Buscar

antropologiadotempod16-jborges

Prévia do material em texto

UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
O RETORNO DA VELHA SENHORA OU
A CATEGORIA TEMPO ENTRE OS KRAHÔ
JÚLIO CÉSAR BORGES
Dissertação apresentada ao 
Departamento de Antropologia
da Universidade de Brasília, 
como parte dos requisitos para a 
obtenção do título de Mestre, 
sob orientação da
 Profª. Drª. Alcida Rita Ramos
BRASÍLIA,
MARÇO DE 2004
O RETORNO DA VELHA SENHORA OU
A CATEGORIA TEMPO ENTRE OS KRAHÔ
Júlio César Borges
Dissertação de Mestrado em Antropologia Social,
defendida no dia 1º de março de 2004
BANCA EXAMINADORA:
Prof. Dr. Julio Cezar Melatti, DAN/UnB
Profª. Drª. Rita Heloísa de Almeida, FUNAI
Prof. Dr. Roque de Barros Laraia, DAN/UnB (Suplente)
2
2
SUMÁRIO
AGRADECIMENTOS ................................................................................................... PG. 05
APRESENTAÇÃO ........................................................................................................ PG. 06
PRELÚDIO ................................................................................................................. PG. 11
CAPÍTULO I: 
O TEMPO COMO CONSTRUÇÃO HUMANA ................................................................. PG. 15
CAPÍTULO II: 
ALTERNÂNCIA E LINEARIDADE DO TEMPO: OS CICLOS COTIDIANOS ..................... PG. 31
CAPÍTULO III:
O DUPLO ASPECTO DO TEMPO NOS CICLOS SAZONAIS .............................................. PG. 64
CAPÍTULO IV:
O DUALISMO DO TEMPO NA PESSOA ........................................................................... PG. 86
CONCLUSÃO ................................................................................................................ PG. 99
ANEXO ........................................................................................................................ PG. 104
BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................... PG. 108
"O movimento do Tao nasce dos contrários..."
"Todas as coisas são produzidas pelo Tao 
e nutridas pelo seu constante fluir. 
Recebem suas formas de acordo com sua própria natureza e se completam, 
de conformidade com suas contingências existenciais."
LAO TSÉ
AGRADECIMENTOS
Muitos foram aqueles que, de uma forma ou de outra, contribuíram com a
elaboração desta dissertação. Agradeço primeiramente ao Departamento de Ciências
Sociais da Universidade Federal de Goiás, em especial às professoras Genilda Darc
Bernades, Maria Luíza Rodrigues e Selma Sena do Amaral; à Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pela concessão da bolsa de
estudos do Programa de Demanda Social; e ao Departamento de Antropologia da UnB, na
figura de Rosa Cordeiro por sua inabalável solicitude e competência e aos professores
Carla Teixeira, Paul Little, Stephen Baines, Ellen Woortmann, Mariza Peirano, pelo
aprendizado que propiciaram com suas aulas. 
À Alcida Rita Ramos, sou grato pelo muito que me ensinou do ofício, nas aulas e
na orientação desta dissertação. 
À Rita Heloísa de Almeida e ao professor Julio Cezar Melatti, por terem aceitado
participar da banca examinadora. Também agradeço ao Melatti pela permissão dada, em
fevereiro deste ano, para apresentação dos mitos das metades e de Hartãt. 
À Nádia Farage, da Unicamp, com quem tive a oportunidade de trabalhar durante
um semestre por conta do Estágio Docente I.
Aos colegas do programa, e em especial os da Katakumba que fazem desse espaço
um lugar de sociabilidade humana e de intercâmbio intelectual: Lú Ramos, Cesar Perez,
Cloude, Marquinhos, Lea, Rodrigo Pádua, Léo, Dionísio, Ronaldo Lobão, Gonzalo,
Karenina, Patrícia, Carlos Caixeta, Carlos Emanuel, Jaime, Ney Maciel, Thiago Ávila,
Adolfo, Marcus, Ivan, Héber, Roberto, José Pimenta.
Ao Manoel Alves Kateye, que recebeu tão bem em setembro último.
E às três mulheres da minha vida, porque sem elas eu não teria me atentado para o
mistério do tempo: minha mãe, Beatriz; minha esposa, Heliane; e minha filha, Maria Luz. 
APRESENTAÇÃO
Esta dissertação bem poderia ser tomada como signo do tema de que trata - o
tempo. Ela procura corresponder à expectativa, culturalmente construída, de que com o seu
fluir, experiências e conhecimentos se acumulam e acabam por produzir resultados
concretos. Como o produto final de um processo de aprendizagem, ela fecha um ciclo que
durou quatro semestres acadêmicos, preenchidos com tantas atividades que pareceram
passar "voando"1, e que fizeram do seu autor, espera-se, um sujeito mais sabedor das coisas
humanas, embora as coisas não caminhem linearmente de maneira tão simples. Por outro
lado, ela resulta, em parte, do meu envolvimento com um ambiente social - o da
universidade – que, de certo modo, tem seu calendário próprio, em alguns aspectos
independente daquele do mundo social mais amplo e em outros altamente influenciado por
ele. Some-se a isso ser esta dissertação o objeto ritual central na cerimônia que
simbolicamente encerra o referido ciclo acadêmico. Mas, sem mais "perda de tempo",
vamos ao assunto principal. 
* * * * * * * 
O "sistema temporal" é uma via assaz útil para o entendimento de uma sociedade,
visto que ele lança luz sobre as principais articulações que dão ritmo e dinâmica à vida
social (Sue, 1995: 23). Porque o estudo dos tempos de uma sociedade pode revelar as
atividades sociais que são particularmente importantes e significativas para ela, nos
informando assim acerca do seu sistema de valores e da sua organização social, tomo como
o objeto central a noção de tempo entre os índios Krahô. Busco apreendê-la a partir da
revisão da bibliografia interessada neste povo Timbira, de afiliação lingüística Jê e que
habita o norte do Estado do Tocantins. O conjunto de tais obras inclui desde a clássica
monografia de Curt Nimuendajú, Eastern Timbira (1946)2 e os estudos de Harald Schultz
(1950) até os trabalhos de Vilma Chiara (1961-62, 1978, 1979), Manuela Carneiro da
Cunha (1978, 1979, 1986), Maria Elisa Ladeira (1982) e Gilberto Azanha (1984), e,
1 Aliás, esta é uma percepção do tempo generalizada, atualmente, nas sociedades modernas, tal é a
quantidade de atividades com as quais os sujeitos se têm envolvido. Imagens de movimento intenso são
geralmente utilizadas para expressar essa sensação. Assim, é comum ouvirmos expressões do tipo "este ano
passou correndo", "o dia hoje voou" e outras afins. É interessante notar o uso de verbos que denotam ação,
movimento para se referir a uma realidade muitas vezes tomada como etérea, metafísica ou no mínimo
abstrata: o tempo.
2 Isto, muito embora a maior parte de seu texto verse sobre os Rankokamekrá, ramo dos Canela do Maranhão
e que também são classificados como Timbira Orientais. 
principalmente, os de Julio Cezar Melatti (1970, 1973, 1974, 1974b, 1976, 1976b, 1978,
1978b, 1981, 1982, 1984, 1993, 2002). Ainda recorrerei a alguns trabalhos do Projeto
Havard-Brasil Central, cujos resultados estão reunidos em Dialectical Societies (Maybury-
Lewis, 1979), visto que alguns deles lidam com o problema de tempo e ritual em
sociedades Timbira, como é o caso do estudo de Jean Lave (1979) sobre os ciclos
delimitados pelos rituais de nominação entre os Krikati. Desta última autora é o trabalho
acerca dos sistemas de metades dos Timbira Orientais (Lave, 1977), ao qual também
recorro. Em alguns pontos da dissertação evocarei observações realizadas por mim quando
estive na aldeiaKrahô de Manoel Alves, em setembro de 2004.
