Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
1 PORTABILIDADE NA PREVIDÊNCIA COMPLEMENTAR Introdução ........................................................................................................................................3 1 O REGIME JURÍDICO DA RELACÃO DE PREVIDÊNCIA COMPLEMENTAR.................6 1.1 Importância do Tema à Compreensão do Instituto da Portabilidade ........................................6 1.2 A Relação de Previdência Social e a Relação de Previdência Privada em Comparação à Relação Nascida do Contrato de Seguro: Similaridades e Diferenças.............................................7 1.3 A Relação de Previdência Social e a Relação de Previdência Complementar ........................12 2 O CONTRATO DE PREVIDÊNCIA PRIVADA......................................................................17 2.1 A Função Social do Contrato Previdenciário ..........................................................................22 2.1.1 A função social como essência do contrato ..........................................................................22 2.1.2 Os valores informativos à seguridade social ........................................................................25 2.1.3 Os princípios constitucionais endereçados ao legislador ordinário em matéria de previdência complementar ................................................................................................................................28 2.1.4 A interpretação do contrato previdenciário segundo sua função social e sua conseqüência lógica ao advento do instituto da portabilidade .............................................................................31 3 AS BASES TÉCNICAS DOS PLANOS PREVIDENCIÁRIOS ..............................................35 3.1 A Influência da Cobertura do Risco Social no Dimensionamento das Contribuições ............35 3.2 A Composição das Contribuições ...........................................................................................38 3.2.1 Breve histórico ......................................................................................................................38 3.2.2 A contribuição pura e a taxa de carregamento ......................................................................39 3.3 O Custeio dos Planos de Previdência Privada e suas Implicações à Discussão sobre os Valores Portados ............................................................................................................................43 3.3.1 O custeio do plano pelo patrocinador e sua reversão à esfera de interesses do participante.....................................................................................................................................45 4 A PORTABILIDADE ................................................................................................................51 4.1 Conceito e Distinções ..............................................................................................................53 4.2 A Natureza Jurídica da Portabilidade ......................................................................................59 4.2.1 A portabilidade como instituto próprio do regime complementar .......................................60 4.2.2 A portabilidade como direito do participante .......................................................................64 4.2.3 A portabilidade como garantia do regime complementar .....................................................66 2 5 ELEMENTOS DA PORTABILIDADE....................................................................................70 5.1 Os Sujeitos Envolvidos na Portabilidade .................................................................................70 5.1.1 O participante .......................................................................................................................71 5.1.2 As Entidades Cedente e Cessionária ....................................................................................75 5.2 O Objeto ..................................................................................................................................75 6 O NORTE TRAÇADO À REGULAMENTAÇÃO LEGAL E INFRALEGAL NO TEMA PORTABILIDADE........................................................................................................................78 6.1 A Regulamentação Legal à Fixação dos Valores Portáveis....................................................80 6.1.1 Reserva constituída ...............................................................................................................82 6.1.2 Reserva matemática .............................................................................................................82 6.1.3 Reserva matemática e reserva constituída para fins de portabilidade ..................................84 6.2 A Regulamentação Infralegal à Fixação dos Valores Portáveis..............................................86 6.2.1 Planos instituídos antes da Lei Complementar n. 109/01 .....................................................88 6.2.2 Planos instituídos a partir da Lei Complementar n. 109/01 .................................................91 7 A PORTABILIDADE NAS DIVERSAS MODALIDADES DE PLANOS E SITUAÇÕES....93 7.1 Questões Relativas ao Tipo do Plano ......................................................................................93 7.2 Questões Relativas à Situação Financeira do Plano Cedente e seu Custeio ............................95 7.3 Questões Relativas ao Ingresso de Contribuições ...................................................................96 7.4 Questões Relativas à Situação Financeira do Plano Cessionário ............................................98 8 CONDIÇÕES LEGAIS AO EXERCÍCIO DO DIREITO À PORTABILIDADE...................100 8.1 Carência .................................................................................................................................101 8.2 Rompimento do Vínculo .......................................................................................................104 8.3 A Contratação de Plano de Renda Mensal Vitalícia ou por Prazo Determinado ..................107 9 REVOGABILIDADE, RETRATABILIDADE E NEGOCIABILIDADE NA PORTABILIDADE .....................................................................................................................113 10 PROCEDIMENTO OPERACIONAL DA PORTABILIDADE ............................................116 11 CONCLUSÕES ......................................................................................................................118 3 Introdução A aquisição de direito e gozo de benefício previdenciário, quanto à maioria dos riscos, notadamente o de pensão à velhice e aposentadoria, impõe como elemento essencial à formação do direito subjetivo do segurado sua filiação ao sistema de proteção durante determinado período em que, se atendidas certas condições (como o recolhimento de contribuições, a mantença do vínculo empregatício, a permanência de engajamento ao sistema, entre outros, a depender do ordenamento jurídico em questão), haverá amparo previdenciário se e quando ocorrer o evento temido. O traço característico do seguro previdenciário é a formação de uma reserva para custeio de um benefício futuro, cuja razão de ser adota como premissa a de que o passar do tempo, segundo a natureza das coisas, acarreta ao homem diminuição de sua força laboral, colocando-o, assim como à sua família, se não em situação de risco de necessidade, no mínimo em condições menos favoráveis que aquelas quando vivia o viço de suas forças. Desse modo, o direito à prestação decorrente do seguro social, quer público, quer privado, na generalidade dos benefícios, é um direitoconstruído ao longo do tempo, apesar de o direito à cobertura do risco verificar-se tão-só com o engajamento ao sistema protetivo. O transcurso do tempo, como uma constante da relação jurídica em matéria de seguridade, inclusive de seguridade social, é característica que foi observada e constatada pela Doutrina.1 No âmbito da previdência complementar, por igual, o fator tempo tem importância a determinar, por vezes, a existência ou não do direito ao benefício, tal qual ocorre no regime geral, considerando que ambos os regime protetivos inserem-se no sistema maior da seguridade social e, por isso, sujeitam-se aos princípios que regem essa matéria, guardadas as particularidades próprias do regime complementar, atinentes à sua natureza de seguro social voluntário e complementar ao seguro social público. No campo da previdência privada, fica em relevo que esse planejamento para o futuro, de forma calculada e previdente, é fomentado pelo Estado no indivíduo e que quanto 1 FERREIRA, Sérgio de Andréa. Aspectos básicos do moderno direito das fundações de previdência suplementar. Revista de Direito Administrativo, Rio de janeiro, n.172, p. 20-36, abr./jun. 1988. 