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Grandes Vias Aferentes 1.0 GENERALIDADES Neste capítulo serão estudadas as grandes vias afe rentes, ou seja, aquelas que levam aos centros nervosos suprassegmentares os impulsos nervosos originados nos receptores periféricos. Este assunto já foi objeto de considerações nos capítulos anteriores, a propósito da estrutura e função da medula, do tronco encefálico, do cerebelo e do diencéfalo, mais especificamente do tálamo, e será agora revisto em conjunto, de maneira sintética e esquemática. Não serão estudadas as vias reflexas, em geral mais curtas, formadas por fibras , ou colaterais, que se destacam das grandes vias aferentes e fazem sinapse com o sistema eferente, fechando ar cos reflexos, ora mais, ora menos complexos. O estudo das grandes vias aferentes é um dos capítulos mais im portantes da neuroanatomia, em vista de suas inúmeras aplicações práticas. Em cada uma das vias aferentes de verão ser estudados os seguintes elementos: o receptor, o trajeto periférico, o trajeto central e a área de projeção cortical. a) o receptor - é sempre uma terminação nervosa sensível ao estímulo que caracteriza a via. Exis tem receptores especializados para cada uma das modalidades de sensibilidade. A conexão deste receptor, por meio de fibras específicas, com uma área específica do córtex, permite o reconhecimento das diferentes formas de sen sibilidade (discriminação sensorial); b) o trajeto periférico - compreende um nervo es pinhal ou craniano e um gânglio sensitivo ane xo a estes nervos. De modo geral , nos nervos que possuem fibras com funções diferentes, elas se agrupam aparentemente ao acaso; c) o trajeto central - em seu trajeto pelo sistema nervoso central , as fibras que constituem as vias aferentes se agrupam em feixes (tratos, fascícu los, lemniscos), de acordo com suas funções. O trajeto central das vias aferentes compreende ainda núcleos relés, onde se localizam os neu rônios (II, III e IV) da via considerada; d) o área de projeção cortical - está no córtex ce rebral ou no córtex cerebelar; no primeiro caso, a via nos permite distinguir os diversos tipos de sensibilidade, e é consciente; no segundo caso, ou seja, quando a via termina no córtex cerebe lar, o impulso não determina qualquer manifes tação sensorial e é utilizado pelo cerebelo para realização de sua função primordial de integra ção motora; a via é inconsciente. Um princípio geral de processamento da informa ção é que ela ocorre de maneira hierárquica, sendo as informações transmitidas através de uma sucessão de regiões inicialmente subcorticais e depois corticais. Outra característica dos sistemas sensoriais é que as partes de onde se originam os impulsos sensitivos são representadas em áreas específicas da via aferen te, assim como na área cortical. Assim, na sensibili dade somática, as partes do corpo são representadas na área somestésica do córtex como um homúnculo de cabeça para baixo (Figura 26 .2). Existem também mapas tonotópicos para a representação cortical da cóclea, assim como retinotópicos para a retina. José Filho Destaque José Filho Sublinhado José Filho Destaque José Filho Sublinhado As grandes vias aferentes podem ser consideradas como cadeias neuronais unindo os receptores ao cór tex. No caso das vias inconscientes (cerebelares), esta cadeia é constituída apenas por dois neurônios (1, II). Já nas vias conscientes (cerebrais), estes neurônios são geralmente três, sobre os quais podem ser estabeleci dos os seguintes princípios gerais: a) Neurônio I - localiza-se geralmente fora do sis tema nervoso central , em um gânglio sensitivo (ou na retina e mucosa olfatória, no caso das vias óptica e olfatória). É um neurônio sensiti vo, em geral pseudounipolar, cujo dendraxônio se bifurca em "T", dando um prolongamento periférico e outro central. Em alguns casos o neurônio pode ser bipolar. O prolongamento periférico liga-se ao receptor, enquanto o pro longamento central penetra no sistema nervoso central pela raiz dorsal dos nervos espinhais ou por um nervo craniano; b) Neurônio II - localiza-se na coluna posterior da medula ou em núcleos de nervos cranianos do tronco encefálico (fazem exceção as vias ópti ca e olfatória). Origina axônios que geralmente cruzam o plano mediano logo após sua origem e entram na formação de um trato ou lemnisco; c) Neurônio III - localiza-se no tálamo e origina um axônio que chega ao córtex por uma radia ção talâmica (faz exceção a via olfatória). No estudo das grandes vias aferentes, levaremos sempre em conta a posição e o trajeto dos axônios des tes três neurônios. Serão estudadas, primeiramente, as vias aferentes do tronco e membros, que penetram no sistema nervoso central pelos nervos espinhais; a se guir, aquelas da cabeça, que penetram por nervos cra nianos. 