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1 ORGANIZAÇÃO DO ESTADO – FEDERAÇÃO Prof. Marcelo A. B. Ortolan A estruturação do estado pressupõe três escolhas fundamentais: 1. A FORMA DE GOVERNO: forma como ocorre a instituição do poder e a relação entre governantes e governados 1.1. Monarquia (Hereditariedade, Vitaliciedade, Irresponsabilidade do governante e Inexistência de representação popular) 1.2. República (Eletividade, Temporalidade, Responsabilização do governante e Representatividade popular) Desde 1891 – Forma Republicana. De acordo com José Afonso da Silva, o princípio republicado impõe no Brasil: a) a necessidade de legitimidade popular dos Chefes de Estado (Presidente da República, Governadores Estaduais e Prefeitos Municipais); b) existência de assembleias e câmaras populares nas três órbitas de governo da federação; eleições periódicas por tempo limitado; e prestação de contas da Administração Pública. 2. SISTEMA DE GOVERNO: Forma como os Poderes Executivo e Legislativo se relacionam 2.1. Presidencialismo: Concentração das funções executivas no Presidente que acumula as funções de Chefe de Estado e de Governo (Chefia do Executivo monocrática ou unipessoal); Mandato presidencial autônomo por tempo certo (não é responsivo ao Legislativo, sendo a única hipótese de cassação por impeachment pela prática de crime político de responsabilidade); Responsabilidade do Presidente perante o povo. 2.2. Parlamentarismo: Ausência de identidade física entre Chefe de Estado ou de Governo (Chefia do Executivo dual); A Chefe de Governo é escolhida pelo Parlamento e segue sendo a ele responsivo; Mandato do Chefe de Governo é indeterminado (depende da confiança e apoio Legislativo); O Primeiro-Ministro poderá em algumas circunstâncias dissolver o Parlamento e convocar novas eleições, como forma de renovar a composição parlamentar e aumentar seu apoio. Desde 1891 – Forma Presidencialista *Parlamentarismo: Na época do Império e nos anos 61-63 (CF46) 3. FORMA DE ESTADO: É a forma de distribuição geográfica do poder político em um território. Relaciona-se com a existência ou não de descentralização do poder político em determinada base territorial. Quais são as principais formas de distribuição de poder político? As formas clássicas de divisão são: 1) Estado Unitário; 2) Estado Federal; 3) Confederação. Deve-se ressaltar que essas formas clássicas não mais correspondem à realidade, sendo que novas formas de organização foram agregadas e essa tricotomia. 2 1) ESTADO UNITÁRIO: Estado em que existe um único centro de poder político no respectivo território. Centralização política da forma como são exercidas as competências estatais. Ex: Brasil Colônia, Brasil Império, França, Itália, Inglaterra, Espanha, Portugual, etc. 1.1. Estado Unitário puro: Não há uma distribuição geográfica do poder político em função do território. As competências estatais são exercidas de maneira centralizada pela unidade que concentra o poder político. A característica é a centralização do exercício poder político. Essa forma “pura” não conseguiria se manter a não ser em microestados, como Mônaco. 1.2. Estado Unitário descentralizado administrativamente (ou regional): é aquele em que as decisões políticas estão concentradas no poder central, mas a execução das políticas adotadas é delegada para entes administrativos descentralizados. É a forma predominante na atualidade. A descentralização ocorre de um tipo autárquico e não confere aos entes autonomia política. Ex: Espanha, Portugal. 2) ESTADO REGIONAL E AUTONÔMICO: Descentralização administrativa e legislativa. Estado Regional: Surge na Itália com a Constituição de 1948 que garantiu a descentralização administrativa e legislativa. Estado Autonômico: Surge com a Constituição Espanhola de 1978 que também garante a descentralização administrativa e legislativa. As províncias podem se reunir em regiões e elaborar um Estado de Autonomia e avocar da Constituição competências administrativas e legislativas. Se aprovado pelo parlamento, o Estatuto ganha caráter de lei especial e institui a região. Tanto na Itália quanto na Espanha, há o problema de manutenção da unidade territorial nacional. Espanha Catalunia; Lombardia na Itália. A diferença ocorre no modo em que a descentralização é realizada. A descentralização no Estado Regional é feita de cima para baixo, sendo que o estado central pode conceder ou retirar as competências descentralizadas. No Estado Autonômico, a descentralização é desenvolvida de baixo para cima. As províncias se reúnem em uma região e avocam competências da Constituição necessitando apenas a ratificação do estado central. 3) CONFEDERAÇÃO Consiste numa reunião dissolúvel de Estados soberanos, que se vinculam mediante a celebração de um tratado internacional. Apenas algumas funções delegadas são exercidas pelo ente central. São três características que definem uma confederação: 1) União através de um Tratado regido pelo Direito Internacional; 2) Partes são Estados soberanos; 3) Dissolubilidade da união, sendo que cada Estado pode-se retirar a qualquer momento, de acordo com sua conveniência. 4) ESTADO FEDERAL É um modelo de união de entidades políticas autônomas, através de uma Constituição Federal, que estabelece um vínculo indissolúvel. O Estado Federal é soberano, enquanto os entes federativos que os compõe são apenas autônomos. Não há direito de secessão. 3 4.1. ENTES FEDERADOS: São pessoas de direito público interno detentoras de poder político e função administrativa. União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios. Não há hierarquia entre os entes federativos, que são absolutamente autônomos entre si no seu âmbito de competências. Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição. A União não possui soberania, apenas representa a federação brasileira e exerce suas prerrogativas perante outros Estados. A pessoa jurídica de direito público internacional é a República Federativa Brasileira. A confusão pode decorrer de a União possuir o mesmo território da República Federativa do Brasil e da atribuição constitucional de representatividade exclusiva à União. Art. 21. Compete à União: I - manter relações com Estados estrangeiros e participar de organizações internacionais; 4.2. FORMAÇÃO Federação por agregação (ou come together): quando antigos estados independentes ou soberanos abrem mão de sua soberania e se unem para a formação de um único Estado federal. O movimento é centrípeto, pois ocorre da periferia ao centro. Caso da federação estadunidense. Federação por desagregação (ou hold together): quando um Estado Unitário descentraliza- se, instituindo uma repartição de competências entre entidades federadas autônomas. O movimento é centrífugo. Caso da federação brasileira. 