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O Problema Ético na Filosofia de Kant

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34 MIGUEL REALE 
Ética 
9. Qual o outro problema da Filosofia que a ciência positiva não 
resolve, nem está em condições de resolver? É o problema da conduta 
ou do valor da ação humana. 
Por mais que o homem descubra e certifique verdades e seja capaz 
de atingir leis ou princípios, seus conhecimentos da realidade, sic et 
simpliciter, não envolvem a obrigatoriedade da ação. Que devemos fazer? 
Como devemos nos conduzir? Que vale o homem no plano da conduta? 
O fato de sermos hoje mais ricos de conhecimentos do que o homem 
selvagem terá, porventura, influído na bondade do próprio homem? O 
fato de ser portador de maior soma de conhecimentos leva o homem a 
reconhecer o caminho de seu dever? 
Parece-nos que destas perguntas surgem logo outras; Qual a obri-
gação do homem diante daquilo que representam as conquistas da ciên-
cia? Que dever se põe para o homem em razão do patrimônio da técnica 
e da cultura que a humanidade conseguiu acumular através dos tempos? 
A ciência pode tomar mais gritante o problema do dever, mas não o 
resolve. Os conhecimentos científicos tomam, às vezes, mais urgentes 
a necessidade de uma solução sobre o problema da obrigação moral, mas 
não implicam qualquer solução, positiva ou negativa. O problema do 
valor do homem como ser que age, ou melhor, como o único ser que se 
conduz, põe-se de maneira tal que a ciência se mostra incapaz de resol-
vê-lo. Este problema que a ciência exige, mas não resolve, chama-se 
problema ético, e marca momento culminante em toda verdadeira Filo-
sofia, que não pode deixar de exercer uma função teleológica, no senti-
do do aperfeiçoamento moral da humanidade e na determinação essen-
cial do valor do bem, quer para o indivíduo, quer para a sociedade. 
As ciências positivas, com suas leis e teorias, não deixam, é claro, 
de exercer influência sobre nosso comportamento, assim como sugerem 
caminhos a serem seguidos ou evitados, tanto como fornecem meios 
adequados à consecução de fins. Estes resultam, porém, do reconheci-
mento de valores objetivos que são a razão de ser da conduta. A atitude 
do homem perante o homem e o mundo, e a projeção dessa atitude como 
atividade social e histórica, eis o tema nuclear e até mesmo dominante 
da Filosofia. 
FILOSOFIA DO DIREITO 35 
Kant já havia formulado as perguntas acima, de maneira bem cla-
ra, destinando a cada série delas uma de suas obras clássicas. 
A primeira indagação que o grande filósofo fez foi esta: - Que é 
que posso conhecer? Como é dado ao homem certificar-se da verdade 
das ciências e dos poderes e limites do entendimento e da razão? Para 
responder a tais perguntas Immanuel Kant escreveu uma obra fundamen-
tal no pensamento moderno, a Crítica da Razão Pura (1781, 2a ed. com 
modificações em 1787). 
Depois de ter escrito esse livro, que revolucionou o pensamento 
filosófico e ainda atua poderosamente no bojo da Filosofia de nossos 
dias, Kant redigiu um segundo livro, a que chamou Crítica da Razão 
Prática (1788), destinado a responder a esta outra perquirição: - Que 
devo eu fazer? Como devo comportar-me como homem? 
Uma terceira obra fundamental foi escrita por Kant, formando uma 
trilogia, a Crítica do Juízo (1791), a qual corresponde às perguntas:-
Qual a finalidade da natureza? Qual o destino das coisas e qual o desti-
no do homem? Ou, em outras palavras: - Qual o sentido último do 
universo e da existência humana?? 
É por ter escrito essas três obras, buscando os pressupostos da 
"razão", da "vontade" e do "sentimento", que a Filosofia de Kant se 
chama criticismo transcendental, e o filósofo é geralmente apontado 
como sendo o "filósofo das três críticas". 
Veremos, no § 20, o significado da palavra transcendental. Por ora, 
desejamos que se atente ao especial significado da palavra criticismo, que 
será depois sujeita a desenvolvimentos. Aplica-se a todo e qualquer sis-
tema que busque preliminarmente discriminar, com todo rigor, os pres-
supostos ou condições em geral do conhecer e do agir. Criticar significa 
indagar das raízes de um problema, daquilo que condiciona, lógica, axio-
lógica ou historicamente, esse mesmo problema. Toda vez que indagamos 
dos pressupostos ou das razões de legitimidade ou da validez de algo, 
estamos fazendo sua "crítica". Isto no sentido bastante largo, que será, 
aos poucos, esclarecido, e não no sentido estrito e próprio do "criticismo" 
de Kant, que é de natureza puramente lógico-transcendental. 