Assim, procuro deslindar dimensões não-ditas da cultura e da sociedade Krahò
naquilo que já foi dito. Mais que a um conceito abstrato da filosofia nativa, pretendo
chegar à compreensão da temporalidade Krahô tal como vivida nos rituais - do ciclo diário,
do ciclo anual, da construção da pessoa humana - e na forma como se organizam
socialmente para o desempenho das práticas cotidianas. Se os estudos sobre tempo e
sociedade podem ser divididos em pragmáticos e cosmológicos, como sugere Ezzell (2002:
86), não vejo como cindir os significados que as pessoas atribuem ao mundo e a maneira
como agem sobre ele. Pretendo responder a perguntas como: Qual a visão que os índios
Krahô têm do fluxo das coisas e dos seres? Quais são seus "pontos de referência"
temporais? Quais são os marcadores simbólicos da sua periodização do tempo? Mas
também: Quais as implicações pragmáticas dessa visão na ordenação das suas práticas
culturais? A organização das práticas cotidianas depende, pois, da ordenação simbólica
inerente ao tempo social (Ramos, 1990.; Overing, 1995; Silva, 2000).
Dito de outra forma, procuro ver como a gama de significados da organização
dualista Krahô (Lévi-Strauss, 1970; Maybury-Lewis, 1979; Melatti, 1976) se faz refletir
sobre sua concepção e experiência do "tempo". Sem perder de vista que tempo e espaço são
dimensões interconectadas, ao analisar a temporalidade da práxis observo também o
movimento das pessoas, o deslocar de seus corpos pelos espaços simbólicos da aldeia para
chegar à compreensão de como o "tempo" é vivido, construído e significado através das
suas práticas cotidianas (Munn, 1992: 116). Assim procedendo, espero descrever de modo
convincente como sua temporalidade se estrutura em torno do "tempo social dominante" do
ritual, do cerimonial, visto que as cerimônias parecem ser para os Krahô sua razão de ser e
que "um tempo social não designa senão uma prática tida como dominante que é
particularmente valorizada, agregando de fato uma multiplicidade de práticas sociais"3
3 "Un temps social ne désigne qu'une pratique censée être dominant que est particulièrement valorisée,
agrégant en fait une multiplicité de pratiques sociales".
(Sue, 1995: 124). 
Uma categoria cultural como a de "tempo" pode se manifestar em estruturas de
sentido que vão desde o vocabulário e a gramática (Whorf, 1968) até complexos
calendários, ou pode estar condensada em comportamentos simbólicos como os dos rituais
que, observa Leach (1974), cumprem a função de ordenar temporalmente a vida social.
Nesse sentido, vejo o comportamento humano como uma ação simbólica, uma ação que
"diz" algo. Com Geertz, defendo que ao analisar o fluxo dos comportamentos sociais,
pode-se perceber que "fatos pequenos podem relacionar-se a grandes temas", pois "as ações
sociais são comentários a respeito de mais do que elas mesmas" (Geertz, 1989: 34). Para
chegar ao tempo vivido, adoto, pois, uma perspectiva hermeneuticamente orientada que
busca a interpretação através da abertura dos símbolos, que possibilita “a articulação entre
o lingüístico e o não-lingüístico, a linguagem e a experiência vivida” (Ricoeur, 1987: 58), o
elo vital entre o sistema simbólico e a vivência cotidiana. 
Minha escolha pelo tema do tempo sociocultural liga-se ao fato de pretender chegar
à compreensão de uma "alteridade radical" (Peirano, 1998) estudando a forma como esse
Outro constrói seu tempo, como o concebe e como o vive. Este intento torna-se ainda mais
relevante na medida em que vemos e presenciamos um Ocidente, em sua crescente parcela
urbana, preso a um presente cada vez mais absoluto, a um ritmo social cada vez mais
frenético. Este foi o meu impulso original: como sociedades donas de outras tradições
culturais percebem o tempo e como esta percepção está ligada às suas práticas cotidianas,
sob quais ritmos sociais vivem esses sujeitos outros? Quanto aos Krahô, meu interesse por
eles começou na graduação, quando então pude, pela primeira vez, ler "Ritos de uma Tribo
Timbira" (Melatti, 1978). Desta leitura, me impressionou muito a quantidade de rituais -
"festas" - desse povo, que há mais de um século já havia estabelecido contato ininterrupto
com a sociedade nacional. Esta dissertação dá continuidade, certamente de maneira mais
elaborada, ao meu trabalho de final de curso no qual esboço uma pesquisa acerca da sua
temporalidade como sendo construída a partir dos rituais, pois continuo acreditando que
compreendê-la, sob a luz da antropologia, pode relativizar nossa própria noção e
experiência do tempo4.
4 Ainda sobre meu interesse pelos Krahô, durante o curso de Introdução à Antropologia, ministrado pela
professora Drª. Telma Camargo, também tive a oportunidade de assistir ao documentário "Krahô: os filhos
da terra", de Luís Eduardo Jorge, que registra a fase final do rito funerário de Tôh Tôt, neto do então cacique
da aldeia Manoel Alves, Secundo Tôh Tôt. Dois outros fatos contribuíram para que eu me decidisse a estudar
esta sociedade: primeiro, as conversas que mantinha com uma amiga, Hévila Cruz (hoje mestre em
Antropologia pela UFSC), que passou boa parte da sua infância na aldeia Pedra Branca e que estava
realizando uma pesquisa sobre como se apresenta, a esses índios, a ligação entre a noção de pessoa e a de
doença; e segundo, a localização relativamente próxima da sua Terra Indígena da cidade de Goiânia, onde eu
morava. 
À parte a relevância desta temática no pensamento antropológico, como veremos
abaixo, tomar como objeto de estudo a noção de "tempo" de uma sociedade indígena das
Terras Baixas da América do Sul é retomar uma questão clássica na Etnologia Sul
Americana, cujo marco foi o simpósio organizado por Joana Overing, em 1976 5. Devo
acrescentar ainda que o mapeamento da bibliografia etnográfica concernente aos Krahô
revela que há uma lacuna no que diz respeito a esse tema. Não existem trabalhos
específicos sobre o "tempo", a não ser uma breve discussão feita por Carneiro da Cunha
(1986) sobre a noção de tempo entre os Timbira Orientais num ensaio dedicado ao
messianismo Canela. Tal espaço precisa ser preenchido, posto ser a categoria de tempo de
tal importância no sistema sociocultural Krahô que se faz instituída na sua organização
social, como veremos.
 Um estudo antropológico do "tempo" do Outro, ademais, pode fazer jus a um dos
mais caros objetivos da antropologia, qual seja, o de alargar o universo do discurso humano
(Geertz, op. cit.: 24). Isto porque sob a categoria "tempo" encontramos todo um arcabouço
de construtos lógicos que informam a visão dos sujeitos humanos acerca da ordenação do
cosmos, dos seres que o povoam, da sucessão das coisas, construtos estes que podem
apontar para direções diferentes das nossas. Além disso, o que torna nossa disciplina digna
de interesse é que seus achados, suas descobertas, guardam uma "especificidade
complexa", uma "circunstancialidade", ainda segundo Geertz (Idem: 34; 228). Ou seja, a
pesquisa antropológica é capaz de chamar a atenção para formas muito particulares de
respostas a questões gerais como a do "tempo"; uma questão que pode ser, de saída, nossa,
mas que também pode mobilizar outras pessoas noutros lugares.
* * * * * * *
A dissertação começa com um capítulo onde desconstruo o “tempo” como uma
realidade objetiva, dotado de uma essência independente dos seres humanos. Assim
fazendo, procuro demonstrar que ele é construído pelas, e para as, atividades sociais, bem
como deixo claras as perspectivas a partir das quaisabordo a temporalidade Krahô. Em
seguida, o capítulo dois começa com uma breve etnohistória desta sociedade pari passu
com uma caracterização da ligação da morfologia espacial das suas aldeias com sua
cosmologia e organização social. Passo então a uma análise de duas seqüências mitológicas
5 “Social time and social space in Lowland South American Societies”, realizado durante o 42º Congresso
Internacional de Americanistas, em Paris (Overing Kaplan, 1977).
como bases cosmológicas sobre as quais se funda a noção de tempo Krahô, para depois
abordar como esta noção embebe de sentido as práticas dos ciclos cotidiano. No capítulo
seguinte, analiso como os ritos desempenham o papel de marcadores do tempo sazonal,
bem como discuto como as corridas de toras são ritos permeados do simbolismo da
alternância e da linearidade. Ainda neste capítulo, veremos como os conceitos Wakmeye e
Katamye concorrem para a formação de um sistema de classificação dos mundos “natural”
e social associado à categorização do tempo. O último capítulo é um esforço de análise de
como o simbolismo do tempo perpassa a construção da pessoa humana segundo a
perspectiva desta sociedade indígena. 