4.4. AUTONOMIA: Capacidade de atuação do ente federativo no âmbito de sua respectiva área. Resume-se pela existência de três capacidades: 1) auto-organização e autolegislação; 2) autogoverno; 3) auto-administração. 4.1. Capacidade de auto-organização e autolegislação: Art. 25. Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição. Art. 29. O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos: 4 Art. 32. O Distrito Federal, vedada sua divisão em Municípios,reger- se-á por lei orgânica, votada em dois turnos com interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços da Câmara Legislativa, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição. A Constituição Federal de 1988 atribuiu aos Estados-membros, no caput de seu artigo 25, o poder de auto-organização, que se trata da capacidade que cada Estado-membro tem para organizar-se e reger-se por meio de uma Constituição e leis próprias.1 A auto-organização, portanto, concretiza-se pela manifestação do poder constituinte decorrente, conforme denominado por Manoel Gonçalves Ferreira Filho, porquanto subordinado, secundário e condicionado ao poder constituinte originário.2 Em nossa prática, a Constituição Federal, no artigo 11 do ADCT, atribuiu às Assembleias Legislativas poderes constituintes para elaborarem as Constituições de seus respectivos Estados-membros. A Constituição Federal, contudo, também estabeleceu uma limitação ao poder de auto- organização no caput do artigo 25, denominado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal como princípio da simetria, que exige sejam “observados os princípios desta Constituição”. Este princípio tem o importante objetivo de assegurar a supremacia das normas da Constituição Federal em face das Constituições Estaduais, tendo se conformado, ao longo das Constituições, de maneira muito diversa, em um movimento pendular de maior ou menor autonomia aos Estados-membros. Entende-se que a Constituição de 1988 adotou a técnica da autonomia controlada, ao estabelecer, em primeiro lugar, princípios constitucionais sensíveis no artigo 34, VII, cuja inobservância poder acarretar a declaração da inconstitucionalidade do dispositivo ou, até mesmo, a intervenção federal, quais sejam: Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: VII - assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais: a) forma republicana, sistema representativo e regime democrático; b) direitos da pessoa humana; c) autonomia municipal; d) prestação de contas da administração pública, direta e indireta. e) aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde.(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000) Em segundo lugar, também institui princípios constitucionais estabelecidos, que estão dispersos ao longo do texto constitucional e trazem preceitos de observância obrigatória pelas unidades federativas. De acordo com a doutrina de José Afonso, dividem-se em limitações expressas vedatórias (artigos 19, 150 e 152); limitações expressas mandatórias 1 CF 1988. “Art. 25. Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição.” 2 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 25. 5 (artigos 39 a 41 e 125); limitações implícitas (artigos 21, 22, 30) e limitações decorrentes do sistema constitucional adotado (como o princípio federativo).3 Por fim, o poder de autolegislação se consubstancia no poder dos Estados-membros de elaborarem e regerem-se por suas próprias leis, dentro da esfera de competências legislativas que lhes foram atribuídas diretamente 4.3. Autogoverno: O poder de autogoverno representa a capacidade dos Estados-membros para instituírem e organizarem seus próprios Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, estando assegurados de maneira implícita nos artigos 27, 28 e 125 da Constituição Federal. A Constituição, contudo, também estabelece algumas disposições que deverão ser observadas pelos Estados-membros no exercício do autogoverno. A este propósito, no que tange ao Poder Legislativo estadual, vale destacar que o artigo 27 estabelece implicitamente que será unicameral, sendo seus membros eleitos pelo sistema proporcional pelo mandato de quatro anos, devendo ser aplicadas todas as regras sobre sistema eleitoral, inviolabilidade, imunidades, remuneração, perda de mandato, licença, impedimentos e incorporação às Forças Armadas. Quanto ao Poder Executivo estadual, em seu artigo 28 estabelece o mandato de quatros anos para o Governador e Vice-Governador de Estado, além de prescrever a data da realização das eleições (primeiro e segundo turno), hipóteses de perda do mandato e a forma da fixação de seus subsídios. Por fim, no que se refere ao Poder Judiciário estadual, prevê no artigo 125 que a competência dos tribunais será definida na Constituição do Estado, sendo a lei de organização judiciária de iniciativa do Tribunal de Justiça, observados os princípios estabelecidos na Constituição Federal sobre o assunto. 4.3. Auto-administração: Art. 25. § 1º - São reservadas aos Estados as competências que não lhes sejam vedadas por esta Constituição. O poder de autoadministração refere-se à capacidade de exercício autônomo das competências legislativas, administrativas e tributárias que lhe foram constitucionalmente atribuídas pela Constituição Federal aos Estados-membros, sem qualquer interferência de outro ente federativo. 5. DISTRITO FEDERAL Nos termos da Constituição de 1946, o Distrito Federal constituía-se na nova “Capital da União”, tendo sua transferência oficial e inauguração sido realizada pelo Presidente Juscelino Kubitschek, em 21 de abril de 1960. Atualmente, o Distrito Federal não é mais “Capital da União”, tendo a Constituição de 1988 erigido apenas Brasília como a Capital Federal (artigo 18, §1º), que tem a função primeira de servir de sede ao governo federal. 3 SILVA, José Afonso. Op. Cit., p. 613-617. 