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Ricardo Ghio e Sandra Ortegose


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O Desafio da Requalificação
Ricardo Ghio
Roma promoveu nestes últimos anos um amplo programa de requalificação urbana, voltado à tutela das grandes áreas livres que ainda possui, recuperando as periferias, valorizando o seu patrimônio histórico-arqueológico, reestruturando e ampliando a rede de transporte público sobre trilhos.
Enquanto os novos programas urbanísticos – indispensáveis para operar em um quadro maior de certezas, após muitos anos de crescimento desordenado da cidade e tantas vezes ilegal – foram definidos e aprovados, a Administração Municipal empenhou-se em uma ação difusa de requalificação e manutenção urbana que foi iniciada pelos Departamentos Ambiental, Obras Públicas, Tráfico e Território e, através do novo programa "Centopiazze per Roma" promovido diretamente pelo Prefeito.
De fato, o projeto do espaço público e, em geral, a questão da requalificação dos espaços abertos da cidade já são, há um bom tempo, objetos de interesse e de atuação por parte de muitas administrações européias. Desviando-se de um modo dominante mas equivocado de projetar espaços públicos, aquele na qual temos somente a dotação de um novo mobiliário urbano – e que se demonstrou muitas vezes um componente posterior na degradação e não na requalificação urbana – a atenção da cultura arquitetônica se voltou para uma atividade projetual mais atenta dos lugares, procurando elementos de coerência com a paisagem circunstante e com a parte da cidade na qual se intervém.
Em um recente debate sobre o tema da requalificação dos espaços abertos, Guido Canella, recordando o novo Auditorium de Roma, questionava sobre o papel e a utilidade de uma arquitetura que, condicionada pelas exigências da mídia, se conotava fortemente para a espetaculosidade e a especificidade dos lugares, isso em relação a uma arquitetura mais difundida no território e na cidade, e menos engajada em termos comunicativos. "Se trata freqüentemente – sublinhava Canella – de grandes projetos úteis à organização do consenso e à imagem da cidade, mas não são suficientes para restituir à arquitetura aquele papel central em relação à sociedade, capaz de romper uma barreira que, ao contrário, isola essa mesma arquitetura".
Justamente para evitar esse risco, a Administração Municipal de Roma procurou atuar paralelamente em vários fronts: iniciou algumas grandes obras, inegavelmente necessárias e que já eram esperadas há muito tempo, e promoveu uma ação difundida de requalificação urbana, onde a arquitetura não deve enfrentar os "não lugares" mas, sim, lugares específicos, nas quais já se encontram certos estratos urbanos assentados, e sob um programa que pode ser amplamente discutido, junto aos cidadãos, até um possível consenso.
O programa "Centopiazze" nasceu também para esse objetivo, contribuindo justamente para recriar – mesmo se com um objetivo limitado – uma agregação de interesses, uma maior possibilidade de enraizamento nos próprios lugares implementados, reclamando um novo interesse pelo espaço coletivo que, hoje, parece completamente perdido.
Conceber um programa de requalificação urbana para uma cidade como Roma requer, antes de tudo, um conhecimento das diversidades dos lugares: as várias partes urbanas, às vezes densas, outras mais rarefeitas, aquelas centrais e outras periféricas, não permitem imaginar um programa unitário; é viável, e assim foi feito, procurar regras e critérios básicos mas, também, é necessário afrontar os lugares que requerem intervenções sabendo, particularmente, interpretá-los. Em alguns casos, por exemplo na cidade histórica, se trata de uma intervenção que respeita esses mesmos lugares, avaliando as sedimentações e as estratificações da história; em outros casos, nas várias e diversas periferias, se trata de redescobrir e valorizar os melhores componentes encontrados, componentes às vezes paisagísticos (a praça/parque de Fidene), outras vezes uma edificação antiga – por exemplo um aqueduto (largo Pettazzoni al Quadraro) – outras vezes ainda uma certa qualidade esquecida de uma arquitetura menor, sóbria mas coerente (Piazza Piaggio no Villaggio Breda).
A cidade consolidada oferece, por sua vez, oferece também cenários muito diversos: grandes praças de periferia circundadas por fachadas edilícias compactas e de baixa qualidade (Piazza Balsamo Crivelli no Tiburtino, ou o Viale Vicopisano na Magliana), mas também lugares de grande qualidade arquitetônica (Piazza Sauli na Garbatella ou a Piazza del Quarticciolo no bairro homônimo).
Em relação ao tema geral da requalificação do serviço público, "Centopiazze", por sua vez, teve que operar em aspectos e níveis diversos:
– iniciou em primeiro lugar uma atividade de caráter cognitivo, através de uma sondagem ampla do território e das atividades programadas pelos Departamentos e pelas Seções dos serviços públicos que atuam no território, e assim compor um primeiro quadro de intervenções com características de viabilização imediata;
– envolver as circunscrições regionais e os cidadãos, chamados para assinalar os lugares de maior degrado no seu relativo território e, assim, convocando-os à uma participação;
– iniciar, súbito, uma atividade projetual junto com as primeiras realizações que possam garantir uma demonstração da operatividade do programa, deixando para a sucessiva experiência, no campo concreto, as definições exatas em relação aos procedimentos técnicos e administrativos que constituem a complexidade da intervenção, da requalificação e, sobretudo, da gestão de tais lugares.