PRELÚDIO
O mito descrito abaixo revela dimensões inesperadas da sociedade Krahô. Ele põe
em evidência, entre outras coisas, o papel central da mulher na criação do tempo, abrindo,
assim, um caminho analítico até aqui inexplorado na literatura etnográfica sobre os Krahô.
Disse que foi povo antigo dessa aldeia6. O povo saiu para o mato para caçar. E foi
passando os dias e as noites no mato. E foram arranchar num outro lugar. Uma
velha saiu para o mato. E andava tirando fita de tucum. E por lá mesmo se perdeu.
Não sabia mais de onde tinha vindo, aonde estava o rancho; não podia mais
voltar. Lá mesmo andou, andou, procurando de onde tinha vindo e não achou. Lá
mesmo passou o dia. No mato. E a noite desceu e ela caminhou e parou lá num
lugar. Não dormiu à noite, passou a noite acordada, tentando escutar algum grito
de seu povo.
Até que chegou meia-noite. E lá vinha zoada, vem conversando, gritando como nós
quando corremos com tora. Aí ela ficou quieta, escutando. Quando vem chegando
perto, ela ficou pensando que era o povo dela, mas não era; era a Noite. Eram
muitos: eram homens, mulheres, moças. Chegaram e falaram para ela: "Como vai
vovó? Como vai vovó?" O chefe deles falou para ela: "Que você teve, que está
ficando aí sozinha, longe dos outros?" Ela respondeu: "Ora, eu fiquei assim
porque eu saí do rancho e fui para o mato, tirar fita de tucum para fazer cordinha,
fazer enfeite para mocinha. Aí fui tirando, fui tirando, e meu juízo não deu mais
para voltar. Aí eu dei volta, dei volta e não sabia onde está o rancho e me perdi e
assim a noite desceu aqui mesmo, sem saber aonde é que eu vou". A Noite falou:
"E foi assim que você ficou?" "Foi". "Você está perdida mas não vai acontecer
nada. Quando nós formos embora ainda vem outro grupo empurrando nós. Eu
falei para você porque nós queremos mesmo falar para você, você está aqui
sozinha e como eu já falei, já sei como você ficou. Não vai acontecer nada, nós já
passamos quase todos, ainda falta um restinho. Quando nós acabarmos de passar,
aí quando aclarear o dia, ainda vem outra turma, que é o Dia. O Dia vem chegar
aqui, o Dia também vai explicar para você e eu não vou contar história muita
porque nós já vamos avexadinho e eu falei para você. Você está vendo nós; nós
somos a Noite e nós somos Katamye, que é a Noite. E vem ainda outro partido,
outro grupo, que é o Dia e chama Wakmẽye. Quando você chegar lá na aldeia de
novo, você vai explicar para o povo para fazer desse jeito. Pode contar a história
que nós estamos passando, que nós somos Katamye. Todos nós conhecidos pela
folha verde (folha de buriti mesmo). O nosso toro se chama Katamti e nós fazemos
chapéu e pomos palha no pescoço, mas é só com palha madura, que é nosso
enfeite. Wakmẽye, vem atrás, é só com olho (olho de buriti, olho verde, novo) e
você amanhã ainda vem Wakmẽye atrás e vai botar você lá no povo seu". E a
Noite ia passando, passando e já se vem o dia amanhecendo. 
Quando aclareou o dia, lá se vem Wakmẽye. Chefe de Wakmẽye. (A noite tinha
6 Narrado, no dia 02 de janeiro de 1965, por José Aurélio a Julio Cezar Melatti, de quem obtive a autorização
para publicá-lo.
vindo gritando). Aí falou com a velha: "Como vai minha vó?" Todos falavam:
"Como vai minha avó?" Aí o chefe parou (os outros iam passando) (só falavam
com ela e passavam). O chefe quis saber dela e perguntou a ela como ficou assim e
ela respondeu do mesmo jeito que respondeu para a Noite. E o Dia falou com ela:
"Também, você ficou assim não é?" "É, fiquei assim, passei a noite aqui, agora o
dia amanheceu e eu não sei como vou chegar a meu povo". "Pois você não está
muito perdida não. Você viu o povo que passou na frente?" "Eu vi". "Eles
conversaram com você?" "Conversaram. Eu vi eles passando. Conversaram. Aí me
disseram que vinha mais um povo atrás deles". "Pois é; é nós, você está vendo que
nós já chegamos e já estamos passando. E eu fiquei para conversar, para saber
como você ficou. Pois você vai aí direitinho nesse rumo, que seu povo está perto.
Você pode ir que você vai chegar lá. Tá bom. Eu já sei. Eu já contei. Você pode
contar na sua aldeia que nós passamos e que nós somos assim desse jeito. E nós
somos assim. Agora Katamye já passou. E nós somos Wakmẽye que vamos
passando. Nós somos Wakmẽye. Quando você chegar no seu povo, você pode
explicar que nós somos assim, você viu. O toro que nós vamos levando chama
Katamti. Agora, no verão, tem outro tora que chama Wakmeti, esse é do nosso
partido. Ele é assim: meio curto e é pintado de urucu. E do Katamye, que se chama
Katamti, é tintado de carvão. E assim você pode ir. Se quiser passar mais uma
hora aqui, você pode ir, que não se perde. Esse que vai aboiando pro Katamye é
um Wakmẽye e esse que vem gritando, é um dos Katamye. (...) Mas nós não, nós
vamos avexando a Noite, para poder passar logo, para você ir embora logo".
Aí já passou tudo. Aí a velha levantou. “Agora eu vou direitinho”. Mas o Dia
mesmo é que vai governando o juízo dela, para ela chegar. Aí a velha foi embora.
Foi caminhando, caminhando, assuntando, foi mesmo no rumo direito que lhe
ensinaram. Até que chegou no rancho.
Aí chegou. O povo ajuntou. Perguntou para ela. Aí ela contou o caso como foi,
falou para o povo que se perdeu, que dormiu no mato sozinha. Aí falou com o
povo: "Eu encontrei com outro povo, por isso eu cheguei sempre. Se não tivesse
encontrado, eu talvez não tivesse chegado porque vocês não estavam mais se
importando comigo, vocês não me iriam procurar, vocês não estavam mais se
importando de mim. Pois foi assim que fiquei. Eu cheguei porque eu encontrei
sempre. Vocês podem ir embora. Amanhã eu vou contar a vocês o que foi que eu
aprendi e vocês vão ficar assim de agora em diante desse jeito. Amanhã eu vou
contar o caso. Eu já cheguei, sempre andava com Deus. Sempre nosso Papam. Eu
fui perdida mas já estou aqui. Vocês estão me vendo no mesmo corpo, do mesmo
jeito que vocês estão vendo. E hoje eu não posso contar. Eu vou comer e dormir".
Aí a velha comeu bastante, encheu barriga e pegou no sono. Dormiu, dormiu,
dormiu. E a velha dormiu muito porque passou a noite todinha acordada, com
medo, assuntando. Quando dá fé a velha não era velha demais era velha assim
como a mulher de Gabriel. Quando foi outro dia ela chamou o povo para contar o
caso para eles.
Aí o povo ajuntou, muito povo. Aí a velha contou: "Olhe eu vou contar o caso que
eu vi. Eu fui no mato, aí lá mesmo eu me perdi. Aí fiquei, fiquei, não podia chegar
mais aqui, estava sem saber. Aí a noite desceu. Aí eu fiquei lá, passando a noite,
sem dormir, acordada toda a vida. Aílá se vem o barulho, a zoada e aí eu fiquei
assim me admirei, fiquei assanhada de medo, mas eu agüentei, não tinha para
onde correr, o jeito era ficar. Aí fiquei, fiquei, até que chegou esse "povão". Aí
falou comigo, aí eu respondi, me perguntou, aí eu contei o caso como é que foi e aí
eles me ensinaram onde é que vocês estão. Cortou a tora para mim. Aí eu fiquei.