6 A Constituição de 1988 assegurou ao Distrito Federal a natureza de unidade federativa autônoma, atribuindo-lhe os poderes de auto-organização e autolegislação, autogoverno e auto-administração (artigos 18, 32 e 34). O Distrito Federal não é um Estado-membro nem um Município, mas acumula competências relativas aos dois entes federados. Em verdade, há aspectos em que o Distrito Federal pode mais que os Estados-membros, pois além de competências estaduais também exerce competências tipicamente municipais. Em outros aspectos, contudo, pode menos, sendo sua autonomia parcialmente tutelada pela União. Assim, no que tange ao poder de auto-organização, a Constituição estabelece em seu artigo 32 que o “Distrito Federal (...) reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos com interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços da Câmara Legislativa, (...) atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição.” Apesar disso, a Constituição também estabelece a impossibilidade de divisão de seu território em Municípios, pelo que se pode afirmar que Brasília e as cidades-satélites não são entes federativos, mas apenas entes administrativos descentralizados do Distrito Federal. Apesar de não haver previsão da possibilidade de alteração de seus limites territoriais, como ocorre com os Estados-membros no artigo 18 da Constituição, sustenta-se que as mesmas regras poderiam ser a ele aplicadas, por analogia. O poder de autogoverno é garantido pela possibilidade de eleição de Governador e Vice, bem como de “Câmara Legislativa” própria, segundo as regras constitucionais aplicáveis aos poderes executivos e legislativos federais e estaduais. Por outro lado, é limitado quanto ao Poder Judiciário, bem como ao Ministério Público e à Defensoria Pública, cuja competência para organização foi entregue à União (artigo 21, XIII). Também é da competência da União a organização da polícia civil, militar e o corpo de bombeiros militar (art. 22, XIV). Por fim, os poderes de autolegislação e autoadministração materializam-se através dascompetências legislativas e administrativas que lhes foram atribuídas pela Constituição, abaixo estudadas. 6. MUNICÍPIO A Constituição de 1988 erigiu o Município à condição de unidade federativa autônoma, atribuindo-lhe os poderes de auto-organização e autolegislação, autogoverno e autoadministração (artigo 29). Art. 29. O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos: 7. TERRITÓRIOS FEDERAIS De acordo com o artigo 18, §2º, da atual Constituição, “os Territórios Federais integram a União, e sua criação, transformação em Estado ou reintegração ao Estado de origem serão reguladas em lei complementar.” Portanto, diferentemente da Constituição de 1969, atualmente os territórios federais não são dotados de autonomia política, não sendo considerados como entes federativos. São entes 7 administrativos-territoriais descentralizados da União, que assumem a forma de uma autarquia. Não existem mais territórios federais no Brasil, pois a própria Constituição de 1988 elevou os territórios de Roraima e Amapá à condição de Estados-membros (artigo 14, caput, ADCT), bem como extinguiu o território de Fernando de Noronha, que foi reincorporado ao Estado de Pernambuco (artigo 15, ADCT). Remanesce aberta, contudo, a possibilidade de criação de novos territórios federais, na forma de autarquias descentralizadas da União, sendo que o processo de formação deverá atender aos mesmos requisitos e procedimentos previstos para a formação de novos Estados-membros, acima exposto (artigo 18 e parágrafos da Constituição de 1988). 8. SENADO FEDERAL De acordo com os textos dos “pais fundadores” da Constituição dos Estados Unidos, precisamente, James Madison, no Artigo nº 39 de “O Federalista”, ao analisar o caráter nacional/federal das fontes de onde emanariam os poderes do governo na federação, escreve que: enquanto a Câmara dos Deputados os receberia do povo da América, representando uma instituição nacional; o Senado “teria seus poderes derivados dos Estados, (...) representados (...) segundo o princípio da igualdade”, formando, assim, uma instituição federal e não nacional. Assim nasceu o sistema bicameral na primeira federação moderna, na forma de uma Câmara Alta com representação igualitária dos Estados, precisamente de dois membros por Estado. Convém ressaltar, contudo, que a igualdade de representação no Senado não se tratava de um consenso, porém foi defendia pelos constituintes como a alternativa mais prudente para a época, que foi perenizada no Artigo V da Constituição dos Estados Unidos na forma de uma garantia: “Nenhum Estado, sem o seu consentimento, deve ser privado de seu voto igualitário no Senado”. Os pais fundadores atribuíram ao Senado uma importante função no sistema de freios e contrapesos (checks and balances) constitucional. Por considerarem que, em uma república representativa, seria contra as usurpações do Legislativo que medidas adicionais de proteção deveriam ser criadas, idealizou-se o Senado como uma segunda Câmara Legislativa, composta por pessoas mais idosas e com um mandato mais longo, como uma instituição para garantir a estabilidade de governo. Dentre os vários motivos elencados por Madison para justificar a forma do Senado, Artigo nº 62 de “O Federalista”, vale destacar dois que são fundamentais para garantir a influência estabilizadora do Senado. Primeiro, a ideia de “um senado – segundo ramo da assembleia legislativa, distinto do primeiro e dividindo com ele o poder – (...) ser um salutar controlador do governo. Ele dobra a proteção do povo, por exigir a concorrência de dois órgãos distintos em qualquer esquema visando à usurpação ou à deslealdade, quando, não fora isso, a ambição ou a corrupção de um deles seria suficiente”. Em segundo lugar, “a necessidade de um senado é não menos indicada pela tendência de todas as assembleias únicas e numerosas em ceder aos impulsos de súbitas e violentas paixões e se levadas por líderes facciosos a tomarem resoluções intempestivas e perniciosas”. 8 O sistema bicameral brasileiro replica o modelo da federação americana, sendo composto pela Câmara dos Deputados, como a Câmara representativa do povo, e pelo Senado Federal, como a Câmara representativa dos Estados-membros e do Distrito Federal. Assim como no modelo americano, o Senado brasileiro adota o princípio da representação igualitária, com a diferença de ser composto por três representantes de cada Estado, que são eleitos diretamente pela população, pelo princípio majoritário (artigo 46, CF). Portanto, cada Estado possui três votos, que são contados de maneira individual, nunca em bloco, podendo, portanto, serem opostos entre si. No que tange à amplitude de seus poderes, o sistema bicameral brasileiro caracteriza-se pela simetria, tendo o Senado poder de veto absoluto sobre qualquer projeto de lei iniciado pela Câmara dos Deputados (artigo 65, CF). Além disso, possui uma grande amplitude de competências exclusivas, dentre as quais se incluem a atribuição para aprovar os limites de endividamento estadual. De acordo com estudo realizado por Alfred Stepan, que analisou o papel das câmaras altas nas federações, o Senado brasileiro apresenta uma desproporção sem paralelo no mundo, decorrente da adoção do princípio da representação igualitária. Em razão da grande diferença populacional entre os Estados-membros brasileiros, aqueles da Região Norte e Nordeste