4 maior o sacrifício, melhores serão as condições de vida do participante-segurado quando ele deixar a atividade, ou mais eficaz será o amparo a seus dependentes no caso de sua morte. A facultatividade de adesão à previdência complementar põe em evidência não só a vontade como elemento primeiro à participação no sistema de proteção, mas também a vontade de suportar certo sacrifício pessoal, consubstanciado na quantidade e no montante das contribuições que alimentarão o plano durante o tempo estipulado. Contudo, o que dizer do abandono dessa segurança caso o participante deixe o plano antes de verificado o evento que lhe asseguraria o direito à prestação previdenciária? Existiria resposta, no ordenamento jurídico, à diminuição patrimonial do participante e ao acréscimo que restaria acumulado no fundo formado pelo grupo de seguro do qual participava ? Como incentivar o indivíduo a manter-se filiado a um plano de previdência complementar, com vistas a promover seguridade social e, como resultado, bem-estar social? É nessa ordem de idéias que se insere o tema deste estudo, atinente ao instituto da portabilidade, o qual responde ou tenta responder às situações em que o curso de formação do direito à fruição do benefício pleno encontra-se em risco de ser interrompido. Adianta-se que na iminência da interrupção do vínculo jurídico estabelecido entre o participante e a entidade de previdência privada, a opção pelo exercício da portabilidade opera um traslado dos valores vertidos ao plano previdenciário para outro plano, administrado por distinta entidade previdenciária, perante a qual o participante seguirá contribuindo até que reúna os requisitos necessários à obtenção do direito ao benefício contratado, de modo que ainda que desfeito o vínculo jurídico do participante com a entidade originária, mantém-se o engajamento ao regime complementar. Por meio da análise das proposições legais implementadas pelo Estado como política de seguro social privado, serão examinados os mais freqüentes questionamentos à prática do instituto da portabilidade, objetivando-se a apreensão de sua natureza jurídica e a forma como se encontra disciplinado no ordenamento jurídico. Desse modo, o principal conjunto normativo a ser analisado consiste nas disposições constitucionais contidas no título que trata da Ordem Social, centrando-se o exame, então, no art. 202 da Constituição Federal; em nível infraconstitucional, a investigação foca-se nos comandos da Lei Complementar n. 109/01, bem como nos atos normativos infralegais que a 5 regulamentam, especialmente na resolução do Conselho Gestor da Previdência Complementar (resolução CGPC n. 6/03). Em se tratando a portabilidade de instituto próprio da relação de previdência privada, como se verá, urge o estudo dessa relação jurídica, assim como do regime jurídico que a regulamenta, o que pode fornecer subsídios para, com maior segurança, desvendar a natureza do instituto em exame. Sob outro giro, sendo inerente ao plano previdenciário sua natureza de seguro lastreado pelas contribuições do grupo segurado, é necessário o estudo das bases técnicas indicativas do limite em que, feita a retirada por meio da portabilidade, tal não reflita em desequilíbrio financeiro do plano originário e, conseqüentemente, em prejuízo dos demais participantes. Sendo assim, empreendemos a seguir investigação nesses dois aspectos, como pressupostos lógicos à aferição da natureza jurídica da portabilidade, iniciando o estudo sob o aspecto jurídico da relação de previdência privada, passando a seguir à análise das bases técnicas dos planos, para então firmar conclusão sobre o instituto em exame. 6 1 O REGIME JURÍDICO DA RELAÇÃO DE PREVIDÊNCIA COMPLEMENTAR 1.1 Importância do Tema à Compreensão do Instituto da Portabilidade O regime de previdência complementar brasileiro caracteriza-se como um regime privado, dependente da vontade do indivíduo quanto à adesão, assinalando-se que em decorrência dessa característica, em contraposição ao regime público de previdência social, os termos previdência privada e previdência complementar serão indistintamente utilizados, não obstante ter sido adotado este último pela Constituição Federal. No regime de previdência complementar a principal secção corresponde ao segmento das entidades abertas de previdência complementar e ao segmento das entidades fechadas de previdência complementar. No segmento das entidades fechadas, a adesão ao plano depende da existência dos vínculos de emprego e associativo. No segmento das entidades abertas, essa adesão independe da existência de vínculo empregatício ou associativo. Distinguindo um e outro desses segmentos, Jerônimo Jesus dos Santos observa: “São entidades constituídas unicamente sob a forma de sociedade anônima, ou ainda sociedade civil sem fins lucrativos (SFL) com o objetivo de instituir planos de pecúlio ou de renda, sendo, respectivamente, com ou sem fins lucrativos; exceção está lançada nesta LC 109, em seu art. 77. A chamada EAPC é a Entidade Aberta de Previdência complementar ou Sociedade Seguradora autorizada a instituir planos de previdência aberta complementar. As EAPC’s estão enquadradas na área de competência do Ministério da Fazenda (MF) e do CNSP, sendo fiscalizadas pela SUSEP. Frise-se, são consideradas abertas principalmente por serem acessíveis a toda e qualquer pessoa física que subscreve (contrate) um ou mais benefícios constantes de seus planos. [...] São entidades fechadas aquelas cujos planos são endereçados a um público específico, ou seja, aos empregados de uma empresa (caso a entidade tenha patrocinador), grupo de empresas ou aos associados de entidade de classe ou de representação (caso a entidade tenha “instituidor”). Tais entidades não possuem fins lucrativos, e organizam-se sob a forma de fundação ou de sociedade civil, sem fins lucrativos (SFL) 7 As EFPC’s, também conhecidas como Fundos de Pensão, objetivam a concessão de benefício previdenciário, de natureza suplementar ou complementar aos benefícios concedidos pela previdência social. Não custa repetir, as EFPC’s estão enquadradas na área de competência do Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS) e do CGPC, sendo fiscalizadas pela SPC).”2 No direito pátrio, o seguro de previdência social do regimegeral, aliado à assistência social e à saúde, compõe o conjunto maior da seguridade social, no qual também se insere o regime privado de previdência complementar. Estas duas vertentes de proteção previdenciária – a previdência pública do regime geral e a previdência complementar do regime privado - coexistem em integração que visa proporcionar proteção adicional àquela conferida pelo regime previdenciário público. Discorre sobre o tema Eliane Romeiro Costa: “A seguridade social complementar refere-se ao conjunto de medidas protetivas inseridas no sistema de seguridade social, alcançando uma integração de benefícios adicionais à renda concedida pelo regime geral de seguridade social. Enquanto técnica de provisão, os planos dos fundos de pensão privados e da seguridade social pública utilizam-se de elementos atuariais, dos fatores e de variáveis de risco, antecipando o futuro e garantindo a segurança.”3 Na investigação acerca da natureza jurídica da portabilidade, instituto presente na relação de previdência complementar, faz-se a seguir uma análise comparativa entre esta e duas outras relações jurídicas – a de previdência social e a do contrato de seguro - , revelando semelhanças e distinções as quais, ao final decantadas, servirão de instrumento para delinear os elementos da relação de previdência complementar. 1.2 A Relação de Previdência Social e a Relação de Previdência Privada em Comparação à Relação Nascida do Contrato de Seguro: Similaridades e Diferenças O seguro social, aqui tomado como relação jurídica cujo objeto é a cobertura de um risco social, não se distinguindo entre previdência pública e previdência privada para efeito 2 SANTOS, Jerônimo Jesus dos. Previdência privada. 2 ed. Rio de Janeiro : Editora e Livraria Jurídica do Rio de Janeiro, 2005, p. 133. 3 COSTA, Eliane Romeiro. Previdência complementar na seguridade social: o risco velhice e a idade para aposentadoria. São Paulo : LTr, 2003, p. 51. 8 de confronto com a relação jurídica securitária, guarda com esta similitudes quanto à estrutura básica do contrato de seguro privado. A previdência social e a previdência complementar, coesão que forma o conjunto da seguridade social na vertente previdenciária, têm pontos de contato com o instituto do seguro privado, na medida em que, de comum, servem à cobertura de um risco. A potencial situação de sujeitar-se a um evento causador de prejuízo e a vontade de forrar-se das conseqüências em caso da ocorrência do fato temido constituem a razão de ser do pacto de seguro, um negócio jurídico por meio do qual o segurador pactua com o segurado o pagamento de uma indenização, a depender da ocorrência de um acontecimento futuro e incerto, devidamente previsto no contrato. O pressuposto do contrato de seguro é, portanto, o risco a que se sujeita o segurado e do qual quer forrar-se. A possibilidade da ocorrência do risco e o temor de suas conseqüências imprimem ao pacto daí decorrente suas principais características, expressando-se em contrato bilateral, já que obrigações são assumidas tanto pelo segurado quanto pelo segurador; oneroso, considerando ser de sua essência a prestação e a contraprestação; aleatório, visto que não há equivalência exata entre a prestação e a contraprestação, além de ser incerta a ocorrência ou não do evento danoso, o que possibilita ganho ou perda para um dos contratantes; formal, tendo em vista que, necessariamente, o contrato de seguro deve revestir-se de forma escrita; de execução sucessiva ou continuada, uma vez que o contrato persiste durante um interregno de tempo determinado; adesivo, aperfeiçoando-se com a aceitação, pelo segurado, das cláusulas estabelecidas pelo segurador; de boa-fé, tendo em vista que as declarações do segurado