A escolha das formas de financiamento foi um outro momento central para o início do programa.
Se decidiu pela escolha de diversos e possíveis canais de financiamento: os resíduos passivos do Departamento de Obras Públicas, os recursos obtidos na realização de estacionamentos privados pertinentes, os patrocínios, os fundos recuperados no combate à corrupção.
Um programa sério de intervenções para a requalificação dos lugares coletivos não poderia deixar de contar com um raciocínio mais competente e com as experiências mais acreditadas no tema do espaço público urbano: era indispensável compor um quadro com critérios e soluções exemplares, preparar um álbum de exemplos, apurar as qualidades dos projetos.
Dentro desses objetivos foi construída a segunda fase do programa "Centopiazze", na qual se desenvolveu a estrutura geral do projeto. E foram quatro os eixos básicos: estabelecimento rigoroso dos projetos realizados pelo departamento municipal constituído para esse ocasião, Ufficio Centopiazze; adoção de uma metodologia de comunicação sistemática com as circunscrições regionais e com as comissões de bairro, assim como uma ampla divulgação dos projetos através da revista «Centopiazze», e de um programa dedicado ao Televídeo; abertura ao confronto e à colaboração com a Universidade, para a redação de um "Manuale dei Luoghi del Collettivo Urbano", com o Departamento de Arquitetura e Análise da Cidade, e para a redação do "Manuale dell’Arredo Urbano", com o Departamento de renovação Tecnológica e Ambiental; por fim, a promoção de um concurso público de projetos para dezenove diversas situações urbanas.
O concurso para as Praças dos Bairros, concluído com quatorze projetos premiados e muitas menções, se transformou em um terreno de experimentação sobre a potencialidade e a possibilidade do espaço público romano.
Os lugares examinados, representativos dos diversos tipos de serviços urbanos, de funções e de características diversas (praças do centro histórico, da cidade consolidada, da periferia, praça/parque, praça/mercado, praça com novos terminais) se tornaram um momento de avaliação para uma pesquisa de uma nova qualidade urbana do espaço coletivo e para o uso de novos materiais.
O concurso favoreceu o destaque de uma nova geração de arquitetos, operantes há algum tempo, com uma pluralidade de abordagens, e dentro de várias linguagens da arquitetura contemporânea: nos projetos apresentados se pode ler uma positiva relação entre linguagens de matriz européia e pesquisas expressivas mais típicas da "scuolaromana".
Na ocasião do concurso, a administração municipal destinou ao programa "Centopiazze’ um amplo financiamento – aproximadamente 23 milhões de dólares – permitindo aos projetistas vencedores e aos primeiros doze entre os mencionados iniciar a realização dos projetos executivos.
A vontade precisa da administração em realizar o maior número possível dessas obras – algo que na Itália, infelizmente, é algo incomum – permitirá o indispensável confronto entre o projeto e a realização; já é possível fazer um primeiro balanço: até hoje já foram completados mais de vinte intervenções, outros quinze estão em fase de realização, e, logo, mais de vinte praças terão em breve os seus canteiros abertos, enquanto que um pouco menos de trinta projetos executivos estão em fase de aprovação.
A experiência da redação dos projetos merece uma série de considerações ulteriores; como é voltada para especialistas, os novos projetos públicos devem vincular-se precisamente às recentes leis das obras públicas, uma situação para o projetista mais complexa do que no passado.
Hoje é justamente necessário determinar precisamente o custo total de uma obra, e tanto o projetista quanto a administração pública são colocados sob uma maior responsabilidade do que no passado; mas à essas maiores responsabilidades temos em correspondência, pelo menos hoje, uma série de vazios legislativos que permitem incertezas técnicas, por parte dos responsáveis e, no final, podem incidir tanto nos pareceres que os departamentos devem entregar quanto no trabalho dos projetistas.
Muita energia do "Centopiazze" foram gastas para isso: esclarecer os procedimentos técnicos e administrativos, iniciar desapropriações de partes da cidade (que eram aparentemente públicas desde sempre, mas em realidade nunca adquiridas pelo Município) e definir com as agências dos serviços públicos certos programas de intervenção, comuns e coerentes. Grande parte do trabalho está justamente aqui: é aquele menos visível, mas mais longo e mais fadigoso.
Paralelamente, no concurso para as "praças de bairros" foram redigidos, dentro dos departamentos da administração, os primeiros projetos-piloto que hoje já estão prontos: Piazza Campanna Murata, Piazza Gasparri, Piazza San Lorenzo in Lucina, Piazza Capelvenere, largo Teofrasto, Piazza degli Eroi, a nova Piazza di Pietralata, largo Canella, Piazza del Quarticciolo, a praça em Via Tenuta di Torrenova, e outras intervenções ainda, que, além de concluídas, permitiram verificar a notável qualidade projetual expressa pelos técnicos que trabalham no interior da administração pública. É também importante o trabalho desenvolvido pela Universidade nos posteriores projetos guia, nos manuais as pesquisas especiais sobre as tipologias dos espaços/praças dos bairros de edilícia pública e dos núcleos abusivos.