Lá se vem outra turma, outro partido. Aí disse que era Katamye que passou na
frente e Wakmẽye ainda vem chegando, chegando, chegando, até que chegou eles
também. Aí falou comigo, agora esse contou o caso para mim. Aí contaram o caso
para mim como é que estavam arrumando os dois partidos deles e eu agora eu vou
fazer do jeito que eu vi. Vou fazer partido Katamye e de Wakmẽye. Agora vocês
vão fazer assim: disse que nós vamos ser assim de dois partidos. O Katamye é na
frente, que é o primeiro, e Wakmẽye é depois. E Katamye vai cortar o tora
primeiro do tanto que for, mas é partido no meio. Katamye fica desse lado e
Wakmẽye fica desse lado. Nós vamos pegar essa opinião. Katamye fica por detrás
da casa e Wakmẽye fica no pátio. Quando amanhã vai correr com milho, Katamye
correndo atrás da casa e Wakmẽye correndo no pátio". Aí velha mandou cortar
tora. Katamti. Aí as mulheres, os meninos, todas as crianças que ficam no partido
do Katamye é para sair tudo, tudo, só ficam os velhos que não podem correr, na
aldeia. Aí disse que o povo ajuntavam muito e aí repartia. Os homens repartiram.
Foram ficar no partido do Katamye e aqueles que queria ser Wakmẽye já ficou
tudinho separado. Aí foram embora cortar tora no mato. Cortaram tora, passaram
carvão. Os Katamye deveriam riscar com carvão e pau de leite em volta do olho
(agora não tem mais isso). Só ficaram Wakmẽye na aldeia. Pelas uma hora da
tarde, Wakmẽye foi atrás. Aí levaram duas pessoas, uma do Wakmẽye e um do
Katamye. Um dos Katamye acompanhando os Wakmẽye e um dos Wakmẽye
acompanhando os Katamye, para aboiar, mandando. Os Katamye ficaram de
joelho e com a cabeça baixa sem reparar Wakmẽye que vem chegando. Aí foi
chegando Wakmẽye, foi chegando. Aí o gritador gritou, gritou outra vez e aí
apanharam tora e correram, correram para a aldeia, levando tora, um dos
Katamye acompanhou os Wakmẽye e um dos Wakmẽye acompanhou os Katamye e
foi gritando e foi mandando. Até que chegaram na aldeia. E correram na aldeia,
correram na aldeia, correram na aldeia. Aí largaram de correr, jogaram o tora. E
aí acabou.
A velha falou: "Pois é assim que vocês vão fazer. Agora vocês do Katamye,
botando o nome nos meninos, este já ficou no partido dos Katamye. E Wakmẽye vai
botando nome nas crianças que nascem e elas vão ficar Wakmẽye E esse nome não
pode sair do partido, é toda vida no lugar do partido. Quando se bota nome na
criança, ela fica toda a vida no partido.
A velha também ensinou outra arrumação: Põhïpre. Quando foi mesmo no dia de
apanhar o milho na roça era só o partido dos Txon que ia apanhar milho para
fazer o feixe. Aí deixavam uma casa da aldeia e os Katamye iam fazer feixe. Aí os
Katamye espalharam. Na roça dos Wakmẽye para roubar. Apanharam todos os
legumes: batata, milho, banana. Estragaram. Quando Katamye chegou com as
coisas, à noite, lá no mato, atrás das casas. Aí fazem o feixe de milho. Tiram palha
de bacaba, trançam, enchem de milho e de legumes: batata, abóbora, cana, milho.
Os Urubus só apanham da roça o milho, mas não apanham legumes. Aí vão
moquear batata, abóbora etc. Wakmẽye vai ficar a noite toda no pátio sem dormir.
De manhã correm com os dois feixes de milho para o pátio (Wakmẽye mais
Katamye). Quando Wakmẽye vem chegando, o feixe dos Wakmẽye está amarrado.
Aí correm com feixe de milho e põe no pátio. Nunca o Wakmẽye põe o feixe de
milho primeiro porque o feixe é mais pesado e está amarrado. Aí abrem e aí vão
repartir com representante de outras aldeias que estão aqui: os Krahó e não Krahó
(mesmo os que moram permanentemente aqui). O povo da aldeia não ganha.
No outro dia Wakmẽye vai roubar na roça de Katamye. Os Wakmẽye fazem dois
feixinhos de milho escondido. Katamye não dá fé. O povo não vai dormir. Os
Katamye vão reparar os Wakmẽye, senão não acham. Nessa festa os Wakmẽye só
comem o milho miúdo, a batata mirrada, enquanto o milho graúdo, a batata
graúda fica para os Wakmẽye [um dos nomes de metade está trocado]. De
madrugada Katamye está procurando os feixinhos. Os feixinhos estão com um
Wakmẽye escondido. Aonde os Katamye encontrar, correm. Só dois corredores, ou
mais, quantos encontrarem. Aí corre e aí acaba.
O que se segue é, em grande medida, uma análise das lições que esse mito nos traz.
CAPÍTULO I
O TEMPO COMO CONSTRUÇÃO HUMANA
Antes de entrar na discussão etnográfica da temporalidade Krahô, apresento neste
capítulo alguns autores nos quais apoio minha abordagem do "tempo" como objeto digno
de investigação antropológica. A partir da revisão crítica de suas propostas teóricas,
veremos quão antiga é a preocupação com o "tempo" na antropologia, ao mesmo tempo
que atestar-se-á sua relevância para a discussão de vários tópicos teóricos7. Adianto desde
já que esses autores me ajudaram a encarar o "tempo" como estando estreitamente
vinculado às práticas culturais e como sendo, em primeira instância, ordenado
simbolicamente por elas, dentre as quais destacam-se os rituais. Fundamento nestes autores
minha compreensão de que as temporalidades são construções simbólicas que variam de
sociedade para sociedade e que, assim, são importantes índices de alteridade. Todavia,
precederá esta discussão o exercício da "dúvida radical" (Bourdieu, 1989: 34), um
exercício fundamental na construção de qualquer objeto científico e sem o qual a pesquisa
deixa contaminar-se pelo que Bourdieu chama de "introdução clandestina de conceitos do
senso comum". 
Nesse sentido, um procedimento capaz de evitar que um objeto de investigação - a
noção ocidental de tempo, a do pesquisador - seja assumido como instrumento de
investigação é a análise histórica da construção social desse objeto, como sugere Bourdieu
(Op. cit.: 36-7). Proceder assim torna-se ainda mais importante na medida em que
constatamos que o "tempo", em nossa sociedade, se apresenta às consciências de uma
maneira tão naturalizada que se transforma num conceito reificado, num conceito que
parece representar uma realidade concreta, palpável8. Como uma "categoria do
entendimento" (Durkheim, 1989), como um quadro essencial dos esquemas cognitivos das
sociedades, é compreensível que o "tempo" apareça às pessoas como inquestionável, tão
7 Seja dito, ao problematizar suas abordagens teóricas, estarei outrossim reconstituindo o percurso histórico
da antropologia do tempo; uma reconstituição inevitavelmente limitada dadas as pretensões deste trabalho, é
certo. Cf. Fabian (1983) e Munn (1992), autores mais credenciados, para uma revisão de fôlego da literatura
concernente. 
8 É importante ficar claro que não posso, aqui, entrar na problemática da história do tempo na Física, que
passa pelo conceito de "tempo objetivo" de Newton, partindo da idéia de "tempo físico" de Galileu, atravessa
o conceito de "tempo relativo" de Einstein e ruma no sentido do "tempo indeterminado" da teoria quântica.
Para uma tal discussão, cf. o livro de Paul Davies, "O Enigma do Tempo" (1999). De qualquer modo, a
existência dos debates na Física em torno do "tempo" aponta, no mínimo, para uma preocupação
culturalmente formada em torno dessa questão.
"verdadeiro" como o são suas próprias preocupações cotidianas. Contudo, a idéia que hoje
fazemos do "tempo" tem uma origem histórica passível de ser localizada. E é isso o que
busco abaixo: uma reflexãoacerca da história social do conceito ocidental de "tempo" que
leve a "uma ruptura com modos de pensamento, conceitos e métodos que têm a seu favor
todas as aparências do senso comum" 9 (Bourdieu, idem: 49; grifos do original).