7. Nilo é demais lembrar que K ANT, lançando as bases da moderna Antropologia filo-
\o ll t'a . rcsulIli a aquclas três perguntas numa só: "Que é o homem?" 
36 MIGUEL REALE 
Como estávamos dizendo, há o problema do valor da conduta ou 
do valor da ação, do bem a ser realizado, que constitui capítulo do estu-
do denominado Ética. Põe-se aqui, de maneira principal, o problema da 
experiência jurídica. Não concordamos com aqueles autores que, como 
Del Vecchio, bifurcam a Ética em dois ramos - a Moral e o Direito -, 
mas não discordamos deles quanto à visão da experiência jurídica como 
um momento da vida ética. O Direito, como experiência humana, situa-
se no plano da Ética, referindo-se a toda a problemática da conduta 
humana subordinada a normas de caráter obrigatório. 
Axiologia 
10. Analisando o problema da Ética, entendida como doutrina do 
valor do bem e da conduta humana que o visa realizar, é preciso saber 
que ela não é senão uma das formas de "atualização ou de experiência 
de valores", ou, por outras palavras, um dos aspectos da Axiologia ou 
Teoria dos Valores, que constitui uma das esferas autônomas de proble-
mas postos pela pesquisa ontognoseológica, pois o ato de conhecer já 
implica o problema do valor daquilo que se conhece. 
Cada homem é guiado em sua existência pelo primado de determi-
nado valor, pela supremacia de um foco de estimativa que dá sentido à 
sua concepção da vida. Para uns, o belo confere significado a tudo quan-
to existe, de maneira que um poeta ou um escultor, por exemplo, possui 
uma concepção estética da existência, enquanto que um outro se subor-
dina a uma concepção ética, e outros ainda são levados a viver segundo 
uma concepção utilitária e econômica à qual rigidamente se subordinam. 
Segundo o prisma dos valores dominantes, a Axiologia se manifesta, 
pois, como Ética, Estética, Filosofia da Religião etc. 
Se lembrarmos que toda especulação filosófica é necessariamente 
crítica, e que criticar implica valorar, apreciar algo sob prisma de valor, 
chegaremos à conclusão de que, nesse sentido especial ou a essa luz, a 
Filosofia é Axiologia. 
A Axiologia pressupõe, porém, problemas concernentes à essência 
de "algo" que se valora e às condiçoes do conhecimento válido, assim 
como põe problemas relativos à projeção histórica do que é valorado. 
FILOSOFIA DO DIREITO 37 
Daí dizermos que a Filosofia não se reduz à teoria dos valores, 
embora o problema do valor esteja no centro da Filosofia. 
No que se refere, por exemplo, à Filosofia do Direito, veremos que 
o seu problema nuclear é o do valor do justo, de que cuida a Deontolo-
gia jurídica; mas o estudo desta matéria envolve também a prévia deter-
minação da consistência da realidade jurídica, suscitando questões rela-
tivas às estruturas dos juízos jurídico-normativos, assim como ao 
processo histórico de objetivação das exigências axiológicas no plano 
da experiência humana. 
Metafísica e Concepção do Mundo 
11. Alguns autores pensam que a Filosofia se esgota nas duas 
questões fundamentais de ordem lógica e axiológica acima examinadas, 
sendo apenas uma teoria do conhecer e uma teoria do agir; porém, o 
homem não é um ser que tão-somente conhece e age, mas é também, e 
antes de mais nada, um ser, uma "existência", um ente que sabe que 
existe entre outros entes, de igualou de diversa categoria: - donde os 
problemas radicais do ser e da existência, em uma palavra, da Metafísica, 
postostambém, de forma autônoma, pela pesquisa ontognoseológica. 
Como logo mais se demonstrará, conhecer é conhecer algo donde 
a necessidade de determinar-se a natureza daquilo que é conhecido, o 
que nos leva a formular perguntas sobre a "coisa em si" ou o absoluto, 
mesmo que depois se chegue à conclusão de ser impossível alcançar 
respostas dotadas de certeza. 