Entre as novidades "romanas", destaca-se que as ações de requalificação dos espaços públicos foram promovidas paralelamente à redefinição das estratégias gerais: as praças que são realizadas, no centro histórico mas, sobretudo, na periferia, às vezes se limitam a requalificar um lugar degradado, e freqüentemente antecipam uma ação de requalificação mais ampla e mais complexa, exigindo tempos mais longos para a sua completa execução.
Nos últimos meses foi concluído o concurso, por convites, para a requalificação da praça da Farnesina. A história do lugar e do seu caráter "monumental", e que sempre foi tema de projetos para muitos arquitetos e escultores notórios, induziu a administração pelo concurso fechado, convidando a seis projetistas muito reconhecidos.
Esse concurso, vencido por Umberto Riva, propõe uma reflexão sobre um tema muito específico mas de grande interesse para Roma: uma intervenção em um lugar da arquitetura moderna, o Foro Itálico, e, em particular, na área do Ministério do Exterior – a ex "Casa Littoria" projetada por Arnaldo Foschini, Enrico Del Debbio e Vittorio Morpurgo – completada em 1958 mas sem o pórtico previsto pelo projeto original.
O texto do concurso pedia aos projetistas para repensar a relação entre o complexo esportivo desejado por Renato Ricci e o edifício da Farnesina mas, também, procurar a coerência – nos limites do possível – dentro do sistema colina/edifício/rio.
O projeto de Umberto Riva responde bem, seja ao tema do concurso específico, seja à filosofia geral que o programa "Centopiazze" propõe: a atual e grande avenida do Ministério do Exterior é reduzido através da construção de dois blocos verdes, duas fileiras de árvores densas que reivindicam, explicitamente, as intervenções "mediterrâneas" de Marcello Piacentini e Raffaele De Vico, um canteiro central realizado com travertino, fragmentado e completado com uma série de grandes postes de iluminação, um resultado a favor de um espaço "semi-pedestre" que se distancia da fachada da Farnesina. Dois pequenos quiosques, revestidos com pedra, completam o passeio público arborizado.
O espaço da praça é reproposto através de outros blocos arbóreos, segmentados e "atenuados", com uma simples mas elegante solução na qual a esfera de bronze de Arnaldo Pomodoro, perdendo o seu pedestal, parece que sairá rolando.
Roma, cidade eterna, lugar de excelência da arquitetura na antigüidade e "maestra" do espaço urbano no Renacimento, lugar de projetos urbanos coerentes nos Oitocentos e, até os anos Trinta, está procurando redescobrir a estrada justa para reencontrar a dignidade e o decoro urbano perdidos há tanto tempo.
Cidade e Memória: do Urbanismo “Arrasa-Quarteirão” à Questão do Lugar	
Sandra Mara Ortegosa
Desde os anos 60, o tema da memória vem merecendo destaque cada vez maior nos estudos sobre as cidades, numa perspectiva de abordagem que se contrapõe ao pensamento e prática do Movimento Moderno Internacional, especialmente no que se refere ao descaso em relação às características históricas, geográficas e culturais que dão identidade ao lugar. Tal perspectiva vem reavivando o interesse sobre a obra de alguns pensadores, entre os quais Walter Benjamin, que privilegiava a leitura do texto inscrito nas cidades. Para Benjamin, cujo olhar tem-se mostrado uma das chaves de interpretação mais fecundas sobre a sociedade moderna, a memória é constituída de impressão, de experiência e sua importância e significado especial estão no fato de que ela é o que nós retemos e o que nos dá a nossa dimensão de sentido no mundo (2).
A arquitetura e os lugares da cidade constituem o cenário onde nossas lembranças se situam e, na medida em que as paisagens construídas fazem alusão a significados simbólicos, elas estão evocando narrativas relacionadas às nossas vidas. Assim, a maneira como interpretamos nossas experiências no espaço converte-se em nossa realidade e possibilita-nos dar significado ao nosso mundo físico. Com o passar do tempo, uma constelação de signos se estratificam na memória coletiva constituindo uma cidade análoga.
Como ilustra Maria Alice Rezende de Carvalho, “uma praça das grandes manifestações políticas, uma esquina boêmia, um ponto da praia com seu velho pier, um Café centenário, um edifício bisonho que parece ter resistido ao ímpeto destrutivo da moderna linguagem arquitetônica são os fundamentos dessa cidade análoga”, que se repõe insistentemente, mesmo que a cidade real se altere (3). Um dos aspectos fundamentais na vida de uma cidade, portanto, é o conjunto de recordações que dela emergem: a memória urbana é a realidade que marca nossa própria fugacidade na história, ao mesmo tempo em que anuncia a possibilidade de transcendermos nossa temporalidade individual.