2.0 VIAS AFERENTES QUE PENETRAM NO SISTEMA NERVOSO CENTRAL POR NERVOS ESPINHAIS 2.1 VIAS DE DOR E TEMPERATURA Os receptores de dor são terminações nervosas livres. Existem duas vias principais através das quais os impulsos de dor e temperatura chegam ao cérebro: uma via filogeneticamente mais recente, neoespinota lâmica, constituída pelo trato espinotalâmico lateral, que vai diretamente ao tálamo; e outra, mais antiga, paleoespinotalâmica, constituída pelo trato espino -reticular, e pelas fibras retículo-talâmicas (via espino- -retículo-talâmica). Como será visto, essas duas vias 276 NEUROANATOMIA FUNCIONAL veiculam formas diferentes de dor e serão estudadas de maneira esquemática a seguir. 2.1.1 Via neoespinotalâmica Trata-se da via "clássica" de dor e temperatura, cons tituída basicamente pelo trato espinotalâmico lateral, en volvendo uma cadeia de três neurônios (Figura 29.1). a) Neurônios I - localizam-se nos gânglios espi nhais situados nas raízes dorsais. O prolonga mento periférico de cada um destes neurônios liga-se aos receptores através dos nervos es pinhais. O prolongamento central penetra na medula e termina na coluna posterior, onde faz sinapse com os neurônios II (Figura 14.5). b) Neurônios II - os axônios do neurônio II cru zam o plano mediano pela comissura branca, ganham o funículo lateral do lado oposto, in flectem-se cranialmente para constituir o trato espinotalâmico lateral (Figura 15.6). Ao nível da ponte, as fibras desse trato se unem com as do espinotalâmico anterior para constituir o lemnisco espinhal, que termina no tálamo fa zendo sinapse com os neurônios 111 . c) Neurônios III - localizam-se no tálamo, no núcleo ventral posterolateral. Seus axônios formam radiações talâmicas que, pela cápsula interna e coroa radiada chegam à área somes tésica do córtex cerebral situada no giro pós -central (áreas 3, 2 e 1 de Brodmann). Através dessa via, chegam ao córtex cerebral im pulsos originados em receptores térmicos e dolorosos situados no tronco e nos membros do lado oposto. Há evidência de que a via neoespinotalâmica é responsável apenas pela sensação de dor aguda e bem localizada na superficie do corpo, correspondendo à chamada dor em pontada. 2.1 .2 Via paleoespinotalâmica É constituída de uma cadeia de neurônios em nú mero maior que os da via neoespinotalâmica. a) Neurônios 1 - localizam-se nos gânglios espi nhais, e seus axônios penetram na medula do mesmo modo que os das vias de dor e tempera tura, estudadas anteriormente. b) Neurônios II - situam-se na coluna posterior. Seus axônios dirigem-se ao funículo lateral do mesmo lado e do lado oposto, in:flectem-se cra nialmente para constituir o trato espino-reticular. Este sobe na medula junto ao trato espinotalâmi co lateral e termina fazendo sinapse com os neu- ~~ ô~ .,e; 'llJ" ~ t .., o !!! ' ".G ..... . º'° .. Tálamo----------- Substância negra --- - - - - --..... ' Ramo ascendente Neurônio 1 no gânglio espinhal Ramo descendente - - - -Área do pé ;------- --------Área do tronco" " -- -- ---Área da mão ....... ........ ' ' Neurônio Ili no núcleo ventral póstero-lateral - - - - - - - Lemnisco espinhal "-- - - - - - - - Lemnisco medial --- - ----Lemnisco medial - - - -- - - - - · Lemnisco medial -----Trato dorso-lateral (de Lissaver) - ----- Neurônio li na coluna posterior ,---------- Axônio do neurônio li Fissuramedianaanterior----------/' \ c · b ---------- - - - om1ssura ronca FIGURA 29.1 Representação esquemática da via neoespino-talômica de temperatura e dor. • CAPÍTULO 29 GRANDES VIAS AFERENTES 277 rônios III em vários níveis da formação reticular. Muitas dessas fibras não são cruzadas. c) Neurônios III - localizam-se na formação reti cular e dão origem às fibras retículotalâmicas que terminam nos núcleos do grupo medial do tálamo, em especial nos núcleos intralamina res (neurônios IV). Os núcleos intralaminares projetam-se para territórios muito amplos do córtex cerebral. É provável, entretanto, que es sas projeções estejam mais relacionadas com a ativação cortical do que com a sensação de dor, uma vez que esta se toma consciente já em ní vel talâmico. Sabe-se