 
A particularidade da noção ocidental de tempo
A noção segundo a qual uma das principais propriedades do tempo é o seu fluir
linear, objetivo, constante e irreversível numa direção tal que faz com que certos
acontecimentos venham à tona é uma noção particular do ocidental moderno. Norbert Elias
(1995 [1992]: 36) lembra que somente pudemos chegar a essa experiência do tempo após o
desenvolvimento social da sua mediação que redundou na criação e aperfeiçoamento dos
relógios de movimento contínuo, na grade de sucessão do calendário romano e na noção de
eras que se encadeiam10. A favor da dependência de referenciais "artificiais" de tempo,
associaram-se a esse desenvolvimento outros processos tais como a urbanização, a
comercialização e a mecanização crescente das sociedades européias, principalmente as
nórdicas e ocidentais, que fizeram com que os enclaves humanos ganhassem uma relativa
autonomia do ambiente natural11. Desse modo, foi a complexificação própria do
desenvolvimento do capitalismo que fez com que a coordenação das atividades sociais
ficasse cada vez mais dependente de instrumentos "artificiais" e precisos de medição do
tempo12 (Elias, idem: 98; Thompson, 1987: 272-4). 
9 Bourdieu toma de empréstimo a noção de "ruptura epistemológica" de G. Bachelard para se referir a essa
ruptura com a visão de mundo do senso comum. Uma ruptura que provoca, bem lembra ele, uma mudança
radical na maneira de ver os fenômenos da vida social, "uma revolução mental, uma mudança de toda a visão
do mundo social" (Idem: 49). Lembremos que a advertência quanto aos cuidados que o cientista social deve
ter com as pré-noções aparece já em Durkheim (1978).
10 Cf. Elias (Idem), pgs. 46-7 e 152-5 para uma análise das reformas do calendário romano como prova de
que o "tempo" não possui uma natureza essencial, e pgs. 47-9 para uma história social na noção de Era.
11 Gilberto Freyre (2003) mostra quão diferentes eram a noção de tempo dos ibéricos e a dos ingleses e
holandeses, no final do século XV, época das Grandes Navegações. Os barcos dos primeiros, mais vagarosos,
eram expressão da sua perspectiva mais afinada com os ritmos naturais que com que as marcações exatas e
pontuais dos relógios, que já orientavam os nórdicos. A noção ibérica de tempo menospreza a pressa, a
pontualidade, a velocidade, o que de fato lhes colocou em desvantagem econômica (Idem: 19). Segundo a
cosmovisão que subjaz a noção ibérica, a vida deve ser vivida lentamente e os períodos de trabalho devem
combinar-se com períodos de descanso - contrariamente à concepção protestante, segundo a qual somente o
domingo deve ser reservado para o ócio (: 20). O tempo para os ibéricos não era progressivo como o dos
nórdicos que, acentuadamente após a Revolução Industrial, o associaram ao trabalho constante e para quem
"perder tempo" era (e é) quase um pecado capital: o tempo, estando inscrito no trabalho, conduz à salvação,
no que o relógio se tornou a materialização da consciência moral do tempo. Observa Freyre que "a
obediência ao relógio, entre os europeus do norte, tornou-se quase uma parte dos seus ritos religiosos" (2003:
15).
 
12 Também teve um papel central na emergência da noção de tempo como um fluxo linear, objetivo e
Entre os séculos XIII e XIX, podem ser localizados os marcos históricos da
mudança na percepção e experiência do tempo desencadeada pelo uso extensivo e
intensivo dos relógios mecânicos, sugere Thompson (1987). Essa mudança levou a que os
relógios passassem, de uma utilização privativa às igrejas e aos mosteiros, a ser
introduzidos e disseminados no interior dos lares da burguesia emergente, até chegar à sua
aplicação como mecanismo de controle dos trabalhadores assalariados. A precisão, a
ordem, a sucessão, qualidades próprias do tempo industrial se fazem sentir na
representação que as sociedades ocidentais têm do tempo, lembra Sue (Op. cit.: 125).
Aliás, se o relógio mecânico surgiu primeiramente nas ordens monásticas, no século XIII,
foi pela necessidade de um instrumento preciso de contagem do "tempo" que tornasse
possível uma maior rigidez na observância dos horários de orações e demais atividades,
observa Andrewes (2002: 90). 
Essa religiosidade do tempo disciplinar das comunidades monásticas chegou, pois,
disseminada, ao século XIX. Nesse sentido, Foucault lembra que, "durante séculos, as
ordens religiosas foram as mestras da disciplina: eram os especialistas do tempo, grandes
técnicos do ritmo e das atividades regulares" (1996: 137). As características fundamentais
do tempo disciplinar - exatidão, aplicação e regularidade - ajustaram o corpo a imperativos
temporais e seus gestos, a uma trama que os ordena13. O tempo, detalhadamente fracionado
segundo os imperativos da exatidão, é organizado disciplinadamente de modo a render o
máximo de utilização de cada uma de suas unidades constitutivas. Ocupa-se não só os dias,
mas dentro destes as horas e os minutos para se obter mais rapidez e mais eficiência (Ib.
idem: 140). 
As missões religiosas, com seus micro-processos de controle temporal do corpo,
também ajudaram a criar, assim, um "tempo" que, além de especializado e fracionado,
assume um caráter linear, posto que a disciplina impõe momentos que, dispostos em série,
se integram uns aos outros e rumam a um ponto terminal, ponto este que é tão determinado
culturalmente quanto o é o fracionamento do tempo e sua própria inexaurível linearidade14.
irreversível, Galileu Galilei. Ele foi, segundo Elias, o primeiro a utilizar um cronômetro de fabricação
humana como padrão de medida de processos físicos; com ele, emergiu o conceito de "tempo físico", um
conceito fundado na noção de "natureza" como uma rede de relações objetivas sujeita a leis universais de
causa e efeito (Elias, idem: 92). Podemos dizer que a imbricação destes conceitos, promovida por Galileu,
promoveu uma transformação na visão e na experiência do tempo que se tinha na Idade Média, sendo
portanto um dos germes da noção moderna de tempo. Antes de Galileu, o "tempo" atendia à demanda
praticamente exclusiva de coordenação das atividades sociais e mesmo os relógios eram aplicados na
sincronização precisa dos afazeres humanos. 
13 Segundo Foucault, " (...) o tempo penetra o corpo, e com ele todos os controles minuciosos do poder"
(Idem: 138).
14 Cf. Foucault (Idem), pgs. 144-5, para uma análise crítica da utilização da noção linear de tempo como um
instrumento de controle do corpo, primeiro nos mosteiros e depois nas prisões, no século XIX. Cf. Overing
Mas o aperfeiçoamento e disseminação dos relógios mecânicos associou-se não somente a
uma noção do tempo como um fluxo linear, senão que também ajudou a construir a visão
reificadora do "tempo" como uma "coisa", uma realidade objetiva, exterior aos seres
humanos. É o fato de os relógios serem referenciais de tempo que têm um movimento
próprio e contínuo que fez com que eles fossem tomados como a própria encarnação do
tempo; são eles - os relógios15 - que fizeram com que o "tempo" adquirisse "uma espécie de
vida autônoma na linguagem e no pensamento dos homens" (Elias, op. cit.: 95-7). 
Toda esta discussão tem o propósito de demonstrar que nosso conceito de "tempo"
tem uma história particular, que sua emergência dependeu de todo um conjunto de
condições sociais específicas para que viesse a se estabelecer e que, tendo nascido no
Ocidente, não é universal, apesar da suaatual disseminação mundo afora16. Feita esta
brevíssima história social da noção ocidental de tempo, estamos agora em condições de
olhar para esta noção como uma particularidade sociocultural que se defronta com uma
enorme diversidade de formas de se conceber e de se vivenciar o que chamamos "tempo".
Cabe vermos, em seguida, como é possível abordar essa variedade a partir dos ângulos
teóricos da antropologia.
* * * * * * *
Apesar de a diversidade das temporalidades corresponder à diversidade de
sociedades estudadas pelos etnógrafos e de ser, assim, um traço revelador da alteridade, a
atenção teórica dirigida ao "tempo" como um problema focal tem sido insuficiente, ao
longo da história da antropologia, para compreendê-lo, em si mesmo, como uma dimensão
(1995) e Posey (1982) para outras implicações políticas da noção de tempo como um fluxo linear e
irreversível.