devem ser sinceras quanto aos riscos. Veja a respeito os ensinamentos de Orlando Gomes: “Pelo contrato de seguro, uma empresa especializada obriga-se para com uma pessoa, mediante contribuição por esta prometida, a lhe pagar certa quantia, se ocorrer o risco previsto. As partes no contrato de seguro chamam-se segurador e segurado. Ao segurador compete pagar a quantia estipulada para a hipótese de ocorrer o risco previsto no contrato. Ao segurado assiste o direito de recebê-la, se cumprida a sua obrigação de pagar a contribuição prometida, que se denomina prêmio. A noção de seguro pressupõe a de risco, isto é, o fato de estar o indivíduo exposto à eventualidade de um dano à sua pessoa, ou ao seu patrimônio, motivado pelo acaso. Verifica-se quando o dano potencial se converte em dano efetivo. Quando o evento que produz o dano é infeliz, chama-se sinistro. Assim, o incêndio. Tal evento é aleatório, mas o perigo de que se verifique 9 sempre existe. Por isso se diz, com toda procedência, que o contrato de seguro implica transferência de risco, valendo, portanto, ainda que o sinistro não se verifique, como se dá, aliás, às mais das vezes. O instrumento do contrato de seguro chama-se apólice. Verificado o evento a que está condicionada a execução da obrigação do segurador, presta ele a indenização, se o dano atingir o patrimônio do segurado; isto é, se for de coisas o seguro. Ao segurado compete o pagamento do prêmio, consistente em quantia ordinariamente parcelada no tempo. O contrato de seguro é bilateral, simplesmente consensual, e de adesão.”4 (destaques do autor) Enquanto o risco, no seguro privado, é facilmente apreendido do contrato, sendo afeto, com exclusividade, ao acautelamento de um bem de interesse estritamente privado, o risco social que permeia o obrigatório engajamento ao sistema previdenciário público e o contrato de previdência privada não é de simples conceituação. Aliás, sua dificuldade conceitual é reflexo do traço igualmente complexo de aferição e especialmente distintivo entre o seguro de direito privado e o seguro social. Em razão da peculiaridade do risco coberto pelo seguro social, constata-se, pois, uma homogeneidade no âmbito do regime complementar e do regime geral de previdência social, a qual se contrapõe como traço eminentemente distintivo com relação ao contrato de seguro privado. Contudo, se feita a especificação entre a relação de previdência social e a relação de previdência privada, explorando suas distinções e então confrontando-as em estudo comparativo à relação de seguro privado, os pontos de contato entre a relação jurídica securitária e a relação jurídica de previdência complementar destacam-se, na medida em que de essencial apresentam-se como relações decorrentes de um contrato, ao passo que a relação de previdência social tem sua origem num mandamento legal. Dessa forma, a relação de seguro privado guarda notável particularidade com a relação previdenciária em sua vertente complementar, já que a característica atinente à contratualidade, ausente na relação de previdência social do regime geral, é encontrada tanto na relação nascida do contrato de seguro como na relação originada no contrato previdenciário. A inclusão do seguro social como uma classe integrante do gênero seguro, foi observada por Orlando Gomes: “No grupo das operações designadas como de ramos elementares, compreendem-se os seguros para a cobertura dos riscos de fogo, transportes, acidentes e outros acontecimentos danosos. 4 GOMES, Orlando. Contratos. Atualizado por Humberto Theodoro Jr. 24 ed.. Rio de Janeiro : Forense, 2001, p. 410-411. 10 Constituem operações dessa classe os seguros marítimos, terrestres e aeronáuticos. No grupo dos seguros de vida, incluem-se os que garantem a pessoa do segurado contra os riscos a que estãoexpostas sua existência, sua integridade física e saúde. Pertencem a esta categoria os seguros sociais, que hoje constituem objeto de previdência, organizada em instituições paraestatais. Não são, com efeito, seguros privados. Dentre estes, têm importância maior os seguros de vida ‘stricto sensu’ e os seguros contra acidentes, A principal diferença entre os dois grupos reside na índole do pagamento devido pela empresa seguradora. Nas operações de seguros dos ramos elementares, a obrigação do segurador consiste numa indenização, se o sinistro ocorrer. Nos seguros de vida, não há reparação de um dano, sendo impossível, em conseqüência, o superseguro. Ademais, os seguros das duas classes não recebem o mesmo tratamento legal. A distinção segundo a natureza do risco faz-se, em doutrina, de modo mais correto, classificando-se modalidades do contrato, em seguros de pessoas e seguros de coisas ou de danos. Têm objeto diverso e obedecem a diferentes regras.”5 (destaques do autor) De similar com a relação jurídica securitária, a relação jurídica de previdência privada, como dito, tem origem na consensualidade, expressando-se por meio de um negócio que é bilateral, oneroso e sinalagmático, em decorrência da existência de duas partes – a entidade e o participante -, as quais têm obrigações mútuas e equivalentes – o participante, a obrigação de custear o plano, e a entidade, a responsabilidade pelo pagamento do benefício, conforme valores estipulados em contrato, o que destaca o paralelismo com o contrato de seguro, seus sujeitos e obrigações: segurado e segurador, obrigando-se o primeiro ao pagamento do prêmio, e o segundo ao adimplemento da obrigação de indenizar, à vista da ocorrência do sinistro. A respeito da relação entre o seguro privado e o seguro social, os ensinamentos do mestre Pontes de Miranda: “Precisões – (a) Rege, no direito privado, o princípio do auto-regramento da vontade, segundo o qual, se não há regra jurídica especial em sentido contrário, se podem concluir contratos de qualquer conteúdo. Em todo o caso, limitam a liberdade de estruturação do conteúdo as medidas tarifárias, as Leis de inquilinato, as leis sobre empresas de seguros e outras, como as que se encontram na legislação do trabalho. O contrato de seguro é contrato de direito privado, salvo se, tendo-se publicizado a empresa de seguros, também se submete ao direito público o próprio seguro. De ordinário, a publicizaçao, mesmo se atenua ou retira o caráter contratual do seguro, não pré-exclui a supletividade das regras jurídicas de direito privado. (b) A relação jurídica de seguro resulta, na ordinariedade dos casos, de contrato. Não sempre. Quando a lei estabelece dever de segurar-se, pode haver dever de contratar, ou dever de respeitar as Leis que retiram parte do que recebem as pessoas a título de regresso, automaticamente. Ainda assim é raro ocorrer que a figura do contrato não se componha, embora embutida na dívida remuneratória. 5 GOMES, Orlando. Contratos. Atualização por Humberto Theodoro Jr. 24 ed. Rio de Janeiro : Forense, 2001, p. 412. 11 (c) O seguro privado, isto é, o seguro que não se pode classificar como seguro social, tanto pode ser feito por empresa de seguros regida pelo direito privado como pode ser por instituto de direito público. ”6 É da essência do contrato de seguro, assim como do contrato de previdência privada, a aleatoriedade, já que o objeto em comum é a proteção de um risco, ainda que mais previsível no caso da previdência privada, baseada que está a avença em estudos atuariais. Sérgio de Andréa Ferreira, com fundamento nos ensinamentos de Pontes de Miranda, repete o mestre, ao caracterizar o seguro como contrato cuja natureza “’é uma só para todas as espécies’, inclusive o social, sendo sempre a mesma sua finalidade: ‘dar a alguém a tutela contra o sinistro, acontecimento futuro e incerto, que, por vezes, só tem de incerto o momento’”.7 Contudo, assim como a comparação da relação de previdência social com a relação de previdência complementar acaba por revelar suas distinções, o confronto entre o contrato de seguro e o contrato de seguro de previdência privada, ao identificar suas coincidências, revela a parte em que desbordam seus contornos, de modo a indicar o quanto diferem as relações jurídicas dele advindas, descortinando o regime jurídico próprio a que se submete a relação jurídica de previdência privada. Em se tratando o receio da ocorrência do risco como o motivo que igualmente inspira a vontade de pactuar tanto o seguro privado quanto o seguro social, agora aqui tomado no âmbito da previdência privada, a diferença está que neste a cobertura que se faz é de um risco social. A propósito do tema, os ensinamentos de Armando de Oliveira Assis: “Os estudiosos da matéria, procurando dissipar os conflitos que a prática do seguro social tem engendrado com o seguro privado, em virtude de ser difícil o traçado preciso de uma linha divisória entre os dois, já tentaram, senão definir o seguro social, pelo menos isolar o seu objeto. [...] De qualquer maneira, a opinião que pareceu prevalecer foi aquela que dava como objeto do seguro social a incumbência de garantir uma substituição ao salário do trabalhador, quando determinados motivos o impedissem de o ganhar no exercício de uma atividade profissional. E essa parece ser a corrente mais geral, quase unânime, pois que as últimas conferências internacionais que versaram o assunto, embora tendendo dar-lhe feição nova, têm intitulado o seguro social como a ‘garantia dos meios de subsistência’, conforme o fez a Conferência Internacional do Trabalho, em sua 26a. Sessão, reunida em Filadélfia, em abril de 1944. Não há, portanto, uma 6 MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. 