que alguns Neurônios III da via paleoes pinotalâmica, situados na formação reticular, projetam também para a amígdala, o que parece contribuir para o componente afetivo da dor. As principais diferenças entre as vias neo e paleoes pinotalâmicas estão esquematizadas na Tabela 29.1. Ao contrário da via neoespinotalâmica, a via paleoespino talâmica não tem organização somatotópica. Assim, ela é responsável por um tipo de dor pouco localizada, dor profunda do tipo crônico, correspondendo à chamada dor em queimação, ao contrário da via neoespinotalâ mica, que veicula dores localizadas do tipo dor em pon tada. Nas cordotomias anterolaterais (cirurgias us.adas para tratamento da dor), os dois tipos de dor são aboli dos, pois são seccionadas tanto as fibras espinotalâmi cas como as espinorreticulares. Lesões estereotáxicas dos núcleos talâmicos em pacientes com dores intra táveis decorrentes de câncer comprovam a dualidade funcional das vias da dor. Assim, a lesão do núcleo ven tral posterolateral (via neoespinotalâmica) resulta em perda da dor superficial em pontada, mas deixa intacta a dor crônica profunda. Esta é abolida com lesão dos núcleos intralaminares, o que, entretanto, não afeta a dor superficial. Além da área somestésica, respondem a estímu los nociceptivos neurônios do córtex da parte anterior do giro do cíngulo e da ínsula. Ambos fazem parte do sistema límbico e parecem estar envolvidos no proces samento do componente emocional da dor. Indivíduos com lesões da parte anterior do giro do cíngulo são in diferentes à dor. A dor é a mesma, só que eles não se importam com ela. 2.2 VIA DE PRESSÃO E TATO PROTOPÁTICO Esta via é mostrada na Figura 29.2 . Os receptores de pressão e tato são tanto os corpúsculos de Meissner como os de Ruffini. Também são receptores táteis as ra mificações dos axônios em tomo dos folículos pilosos. a) Neurônios I - localizam-se nos gânglios espi nhais cujo prolongamento periférico liga-se ao re ceptor, enquanto o central divide-se em um ramo ascendente, muito longo, e um ramo descendente, curto, terminando ambos na coluna posterior, em sinapse com os neurônios 11 (Figura 14.5). b) Neurônios II - localizam-se na coluna poste rior da medula. Seus axônios cruzam o pla no mediano na comissura branca, atingem o funículo anterior do lado oposto, onde se in flectam cranialmente para constituir o trato espinotalâmico anterior (Figura 15 .5). Este, no nível da ponte, une-se ao espinotalâmico lateral para formar o lemnisco espinhal , cujas fibras terminam no tálamo, fazendo sinapse com os neurônios m. TABELA 29.1 Diferenças entre as vias neoespinotalâmicas e paleoespinotalâmicas. Caracter1st1cas Via 11eoesp1notalôm1ca Via paleoesp1notalôm1ca Origem filogenético recente antiga Cruzamento na medula fibras cruzadas fibras cruzadas e não cruzadas Trato na medula espinotalâmico lateral espinorreticular Trajeto supramedular direto: espinotalâmico interrompido: espinCHetículo-talâmico Número de neurônios três neurônios (1, li, Ili) no mínimo quatro neurônios Projeção talâmica principal núcleo ventral pasterolateral núcleos intralaminares Projeções supratalâmicas área someslésica partes anteriores da insula e do giro do cíngulo Organização funcional somatot6pica não somatot6pica Função dor aguda e bem localizada dor crônica e difusa (dor em queimação) 278 NEUROANATOMIA FUNCIONAL c) Neurônios Ili - localizam-se no núcleo ventral posterolateral do tálamo. Originam axônios que formam radiações talâmicas que, passando pela cápsula interna e coroa radiada, atingem a área somestésica do córtex cerebral (Figura 29.2). / Neurônio Ili no núcleo ventral postero lateral MESENCÉFALO Prolongamento central do neurônio 1 ---\ ·-\ .....,, ___ , I / / Prolongamento periférico do neurônio 1 Ramo ascendente --- _ Neurônio 1 no gânglio espinhal ----- Ramo descendente \ Por este caminho chegam ao córtex os impulsos originados nos receptores de pressão e de tato situados no tronco e nos membros. Entretanto, como no caso anterior, estes impulsos tomam-se conscientes já em nível talâmico. - - - ____ Área do pé ,,.