15 Cf. Andrewes (Op. cit.) para uma história social dos relógios mecânicos no Ocidente.
16 Postill (2002) destaca, nesse sentido, o papel da mídia - rádio e televisão - na disseminação global tanto do
calendário gregoriano quanto do relógio. Seu próprio estudo é sobre as transformações que essas mídias têm
provocado, ao trazer um nova maneira de contar o tempo, na sociabilidade doméstica de uma pequena
comunidade do interior da Malásia. A universalização do "tempo dos relógios" tem sido destacada por outros
autores como um instrumento de colonização das chamadas sociedades tradicionais por parte das sociedades
européias e norte-americana. Nesse sentido, cf., p. ex., Comaroff e Comaroff (1991), Thomas (1994) e
Schieffelin (2002).
inescapável da experiência e da prática socioculturais17. Neste sentido, Munn (Op. cit.: 93)
observa que "o tópico do tempo freqüentemente se fragmenta em várias outras dimensões e
tópicos com os quais o antropólogos lidam no mundo social"18, e com os quais se encontra
estreitamente vinculado, tais como estruturas políticas, descendência, narrativa, história,
cosmologia e outros. De qualquer modo, o "tempo" aparece na antropologia desde seus
primeiros autores evolucionistas até antropólogos contemporâneos "interpretativistas", seja
como uma espécie de régua com a qual se media a distância civilizacional entre as
sociedades (p. ex. em Morgan), seja como um recurso para se chegar aos modelos nativos
de pensamento social (Geertz). Seja como for, ele tem aparecido na paisagem da teoria
antropológica ou em primeiro plano ou como um camaleão a caminhar por folhagem
variada.
O tempo como medida da diferença e da distância sociocultural
Ecoando a imagem européia do ser humano na segunda metade do século dezenove,
o evolucionismo sociocultural reforçou a pressuposição da diferença entre as culturas em
termos temporais, uma vez que associou o “primitivo” e o “selvagem” aos primatas e aos
animais não por meio de analogia mas por derivação, posto estarem no mais baixo estágio
da evolução humana19 (Stocking, 1987: 326). Mas, para chegar ao conceito de “primitivo”,
um conceito temporal do Ocidente moderno, os evolucionistas socioculturais tiveram de
manejar uma noção de tempo que promoveu um esquema no qual culturas passadas e
culturas vivas foram alocadas numa inclinação temporal, umas acima e outras abaixo no
fluxo do tempo. Para fazer isso, eles tiveram que secularizar o Tempo, tornando-o natural,
imanente ao mundo; tiveram também que afirmar que os relacionamentos entre as partes
do mundo podiam ser entendidos como relações temporais. Com isso, propuseram um
"tempo" que traz certas coisas no curso da evolução (Fabian, 1983: 15). A aceitação do
tempo naturalizado por parte dos evolucionistas socioculturais, como uma pressuposição
da história universal, trouxe como conseqüência o fato de que os esforços da antropologia
de construir suas relações com o Outro por meio do artifício temporal implicou a afirmação
17 Sobre o tempo como um índice de alteridade, Roger Sue assevera que cada sociedade produz um
agenciamento próprio dos seus tempos sociais, derivado das práticas culturalmente construídas de maneira
que permite ao antropólogo fazer "leituras" das diferenças entre as sociedades ou "d'un modèle de civilisation
à un autre" (Op. cit.: 22; 31). Cf. também Ramos (Op. cit.) e Silva (2000).
18 "The topic of time frequently fragments into all the other dimensions and topics anthropologists deal with
in the social world".
19 Observa Stocking (1987: 314) que a antropologia evolucionista foi o produto de uma época de auto-
confiança cultural sem paralelo na história. Toda manifestação de variedade cultural possível era interpretada
segundo os modelos e os postulados da própria cultura ocidental.
da diferença como distância, ao espacializar o tempo (Idem: 16).
Tomemos o exemplo do estadunidense Lewis Henry Morgan. Na sua, talvez,
principal obra encontramos os caracteres centrais da noção do tempo naturalizado sob uma
rica discussão acerca do processo constituinte da sociedade política a partir da sociedade
gentílica, uma das linhas pelas quais teria passado a evolução humana20. Em A Sociedade
Primitiva (1974) [Ancient Society, 1877], vemos em vários momentos a afirmação da
distância entre o europeu – o observador – e o selvagem ou bárbaro – o Outro observado –
quando Morgan se vale de metáforas temporais como recurso discursivo para demonstrar a
pertinência da sua divisão da evolução humana em períodos étnicos, como também ao
discutir detidamente os sistemas de governo de tipo gentílico e de tipo político21.
Ao discorrer sobre a sociedade gentílica e sua passagem para a sociedade civil,
Morgan faz uso da noção de um tempo que, naturalizado, é cumulativo22, ou seja, que traz
no seu fluir transformações qualitativas e lineares que vão do mais simples ao mais
complexo, e que acabam por desembocar na instauração do Estado e no advento da
civilização. Assim, ao olhar para uma sociedade indígena, "primitiva", o observador
europeu estaria olhando para o que fora sua própria sociedade no "começo da civilização",
pois todos partem do mesmo ponto, já que a história da humanidade é una. Segundo esta
noção, o “ser” das sociedades indígenas é o “vir a ser” das sociedades ocidentais; o
presente indígena é o passado europeu. Ao manipular esta “equação paleolítica” (Stocking,
op. cit.: 283), Morgan fez eco a uma forma de pensar a alteridade própria da sua época,
qual seja, em termos de distância entre diferentes, entre o observador ocidental e o
observado. Ao se deslocar espacialmente para ir aos Iroqueses, Morgan logrou um
deslocamento temporal para ir ao próprio passado dos europeus23.
O tempo como índice da alteridade e como síntese da sociedade: um percurso
É com os autores da Escola Francesa de Sociologia que a temporalidade vai receber
atenção especial. Ainda que seus esforços, principalmente os de Durkheim, mas também os
de Mauss, tenham sido dirigidos mais para a demonstração da natureza social do tempo do
20 Além dos sistemas de governo, as invenções e descobertas, o casamento, o parentesco e a propriedade são
as outras instituições elucidativas do progresso humano para Morgan. 
21 Cf., p. ex., as pgs. 81-2, 104, 162 e 320.
22 Isso vale também para as outras instituições e para as invenções e descobertas.
23 Não devemos nos esquecer da experiência de campo de Morgan, num período em que a antropologia era
feita a partir das poltronas de gabinetes confortáveis em Nova York, Londres, Paris. Além disso, enquanto os
antropólogos da sua época estavam mais interessados em inventariar traços culturais isolados, Morgan já
falava em "estrutura social", “sistemas sociais indígenas”, em “inteligibilidade das sociedades indígenas”(1965 [1881]: xxiv). Sua teoria geral do processo de evolução sociocultural demandou uma teoria particular
do funcionamento de uma sociedade particular.
que para a elaboração de uma sociologia geral do tempo, eles foram os primeiros a dar
consistência sociológica à noção de tempo e abriram, assim, o caminho para futuras
pesquisas sobre este aspecto da vida em sociedade24 (Sue, op. cit.: 53). Os estudos destes
precursores emergiram num momento histórico em que a intelectualidade ocidental se via
diante da complexa questão da diversidade temporal vs. singularidade temporal,
heterogeneidade vs. homogeneidade. Durkheim e seus colegas optaram, então, por fundar o
"tempo" sobre os alicerces etnográficos da diversidade social (Munn, op. cit.: 94). Mas
também estavam empenhados em estabelecer a sociologia - ou antropologia - como
disciplina autônoma face à psicologia e à filosofia25. Daí a ênfase de que o tempo é
expressão de uma realidade social, e que o tempo qualitativo da duração psicológica
(Bergson) está fundado antes de tudo nos quadros do tempo coletivo.
É como uma categoria do entendimento humano que Durkheim (1989) concebe o
tempo. Ele assimila as categorias aos conceitos, que, como obra da comunidade, têm a
propriedade de ser universalizáveis e comunicáveis entre aqueles que partilham de um
mesmo código lingüístico: são partículas simbólicas sem as quais nenhuma comunicação
seria possível. Sendo comuns a toda uma sociedade, eles são representações coletivas, ou
seja, correspondem ao modo como a coletividade pensa o universo físico e social26 (Idem:
513). Quanto às categorias, Durkheim nota que elas exprimem as condições fundamentais
do pensamento: elas regulam a vida lógica (: 43). Portanto, nem todos os conceitos são
categorias, porque estas é que são a "ossatura do entendimento", sua "moldura sólida"; os
outros conceitos são "contingentes e móveis, podendo até mesmo faltar a uma sociedade" (:
38). 