3. ed. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 1984, p. 271. 7 FERREIRA, Sérgio de Andréa. Aspectos básicos do moderno direito das fundações de previdência suplementar. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n.172, p. 20-36, abr./jun. 1988. 12 definição perfeita e acabada de seguro social, e muito menos uma de “risco social’. [...] E aqui queremos chamar a atenção para as características novas da acepção que perseguimos. Hoje em dia, como assinalamos linhas atrás, quando se se refere ao “risco social”, mesmo dentro das novas fórmulas de “seguridade social”, o que se faz é individualizar o risco, e sobretudo considerá-lo como típico, apenas do indivíduo que trabalha e que possui como únicos bens os proventos de sua atividade, isto é, encara-se tão somente o homem de escassos recursos; o risco é dado como um fenômeno intrínseco ao trabalho assalariado. Na concepção que defendemos, o risco se torna socializado, ameaça igualmente o indivíduo e a sociedade, ou quiçá, mais esta do que aquele. O homem deve ser protegido não porque seja um trabalhador, um produtor de riquezas: mas pelo simples fato de ser um cidadão, de conviver em sociedade.”8 Dessa forma, não obstante atraída pelo regime jurídico do seguro privado, considerando as coincidências entre o contrato de seguro privado e o contrato previdenciário, a relação jurídica de previdência privada mantém-se a gravitar em torno do núcleo da seguridade social, restabelecendo contato com o seguro social público na parte em que com ele se identifica quanto ao risco elementar da relação jurídica da qual decorre a proteção. Este o principal traço que distingue o contrato de seguro privado e o contrato de previdência privada: a cobertura de um risco social. Tendo em vista, assim, o traço caracterizador da relação de previdência privada e da relação de previdência social, consubstanciado na coberturade um risco social, sob essa perspectiva o regime complementar e o regime geral de previdência social formam um todo uniforme que se contrapõe ao negócio do seguro privado. 1.3 A Relação de Previdência Social e a Relação de Previdência Complementar Visto que a cobertura de um risco social é ponto harmonizante do conjunto formado pela previdência social e pela previdência complementar, integrativo à vertente previdenciária inserida no conjunto da seguridade social, passamos ao exame desse universo menor, com o objetivo de extrair as peculiaridades de uma e de outra dessas relações jurídicas. A primeira distinção que se faz entre a relação jurídica de previdência complementar e a relação jurídica de previdência social é a origem contratual da primeira e a decorrência de imposição legal da segunda. 8 ASSIS, Armando de Oliveira. Em busca de uma concepção moderna de “risco social”. Memória Histórica da Revista de Direito Social, n. 14, p. 149-173, 2004. 13 À parte a figura do segurado facultativo, que se engaja excepcionalmente de forma voluntária, na previdência social a regra é a da filiação compulsória, decorrente de uma situação laboral prevista em lei. Nos dizeres de Orlando Gomes, “o seguro social é, no entanto, um instituto de direito público, regulado imperativamente em todos os seus aspectos e vicissitudes; tem como fonte imediata a própria lei, que o impõe, tornando-o obrigatório; uma de suas partes é necessariamente um ente público; a relação constitui-se ope legis;[...]” 9 Já a relação jurídica de previdência privada exterioriza-se por meio de um contrato do tipo contrato de adesão, cuja característica a distinguí-lo dos demais contratos refere- se à prévia fixação de suas cláusulas por uma das partes, de modo que a vontade expressa por aquele que adere ao contrato, apesar de ser condição sem a qual, naturalmente, não se cogita da existência do negócio, não interfere na disposição quanto aos direitos e obrigações previamente estipulados. O contrato previdenciário, além de caracterizar-se como um contrato de adesão, é ainda disciplinado pelo ordenamento jurídico de modo que sua validade depende do atendimento a certas exigências legais, em decorrência do interesse público que permeia o negócio que versa sobre seguro social, como assinalado. Nesse tipo de contrato, a consensualidade, apesar de presente, apresenta-se mitigada, tanto pela prévia imposição das regras do negócio pela entidade de previdência complementar, quanto pela interferência do Poder Público que traça balizas a fim de disciplinar as relações nascidas do contrato previdenciário. A adesão a plano de previdência complementar, equivalente à filiação ao regime geral de previdência pública, se dá por intermédio da vontade do participante, expressa no mundo fenomênico pelo contrato. É a partir da manifestação de vontade do participante que há integração aos compromissos unilateralmente assumidos pela entidade de previdência complementar em seus estatutos, constatando-se então a característica da bipolaridade, presente nos contratos que versam obrigação sinalagmática, classificação em que se encaixa a obrigação derivada da relação jurídica de previdência complementar. 9 GOMES, Orlando. Escritos menores.São Paulo : Saraiva, 1981. p. 210. 14 Neste ponto, observa Sérgio de Andréa Ferreira, em comentários à revogada Lei n. 6.435/77, os quais se mantém, todavia, atuais, considerando a essência do contrato de seguro social privado: “Os atos de instituição, os estatutos e os respectivos atos complementares de regulamentação são autovinculativos para a entidade fundacional. Essa nota vinculativa se reforça, no tocante às fundações de seguridade, porque estamos no campo do direito das obrigações. Há oferta, proposta de contrato, nos termos do direito privado: o art. 42 da Lei n. 6435/77 fala de “propostas de inscrição”. É espécie do gênero oferta ao público, a um grupo social, ao conjunto, no caso fechado, de empregados de uma empresa ou grupo empresarial. O requerimento, do interessado, de admissão, de inscrição traduz a aceitação, selando o contrato, subjetivando a situação jurídica como participante. Há sucessividade nas duas expressões de vontade, como, aliás, é comum, e a segunda bilateraliza o que, até então, era unilateral. Está-se na área dos contratos de adesão, que supõem oferta a um conjunto de pessoas, cada uma delas aceitando, em cada caso, o que foi oferta a todos, ou, mais exatamente, a cada um.”10 Quanto ao custeio, na previdência social a obrigatoriedade de verter contribuições na parte relativa ao segurado é decorrência de uma relação tributária em que este figura como sujeito passivo, ou em que sua posição passiva é assumida pelo empregador como substituto tributário. Apesar da existência de custeio no regime geral, na previdência social pátria a relação jurídica entre o segurado ou seu dependente e o Instituto Nacional do Seguro Social, que presta o benefício, não pode ser identificada como uma relação sinalagmática, tendo em vista ser forte a característica mutualista, ao passo que na previdência privada há correspondência entre as contribuições e o futuro benefício, fixada no regulamento geral dos planos, ainda que em alguns deles se apresente certo mutualismo, o que, contudo, não retira a necessidade da prévia elaboração de um pormenorizado estudo atuarial, sendo vedado o aporte de recursos públicos para entidade de previdência privada, de modo que persiste a equivalência entre o custeio e o benefício contratado. O benefício previdenciário do regime geral é previsto em lei, servindo para proporcionar ao segurado que perde ou tem diminuída sua capacidade laborativa, ou a seus dependentes no caso de sua morte, um patamar mínimo de bem-estar, quase sempre não coincidente com aquele usufruído quando da atividade, sendo tal circunstância admitida pela lei, visto que há limite-teto para contribuição, a firmar, assim, uma prestação máxima. 10 FERREIRA, Sérgio de Andréa. Aspectos básicos do moderno direito das fundações de previdência suplementar. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n.172, p. 20-36, abr./jun. 1988. 15 Na previdência privada, o limite do benefício é aquele convencionado no regulamento geral do plano, e é permitida a adesão a mais de um plano de benefício, de modo que por intermédio do regime complementar é possível obter benefícios que somados proporcionem valores equivalentes ou maiores do que aqueles recebidos quando da atividade. No entanto, a par da diferenciação quanto ao engajamento ao sistema de proteção, contratual na previdência privada e ope legis na previdência social, da qual decorrem as demais distinções vistas, a intimidade de um e outro desses sistemas de proteção previdenciária revela-se pela identidade entre suas relações jurídicas quanto ao objeto, homogeneizado em prestação previdenciária. Veja que se pode afirmar que a razão de ser da previdência social e da previdência privada é uma só, na medida em que ambos os regimes voltam-se à garantia do bem-estar proporcionado por benefícios previdenciários. A propósito, a previdência privada opera na parte em que não há proteção da previdência social, seja complementando-a, seja suprindo sua falta, mas sem diferir substancialmente. A respeito do assunto, Manuel Sebastião Soares Póvoas leciona: “A impossibilidade de os sistemas compulsórios satisfazerem completamente as necessidades dos segurados, as previsões que se fazem sobre o desequilíbrio que, inexoravelmente, se abaterásobre eles e ainda a doutrinação das correntes neo-liberalistas de que o homem não deve entregar à ação exclusiva do estado a administração do seu bem-estar futuro, mas criar esquemas voluntários e alimentá-los para que na eventualidade de estados de necessidade possa sobrepassá-los, têm levado a criar esquemas específicos privados previdenciários.11” Hodiernamente, considerando o baixo nível de proteção conferido pelo regime geral de previdência social brasileiro, vem-se observando o aprimoramento do regime complementar como instrumento de proteção social, constatando-se uma alteração na maneira como era considerada a previdência privada, antes concentrada na particularidade da relação entre participante e entidade, agora focada numa análise mais ampla, sistemática, cuja conclusão é a de que a soma do bem-estar individual não resulta noutra coisa senão no bem-estar social. Esse panorama aconselha ponderação quanto ao entendimento que se possa extrair das nomenclaturas previdência complementar ou previdência privada, já que essas adjetivações podem ensejar a falsa idéia de somenos importância dessa vertente previdenciária, visto que em 11 PÓVOAS, Manuel Sebastião Soares. Previdência privada, filosofia, fundamentos técnicos, conceituação jurídica. Fundação Escola Nacional de Seguros Editora, 1985, p. 49/50. 