acabam sendo super-representados, enquanto os Estados-membros da Região Sudeste acabam sendo sub-representados. De acordo com dados de 1991, considerando o critério populacional, 1 voto de Roraima equivaleria a 144 votos de São Paulo. No sistema bicameral, os senadores tenderiam a votar de acordo com as preferências dos governadores e elites regionais. Não é, contudo, o que ocorre no Brasil. De acordo com estudos de Marta Arretche, o Senado brasileiro é uma casa partidária. Após analisar a forma como as bancadas estaduais de senadores votaram em emendas constitucionais e leis que afetaram negativamente os direitos das unidades constituintes entre o período de 1989 a 2009, a autora observou é o pertencimento partidário que define o comportamento dos senadores. Assim, é o poder de veto do partido, e não dos interesses estaduais, que caracteriza sua atuação. Portanto, nos moldes do que ocorre na federação americana, o sistema bicameral brasileiro tem a principal função de criar um dispositivo de atraso no processo de elaboração das leis, aumentando o número de atores com poderes de veto no processo legislativo, e a estabilidade decisória em favor do status quo, sendo os interesses partidários, e apenas episodicamente os interesses estaduais, o mote principal de sua atuação. 9 9. MODELOS DE REPARTIÇÃO DE COMPETÊNCIAS A “chave” para se entender a estrutura da organização federal reside no estudo do modelo de repartição de competências legislativas e administrativas adotada por uma federação, que se tratam de parte ineliminável da Constituição Federal material, do qual decorre a autonomia das entidades federativas. Relembre-se que o pressuposto básico de existência do federalismo é a adoção e manutenção de uma Constituição Federal. O modelo de repartição de competências adotado por uma federação depende muito das raízes históricas do estado. No Direito Constitucional brasileiro, o estudo do federalismo teve os Estados Unidos da América como modelo central. A federação americana, portanto, era o único parâmetro utilizado para a formulação do conceito e para a interpretação histórica da formação das federações. Esse método USA-centrado de estudo do federalismo, contudo, revelou-se insuficiente,pois não atentava para a diversidade de arranjos institucionais das diversas federações existentes, que se desenvolveram de forma notoriamente distinta da federação americana. Por essa razão a atual literatura da Ciência Política propõe uma nova compreensão sistemática da experiência federativa, sustentando que federações como os Estados Unidos, o Canadá e a Austrália possam ser unidos por laços históricos de um mesmo pensamento político federativo, enquanto federações como a Alemanha, Áustria e Suíça representam federações unidas por laços históricos que remontam ao antigo Sacro Império Romano Germânico, que resultaram em uma mesma linha de pensamento político federativo. Pois bem, as características centrais do modelo federativo classicamente denominado como federalismo dual ou legislativo, consistiam em uma rígida divisão vertical de competências entre dois centros de governo, o total (União) e os parciais (Estados), e a congruência entre as competências legislativas e administrativas a serem exercidos por cada governo. Assim, de acordo com este modelo dual ou coordenado de divisão de competências, cada centro de governo exerceria suas competências com independência e autonomia em seu âmbito de atuação, podendo, cada qual, desenvolver uma completa estrutura burocrática e judicial para garantir a implementação de suas leis. Este teria sido o modelo adotado pelas três federações anglo-saxãs, que comporiam a denominada “matriz federativa americana”, quais sejam: Estados Unidos, Canadá e Austrália. Por sua vez, no modelo do federalismo administrativo, as competências legislativas e administrativas são compartilhadas entre os dois níveis de governo, ao invés de separadas. Enquanto admite-se a concentração de competências legislativas no poder central, União, a implementação das funções administrativas e a execução dessas leis é atribuída predominantemente atribuída aos estados, que se encarregam de desenvolver estrutura administrativa necessária para a prestação destes serviços à população. Este modelo pressupõe a institucionalização de mecanismo de co-decisão e cooperação entre os entes federativos para a prestação de serviços público, sendo a principal característica da “matriz federativa germânica”, composta, sobretudo pela Alemanha, Áustria e Suíça. 10 9.1. Estados Unidos da América (1789) Em 1787, todos os Estados estadunidenses - à exceção de Rhode Island - selecionou e enviou delegados para a Confederação Federal na Philadelphia para discutir a revisão das Cláusulas da Confederação. Desde o início a maioria dos delegados concordou com a necessidade de se elaborar o projeto de um governo nacional. Após quase 4 meses de discussões e deliberações, em 17 de setembro de 1787 aprovou-se o projeto de uma nova Constituição Republicana, Federal e Democrática para os Estados Unidos, cuja entrada em vigor dependeria da ratificação de apenas nove Estados. É neste momento, com o objetivo de contribuir para a aprovação da nova Constituição, especialmente em Nova York, que a série dos “Artigos Federalistas” começou a ser publicada na imprensa nova-iorquina por Alexander Hamilton, James Madison e John Jay, sob o pseudônimo de Publius Atualmente, a federação estadunidense é composta por 50 Estados, um Distrito Federal (Washington, D.C.), quatorze territórios e cerca de 90 mil Municipalidades, segundo o censo governamental de 2012. Cada Estado americano tem o mesmo status constitucional e autonomia para criar e administrar seu próprio governo e seu sistema de entidades locais. A característica fundamental de seu sistema de repartição de competências foi o estabelecimento de um sistema dual, de governos separados, que enumerasse as competências de um governo central forte e garantisse a autonomia dos governos estaduais atribuindo-lhes todos os poderes não enumerados. Neste sistema, cada nível de governo assume a responsabilidade integral pela legislação, implementação e administração de suas competências em seu território. O chamado federalismo dual americano implica que, diferentemente do que ocorre na federação alemã, austríaca e suíça, o governo federal não pode se valer dos governos estaduais para executar suas leis e tarefas públicas “sob seu encargo”. Cada esfera de governo é independente da outra, podendo desenvolver uma estrutura burocrática completa para implementar suas leis e tarefas públicas, que modernamente vem sendo feita principalmente através de agências (agencies). A formação deste modelo de repartição de competência decorreu da percepção da necessidade de se instituir um sistema que permitisse o relacionamento direto entre a União e os cidadãos, sem a intermediação dos Estados, haja vista o fracasso da Confederação de fazer os Estados observarem suas leis, 9.2. Austrália (1901) A Austrália consiste numa federação de seis Estados e dez Territórios (a maior parte ultramarino), além do Território da Capital Federal. Embora somente os Estados desfrutem de autonomia assegurada constitucionalmente (Seções 103 e 102, ACA), três Territórios (Australian Capital Territory, Norfolk Island e Northen Territory ) contam com Poder Legislativo que, em sua maioria, é bicameral. A federação australiana resultou da reunião de colônias britânicas pela promulgação da Constituição Federal de 1901,que combinou elementos do federalismo norte-americano quanto à repartição de poderes e do federalismo canadense, quanto ao sistema de governo. Assim, o parlamentarismo, adotado nos âmbitos federal e estadual, foi conformado com um 11 modelo de repartição de poderes que lista os poderes da União e reserva aos Estados os poderes não-enumerados, característico do federalismo legislativo americano. Contudo, embora os elementos dualistas permaneçam marcantes no arranjo administrativo, no âmbito legislativo há previsão de uma substancial lista de competências legislativas concorrentes entre União e Estados, que denota a assimilação de alguns institutos de co- decisão legislativa. 9.3. República Federal da Áustria (1920) A Áustria é uma federação com sistema parlamentarista, de regime bicameral, e composta por 9 Länder, sendo Viena, a capital federal, uma cidade-estado. Seu sistema constitucional remonta à Constituição federal de 1920, com as alterações de 1929 e 1945. Diferente das federações já mencionadas, a Constituição austríaca (B-VG) estabelece uma estrutura de repartição de competências caracterizada pelo entrecruzamento de competências e co- decisão entre Bund e os Länder. As competências legislativas são fortemente centralizadas no Bund, através de títulos legislativos privativos (artigos 10, 11 da B-VG) e concorrentes (artigo 12 da B-VG), restando competências pouco significativas para os Länder (artigo 15 B-VG e as leis de execução nas matérias concorrentes do artigo 12 B-VG). Por outro lado, aos Länder foi atribuída a competência para a execução da maior parte das competências administrativas (artigos 15, 12 e 11 da B-VG). Por expressa determinação constitucional (artigo 102, §1.º, B-VG), a administração federal indireta é realizada unicamente pelas secretarias e órgãos dos Länder, de modo que só existe administração federal direta. 9.4. República Federativa da Alemanha (1949) A República Alemanha combina forma de estado federal e sistema de governo parlamentarista, que é replicado nos governos estaduais. É composta pela União (Bund) e dezesseis Estados (Länder), sendo, dentre estes, três cidades-Estados (Hamburg, Bremen e Berlin). Em 1999, todas as Länder reunidas possuíam um total de 426 circunscrições municipais (Kreise ou Landkreise) e cerca de 14 mil Municípios (Gemeiden). A característica central de sua estrutura constitucional de repartição de competências consiste no entrecruzamento vertical entre o Bund e os Länder. Enquanto as competências legislativas são centralizadas no Bund (art. 73e art. 74, §1º, LF), que é qualitativa e quantitativamente o grande responsável pela formulação de políticas, a execução destas leis e decretos federais e tarefas administrativas são predominantemente entregues aos Länder para administração como assunto próprio (als landeseigene Angelegenheit) (art. 83 e art. 84, §1º, LF), ou por encargo da União (im Auftrag des Bundes), através de delegação constitucional. Apesar do sistema federativo de forte entrecruzamento vertical de competências, no qual os Länder devem implementar a legislação, decretos e tarefas emitidas pelo governo federal através de ações administrativas e legislativas, o que não é considerado uma ameaça à sua autonomia. A coordenação federal é uma característica básica do federalismo alemão. Acrescente-se a isso a existência de vários títulos de concorrência legislativa entre Bund e Länder (Art. 72, §§ 2º e 3º, e Art. 74, LF). 12 Por fim, a Alemanha apresenta as características típicas de uma federação parlamentarista, sendo caracterizada pelo “federalismo executivo”, que implica na predominância de atuação dos Executivos na condução das negociações intergovernamentais. 9.5. República Federativa do Brasil (1891) No Brasil, a ideia federativa foi cogitada já no tempo do Império. Segundo Marcelo Caetano, o Ato Adicional de 1834, elaborado na vigência da Constituição Imperial de 1824 sob a influência dos liberais, preconizou uma “Monarquia Federativa”, que acabou somente por resultar na concessão de uma maior autonomia às Províncias, que passaram a eleger uma Assembleia Legislativa. Nesse caminho, o Partido Republicano, convencido da ideia federativa, instituiu a Federação brasileira em 1889, antes da própria proclamação da República. No artigo 2º do Decreto do Governo Provisório previu-se que “as províncias do Brasil, reunidas pelo laço da Federação, ficam constituindo os Estados Unidos do Brasil”. De acordo com Marcelo Caetano, “o Governo Provisório, usando do poder constituinte revolucionário, erigiu os Estados- membros, declarando-os soberanos e seguidamente, em nome deles, os privou da soberania, ao uni-los numa República Federativa”, que foi ratificada pela Constituição de 1891. Daí a concepção do federalismo por desagregação brasileiro, pois foi a União quem criou os Estados-membros, não o contrário. O sistema de repartição de competências adotado seguiu o clássico modelo estadunidense, atribuindo poderes enumerados para a União (competências privativas do Congresso Nacional - Art. 34, 1 a 35, CF 1891) e poderes reservados aos Estados-membros (Art. 65, §2º, CF1891),4 sem qualquer forma de partilha de competências legislativas. De fato, a primeira Constituição Federativa do Brasil consolidou uma república federativa bicameral, presidencialista e bastante descentralizada, nos moldes estadunidenses. A primeira república foi marcada por um pacto oligárquico (chamado de “Política dos Governadores”), em que o governo federal ignorava o que ocorria na esfera administrativa e financeira dos Estados-membros, sob a condição de que estes apoiassem o governo federal nas grandes decisões políticas. Em revisão ao modelo federativo dual vigente, surge a Constituição Federal de 1934, que, orientada pelo preceito da descentralização administrativa, inaugura um sistema de distribuição de competências baseada no federalismo cooperativo, através da introdução de mecanismos de cooperação legislativa. Atente-se, contudo, que o novo modelo constitucional de 1934 também estruturou um federalismo mais centralizado, consubstanciado no adensamento das competências legislativas da União, ao prever em seu artigo 5º, 18 matérias administrativas privativas (incisos I a XVIII), conjuntamente com 13 matérias legislativas privativas (inc. XIX, alíneas a a m) da União. Nesse quadro, a manutenção do equilíbrio federativo deu-se pela introdução de inéditos mecanismos de cooperação legislativa entre União e Estados-membros. Duas foram as 4 CF 1891, Art. 65, §2º: É facultado aos Estados-membros..., em geral, todo e qualquer poder ou direito, que lhes não for negado por cláusula expressa ou implicitamente contida nas cláusulas expressas da Constituição. 