Essa segunda dimensão da cidade imprime a determinados espaços físicos que a conformam, a capacidade de falar pelo todo. Assim como podemos encontrar constelações históricas específicas que assumem o caráter de mônadas em relação ao presente, também nas cidades existem determinados lugares cuja compreensão transcende os seus limites pela capacidade de iluminar o todo. São lugares que apresentam uma força de representação simbólica capaz de despertar ilhas de afetividadeem seus habitantes e de expressar com particular clareza as relações com o todo, assumindo a condição de espaços-síntese (4). Na visão benjaminiana, cada presente possui uma reserva de passados intactos, sob a forma de constelações históricas específicas, que podem ser resgatadas pelo historiador para delas extrair o genuinamente novo. A decifração das diversas camadas de escritura desse imenso palimpsesto impresso na cidade objetiva a construção de sentido do presente: a promessa do novo situa-se no passado, enquanto produto de um trabalho processual de construção, aberto para o leque de possíveis que ele encerra.
Nestes termos, proteger a memória significa proteger o passado, o presente e o futuro. Cabe a cada presente resgatar o próprio passado, arrebatando-o ao esquecimento e revelando os possíveis futuros que ele comportava. Ao extrair-se o passado do continuum da história, sob a forma de mônada, ele torna possível a legibilidade do todo. É este o sentido exato que Benjamin deu a esse termo referindo-se às Passagens de Paris: um fragmento do real que abre a via a uma interpretação completa do todo (5).
Em A Poética do Espaço, Gaston Bachelard discorre a respeito das imagens que emergem do “fundo poético do espaço da casa”, afirmando que “é exatamente porque as lembranças das antigas moradas são revividas como devaneios que as moradas do passado são imperecíveis dentro de nós”. Para ele, “todo espaço realmente habitado traz a essência da noção de casa” e sua preciosidade está na proteção que ela oferece ao sonhador, na paz de se poder devanear, permitindo que pensamentos e experiências deste devaneio produzam “valores que marcam o homem em sua profundidade”. Um espaço feliz é um lugar que provoca, pacífica e espontaneamente, uma sensação de acolhimento, instigando a troca e a criação, e despertando uma ligação afetiva em quem nele vive, pela memória que persiste nas pedras, solidificando imagens, identidades e signos (6).
Na visão de Bachelard, a lembrança tem função primordial no espaço, atribuindo-lhe a condição de âncora da memória: “o inconsciente permanece nos locais. As lembranças são imóveis, tanto mais sólidas quanto mais bem espacializadas”. Todos os espaços com os quais estabelecemos uma relação de intimidade adquirem “valores oníricos consoantes”. São justamente as lembranças localizadas na região da intimidade que nos dão o sentido de valorização dos aposentos, praças, ruas, edifícios e paisagens que constituem patrimônios da história da humanidade, de uma determinada sociedade ou das histórias íntimas e individuais. Os devaneios suscitados pelas lembranças convidam-nos à imaginação e provocam transformações nas profundezas do ser. A ausência de possibilidade de devanear gera, ao contrário, o estreitamento da imaginação e a acomodação em relação à realidade. Em outras palavras: a ausência do sonho, do devaneio, impede a construção de utopias. É neste sentido, e não como tentativa de um resgate de um tempo perdido ou de uma cultura já morta, que a preservação da arquitetura e dos ambientes urbanos adquire importância (7).
Numa crítica ao modelo de habitat das grandes cidades modernas, nas quais predomina uma paisagem “oniricamente incompleta” de edifícios verticais e ausência da natureza, Bachelard, reportando-se a Paris, nos diz que lá “não existem casas. Em caixas superpostas vivem os habitantes da grande cidade”. E nessas caixas anônimas, identificadas apenas pelo número da rua e o algarismo do andar, “as peças se amontoam e a tenda de um céu sem horizontes encerra a cidade inteira”. Acresce-se a isso a “falta de cosmicidade da casa das grandes cidades. As casas ali já não estão na natureza. As relações da moradia com o espaço tornam-se artificiais. Tudo é máquina e a vida íntima foge por todos os lados. ‘As ruas são como tubos onde os homens são aspirados’(Max Picard)” (8).
Mais contemporaneamente, Marc Augé, em oposição ao conceito de lugarassociado à tradição antropológica de uma cultura localizada no tempo e no espaço, emprega a idéia de não-lugares referindo-se aos espaços destituídos de identidade e história, verdadeiros espaços do anonimato, resultantes do processo de mundialização que vem conformando o que ele chama de umasupermodernidade. No cerne desta abordagem, destaca-se a idéia de que a megalópole segue um princípio de intencionalidade de descaracterização e assepsia em relação ao passado e aos traços de identidade local. Referindo-se ao caráter cada vez mais artificial e museulógico do centro monumental de Paris (onde “mora-se cada vez menos”), Augé identifica o sinal de uma mudança mais geral na França: “a relação com a história que povoa nossas paisagens talvez esteja em vias de estetizar-se e, simultaneamente, dessocializar-se e artificializar-se”. Comparando o centro de Paris com os das cidades francesas mais modestas e até das aldeias, ele afirma que nelas “o centro da cidade é um lugar ativo, realmente. (...) Em intervalos semanais regulares (o domingo e o dia de feira), o centro ‘se anima’, e é uma reclamação freqüentemente dirigida às cidades novas, originárias de projetos de urbanismo ao mesmo tempo tecnicistas e voluntaristas, não oferecerem um equivalente aos lugares de vida produzidos por uma história mais antiga e lenta, onde os itinerários singulares se cruzam, onde se trocam palavras e se esquecem as solidões por um instante, na porta da igreja, da prefeitura, na porta do café, na padaria: o ritmo meio preguiçoso e a atmosfera propícia à conversa da manhã de domingo são sempre uma realidade contemporânea da França provinciana” (9).