16 termos de valores os benefícios concedidos pela previdência privada são quase sempre maiores que aqueles do regime geral. Nesse sentido, pontua Arthur Bragança de Vasconcelos Weintraub: “O caráter sumplementar da Previdência Privada possui um cunho legal, pois nem sempre em termos pecuniários ocorre essa acessoriedade. Freqüentemente, em valores absolutos de benefícios, a Previdência complementar Privada oferece benefícios maiores do que a Previdência Oficial, até porque nesta última há um teto para os benefícios.”12 Confirmando o traço de correlação entre a previdência complementar e a previdência social, temos que ambos os regimes protetivos compõem, harmonicamente, um conjunto maior, que visa sistematizar a seguridade social em suas três esferas de atuação: previdência, assistência social e saúde. Sendo meio instrumental ao estado de bem-estar tanto quanto a previdência social, a previdência complementar constitui-se em tema de interesse público e, portanto, objeto de regime jurídico em que é marcante a presença do Estado como agente regulador da vontade. Sob outro aspecto, contudo, a natureza contratual da previdência privada justifica regime diverso do regime jurídico da previdência social. Nascendo da livre manifestação da vontade, a relação jurídica previdenciária destaca-se do regime legal que disciplina a previdência social, regrando-se, por conseguinte, segundo um regime próprio, em que o campo é o da obrigação contratual, conforme concebido pelo ius civile, guardadas as reservas previstas na lei como limite à atuação da vontade das partes. Desse modo, se tivéssemos de expressar em gráfico o quanto dito sobre a previdência social, a previdência privada e o contrato de seguro, teríamos dois conjuntos em intersecção, correspondendo o primeiro ao seguro privado, o segundo à previdência social, e a intersecção à previdência complementar, a qual, destacada, resulta então num terceiro conjunto dotado de institutos próprios e de particular regime jurídico. Essa particularidade de regras específicas ao seguro social privado explica, por sua vez, a natureza jurídica da portabilidade, justificando sua existência no mundo jurídico como instituto típico da relação de previdência complementar, como se verá. 12 WEINTRAUB, Arthur Bragança de Vasconcelos. Previdência complementar privada. Revista do Advogado, São Paulo, v.24, n. 80, p. 13-17, nov. 2004. 17 2 O CONTRATO DE PREVIDÊNCIA PRIVADA O negócio que versa sobre seguro, assim como o pacto do seguro social privado, expressa-se por meio do contrato, o qual corporifica a vontade das partes nas cláusulas que definem os direitos e obrigações contraídos. Da paridade, na essência, entre o seguro e o seguro social privado, resulta a homogeneidade relativa à presença da vontade das partes manifestada no contrato de seguro e no contrato de seguro previdenciário. No contrato que versa sobre plano previdenciário com entidade aberta, em que há oferta ao público em geral, as partes contratantes não se distinguem substancialmente da figura do segurado e do segurador do contrato de seguro, conforme já tivemos oportunidade de assinalar. Já o contrato de previdência privada no segmento das entidades fechadas de previdência complementar apresenta o diferencial de envolver, além da entidade e do participante, o patrocinador ou instituidor do plano, o que traz certa complexidade ao exame da natureza das relações jurídicas tecidas entre tais sujeitos. No segmento das entidades fechadas de previdência complementar, a oferta dos planos restringe-se a um público definido segundo a presença de um vínculo comum com um determinado empregador, ou de um vínculo associativo. Além do participante e da entidade fechada de previdência complementar, tomam parte no plano o instituidor - responsável pela iniciativa de sua criação – ou o patrocinador – instituidor do plano que contribui à formação do fundo necessário ao pagamento dos benefícios. Contudo, sob a perspectiva da esfera de direitos do participante frente à entidade de previdência privada, quer se trate de plano de entidade aberta quer de entidade fechada, a relação previdenciária pouco difere daquela concebida no âmbito do seguro privado. Traga-se o exame comparativo entre os referidos contratos, segundo os ensinamentos do mestre Pontes de Miranda: “1. PRECISÕES. – A natureza do contrato de seguro é uma só para todas as espécies. Seja privado seja público (social, estatal) o seguro, a finalidade é a mesma: dar a alguém a tutela contra o sinistro, o acontecimento futuro e incerto, que às vezes apenas tem de incerto o momento. A contraprestação, essa pode ser em natura ou em dinheiro. O sinistro, o evento, é distinto para cada espécie de seguro, razão por que não se chegou a uniformidade de 18 legislação. Aliás, essa é apenas uma das razões, pois o apego a textos antigos tem obstado a mesmeidade de trato legislativo. [...] O que importa é saber-se que há identidade de natureza nos seguros privados e nos seguros sociais (JULIUS VON GIERKE, Versicherungsrecht, I, 4 s; P. DURAND, La Politique contemporaine de sécurité sociale, 61; ANTIGONO DONATI, Trattato del Diritto delle assicurazioni private, I, 35 s.). A publicização não atinge a natureza do seguro. De ordinário, não desbilateraliza nem desplurilateraliza o negócio jurídico, pôsto que se possa conceber o seguro por declaração unilateral de vontade do segurador.”13 (destaque do autor) A relação jurídica de previdência privada, assim como a relação securitária, nasce de um contrato do tipo contrato de adesão. Nesse tipo de contrato, as cláusulas contratuais são elaboradas por uma das partes sem qualquer participação da outra, de modo que a fixação de direitos e obrigações ocorre em momento que precede ao negócio. É no pacto firmado entre a entidade de previdência privada e o participante que se estabelece o vínculo jurídico que, resumidamente, atribui ao primeiro a obrigação quanto à cobertura do risco e ao segundo o dever quanto ao custeio do plano. A vontade expressa por aquele que adere ao contrato, apesar de ser condição sem a qual, naturalmente, não se cogita da existência do negócio, não interfere na disposição quanto aos direitos e obrigações previamente estipulados.Sobre o contrato de adesão discorre Orlando Gomes: “No contrato de adesão uma das partes tem de aceitar, em bloco, as cláusulas estabelecidas pela outra, aderindo a uma situação contratual que encontra definida em todos os seus termos. O consentimento manifesta-se como simples adesão a conteúdo preestabelecido da relação jurídica. [...] O conceito de contrato de adesão torna-se difícil em razão da controvérsia persistente acerca do seu traço distintivo. Há, pelo menos, seis modos de caracterizá-lo. Distinguir-se-ia, segundo alguns, por ser oferta a uma coletividade, segundo outros, por ser obra exclusiva de uma das partes, por ter regulamentação complexa, porque preponderante a posição de uma das partes, ou não admitir discussão a proposta, havendo quem o explique como o instrumento próprio da prestação dos serviços privados de utilidade pública. A discrepância na determinação do elemento característico do contrato de adesão revela que a preocupação da maioria dos escritores não consiste verdadeiramente em apontar um traço que permita reconhecê-lo. Predomina o interesse de descrevê-lo ou de explicá-lo, antes que o de ensinar o modo de identificá-lo, como ocorre, por exemplo, com os que procuram caracterizá-lo pela circunstância de ter regulamentação complexa. É certo que o contrato de adesão é praticável quando os interesses em jogo permitem, e até impõem, a pluralidade de situações uniformes, de modo que, sob esse aspecto, é, com efeito, oferta feita a uma coletividade. A necessidade de uniformizar as cláusulas do negócio jurídico elimina a possibilidade de qualquer discussão da proposta, criando para o oblato o dilema de aceitá-lo em bloco ou rejeitá-lo. 13 MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. 3. ed. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 1984, p. 284. 