Nesse sentido, se a gênese das categorias é a própria vida social, se "cada
civilização possui seu sistema organizado de conceitos que a caracteriza" (: 514), então as
noções de tempo variam de uma sociedade a outra27. O tempo, em Durkheim, é uma
categoria universal por ser essencial ao funcionamento do pensamento humano, mas é cada
24 Nancy Munn também localiza a origem da antropologia do tempo nos estudos clássicos dos fundadores da
Escola Francesa de Sociologia (Op. cit.: 94).
25 Sobre este aspecto cf. Cardoso de Oliveira (1983).
26 O argumento de Durkheim é que os conceitos com os quais os seres humanos pensam o humano nasceram
da religião e, sendo esta eminentemente social, são coisas sociais. A religião, tendo participado da formação
do pensamento humano, teria então lhe fornecido além dos conteúdos a sua própria forma (Idem: 38). Uma
primeira apresentação deste postulado da correspondência entre sistema lógico-conceitual e sistema social
encontra-se em "Algumas formas primitivas de classificação" onde se lê que "os tipos de classificação
exprimem as próprias sociedades no seio das quais eles foram elaborados" (Durkheim e Mauss, 1981: 441).
27 Durkheim afirma que as categorias, "o ponto comum onde todos os espíritos se encontram", jamais são
fixadas de forma definitiva, porque "elas mudam conforme os lugares e os tempos" (: 44). Assim, as
categorias têm o duplo aspecto de serem universais - encontram-se em qualquer sociedade humana - e
particulares a cada sociedade e a cada período histórico na vida de uma sociedade.
sociedade particular que lhe dá o conteúdo, pois "as sociedades são sujeitos particulares
que particularizam o que pensam" (1989: 523). Sendo uma categoria, que realidade social o
tempo exprime? Sob a noção de tempo encontramos, segundo Durkheim, as atividades
sociais que dão ritmo à vida coletiva, e estas seriam marcadas pela oscilação entre períodos
profanos e sagrados delimitados pelos rituais, pelas cerimônias religiosas - momentos de
efervescência coletiva (: 273-4). 
Os períodos de tempo - as durações - correspondem aos intervalos dos rituais e o
calendário, ao ritmo da atividade coletiva. Verdadeira instituição social, o tempo consiste
num quadro impessoal que ultrapassa as experiências individuais porque, observa
Durkheim, sua noção depende de como "o tempo é objetivamente pensado por todos os
membros de uma civilização” (Idem: 39). Marcar uma caçada, estabelecer a data de uma
festa demanda datas fixadas socialmente, um tempo comum estabelecido e concebido por
todos da mesma forma. Os pontos de referência indispensáveis para a classificação
temporal das coisas são tomados, pois, da vida social, no sentido que é o grupo que os
elege, que os torna significativos. Assim, as temporalidades, variando com as formas como
as sociedades são constituídas e organizadas, mudando em conformidade com a articulação
das suas instituições religiosas, políticas e econômicas, aparecem em Durkheim como
reveladoras dos seus sistemas de valores e da sua estrutura social. As noções de tempo são
como páginas onde se inscrevem a visão de mundo e a organização das sociedades
humanas. 
 É sob o signo do mesmo contexto histórico de Durkheim, seu tio, que Marcel
Mauss vai redigir sua monografia sobre os ciclos sazonais da vida social dos Eskimó
(1968a [1904-05]). Nela, ele procurou demonstrar que as noções de verão e de inverno se
configuram como representações coletivas, porque a elas estaria associado todo um
sistema de classificação dos seres e das coisas e um conjunto de interdições rituais28 (Idem:
448-9). Além disso, os regimes jurídicos, a religião, os padrões de habitação e de coesão
variam segundo as duas estações do ano que afetam aquela população. O verão é a época
da dispersão, do direito individual e familiar, da habitação em pequenas tendas (tupik), do
profano; já o inverno é a estação da efervescência coletiva, do direito coletivo, da habitação
nas casas extensas (iglu), de festas coletivas nas casas comunais (tapik), é o tempo do
sagrado. Mauss também destaca o papel dos rituais na delimitação simbólica do tempo, ou
dos tempos, já que neste contexto etnográfico temos pelo menos dois tempos: o da
28 Observa Mauss que "chaque saison sert à définir tout un genre d'êtres et de choses. (...) On peut dire que la
notion de l'hiver et la notion de l'été sont comme deux pôles autour desquels gravite le système d'idées des
Eskimós" (Idem: 450).
dispersão, o tempo profano, em contraposição ao tempo da concentração, do sagrado. Isto
porque as festas seriam instâncias responsáveis pela sublimação do sentimento comunal: "o
sentimento que a coletividade tem de si mesma, de sua unidade, aí transpira de todas as
maneiras"29 (Idem: 445). Como lembra Cardoso de Oliveira, Mauss foi conduzido à
categoria de tempo pela análise de fenômenos religiosos. Por esse caminho, ele notou que
“o calendário das festas religiosas fornece a noção concreta da duração, em lugar de uma
noção abstrata do tempo. O tempo são as festas” (Mauss apud. Cardoso de Oliveira, 1983:
138). 
Vemos então que a Escola Francesa de Sociologia, ao privilegiar a noção de tempo
como uma categoria fundamental do espírito humano, como uma representação coletiva,
percebeu o potencial analítico da temporalidade para desvelar os sistemas simbólicos
constituintes dos esquemas cosmológicos e práticos de uma sociedade. Como observa Sue
(Op. cit.: 53-4) a respeito dessas investigações seminais, seus autores teriam não somente
comprovado que o tempo tem um caráter social, mas também que ele traduz e articula os
valores e as crenças centrais de uma sociedade, que fundamentao liame social e que "a
percepção e a organização do tempo seriam reveladores privilegiados da estrutura social"30.
Uma outra proposta de abordagem teórica aberta à diversidade dos tempos sociais
vai aparecer nos anos 30 do século XX, com as investigações etno-lingüísticas de
Benjamin Lee Whorf (1968), que percebeu que as noções de tempo são veiculadas através
das línguas e que, portanto, são variáveis de cultura a cultura. Para ele, a linguagem não
somente comunica o pensamento mas também trabalha na sua formação (Idem: 85), de
maneira que, sendo um fenômeno do domínio da linguagem, o pensamento é um fenômeno
cultural31. Seu modus operandi encontra-se nas “operações lingüísticas padronizantes”
(linguistic patterning operations) (: 68). Podendo variar de acordo com a estrutura de uma
língua particular, essas operações consistem basicamente em “processos de ligação” de
palavras e morfemas que então produzem as categorias e padrões nos quais o significado
lingüístico repousa; esses “processos de ligação” são de ordem cultural (: 69). Além deles,
cada língua contém conceitos com um quadro cósmico de referência, que cristalizam em si
os postulados básicos de uma filosofia implícita, na qual está assentado o pensamento de
29 "Nous ne voulons pas dire simplement que les fêtes sont célébrées en commun, mais que le sentiment que
la communauté a d'elle-même, de son unité, y transpire de toutes les manières".
30 "Elle [E.F.S] a prouvé que la perception et l'organization du temps étaient des révélateurs privilégés de la
structure sociale" (Idem: 54).
31 Escrevendo em 1936, Whorf destaca o papel de Boas e Sapir no desenvolvimento da lingüística. O
primeiro foi importante como o pioneiro na demonstração da sutileza e complexidade das categorias de
pensamento subjacentes às línguas nativas da América; o segundo, como aquele que inaugurou a abordagem
lingüística do pensamento, a lingüística como campo fundamental da Antropologia.
uma sociedade, de uma civilização. Nas línguas ocidentais, uma tal palavra é, p.ex., tempo
e seus correlatos passado, presente e futuro (: 61). 