Depois de estabelecermos as condições do conhecimento, assim 
como as da vida prática, surge em nosso espírito o desejo ou a tendência 
irretorquível de atingir uma compreensão universal da realidade. Não se 
trata de perguntar apenas sobre o que vale o pensamento ou o que vale 
a conduta, mas sim de considerar o valor de nós mesmos e de tudo aqui-
lo que nos cerca. Que vale a existência? Que vale ou representa o uni-
verso? Que vale o homem inserido no universo? Que ser é o homem? 
Que é ser Existe algo como suporte do "objeto" do conhecimento? 
A tais indagações sobre a estrutura e o significado do ser em si e 
da vida, ou sobre o valor essencial do homem e do cosmos, têm sido 
38 MIGUEL REALE 
dadas várias denominações. Muitos conservam a denominação tradicio-
nal, a nosso ver insubstituível, de Metafísica, para indicar o perene es-
forço do homem no sentido de atingir umafundação racional válida para 
a totalidade de seu existir histórico. Consoante expomos em Verdade e 
Conjetura, a fundação metafísica transcende o âmbito ontognoseológico, 
não podendo deixar de valer-se de todos os elementos que compõem o 
que denominamos "razão conjetural". 
Outros autores limitam, porém, a tarefa ou a missão final da Filo-
sofia a apresentar as bases de uma "concepção do universo e da vida", 
sem cuidar dos problemas do ser, que seriam incognoscíveis ou inveri-
ficáveis. Sustentam que o homem não pode resolver os problemas do ser 
em si ou do absoluto, por ser este insuscetível de compreensão racional, 
mas que podemos alcançar uma concepção total dos problemas, passan-
do, assim, a Metafísica a ser vista apenas como "fato histórico" inevitá-
vel, como uma das "experiências" indeclináveis do homem, não obstan-
te o seu repetido insucesso. Apresentam, pois, o terceiro problema 
fundamental da Filosofia como uma cosmovisão ou Weltanschauung, 
palavra que se emprega usualmente em Filosofia, para definir exatamen-
te a tendência ou inclinação no sentido de uma concepção geral do 
universo e da vida, que situa o homem perante si mesmo, os demais 
homens e o cosmos, segundo diversos tipos, historicamente identificáveis. 
A Filosofia, que culmina em uma concepção do universo e da vida, 
é contestada por aqueles que dizem que toda cosmovisão pressupõe 
sempre a pesquisa sobre a realidade em si mesma, constituindo o estudo 
específico da Metafísica. Se logramos formar uma teoria geral do cosmos 
e da existência, é porque temos, efetivamente, a respeito dos problemas 
últimos do ser determinada compreensão que a condiciona. Não raro os 
que mais deblateram contra a Metafísica são metafísicos que se ignoram ... 
12. AMPLITUDE DA EsPECULAÇÃO FILOSÓFICA - As considerações 
ora desenvolvidas estão a demonstrar quão variadas são as questões de 
que cuida a Filosofia. 
Reconhecida a impossibilidade de discriminações rígidas, que o 
trato da matéria revelaria artificiais, poderíamos concluir resumindo as 
tarefas da Filosofia nestas três ordens de pesquisas, desdobradas em 
campos especiais de indagação: 
FILOSOFIA DO DIREITO 39 
a) Teoria do Conhecimento, ou da validade do pensamento em 
sua es~utura e com relação aos objetos (Lógica e Ontogno-
seologIa); 
b) Teo:i~_ dos .Valores ou Axiologia (Ética, Estética, Filosofia da 
RelIgiao, Filosofia Política, Filosofia Econômica etc.); 
c) Me~afísic~, como teoria primordial do ser ou, numa com pre-
e~sao maIS atual, como fundação originária do universo e da 
vida. 
~ara os objetivos de nosso Curso, dada a exigüidade de tempo e 
atendidas as perspectivas dominantes da realidade jurídica, destacaremos 
do grande todo apen~s alguns problemas de Ontognoseologia e de Ética, 
p:e~supondo conheCidas as noções fundamentais de Lógica, pedindo 
v.ema par~ r~meter ~ leitor, interessado no estudo de problemas metafí-
SICOS, ao, ~l:imo capitulo de nossa obra Introdução à Filosofia (Saraiva, 
1988) e aja lembrada Verdade e Conjetura. 
~omeçaremos o estudo pela Gnoseologia, ou seja, pela Ontogno-
seologia <ta parte, s~bjecti", não deixando de esclarecer este ou aquele 
oU,t~o pont?, de Logica, em que pese o justificado desejo de rigor siste-
matlco. A!Ias, .os problemas da Filosofia são de tal ordem que tratar de 
um deles ImplIca, no fundo, a consideração dos demais.

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