e contra ele, que amadurece o adulto. Não basta constatar o caráter interno da contradição. É preciso ver, ainda, que essa contradição é luta entre o velho e o novo. É no seio do velho, que nasce o novo; é contra o velho, que o novo se desenvolve. A contradição se resolve quando o novo supera definitivamente o velho. Aparece, então, o caráter inovador, a fecun- didade das contradições internas. O futuro se prepara na luta contra o passado. Não 36 há vitória sem luta. A história das ciências e das artes é pródiga em exemplos que mostram, plenamente, a fecundidade da contradição. As grandes descobertas resultam de uma contradição resolvida entre as velhas teorias e os fatos experimentais novos. Exemplo: o experimento de Torricelli suscitou uma contradição fecunda entre o fato constatado (o mercúrio contido no tubo emborcado na cuba desce até certo nível, que varia segundo a altitude; acima desse nível, há o vácuo) e a velha idéia sempre ensinada de que a natureza tem horror ao vácuo. A velha idéia é, de fato, incapaz de explicar por que o nível do mercúrio no tubo varia com a altitude. A descoberta da pressão atmosférica resolveu a contradição. Toda mudança qualitativa é solução fecunda de uma contradição. c) A unidade dos contrários Não há contradição, se não houver luta entre, pelo menos, duas forças. A contradição encerra, pois, necessariamente, dois termos que se opõem: ela é a uni- dade dos contrários. Este é o terceiro caráter da contradição. Estudemo-lo mais de perto. Os contrários se combatem; porém, são inseparáveis. A burguesia em si não existe. A princípio, no seio da sociedade feudal, houve a burguesia contra a feu- dalidade. Depois, na sociedade capitalista (e mesmo no seio da sociedade feudal), temos a burguesia contra o proletariado. Não podemos pôr os contrários separados um do outro, um sem o outro. Quando o proletariado desaparecer como classe ex- plorada, então a burguesia desaparecerá como classe exploradora. Essa unidade dos contrários, essa ligação recíproca dos contrários, as- sume um sentido particularmente importante quando, em dado momento do proces- so, os contrários se convertem um no outro. Com efeito, em determinadas condi- ções, os contrários se transformam um no outro. A ligação recíproca torna-se, então, transformação recíproca; produz-se mudança qualitativa, e é essa transformação que permite definir, cientificamente, a noção ―de qualidade‖. A unidade dos contrários (e sua transformação recíproca) não tem sentido senão relativamente à luta dos contrários, que é a essência dessa unidade. Não adi- anta querer realizar, arbitrariamente, a transformação recíproca dos contrários, se as 37 condições dessa transformação não estão realizadas. Mao Tse Tung diz bem que os contrários se transformam um no outro ―em determinadas condições‖. Determinadas por quê? Pela luta e suas características concretas. A unidade dos contrários e sua transformação recíproca são, pois, subordinadas à luta. Uma unidade se quebra, aparece uma unidade qualitativamente nova, mas todos os momentos desse pro- cesso são explicados pela luta. A unidade dos contrários é condicionada, temporariamente, passa- geira, relativa. A luta dos contrários, que, reciprocamente, se exclu- em, é absoluta, como absolutos são o desenvolvimento, o movimen- to.15 Em resumo, aquele que se esquecer de que a unidade dos contrários se dá, se mantém e se resolve pela luta, mergulhara na metafísica. III. UNIVERSALIDADE DA CONTRADIÇÃO Motor de toda transformação, a contradição é universal. Quando se fala em ―contradição‖, os filósofos idealistas compreendem, simplesmente ―luta de idéi- as‖. Para eles, a contradição não é concebível, senão entre idéias, que se opõem. Interpretam-na segundo o sentido corrente da palavra (―dizer o contrário‖). Mas a contradição das idéias é apenas uma das formas da contradição: por ser a contradi- ção uma realidade objetiva, presente em todo o mundo, é que se encontra, também, no ―sujeito‖, que ela se encontra no homem (que faz parte do mundo). Todo processo (natural ou social) explica-se pela contradição. Essa con- tradição subsiste, enquanto dura o processo; existe, ainda que não seja manifesta. Vimos o exemplo na lição anterior, a respeito da água. Se, contudo, a contradição não existia desde o início do processo, é ne- cessário, então, explicar esse processo pela misteriosa intervenção de uma força ex- terior: ora, já vimos na lição precedente (II, b) que as condições exteriores, se bem que necessárias ao processo, não podem substituir as contradições internas. A con- tradição interna é permanente, podendo estar mais ou menos desenvolvida. É por 15 Lenine: Cahiers Philosophiques, citado por Mao Tse em ―A Propos de la Contradicti- on‖. 38 isso que o estudo de um processo natural ou social só é possível se sua ou suas contradições estiverem suficientemente desenvolvidas. Assim, não era possível es- cudar, cientificamente, o capitalismo,
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