A questão da memória e do lugar e a reformulação de paradigmas no campo da arquitetura e do urbanismo
Quando se examina o resultado das diversas experimentações do Movimento Moderno na arquitetura e no urbanismo, o que se destaca é que a herança moderna é marcada por um rastro de intervenções com características homogeneizadoras, que rechaçam qualquer perspectiva de continuidade histórica. A própria noção de modernismo/modernidade e sua identificação com a estratégia de vanguardismo, pressupõem oposição frontal ao passado e induzem o conflito formal permanente. Um dos exemplos mais conhecidos é oPlan Voisin de Paris (1925), de autoria de Le Corbusier, que nega radicalmente a tipologia arquitetônica e urbana preexistente, contrapondo uma ordem estruturante euclidiana, numa das manifestações mais claras de ruptura com a cidade tradicional e sua base figurativa, mediante uma solução calcada nos modelos abstratos.
Em contraposição à concepção modernista de cidade, especialmente na sua vertente haussmann-corbusiana, começa a ganhar espaço na Europa e Estados Unidos a partir dos anos 50, uma série de propostas baseadas numa visão crítica contra a paisagem funcionalista e os espaços desérticos resultantes da estandardização na sociedade de massas, numa perspectiva de revalorização dos elementos vernaculares e tradicionais da cidade. Vale lembrar que o rompimento com o racionalismo funcionalista propugnado pelaCarta de Atenas (11) deu-se no interior do próprio CIAM (Congresso Internacional de Arquitetura Moderna). Em 1951, o CIAM VIII, realizado na Inglaterra, teve como tema O coração da cidade: por uma vida mais humana da comunidade. Em 1953, no CIAM IX, realizado na França, manifesta-se uma preocupação central com a questão da identidade dos espaços da cidade. A relação entre a forma física e as necessidades de ordem social e psicológica tornou-se tema do CIAM X, último encontro dos CIAM, realizado em Dubrovnik, em 1955. O grupo responsável pela sua organização, conhecido como Team X, opunha aos esquemas cartesianos derivados do zoneamento da cidade funcional, as categorias mais fenomenológicas de casa, rua, bairro ecidade.
De meados da década de 60 em diante, esta revisão das doutrinas legadas pelo Movimento Internacional Moderno abre espaço para novas formulações: uma produção literária crítica passa a advogar um novo respeito pelas necessidades subjetivas e a redescoberta dos símbolos culturais no ambiente construído. A questãoda permanência dos elementos arquitetônicos e dos traçados urbanos, o interesse pelo simbólico e pelo arquetípico, como aspectos de fundamental importância para a memória coletiva e subjetiva, adquirem centralidade, expressando-se politicamente na cidade pelos movimentos sociais engajados na luta pela preservação de lugares significativos.
A visão comunitária de um espaço urbano re-humanizado, preconizada por Camillo Sitte (12) em sua crítica à paisagem moderna de Viena, terá importante repercussão em nossos dias através do clássico “Morte e Vida das Grandes Cidades Norte-americanas”, de Jane Jacobs, publicado em 1961. Jacobs argumentava que os paradigmas mecanicistas e redutivos do urbanismo modernista produziam espaços urbanos fisicamente limpos e ordenados, mas social e espiritualmente mortos; e que, para Le Corbusier e a maior parte dos arquitetos da vanguarda modernista, a rua era vista apenas como uma “fábrica de tráfego”, o que resultou na demolição de diversos bairros para a abertura de vias expressas, implantação de projetos de renovação urbana e outras obras públicas. Em “Tudo que é sólido desmancha no ar – A aventura da modernidade” (13), Marshall Berman relata a destruição do Bronx, onde viveu sua infância, quando Robert Moses, no final dos anos 50 e início dos 60, rasga o bairro ao meio com uma via expressa, desalojando cerca de 60 mil pessoas. Robert Moses, o grande construtor de vias expressas em Nova York durante 40 anos, representou o clímax do modernismo aplicado à cidade (14).
Jacobs, talvez a mais famosa crítica do urbanismo modernista, demonstrou os efeitos destrutivos do planejamento racional centralizado sobre a vida urbana, defendendo a preservação das relações comunitárias e dos espaços urbanos personalizados. Para ela, a resposta à falta de animação e vitalidade das ambiências urbanas resultantes do planejamento funcionalista deveria ser buscada num planejamento na escala humana, no qual os marcos e as referências culturais, e os locais de encontro dariam sustentação às associações intersubjetivas e a um sentido de lugar. A diversidade de pessoas e usos era um de seus princípios cardeais, em contraposição aos usos urbanos segregados pelo zoneamento funcional da cidade.