19 Nada disso o distingue porquanto tais características são comuns a outras figuras jurídicas. O traço característico do contrato de adesão reside verdadeiramente na possibilidade de predeterminação do conteúdo da relação negocial pelo sujeito de direito que faz a oferta ao público.”14 (destaques do autor) Desse modo, o conteúdo da relação obrigacional sujeito à disciplina por um dos contratantes, identificado no contrato previdenciário como sendo relativo ao regulamento geral do plano ou regulamento básico, é traçado pela entidade previdenciária como um conjunto de obrigações assumidas por ela e por aquele que optar pela contratação do plano. O regulamento do plano contém, além do conjunto de direitos e obrigações das partes contratantes, as características gerais do plano previdenciário. No entanto, essa preponderância da entidade quanto à elaboração do contrato não se mostra suficiente à qualificação do contrato previdenciário como pertencente à espécie contrato de adesão. Para a qualificação de um contrato como contrato de adesão não basta a constatação de que as cláusulas foram adrede estabelecidas por um dos contratantes, uma vez que se pode imaginar um sem-número de contratos em que há proeminência da vontade de um dos contratantes quanto ao conteúdo da relação obrigacional, sem que se cogite tratar-se de contrato dessa espécie. O contrato de adesão, além de apresentar a peculiaridade de conter cláusulas elaboradas por uma só das partes, versa sobre negócio de certa forma imprescindível ao outro contratante, de modo que lhe resta como escolha ou o pacto ou a insatisfação de um interesse em razão de não ter efetivado o negócio. Conclui Orlando Gomes: “Para haver contrato de adesão no exato sentido da expressão, não basta que a relação jurídica se forme sem prévia discussão, aderindo uma das partes à vontade da outra. Muitos contratos se estipulam desse modo sem que devam ter essa qualificação. A predominância eventual de uma vontade sobre a outra e até a determinação unilateral do conteúdo do contrato não constituem novidade. Sempre que uma parte se encontra em relação à outra numa posição de superioridade, ou, ao menos, mais favorável, é normal que queira impor sua vontade, estabelecendo as condições do contrato. A cada momento isso se verifica, sem que o fato desperte a atenção dos juristas, justo porque essa adesão se dá sem qualquer constrangimento se a parte pode dispensar o contrato. O que caracteriza o contrato de adesão propriamente dito é a circunstância de que aquele a quem é proposto não pode deixar de contratar, 14 GOMES, Orlando. Contratos. Atualização por Humberto Theodoro Jr. 24 ed. Rio de Janeiro : Forense, 2001, p. 109-117. 20 porque tem necessidade de satisfazer a um interesse que, por outro modo, não pode ser atendido.”15 As características que indicam tratar-se de um contrato da espécie contrato de adesão conferem com o contrato previdenciário sob diversos aspectos, especialmente quanto à prévia estipulação das cláusulas contratuais por uma das partes, à sua base necessariamente disciplinadora de uma gama de situações semelhantes, conforme se verá, e à sua imprescindibilidade para aquele que deseja contratar um seguro pessoal, não restando dúvidas quanto ao acerto em classificá-lo como um contrato de adesão. Não obstante a origem comum das relações jurídicas que expressam o seguro privado e o seguro social do regime de previdência complementar, constata-se matiz diferenciado quanto ao objeto do contrato previdenciário, o qual dispõe sobre a cobertura de um risco social. A respeito, veja os ensinamentos de Wagner Balera: “Outro contrato, cuja melhor nomenclatura há de ser a de contrato de previdência privada, é aquele mediante o qual são implementados os planos previdenciários. O objeto desse contrato de direito privado consiste na manutenção do padrão de vida dos respectivos participantes, mediante benefício complementar de seguridade social. O teor da facultatividade inerente ao plano de previdência privada não afasta, de pronto, a identificação do benefício complementar com o benefício devido ao sujeito protegido pelo regime geral de previdência social. O contrato deve, pois, dispor expressamente a respeito.”16 Observando servir o contrato previdenciário à garantia contra a materialização de riscos sociais, Manuel Sebastião Soares Póvoas assim o define: “Contrato previdenciário é o ato jurídico bilateral pelo qual uma pessoa – o participante, querendo garantir-se e aos seus contra as conseqüências da materialização de certos riscos sociais, acorda com uma pessoa legalmente autorizada a efetuar, no domínio privado, a compensação desses riscos – a entidade, mediante o pagamento (único ou continuado) de uma importância – a contribuição, receber, por ele ou pelas pessoas que designou como beneficiário a respectiva compensação ou reparação, na forma de benefícios pecuniários ou de serviços previdenciário.”17 O contrato previdenciário, além de caracterizar-se como um contrato de adesão, é ainda disciplinado pelo ordenamento jurídico de modo que sua validade depende do atendimento a certas exigências legais, em decorrência do interesse público que permeia o negócio que versa sobre seguro social. 15 GOMES, Orlando. Contratos. Atualização por Humberto Theodoro Jr. 24 ed. Rio de Janeiro : Forense, 2001, p. 119. 16 BALERA, Wagner. Aspectos jurídicos dos fundos multipatrocinados de previdência complementar. Revista de Previdência social, São Paulo, v. 27, n. 267, p. 133-145, fev 2003. 17 PÓVOAS, Manuel Sebastião Soares. Previdência privada, filosofia, fundamentos técnicos, conceituação jurídica. Fundação Escola Nacional de Seguros Editora, 1985, p. 203. 21 Nesse tipo de contrato, a consensualidade, apesar de presente, mostra-se mitigada,tanto pela prévia imposição das regras do negócio pela entidade de previdência complementar, quanto pela interferência do Poder Público que traça balizas a fim de disciplinar as relações nascidas do contrato previdenciário. Tal especificidade autoriza dizer que a relação jurídica de previdência privada é uma relação de seguro qualificada pelo objeto assegurado. A partir desse ponto de divergência entre o seguro privado e o seguro social constata-se distinção que traz conseqüências ao contrato previdenciário, especialmente quanto à liberdade de disposição dos contratantes, balizada pela participação cogente do Poder Público por meio dos órgãos de fiscalização. Vale dizer, trata-se de negócio que afeta não só interesse individual, considerando que ostenta, na origem de sua formação, a expressão da vontade das partes já mitigada pelo interesse público que suscita o tema seguro social. Essa peculiaridade que distingue o contrato de previdência privada de qualquer outro, inclusive dos demais contratos da espécie contrato de seguro – cobertura de um risco social -, além de justificar a ingerência do Poder Público, possibilita a determinação do custeio de modo equivalente ao ônus assumido em decorrência do pagamento do benefício futuro, ensejando a regulamentação pela lei e pelos órgãos de fiscalização também no aspecto das bases técnicas dos planos, especialmente no ponto relativo ao cálculo das contribuições. Firmadas as premissas básicas de atendimento obrigatório, especialmente quanto à viabilidade financeira do plano, exame a cargo de conferência pelo Poder Público, o espaço que sobra é disponibilizado à vontade das partes. Assim sendo, o limite primeiro à liberdade do participante e da entidade que pretende operar no segmento da previdência privada, com conseqüência nas disposições previstas no contrato previdenciário, toca ao equilíbrio financeiro de cada plano, cuja regulamentação e fiscalização, como assinalado, é de atribuição dos órgãos governamentais, refletindo-se diretamente na composição da contribuição exigida pela entidade de previdência privada, atuarialmente justificada quando da apresentação das notas técnicas relativas ao plano. Nesses termos é o comando do art. 3o, inciso III, da Lei Complementar n. 109/01. O interesse público, contudo, não se esgota na conferência quanto à preservação do equilíbrio financeiro dos planos. 22 Despertando especial interesse o tema Seguridade Social, a investigação acerca da função social do contrato de previdência privada encontra norte fornecido já em nível abstrato, pelo legislador, servindo de instrumento ao estudo do instituto da portabilidade, o qual deve ter experiência segundo o esperado, pelo ordenamento jurídico, do negócio pactuado entre a entidade e o participante. Esses mesmos vetores legais, balizadores da atividade regulamentar, encontram supedâneo nos princípios constitucionais em tema de Seguridade Social, os quais merecem leitura pautada conforme os valores informativos da Ordem Social, o que, naturalmente, dita e justifica não só a limitação da vontade das partes envolvidas no contrato previdenciário, mas também o trabalho do legislador infraconstitucional e dos órgãos de fiscalização. Nesse campo, qualquer incongruência com os fundamentos de sustentáculo à ingerência pública na esfera do particular pode indicar desde ilegalidade até o vício da inconstitucionalidade. Assim sendo, de forma bem singela, mas útil ao estudo nos limites impostos pelo tema, podemos conceituar contrato de previdência privada como o negócio jurídico cujo objeto é a cobertura de um risco social, sofrendo, por isso, a intervenção do Poder Público quanto às disposições contratadas entre as partes. 