13 técnicas adotadas. Primeiro, no § 3º do artigo 5º, da Constituição Federal de 1934, previu-se que a competência federal privativa para legislar sobre amplo número de matérias não excluía a legislação estadual supletiva ou complementar. Segundo, criou-se título de legislação concorrente entre União e Estados-membros, composta por sete matérias (art. 10), cujo paradigma, conforme já afirmado anteriormente, encontra-se nos artigos 10 e 11 da Constituição de Weimar. De ressaltar que este modelo federativo de cooperação limitou-se à esfera formal, servindo mais como exemplo institucional histórico, pois já em 1935 a Constituição foi emendada, instaurando uma situação similar ao estado de guerra. Ainda, no âmbito das relações intergovernamentais, mesmo com a Constituição Federal de 1934, manteve-se a “política do pires na mão”, marcada pela falsa autonomia dos Estados-membros, pela irracionalidade da distribuição dos recursos financeiros, que era feita na forma de transferências específicas baseadas em laços de solidariedade pessoal e assistencialismo político-partidário. Veio o chamado “Estado Novo” e a Constituição de 1937, que apesar de se declarar “federativa”, instituiu um verdadeiro Estado Unitário, especialmente no âmbito das relações intergovernamentais com os Estados-membros, pois através do Decreto-Lei 1.202/1939, que tratou da administração dos Estados-membros e dos Municípios, os entes subnacionais foram reduzidos a meros entes descentralizados do poder central. Quanto ao sistema de repartição de competências, convém ressaltar duas técnicas inéditas introduzidas em nosso sistema constitucional. Em primeiro lugar, a Constituição de 1937 reservou dois artigos distintos para tratar da repartição das competências constitucionais: no artigo 15 tratou das competências administrativas privativas da União e no artigo 16, tratou das competências legislativas privativas da União. Apesar disso, verificou-se novo aumento das matérias reservadas à competência legislativa privativa da União, que passou a ter o poder de legislar sobre 27 matérias (art. 16, incisos I a XXVII). Em segundo lugar, previu-se a possibilidade de delegação aos Estados-membros das matérias de competência exclusiva da União, seja para regular a matéria, seja para suprir as lacunas da legislação federal, quando se tratasse de questão de interesse predominante de um ou alguns Estados-membros. Contudo, nesse caso, a lei estadual só entraria em vigor se aprovada pelo Governo federal (art.17, CF1937), o que evidencia a nota centralizadora da opção constitucional. Nesse sentido, Raul Machado Horta explica que, apesar de ter sido previsto no artigo 18, da Constituição Federal de 1937, a possibilidade de legislação suplementar ou complementar dos Estados-membros, o próprio constituinte tolheu ao referido título legislativo qualquer efetividade prática. Pelo parágrafo único deste artigo, a lei estadual suplementar ou complementar editada poderia ser derrogada por lei federal ou, até mesmo, por regulamento federal. Daí a debilidade da legislação estadual e da própria técnica legislativa suplementar, que não passava de mera disposição semântica a serviço do federalismo nominal de 1937. A Constituição de 1946 foi elaborada com o desejo de revalorizar a autonomia dos Estados- membros, sufocada no período de ditadura getulista, restabelecendo parte do sistema de repartição de competências estruturado na Constituição de 1934. Assim, a federação de 1946 representou um retraimento ao aumento do poder normativo da União operado em 1937. Em seu artigo 5º entregou-se basicamente as mesmas competências administrativase legislativas privativas conferidas à União em 1934, com pequeno acréscimo de matérias 14 legislativas privativas, que passaram para 18 (inc. XV, alíneas a a r). Já as matérias administrativas privativas foram reduzidas para 14 (incisos I a XIV). No âmbito das relações intergovernamentais, contudo, o sistema federativo de 1946 não alterou o processo crescente de centralização das tarefas administrativas pela administração federal, decorrente do retraimento da autonomia dos Estados-membros operado a partir de 1937. A Constituição de 1967 veio após o Golpe de Estado dado pelos militares em 1964 trazendo consigo um novo aumento das competências privativas da União, que resultou na decadência da autonomia dos Estados-membros e na instauração de um federalismo semântico. O sistema constitucional de repartição de competências ressuscitou o antigo modelo da Carta Política de 1937. Na sequência, a Emenda Constitucional nº 1 de 1969 veio apenas ratificar o caráter centralizador da ditadura militar, que reduziu a federação a um Estado unitário. Por força da nova Carta, promulgada anomalamente via emenda, a União passou a legislar privativamente sobre 21 matérias (art. 8, XVII, alíneas a a v). Segue-se o período de transição democrática lenta, gradual e segura - que, conforme percebe Alessandra da Silveira, “conseguiu durar tanto quanto a ditadura (...) (ditadura: 1964-1974; transição: 1974-1985)” -, a qual foi marcada por relações intergovernamentais bilaterais como mecanismo ordinário de concertação entre entes federativos e não por um processo multilateral. É nesse período que a ideia de redemocratização é associada à ideia de descentralização administrativa, com resultados decisivos para o novo sistema federativo estruturado pelo Congresso Constituinte de 1988. Uma das reivindicações democráticas dos anos de 1970 e 1980 consistia na descentralização das políticas públicas. A avaliação unânime de que a excessiva centralização decisória do regime militar havia produzido ineficiência, corrupção e consenso em torno das virtudes da descentralização. Chegado o novo período democrático, o sistema federativo consagrado pela Constituição Federal de 