Esta conclusão é decorrente, em larga medida, de sua própria experiência cotidiana na Hudson Street, onde morava em Nova York, observando a movimentação dos vizinhos e estranhos, cuja diversidade e variados ritmos de tempo-espaço definiam uma característica “ecologia e fenomenologia das calçadas” (15). Do ponto de vista político, ela advogou um método participativo que preconizava uma comunicação direta entre a vida cotidiana e a prática do planejamento.
Como ressalta Berman, “a ação e o pensamento de Jacobs anunciaram uma grande onda de ativismo comunitário e uma grande irrupção de ativistas em todas as dimensões da vida política” (16). A partir de então, a luta pela preservação de lugares significativos para a população avançou nas principais cidades do mundo por uma década ou mais, conquistando alguns resultados importantes: planos de vias expressas foram derrubados, projetos de renovação urbana foram rejeitados ou redefinidos, áreas históricas foram preservadas, ruas foram recuperadas para usos mais nobres que o tráfego exclusivo de veículos.
Neste quadro, o plano de preservação e reabilitação do centro histórico de Bolonha, implantado a partir de 1969, aparece como uma das mais importantes experiências européias e expressão emblemática de uma nova visão de urbanismo, rompendo definitivamente com a idéia da preservação entendida como um simples problema de “cenografia urbana” aliada a adaptações funcionais (17).
A partir dos anos 70, a perda da identidade cultural e o empobrecimento do ambiente urbano provocado pelos códigos redutivos da arquitetura contemporânea tornaram-se objeto de preocupação cada vez maior. Contra a uniformização, emerge um renovado interesse pela especificidade do regional e dos estilos históricos, e pela diversidade das subculturas urbanas. A supressão do contexto local e da cultura, e a imposição da uniformidade como meio de se alcançar a universalidade encontra uma reação explicitada no léxico pós-moderno, pela valorização do contexto, da diversidade, do sentido do lugar, da experiência, do cotidiano e da cultura (18). Em oposição à visão globalizante e unificadora propugnada pela vanguarda modernista, delineiam-se novos códigos formais que convertem a fragmentação da configuração urbana num valor positivo: o pluralismo, em oposição à rigidez dos modelos estabelecidos pelo funcionalismo, e a valorização das particularidades regionais e dos conceitos de lugar/identidade, em oposição ao princípio da tabula rasa na produção ex-niilo de um novo espaço. Acidade-colagem, resultante da somatória de diferentes estratégias de intervenção no espaço urbano, e a revitalização urbana, no lugar dos procedimentos de renovação urbana, transformam-se em princípios-chave nas práticas urbanísticas contemporâneas.
A obra “Complejidad y Contradición en La Arquitetura” (1972), de Robert Venturi (19), constitui um dos marcos na formulação do repertório das correntes pós-modernas. Venturi opõe-se de forma radical à monotonia do racionalismo funcionalista, defendendo a complexidade, as contradições, a riqueza formal, a ambigüidade, o híbrido, o distorcido, o vernacular e o irregular. Colin Rowe (20) - um dos defensores dessa concepção - adota, em “Collage City” (1978), a Villa de Adriano como referência na proposta de uma cidade resultante de uma colagem de utopias pretéritas: a cidade bricolage. Numa reação à larga escala do movimento moderno, as intervenções pontuais e fragmentárias, bastante freqüentes na atualidade, fundamentam-se no princípio da multiplicidade. Como pano de fundo dessa visão, subjaz um reconhecimento implícito na inevitabilidade da fragmentação da forma urbana na cidade contemporânea.
Outra referência teórica importante – “A Arquitetura da Cidade” (1971), de Aldo Rossi -, apresenta uma teoria geral da cidade, fundamentada precisamente na análise da cidade histórica. Em contraposição ao urbanismo “arrasa-quarteirão”, emerge a noção de lugar ou genius loci – conceito teórico-filosófico que se refere a um campo perceptivo resultante, na definição de Rossi, da “relação singular e, ao mesmo tempo, universal entre certa situação local e as construções existentes naquele lugar” (21).
Kenneth Frampton, também presente neste debate, desenvolve a teoria dolugar em contraposição à idéia de totalidade, norteadora do ideário de proposições da cidade modernista. Para ele, o espaço não deve ser tratado como algo abstrato, mas sim como o lugar de habitar dos homens. Tomando essa acepção de Heidegger, formula a proposta de um regionalismo crítico,no qual a questão do lugar é pensada a partir de suas significações e referências históricas, geográficas e culturais. Apresentando-se como uma alternativa de resistência contra o mito do progresso da vanguarda moderna, mas contrapondo-se também ao mito de retorno às realidades pré-industriais, presente em algumas formulações pós-modernas, o regionalismo crítico se propõe pensar o particular em função do universal. Neste sentido, trata-se de um movimento que se opõe ao crescente domínio da globalização cultural e tecnológica sobre as diversas formas de manifestação das culturas regionais, preconizando o cultivo de uma cultura resistente, portadora de identidade (22).
Verifica-se, assim, no desenho urbano, a transição da grade cubista do urbanismo moderno para o que os geógrafos e arquitetos têm chamado de osentido do lugar – formas construídas que sugerem e evocam associações simbólicas. A preservação histórica passa a ocupar um lugar fundamental na revitalização das áreas centrais nas políticas urbanas em curso no mundo inteiro. A ênfase dos projetos recai sobre a preservação das características do contexto histórico e cultural do lugar através da revitalização e reciclagem da arquitetura e espaços urbanos preexistentes.