2.1 A Função Social do Contrato Previdenciário 2.1.1 A função social como essência do contrato O entendimento primeiro e mais singelo sobre a conceituação do Direito é o de que se trata de um conjunto de regras de conduta que serve à organização da vida em sociedade. Não se cogita de uma norma senão a partir da premissa de sua necessidade com fim de contemporizar a vontade de mais de um indivíduo, solucionando o possível conflito por meio da aplicação da regra. Portanto, é da essência do Direito sua finalidade social. O contrato, por sua vez, é veículo que corporifica a vontade, sendo instrumental à assunção de direitos e obrigações, tudo amparado pelo ordenamento jurídico, já que, satisfeitos os requisitos legais, o negócio vale nos exatos limites e condições previstos no ordenamento jurídico, o que faz com que o contrato ostente exigibilidade conferida pela lei. 23 O acolhimento do negócio pelo ordenamento jurídico é constatado sempre que se reconhece a conveniência social de que os particulares pautem-se segundo as regras estabelecidas no contrato. Essa conveniência social, em expressão dada pelo direito contratual, coincide com a constatação da licitude do objeto do contrato. Caso contrário, considerado certo negócio inconveniente sob o ponto de vista do interesse social, a avença não contará com o amparo jurídico, não apresentando valor conforme as regras do Direito. Traga-se a exemplo o contrato que versa dívida de jogo, comércio de órgãos humanos etc. Dessa forma, servindo o Direito como código de regras à vida social, e sendo concebido o contrato, pelo ordenamento jurídico, como válida forma de regrar as relações entre os indivíduos, parece expressão sem qualquer conteúdo inovador ou original a afirmativa de que o contrato tem uma função social, mesmo porque não haveria de se cogitar em contrário, imaginando-se um contrato que não tivesse um fim, uma serventia no âmbito das relações sociais. Essa função inerente a todo e qualquer negócio legalmente admitido não somente explica o sentido do acolhimento do contrato pela ordem jurídica, mas também justifica sua obrigatoriedade perante as partes, já que as disposições contratuais têm força de lei nos campos e limites permitidos pela ordem jurídica justamente por se apresentarem convenientes ao interesse social. Discorrendo sobre a função social do contrato, observa Caio Mário da Silva Pereira: “Todo contrato parte do pressuposto fático de uma declaração volitiva, emitida em conformidade com a lei, ou obediente aos seus ditames. O direito positivo prescreve umas tantas normas que integram a disciplina dos contratos e limitam a ação livre de cada um, sem o que a vida de todo o grupo estará perturbada. São os princípios que barram a liberdade de ação individual e constituem o conteúdo das leis proibitivas e imperativas (v. sobre estas o n. 19, supra, vol. I). A lei ordena ou proíbe dados comportamentos sem deixar aos particulares a liberdade de derrogá-los por pactos privados, ao contrário das leis supletivas, que são ditadas para suprir o pronunciamento dos interessados. Quando um contrato é ajustado, não é possível fugir da observância daquelas normas, sob pena de sofrer penalidades impostas inafastavelmente. Os contratantes sujeitam, pois, sua vontade ao ditado dos princípios da ordem pública e dos bons costumes. [...] Dentro desses campos, cessa a liberdade de contratar. Cessa ou reduz-se. Se a ordem jurídica interdiz o procedimento contra certos princípios, que se vão articular na própria organização da sociedade ou na harmonia das condutas, a sua contravenção penetra as raias do ilícito, e o ato negocial resultante é ferido de ineficácia. 24 O contrato, que reflete por um lado a autonomia da vontade, e por outro submete-se à ordem pública, há de ser conseguintemente a resultante deste paralelogramo de forças, em que atuam ambas estas freqüências. Como os conceitos de ordem pública e bons costumes variam,e os conteúdos das respectivas normas por via de conseqüência, certo será então enunciar que em todo tempo o contrato é momento de equilíbrio destas duas forças, reduzindo- se o campo da liberdade de contratar na medida em que o legislador entenda conveniente alargar a extensão das normas de ordem pública, e vice-versa. [...] No começo, porém, deste século compreendeu-se que, se a ordem jurídica prometia a igualdade política, não estava assegurando a igualdade econômica. O capitalismo desenvolto, com a industrialização crescente, e a criação das grandes empresas, conduziu à defasagem dos contratantes. Aparentemente iguais, estes se achavam via de regra desnivelados economicamente. E o negócio que realizam sofre a influência desta diferenciação. Conseqüentemente, o contrato, com as vestes de um ato emanado de vontades livres e iguais, contém muitas vezes uma desproporcionalidade de prestações ou de efeitos em tal grau que ofende aquele ideal de justiça que é a última ratio da própria ordem jurídica. Por outro lado, o ambiente objetivo, por ocasião da execução do contrato, às vezes difere fundamente do que envolveu sua celebração, em conseqüência de acontecimentos estranhos à vontade das partes, e totalmente imprevistos. [...] Em termos gerais, todo este movimento pode enquadra-se na epígrafe ampla do dirigismo contratual, ou intervenção do Estado na vida do contrato, o que conflita com as noções tradicionais da autonomia da vontade, e defende aquela das partes que se revela contratualmente inferior contra os abusos do poderoso, que uma farisaica compreensão da norma jurídica antes cobria de toda proteção.”18 (destaques do autor) Portanto, os negócios admitidos pelo ordenamento jurídico como validamente possíveis de serem realizados sempre tiveram no contrato um instrumento dotado de função social, e sua interpretação havia mesmo de ser tirada segundo a finalidade que ensejou o acolhimento do negócio pelo ordenamento jurídico. Muito antes do advento do novel Código Civil, que alude expressamente à função social do contrato, Manuel Sebastião Soares Póvoas já parecia identificá-la, inclusive quanto ao contrato de seguro previdenciário, apesar de aludir à feição social : “O contrato previdenciário empresarial, tal como foi definido pelo CNPS é um contrato sui-generis, no sentido de que tem características próprias, derivadas de seu coletivismo, de suas exigências processuais e técnicas, da sua feição social, etc, não seguindo qualquer modelo de contrato já definido na lei, a não ser, bem entendido, o contrato de seguros de vida, com o qual se identifica.”19 Sendo assim, insta assinalar que a função social do contrato, antes de se tratar de uma inovação de vanguarda ao direito obrigacional, é elemento inerente e indissociável ao contrato, o qual desde sempre apresentou função social, e sua interpretação, evidentemente, deve 18 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 10 ed. v. 3. Rio de Janeiro : Forense, 1998, p.10-13. 19 PÓVOAS, Manuel Sebastião Soares. Previdência privada: planos empresariais. v. II. Fundação Escola Nacional de Seguros Editora, 1991, p. 302. 25 ter em mira o quanto esperado pelo ordenamento jurídico ao acolher o negócio como validamente pactuado. Na esteira da abordagem do tema em questão, a proclamação feita pelo Código Civil, sendo meramente declarativa, não autoriza entendimento restrito no sentido de que tão- somente a partir da vigência do novo código a interpretação do contrato observará sua função social, mas sim de que todo o contrato, qualquer que fosse a data da celebração, tem função social, a qual deve nortear sua interpretação. Nesses termos, a virtude da disposição legal é a de lembrar uma regra de interpretação que sempre esteve latente, indicando ao intérprete a busca da essência do contrato segundo o desejado pelo ordenamento jurídico ao acolher a realização do negócio como sendo de interesse social. No que tange ao contrato previdenciário, é negócio não só concebido pelo ordenamento jurídico como avença válida de ser pactuada, como também sofre grande ingerência do Poder Público na esfera da livre disposição das partes tendo em vista referir-se seu objeto à cobertura do risco social, tema diretamente afeto ao interesse público, sendo, por isso, cuidadosamente agasalhado pela ordem jurídica. Assim sendo, a aferição primeira da função social do contrato previdenciário deve ter em mira a objetivação pretendida pelo ordenamento jurídico ao acolher a previdência privada como um dos pilares da seguridade social, o que pressupõe o conhecimento dos valores e dos princípios que regem esse assunto. 