1988, apesar de encontrar sua base no clássico federalismo dual americano, pretendeu reaproximar a federação brasileira ao chamado federalismo cooperativo, cujas principais fontes de “inspiração cooperativa” encontram-se, no plano nacional, nas Constituições de 1934 e 1946, e, no plano internacional, na experiência federativa alemã. Dentre as inovações trazidas em seu sistema federativo destaca-se a “promessa da Federação Trina”, que consagrou forte autonomia ao Município, desvinculando-o juridicamente de seu Estado-membro e elevando-o ao status de pessoa política integrante do pacto federativo, com poder de auto-organização, mediante lei orgânica (art. 29), e autoadministração.5 Tendo isso em vista, sustentei em estudos anteriores que a federação brasileira pós- Constituição de 1988 instituiu um modelo federativo misto, no qual convivem tanto instituições do federalismo cooperativo, em razão da contínua assimilação de técnicas de 5 Para um estudo comparado da autonomia dos governos locais nas federações da Alemanha, Argentina, Áustria, Austrália, Brasil, Estados Unidos, Índia e Suíça ver: TOMIO, Fabricio R. L.; ORTOLAN, Marcelo A. B.; CAMARGO, Fernando S.; Autonomia dos governos locais em federações: uma análise comparativa. In: Revista Brasileira de Estudos Constitucionais (RBEC), v. 5, p. 53-92, 2011. 15 cooperação legislativa (competência legislativa concorrente) e administrativas (competências administrativas comuns; regiões metropolitanas; planos nacionais para a integração de regiões; gestão associada de serviços públicos; consórcios públicos e convênios de cooperação; dentre outros), quanto instituições do federalismo dual, representado pelo modelo central de repartição de competências brasileiro, que atribui os poderes enumerados para a União e reserva os remanescentes para os Estados-membros, sendo que cada esfera governamental dispõe de uma burocracia completa para exercer essas competências com autonomia e independência dentro de seu âmbito territorial.6 A atual federação brasileira é formada pela União, 26 Estados-membros, um Distrito Federal e 5.560 Municípios, todos autônomos, nos termos da Constituição Federal (art.18). 10. REPARTIÇÃO DE COMPETÊNCIAS NA CF88 (i) Competências Legislativas: competência para fazer leis (ii) Competências Materiais ou Administrativas: exercer função administrativa e executar políticas públicas Art. 21 – Competência Administrativa/Material Exclusiva União Art. 22 – Competência Legislativa Privativa da União / Delegação Art. 23 – Competência Administrativa/Material Comum (União, Estados, DF e Municípios) Art. 24 – Competência Legislativa Concorrente (União, Estados e DF) Art. 30, I – Competência Legislativa Exclusiva do Município Art. 25, §1º - São reservadas aos Estados as competências que não lhes sejam vedadas por esta Constituição. Resolução de conflitos de competência/leis: princípio da predominância do interesse. Competência Ente federativo 1) Privativa/ Exclusiva: 1.a) União (art. 22) - competências enumeradas, passíveis de delegação aos Estados (§ único), por isso privativas e não exclusivas; 1.b) Municípios (art. 30) - competência para assuntos de interesse local; 1.c) Distrito Federal (art. 32, § 1.º) – mesmas competências dos 6 Ver: TOMIO, Fabricio R. L.; ORTOLAN, Marcelo A. B.; CAMARGO, Fernando S. Análise comparativa dos modelos de repartição de competências legislativas nos Estados-membros federados. In: Revista da Faculdade de Direito. Universidade Federal do Paraná, v. 51, p. 73-100, 2011. 16 Estados e Municípios. 2) Delegada: Art. 22, § único – LC federal poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias privativas da União. Trata-se, contudo, de competência raramente usada. 3) Concorrente: A União, os Estados, o Distrito Federal (art. 24) legislam concorrentemente; Regra: União estabelece normas gerais; Estados, Distrito Federal e Municípios estabelecem normas suplementares; Os Municípios podem, por força do art.30, II, CF, suplementar a legislação estadual e federal no que couber. OBS: Art. 22, incs. IX, XXI, XXIV e XXVII – falha técnica na CF. Também são matérias passíveis de legislação concorrente. 4) Residual ou Remanescente: Estados (art. 25, §1.º) – competência residual ou remanescente (tudo que não é atribuído à União nem ao Município); 10.1. Competência legislativa privativa da União As competências legislativas privativas são compostas por matérias de disciplina privativa da União (art. 22), mas a com possibilidade de delegação normativa aos Estados, mediante lei complementar. Deve-se ressaltar, entretanto, que este rol não é exaustivo, havendo outras competências legislativas da União previstas no artigo 48 da CF e outras tantas dispersas no texto constitucional. Seguindo o processo de ampliação das competências legislativas da União, que norteou progressivamente as Cartas Políticas brasileiras, na Constituição Federal 88 se identifica um adensamento quantitativo e qualitativo das competências legislativas e administrativas privativas da União e, nesse sentido, uma centralização legislativa federal. Apesar dessa ideia vir comumente associada às históricas experiências unitarizantes dos períodos ditatoriais, chama-se a atenção para o fato desse processo não dever ser entendido como um mal em si mesmo. Nos dias de hoje, o aumento do poder de uniformização da União, através da normatização central, parece imperativo pragmático, notadamente, em razão da modificação da própria concepção de Estado e de suas funções, com significativoincremento de suas tarefas nos âmbitos sociais e econômicos. Não há razão para se considerar que uma lei estadual, “por sua natureza”, seja “melhor” que uma lei federal. Em verdade, elas têm funções diferentes a cumprir: a primeira vocacionada à preservação das diversidades locais, enquanto a segunda direcionada à homogeneização das condições em nível nacional. Daí concluir-se que a corrente aversão doutrinária pelo adensamento das competências legislativas da União deve ser relativizada. O importante é que o equilíbrio federativo seja compensado por outras técnicas que incrementem a autonomia dos Estados (e no caso brasileiro também dos Municípios), como o aumento de seu poder de participação no processo legislativo federal ou o incremento de técnicas de cooperação legislativas e administrativas. 