A arquitetura contextual é definidapor Francisco de Gracia, como sendo “aquela que, sem utilizar os recursos da mímesis superficial nem a analogia direta, estabelece uma rara simbiose com o contexto”, mediante a construção de nexos figurativos com o entorno e de critérios definidos pelas próprias características do lugar, mas com a marca de seu tempo. Dessa maneira, mesmo que toda intervenção resulte numa modificação do locus, o que está em questão para a arquitetura contextualista é a possibilidade de “transferir para o futuro os valores da cidade antiga, sem renunciar à própria sincronia histórica” (23).
No Brasil, um dos exemplares mais emblemáticos dessa tentativa de expressão de uma arquitetura do lugar é o Centro de Lazer SESC Fábrica da Pompéia, projetado por Lina Bo Bardi no final dos anos 70. A antiga fábrica do final do século XIX foi transformada num centro de produção de cultura e de lazer mediante algumas intervenções mínimas, acrescentando um novo significado ao local, ao mesmo tempo em que preserva a memória de uma atividade que teve presença marcante na vida dessa região. Na avaliação de Eduardo Subirats, esse projeto - expressão de uma visão de cultura enquanto convívio e não como espetáculo midiático - manifesta uma vontade poética de transformar a realidade local à medida que busca criar um espaço aberto às mais diversas formas de manifestação artística e cultural da comunidade (24).
Num outro bairro industrial vizinho à Pompéia, a Barra Funda, localiza-se o monumental conjunto arquitetônico do Memorial da América Latina, projetado por Niemeyer em 1989, a partir de uma concepção arquitetônica e urbanística marcadamente abstrata. Como aponta Subirats, o Memorial da América Latina, embora se apresente na perspectiva de criação de um espaço simbólico da resistência dos povos latino-americanos, não procura estabelecer nexos com o entorno existente, comportando-se “como um corpo estranho que, em duelo desigual, se confronta energicamente com a paisagem urbana” (25).
O caráter excludente e estetizante das intervenções urbanísticas contemporâneas
A partir dos anos 80, diversos locais com significados simbólicos e determinados atributos de urbanidade, tornam-se objeto de intervenções urbanísticas, passando a ser ocupados, quase que com exclusividade, pelas classes médias e altas. Esse processo, denominado gentrification pelos sociólogos norte-americanos, é provocado pela elevação do valor dos imóveis e aluguéis que, expulsando os antigos moradores dessas áreas, elimina a diversidade social e cultural e leva à formação de guetos de elites. Paradoxalmente, a política de preservação dos centros históricos, bairros e vizinhanças, como forma de resistência às intervenções modernizantes acaba resultando, na maior parte dos casos, no crescimento de mecanismos elitistas de apropriação do espaço.
Tomando Los Angeles como paradigma, Mike Davis, numa alusão às reformas haussmanianas em Paris, assinala o caráter “contra-revolucionário” dos projetos de revitalização dos centros das cidades norte-americanas. Referindo-se à reurbanização do centro de Los Angeles, o autor demonstra que “várias grandes empresas foram convencidas a construir novas sedes na área do centro da cidade na década de 1960”, após uma “desapropriação generalizada dos bairros da classe trabalhadora pobre”, configurando um espaço completamente elitizado e desertificado (26). Na visão de Davis, a maior parte das intervenções contemporâneas nas áreas centrais das grandes cidades reflete, cada vez mais, a escalada da especulação financeira internacional, produzindo apenas enclaves de arranha-céus/fortalezas ou megaestruturas que incorporam espaços pseudopúblicos e pseudonaturais. São complexos com pretensões de auto-suficiência, totalmente isolados por vias expressas e protegidos por fossos e muros de concreto, com o objetivo de impedir o acesso de indesejáveis populações oriundas dos bairros de baixa renda, com é o caso do Hotel Bonaventure, de Portman, construído com o objetivo de alojar minorias abastadas de trabalhadores assalariados e executivos que optam em morar no centro da cidade (27).
Outra tendência urbanística que vem se disseminando nessas últimas três décadas, são as edges cities - cidades criadas à margem das principais cidades norte-americanas. As edges cities concentram edifícios de escritórios erguidos em centros empresariais, áreas de moradia, shoppings e áreas de lazer, de forma que seus moradores não precisem se deslocar para os centros das cidades. Não se trata, no entanto, de um fenômeno apenas norte-americano. Também nas metrópoles brasileiras, como São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, vêm proliferando desde os anos 70, ao lado dos shopping-centers, os “condomínios fechados” como opção de moradia para as classes mais abastadas. No Rio de Janeiro, por exemplo, a Barra da Tijuca, com seus inúmeros condomínios fechados, shoppings e edifícios altíssimos, de padrão arquitetônico americanizado, é o paraíso dos novos ricos da cidade.