-- - -- - - - Área do tronco / -------Área da mão -- - - - - - Lemnisco espinhal --- ------Substância negra Trato espinotalâmico anterior -- - - - -- Neurônio li na coluna posterior - - - --- - - - Fissura mediana anterior ---------- -Comissura branca FIGURA 29.2 Representação esquemática da via de pressão e tato protopático. • CAPÍTULO 29 GRANDES VIAS AFERENTES 279 2.3 VIA DE PROPRIOCEPÇÃO CONSCIENTE, TATO EPICRÍTICO E SENSIBILIDADE VIBRATÓRIA Esta via é mostrada na Figura 29.3. Os recepto res de tato são os corpúsculos de Ruffini e de Meissner e as ramificações dos axônios em tomo dos folículos pilosos. Os receptores responsáveis pela propriocep ção consciente são os fusos neuromusculares e órgãos neurotendinosos. Já os receptores para a sensibilidade vibratória são os corpúsculos de Vater Paccini . a) Neurônios I - localizam-se nos gânglios espi nhais. O prolongamento periférico destes neu rônios liga-se ao receptor, o prolongamento central, penetra na medula pela divisão medial da raiz posterior e divide-se em um ramo des cendente, curto, e um ramo ascendente, longo, ambos situados nos fascículos grácil e cunei forme (Figura 15 .5); os ramos ascendentes lon gos terminam no bulbo, fazendo sinapse com os neurônios II. b) Neurônios II - localizam-se nos núcleos grácil e cuneiforme do bulbo. Os axônios destes neurô nios mergulham ventralmente, constituindo as fi bras arqueadas internas, cruzam o plano mediano e a seguir inflectem-se cranialmente para formar o lemnisco medial (Figura 29.3). Este termina no tálamo, fazendo sinapse com os neurônios m. c) Neurônios III - estão situados no núcleo ven tral posterolateral do tálamo, originando axô nios que constituem radiações talâmicas que chegam à área somestésica passando pela cáp sula interna e coroa radiada (Figura 29.3). Por esta via, chegam ao córtex impulsos nervo sos responsáveis pelo tato epicrítico, a propriocepção consciente (ou cinestesia) e a sensibilidade vibratória (Capítulo 15, item 4.3.2.l ). O tato epicrítico e a pro priocepção consciente permitem ao indivíduo a discri minação de dois pontos e o reconhecimento da forma e tamanho dos objetos colocados na mão ( estereogno sia). Os impulsos que seguem por esta via se tomam conscientes exclusivamente em nível cortical, ao con trário das duas vias estudadas anteriormente. 2.4 VIA DE PROPRIOCEPÇÃO 1 NCONSCI ENTE Os receptores são os fusos neuromusculares e ór gãos neurotendinosos situados nos músculos e tendões. a) Neurônios I - localizam-se nos gânglios espi nhais. O prolongamento periférico destes neu- 280 NEUROANATOMIA FUNCIONAL rônios liga-se aos receptores.O prolongamento central penetra na medula, divide-se em um ramo ascendente longo e um ramo descenden te curto, que terminam fazendo sinapse com os neurônios II da coluna posterior. a) Neurônios II - podem estar em duas posições, originando duas vias diferentes até o cerebelo: .,.. neurônios II, situados no núcleo torácico (localizado na coluna posterior) - origi nam axônios que se dirigem para o funí culo lateral do mesmo lado, inflectem-se cranialmente para formar o trato espinoce rebelar posterior (Figura 15.5), que termina no cerebelo, onde penetra pelo pedúnculo cerebelar inferior (Figura 21 . 7); .,.. neurônios II, situados na base da coluna posterior e substância cinzenta intermé dia - originam axônios que, em sua maio ria, cruzam para o funículo lateral do lado oposto, inflectem-se cranialmente consti tuindo o trato espinocerebelar anterior (Fi gura 21. 7). Este penetra no cerebelo pelo pedúnculo cerebelar superior (Figura 21 . 7). Admite-se que as fibras que cruzam na me dula cruzam novamente antes de penetrar no cerebelo, pois a via é homolateral. Através dessas vias, os impulsos proprioceptivos originados na musculatura estriada esquelética chegam até o cerebelo. 2.5 VIAS DA SENSIBILIDADE VISCERAL O receptor visceral geralmente é uma terminação nervosa livre, embora existam também corpúsculos de Vater Paccini na cápsula de algumas vísceras. Os im pulsos nervosos originados nas vísceras, em sua maio ria, são inconscientes, relacionando-se com a regulação reflexa da atividade visceral. Contudo, interessam-nos principalmente aqueles que atingem níveis mais al tos do neuroeixo e se tomam conscientes, sendo mais importantes, do ponto de vista clínico, os que se re lacionam com a dor visceral. O trajeto periférico dos impulsos viscerais se faz geralmente através de fibras viscerais aferentes que percorrem nervos simpáticos ou parassimpáticos. No que se refere aos impulsos rela cionados com a dor visceral , há evidência que eles se guem, principalmente, por nervos simpáticos, fazendo exceção as vísceras pélvicas inervadas pela parte sacral do parassimpático. 1 Admite-se que o nervo vago tenha pouca ou nenhuma im portância na condução de impulsos dolorosos viscerais. José Filho Destaque