10.2. Competência legislativa remanescente dos Estados O art. 25, §1º, da Constituição Federal, entregou aos Estados-membros a competência para legislar sobre as matérias remanescentes (não enumeradas à União). A adoção desta 17 técnica, preconizada pela matriz federativa americana, implica que as competências privativas da União devem ser expressamente enumeradas pelo texto constitucional, sendo que as remanescentes ficam a cargo dos Estados-membros. A este respeito, interessante ressaltar que, após desenvolver um estudo comparado, Thomas Hueglin concluiu que a interpretação judicial deste modelo de divisão de competências ocorreu de modo curiosamente contrário à sua intencionalidade. Vale dizer, nas federações em que se atribuiu as competências remanescentes às unidades constitutivas, como nos Estados Unidos, Austrália, Alemanha e Brasil, em casos de dúvida a respeito do ente federativo responsável pela normatização da matéria, a interpretação judicial acabou decidindo em favor do poder central. Ao contrário, nas federações em que os poderes remanescentes foram atribuídos ao governo central, como no Canadá e Índia, a interpretação judicial prevaleceu em favor das unidades constitutivas. Não obstante a Constituição Federal adotar a fórmula clássica estadunidense, a Constituição Federal também atribui poderes expressos aos Estados-membros, dentre os quais podem ser citados a competência para explorar, diretamente, ou mediante concessão à empresa estatal, os serviços locais de gás canalizado (artigo 25, §2º), a competência para instituir, mediante lei complementar, regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões (artigo 25, §3º), a competência tributária (artigo 155), dentre outros. 10.3. Competência legislativa concorrente A Constituição Federal, em seu artigo 24 e parágrafos, reproduzindo a técnica de legislação de princípios alemã, cuja origem remonta aos artigos 10 e 11 da Constituição de Weimar, previu a competência legislativa concorrente, que se constitui em técnica de repartição vertical de competências (de normas gerais da União e normas particulares pelos Estados- membros). De acordo com a técnica da legislação concorrente brasileira, a competência da União limita-se a prescrever normas gerais, que deverão possibilitar a legislação suplementar das matérias pelos Estados-membros. Se não existir, todavia, lei federal sobre a matéria concorrente, os Estados-membros poderão exercer a competência legislativa plena (quanto a normas gerais e particulares). Neste caso, se em momento posterior uma lei federal sobre normas gerais for editada, esta deverá ser aplicada, com a suspensão da eficácia (não revogação) dos dispositivos contrários da lei estadual. Já os Municípios poderão somente suplementar a legislação federal e a estadual no que couber (art. 30, II, CF). 10.4. Competências Materiais ou Administrativas Comuns A incorporação das competências comuns pela Constituição Federal de 1988, como instrumento de cooperação administrativa entre os entes federativos, foi umas das principais consequências do movimento de descentralização administrativa que caracterizou a constituinte, e buscava afastar o modelo de gestão centralizada que marcou a “federação” do regime militar. Nesse sentido, a superposição de tarefas prevista pela competência administrativa comum tinha por objetivo que a execução daqueles serviços públicos pudesse ser realizada por qualquer ente federativo individualmente, ou por todos cumulativamente, com ganhos para a descentralização e a eficiência da gestão pública. 18 Por definição, as competências administrativas comuns condensam matérias não exclusivas, paralelas ou cumulativas, que podem ser implementadas em condições de igualdade e de maneira plena pela União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios. Anna Cândida da Cunha Ferraz ainda anota que “embora se cogite, na espécie, de exercício de „poder‟, de execução, de atividade ou desempenho de encargo, as competências gerais não excluem ação normativa precedente, emanada da própria esfera de poder.” Portanto, a Constituição de 1988 atribuiu à União, aos Estados-membros, ao Distrito Federal e aos Municípios a competência comum para executarem a maior parte das políticas públicas sociais brasileiras, de modo que cada um deles pode regulamentar e implementar estas políticas, dentre as quais se destacam as áreas da proteção ao patrimônio público (art. 23, I), saúde (art. 23, II), educação (art. 23, V), assistência social (art. 23, II), habitação (art. 23, IX), saneamento (art. 23, IX), meio ambiente (art. 23, VI e VII), combate à pobreza (art. 23, X), dentre outras. Ocorre que a descentralização administrativa ocorrida neste período resultou na conformação de um “federalismo compartimentalizado”, em que cada nível de governo procurava encontrar seu papel específico e não havia incentivos para o compartilhamento de tarefas, o que resultou num verdadeiro “jogo de empurra” entre os governos, sendo que a União, numa postura defensiva, buscava apenas repassar funções, o que veio a ser denominado por “operação desmonte”. De fato, o parágrafo único do artigo 23, da Constituição Federal, sempre trouxe a previsão de fixação de normas para a cooperação entre os entes federados na execução dessas tarefas, com vistas ao “equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional”, através de leis complementares (no plural, conforme nova redação dada pela EC nº 56/2006), que nunca foram promulgadas, à exceção da recente Lei Complementar nº 140, de 8 de dezembro de 2011, conhecida como Lei do Licenciamento e Fiscalização Ambiental. O compartilhamento não regulado das competências comuns conduziram a um padrão compartimentalizado de execução de políticas públicas, em que cada governo buscava executar suas tarefas de maneira isolada dentro do âmbito territorial, levando a uma grande heterogeneidade, fragmentação e desigualdade nos serviços prestados. Haviam poucos incentivos a cooperação entre os entes para a prestação conjunta de serviços comuns. Esse quadro se altera em meados dos anos 90, após a estabilização econômica do Brasil, através de um processo de coordenação setorial conduzido pelo governo federal, que passou a estabelecer estruturas cooperativas para áreas específicas de políticas públicas através de regulamentação setorial. Assim, através de regulação central federal (lei formal e regulamentação administrativa), a União passou a incentivar a execução coordenada e cooperativa de algumas políticas sociais, notadamente nas áreas da saúde, educação e assistência social, disponibilizando recursos através de transferências condicionadas (semelhantes ao grants-in-aid americano), e atribuindo predominantemente ao Município a competência para prestar serviços públicos para o cidadão. Esse padrão cooperativo, contudo, não se desenvolveu em todas as áreas sociais, nem concretizou o esperado federalismo cooperativo, do que se depreende todavia existir muito por fazer.
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