Tanto as edges cities, como os shoppings, os hipermercados, os condomínios fechados, os centros empresariais e as megaestruturas de múltiplas funções refletem a tendência atual de fragmentação urbana, resultante da tentativa de negação da cidade existente e da substituição dos centros tradicionais, através da configuração de espaços regidos sob a lógica da especulação imobiliária e da segregação. A visão de uma cidade sem centro, dividida por muralhas invisíveis, mas claramente definidas pelas crescentes desigualdades sócio-econômicas, culturais, étnicas e raciais, é cada vez mais concreta. Em muitas cidades já não se pode sequer identificar umcentro, entendido como “um lugar geográfico preciso, marcado por monumentos, cruzamentos de certas ruas e avenidas, teatros, cinemas, restaurantes, confeitarias, ruas de pedestres, anúncios luminosos cintilando no líquido também luminoso e metálico que banha os edifícios”, como assinala Beatriz Sarlo. A própria idéia de centro é cada vez mais vaga: “Los Angeles (essa imensa cidade sem centro) não é tão incompreensível, como foi nos anos sessenta”. Tomando como referência o caso de Buenos Aires, Sarlo chama atenção para o fato de que o “processo deangelização” está se tornando um fenômeno cada vez mais comum nas cidades latino-americanas: “as distâncias se encurtaram, não só porque a cidade deixou de crescer, mas porque as pessoas já não se deslocam por ela de ponta a ponta. Os bairros ricos configuraram seus próprios centros, mais limpos, mais ordenados, mais bem vigiados, mais iluminados e com ofertas materiais e simbólicas mais variadas”. O protótipo desse mundo asséptico e seguro é o shopping center: “simulacro de cidade de serviços em miniatura, onde todos os extremos do urbano foram liquidados” (28).
Neste sentido, o shopping talvez seja um modelo miniaturizado da realização mais plena do capitalismo ou, na acepção de Walter Benjamin, uma mônada da pós-modernidade. Semelhante, como diz Sarlo, a uma “cápsula espacial acondicionada pela estética do mercado”, que mantém “uma relaçãoindiferente com a cidade à sua volta: essa cidade é sempre o espaço externo, sob a forma de autopista ladeada por favelas, avenida principal, bairro suburbano ou rua de pedestres. (...) No shopping, não só se anula o sentido de orientação interna, como desaparece por completo a própria geografia urbana”, assim como a noção do tempo, a distinção entre o dia e a noite, e as variações climáticas. A concepção arquitetônica dos shoppings vem, aliás, adquirindo o status de referencial paradigmático para as diversas megaestruturas urbanas que proliferam na paisagem de nossas cidades. Assim como as passagens e galerias comerciais da Paris do século XIX eram, para Benjamin, o embrião da cidade moderna do século XX, nosshoppings pode-se antever “um ‘protótipo premonitório do futuro’: shoppings cada vez mais extensos, dos quais nunca se precise sair, como se fossem uma fábrica flutuante. Já são assim alguns hotéis-shoppings-spas-centros culturais de Los Angeles e, é claro, Las Vegas. São aldeias shoppings, museus-shoppings,bibliotecas e escolas-shoppings, hospitais-shoppings” (29).
Esse mesmo paradigma, elevado a uma dimensão exponencial, está presente noMaharish São Paulo Tower - uma versão pós-moderna do urbanismo “arrasa-quarteirão” que um grupo de empresários do setor imobiliário pretendia erigir no centro de São Paulo. O polêmico caso desse megaedifício de múltiplas funções - uma gigantesca torre piramidal com 510 metros de altura e 108 andares, que iria aterrissar em pleno Parque D. Pedro II -, é uma das expressões máximas da tentativa de criação de uma cidadela intramuros (30). A estimativa era de que em torno de 100 mil pessoas iriam circular por essa versão indiana da “Torre de Babel” diariamente. Nele previa-se a instalação de um mix de funções que ia desde uma área residencial, hotéis, escritórios, comércio, uma faculdade védica, serviços diversificados, atividades culturais e de lazer, um grande centro de convenções e exposições, estações de trem, metrô e ônibus. Seria possível nascer, crescer, estudar, praticar esportes, trabalhar, adoecer, fazer compras, namorar, casar, procriar e morrer, sem que precisassem por os pés para fora da “pirâmide”. Felizmente para os paulistanos, com o término da gestão Pitta, este assustador casulo futurista foi abortado.
A guisa de conclusão podemos afirmar que, se por um lado, as críticas do pensamento pós-moderno no que se refere às questões da memória e da identidade na arquitetura e urbanismo modernistas são bastante legítimas, por outro, suas soluções de projeto ainda estão muito distantes de atingir o ambicioso programa emancipatório a que se propôs. A ênfase nas intervenções pontuais, em muitos casos de caráter meramente cenográfico, e a supervalorização da fachada dos edifícios, evidencia que tais soluções ainda são de ordem essencialmente estética e mercadológica, integradas aos códigos culturais e exigências da sociedade capitalista de consumo. O que parece ser inegável, portanto, é que a necessidade de se refundir o funcional e o simbólico nas ambiências urbanas, de forma a repor as significações que o progresso unidimensional da modernidade erradicou, continua sendo um dos maiores desafios no campo do urbanismo.