2.1.2 Os valores informativos à seguridade social O fundamento à afirmação de que o seguro social é seara em que se faz presente o interesse coletivo é facilmente extraído da forma como tratada a matéria em nível constitucional, haja vista que houve destinação de todo um capítulo da Constituição Federal ao tema seguridade social, o que explica a interferência do Poder Público como limitador da vontade do particular, neste campo. Além disso, o capítulo I do Título Da Ordem Social inauguralmente proclama, a título de disposição geral, que o bem-estar e a justiça sociais são objetivos da ordem social (art. 193 da Constituição Federal), esta tendo como base o primado do trabalho, de modo que 26 parecem desnecessárias maiores argumentações para comprovar o que pode ser extraído, sem dificuldades, de simples interpretação sistemática: que o primado do trabalho, o bem-estar e a justiça sociais são vetores às demais proposições constitucionais alocadas nas seções seguintes do mesmo título. Portanto, o primado do trabalho, o bem-estar e a justiça sociais são valores acolhidos pelo ordenamento jurídico no tema seguridade social, valores estes informadores dos princípios extraídos das disposições constitucionais específicas à previdência privada, os quais, por sua vez, devem balizar o trabalho legislativo ordinário, de modo que o cumprimento da lei, regulamentada no ponto em que assim for necessário, deve materializar os valores homenageados pela Lei Fundamental. Com a profundidade e a importância que merece o estudo dos valores eleitos a informar o tema seguridade social, a lição do Professor Wagner Balera: “O direito constitucional positivo resume e compendia os valores considerados importantes, defensáveis e indispensáveis para a vida e o desenvolvimento da sociedade. Em nosso direito, é catalogado como fundamento da República o valor social do trabalho (art. 1o., IV, Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988). Ora, encarar o trabalho humano como valor social já significa, de per si, opção dentro de determinada escala de valores que subjazem a todo o ordenamento constitucional. Eis a ratio do sistema de proteção do trabalhador que a Lei Suprema erige em dois subsistemas: o do trabalho e o da seguridade social. [...] Ao qualificar o valor social do trabalho como fundamento do Estado brasiLeiro, a ordem jurídica dota tal valor de importância primacial e trata de colocá-lo junto a outro grande valor – a dignidade da pessoa humana – de que cuida o inciso III do art. 1o., da Constituição.”20 A classificação das proposições lançadas pela Constituição Federal como valores do sistema implica categorizá-los como precedentes ao direito positivo, cuja concepção pressupõe como ratio essendi a de potencializar a valoração pretendida e traçada como um projeto a ser executado em nível normativo, motivo pelo qual a transgressão de um valor resulta conseqüência ainda mais grave que a inobservância de uma regra constitucional: a regra positivadaque fere um valor eleito como informativo ao sistema jurídico não é regra de direito, senão na aparência. 20 BALERA, Wagner. Incidências do INSS: contribuições sociais. Revista de Direito Tributário, São Paulo, n. 85, p. 348-371, 2002. 27 A negação da natureza de regra de direito, à proposição normativa que infringe valores adotados pelo sistema jurídico, é amparada pela teoria Tridimensional do Direito, fruto da mente brilhante de Miguel Reale. Com fulcro nessa teoria, qualquer discrepância entre a norma e os valores mais caros à sociedade resulta regra que não pode ser reconhecida como norma jurídica. Buscando a realização de um determinado valor, o Direito tende a ser instrumental. Porém, um valor pode induzir uma multiplicidade de resultados possíveis e, conseqüentemente, uma gama de condutas tendentes a alcançá-lo, abrindo-se espaço para um momento de escolha, o que, para a formação da norma, importa na atuação do poder, dotando ao ferramental do valor o imperativo da obrigatoriedade. A regra engendrada, então, pode ser definida como norma jurídica. Com isso queremos afirmar que o Direito revela-se por intermédio da regra, mas nela não se contém em sua essência, na medida em que realiza um valor que foi objeto de uma precedente opção, pelo poder, e tudo assim resultando da necessidade criada pelo fato social. Sua roupagem como regra positivada é aquela que se torna sensível ao mundo empírico. Porém, a aparência fenomênica não importa em coincidência com a essência. Direcionado o processo de formação da regra positivada para atender à necessidade social segundo um determinado valor, a eventual opção do poder regulamentar por uma proposição conflitante com os ditames valorativos transfigura a função do Direito, e o produto daí resultante não poderá ser denominado norma. Disso decorre a permanente dialética entre fato, valor e norma, impondo seguidas conferências ao longo da vida jurídica da regra. A respeito do tema, o mestre Miguel Reale: “A nosso ver, duas são as condições primordiais para que a correlação entre fato, valor e norma se opere de maneira unitária e concreta: uma se refere ao conceito de valor, reconhecendo-se que ele desempenha o tríplice papel de elemento constitutivo, gnoseológico e deontológico da experiência ética; a outra é relativa à implicação que existe entre o valor e a história, isto é, entre as exigências ideais e a sua projeção na circunstancialidade histórico-social como valor, dever ser e fim. Do exame dessas duas condições é que resulta a natureza dialética da unidade do Direito, como passamos a expor.”21 Ressaltada a função dos valores notáveis ao sistema jurídico, e assim dos valores informativos à seguridade social, passamos à análise do resultado aferido em termos de 21 REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 19. ed. 2a. tiragem. São Paulo : Saraiva, 2000, p. 543. 28 normatização, iniciando pelo estudo dos princípios constitucionais, avançando então na conferência feita em nível legal e regulamentar. 2.1.3 Os princípios constitucionais endereçados ao legislador ordinário em matéria de previdência complementar A previdência privada é disciplinada pelo art. 202 da Constituição Federal, inserto na seção III, que trata da previdência social, tópico que integra o capítulo I do Título Da Ordem Social e que, por isso, sujeita-se à força diretiva dos valores eleitos à ordem social, já referidos, com a anotação de que a proeminência da primazia do trabalho humano parece ser instrumental à efetivação do bem-estar e da justiça sociais. Nesses termos é que se deve fazer a leitura dos princípios constitucionais, extraídos do art. 202. Veja a respeito a lição de Wagner Balera: “A seguridade social é sistema calcado em básico pressuposto: o art. 193, preceito inaugural da Ordem Social e a chave hermenêutica de todo o Título em que se insere. O ponto de partido do art. 193 é a primazia do trabalho humano – pedra angular do sistema e fundamento da República (art. 1o., IV) – e o escopo da Ordem Social que o mesmo preceito enuncia consiste no atingimento dos ideais de bem-estar e de justiça sociais, objetivos estampados, também, no art. 3o da Lei Suprema.”22 O art. 202 da Constituição Federal dispõe sobre a previdência privada como um regime dotado de caráter complementar organizado de forma autônoma em relação ao regime geral, facultativo e baseado na constituição de reservas que garantam o benefício contratado. Da análise do caput do referido art. 202, o que primeiro se põe em relevo é o contorno da previdência privada como regime facultativo, o que explica a conseqüência lógica de sua complementaridade e organização autônoma com relação ao regime geral da previdência social. A facultatividade da previdência privada tem referência com a democratização do seguro social, na medida em que franqueia a cobertura independentemente da situação profissional daquele que a pretende. 22 BALERA, Wagner. Aspectos gerais da reforma previdenciária. Revista de Direito Social, Sapucaia do Sul, v. 3, n. 10.,p. 11-28, abr./jun. 2003. 29 Em se tratando de um regime complementar ao regime público, a previdência privada não substitui a previdência oficial; é proteção paralela, adicional àquela prestada pelo regime geral da previdência social, como assinalado. Situando-se em campo estrangeiro à atuação da previdência oficial, a previdência complementar havia mesmo de ser dotada de autonomia. Disso decorre sua independência administrativa, de organização e de gestão em relação à previdência social. A menção à constituição de reservas que garantam o benefício contratado, conforme o art. 202 da Constituição Federal, indica não ter passado despercebida do legislador constitucional a função do equilíbrio financeiro e atuarial como sendo da essência dos planos, vedado o aporte de recursos públicos à entidade de previdência privada, salvo se operado pelos entes públicos na condição de patrocinador, em paralelo ao que se faculta ao empregador. Essa regra compatibiliza-se com a característica da facultatividade na adesão, já que no âmbito da previdência privada o indivíduo tem na esfera de sua livre disposição o planejamento de seu futuro, sendo, por isso, o principal responsável pelo custeio do benefício. Sendo assim, os planos de previdência privada devem ter base financeira formada por contribuições dos participantes e do patrocinador, não se distinguindo o ente público do empregador privado para fins de previdência complementar, de modo que a garantia do pagamento dos benefícios deve formar-se a partir do sacrifício pessoal daqueles que se propuseram a aderir ao plano e patrociná-lo. É o que se resume dos parágrafos terceiro a quinto, art. 202 da Constituição Federal. Sob outro prisma, a exigência de constituição de reservas que garantam o benefício contratado é norma disciplinadora do setor de previdência privada, impedindo atuações aventureiras que ponham em risco a segurança dos participantes quanto ao adimplemento das obrigações assumidas pelas entidades. Observação nesse sentido é colhida da exposição sobre o assunto feita por Jerônimo Jesus dos Santos, em comentários à Lei Complementar n.109/01, com referência ao art. 202 da Constituição Federal: “Por outro lado, o regime de previdência complementar é baseado na constituição de reservas que tem que garantir o benefício pactuado, nos termos do caput do art. 202 da Constituição Federal. Ora, tanto o legislador constitucional quanto o desta Lei Complementar tiveram o cuidado de resguardar os direitos dos
Compartilhar