Whorf constatou que os Hopi não têm uma noção de tempo como a do Ocidente; o
tempo para eles não é um fluxo contínuo, no qual todas as coisas do universo se processam
de um modo igual e previsível, ou seja, do passado ao presente rumando ao futuro. A
língua Hopi, afirma ele, nem mesmo contém qualquer palavra, expressão, construção ou
forma gramatical que refira ao que nós chamamos “tempo” (:57-8). Em Hopi, a palavra que
tem um quadro cósmico de referência é tunátya, que, segundo uma tradução aproximada,
significa "esperar", "esperando por" 32. Este termo hopi reflete o grande dualismo
objetividade-subjetividade que caracteriza sua filosofia acerca do universo. Sem fazer uso
de um conceito de “tempo”, a metafísica Hopi considera o universo como sendo composto
por dois grandes níveis cósmicos que, por aproximação, podem ser chamados de
manifesto/objetivo e não-manifesto/subjetivo33. Assim, analisando a noção de tempo na sua
expressão lingüística pode-se penetrar no seu sistema de pensamento, nos seus valores
culturais, na sua perspectiva sobre a vida. 
Vamos ouvir ecos do postulado relativista segundo o qual o tempo varia com as
sociedades também na antropologia inglesa, na primeira monografia, de uma série de três,
que E. E. Evans-Pritchard (2002 [1940]) dedicou aos Nuer. De fato, nela percebemos a
influência do estudo acerca das variações sazonais da vida social Eskimó, de Marcel
Mauss, principalmente no seu conceito de "tempo ecológico", conforme aponta Munn (Op.
cit.: 96). Como o próprio Evans-Pritchard deixa claro, sem a compreensão do tempo (e do
espaço) nuer não se pode compreender a estreita dependência entre o sistema político-
social e o território ou meio-ambiente onde vive (ou viveu) aquela sociedade. Assim, é a
temporalidade a via de acesso ao entendimento da vida social. Ele demonstra que a noção
de tempo nuer depende de uma dupla determinação. De um lado, ela é derivada das suas
relações com o meio-ambiente; de outro, reflete as relações mútuas dos grupos de pessoas
dentro da estrutural social. O primeiro conceito Evans-Pritchard denomina “tempo
ecológico”; o segundo, “tempo estrutural” (Idem: 108). Mas também no que diz respeito ao
32 Em inglês, hope : “The verb tunátya contains in its idea of hope something our words ‘thought’, ‘desire’,
and ‘cause’, which sometimes must be used to translate it” (Idem: 61; grifo meu).
33 Segundo a cosmologia hopi descrita por Whorf, o nível objetivo ou manifesto compreende tudo que é
acessível aos sentidos, o universo físico e histórico, onde não se distingue o presente do passado e o futuro
não existe. Já o nível subjetivo ou não-manifesto abarca o que nós chamamos de futuro, mas vai além:
também compreende tudo que existe na “mente” ou no “coração” (como dizem os Hopi, observa Whorf) não
só dos seres humanos mas também das plantas, animais e de todas as coisas porque a natureza e o cosmos
possuem “coração” (:59-60). Este nível não-manifesto é o campo da intelecção, da mentalidade, da emoção
que são as forças vivas e inteligentes que provocam a “manifestação”; aqui encontram-se o desejo, o
propósito, as causas essenciais que levam a vida do seu domínio interior à sua manifestação objetiva.
tempo ecológico, o conceito de tempo depende dos significados atribuídos pelos grupos
sociais aos referentes naturais, de maneira que, em última análise, o tempo somente se
torna humanamente significativo depois da sua socialização.
O tempo ecológico é um tempo cíclico e está ligado à alternância das estações
chuvosa, Tot, e seca, Mai. Esse movimento temporal é fundamental para a marcação do
ritmo das atividades humanas, mas são estas atividades que fornecem o conceito de estação
para os Nuer. Desse modo, o ano é a alternância entre um período de residências na aldeia
e de práticas de horticultura, cieng, e um período de residência em acampamentos e de
atividades de pesca, wec34. É através da lente das práticas sociais que os nuer observam o
fluir do tempo. O tempo da cotidianidade é a sucessão das tarefas pastoris e suas relações
mútuas. Nada é mais eloqüente do que a seguinte frase: “O relógio diário é o gado...” (Op.
cit.: 114). A coordenação dos acontecimentos cotidianos depende, assim, da referência às
atividades sociais. E se a passagem do tempo ecológico é percebida pelo movimento dos
corpos celestes e pela mudança no clima, em última instância sua significação depende do
fluxo das práticas sociais, pois “a passagem do tempo é percebida na relação que uma
atividade mantém com as outras” (: 115). Nesse sentido, vê-se que os períodos alternados
do ano nuer não têm o mesmo significado. A estação seca é percebida como mais
monótona, em geral sem acontecimentos marcantes, ao passo que a estação chuvosa é
preenchida com festas, danças e cerimônias, no que mais uma vez vemos a influência da
noção de “variações sazonais” de Mauss. 
O conceito de tempo estrutural, que emerge das interrelações dos grupos sociais, é
outro que nos ajuda a ver como o tempo depende dos significados que os seres humanos
lhe atribuem. Existem, no caso dos Nuer, pelo menos quatro formas através das quais o
tempo é “estruralmente” configurado. Uma das maneiras de se contar o tempo é utilizando
a distância estrutural, a distância que separa as pessoas no sistema de conjuntos etários e
cujos marcos dependem dos rituais de iniciação35. A passagem do tempo é medida, assim,
em termos do intervalo entre o começo dos conjuntos sucessivos. São as pessoas, ou
melhor, o movimento das "pessoais morais" através da estrutura social, cujas posições sãofixas, que fornece as bases da percepção da passagem do tempo estrutural, um tempo
humanizado porque qualitativo36. Em suma, o tempo estrutural deriva da relação entre
34 Evans-Pritchard ressalta que “o contraste entre o modo de vida no auge das chuvas e no auge da seca é que
fornece os pólos conceituais na contagem do tempo” (Idem: 109).
35 Sobre outras maneiras de "contar" o tempo estrutural, cf. pgs. 118-20. Sobre o sistema de conjuntos
etários, cf. pgs. 257-70.
36 Vale notar a critica que Nancy Munn (Op. cit.: 97) dirige a Evans-Pritchard por ele ter separado da sua
análise do tempo estrutural o espaço das atividades concretamente vividas e significativas para essas "pessoas
morais".
grupos de pessoas (2002: 118). 
Leach é outro autor que nos ajuda a compreender o "tempo" como uma categoria
que nasce da vida social. Ele vai além para afirmar que a própria regularidade do tempo é
uma noção fabricada pelo homem. Para ele, é a seqüência anual das atividades sociais que
fornece a medida do tempo, sendo os rituais os seus marcadores simbólicos (1974: 205).
Ele nota que, em qualquer grupo humano, comportamentos simbólicos são utilizados para
demarcar as unidades de tempo: veste-se roupas especiais, pinta-se o corpo, come-se
comidas especiais, comporta-se de modo especial (: 203). O fluxo do tempo, criado pelo
homem, é, desse modo, ordenado pela celebração de rituais que, por sua vez, criam os
intervalos de tempo que conferem ordem à vida social.
Se são as sociedades que criam seu próprio sistema temporal, então a visão de que o
tempo seria um fluxo linear no qual todas as coisas seguem um caminho que vai do
passado ao futuro e que tem um efeito progressivo, cumulativo é circunscrita social e
historicamente às sociedades ocidentais, como já havíamos visto. Leach observa que
subjacente à cosmologia de um grande número de sociedades mundo afora está a noção de
tempo como "oscilação entre contrastes repetidos", que vê a seqüência dos acontecimentos
como uma sucessão de alternância entre opostos, cuja repetição dá ritmo ao devir: sol-
chuva, dia-noite, vida-morte (: 206). Daí sua advertência quanto ao perigo de se utilizar o
termo "cíclico" para denotar este tipo de concepção, pois, como ele, podemos projetar uma
notação geométrica sobre contextos etnográficos nos quais ela pode estar ausente 37 (: 195).
 A noção de tempo de um grupo social faz-se sentir também na forma como ele
concebe a pessoa humana, como aliás já havia indicado Evans-Pritchard. Para Leach, aos
ritos de passagem, ritos que marcam simbolicamente os estágios do ciclo vital da pessoa,
está ligada uma representação do tempo como um movimento pendular, que torna possível
a alternância vida-morte-vida: morre-se num estágio para viver em outro (Idem: 206).
Noutro registro, Geertz (1989: 225-277) também estabelece uma interdependência entre
noção de tempo e concepção da pessoa que, aliás, para ele é um fenômeno universal. A
análise do sistema temporal balinês foi a via que Geertz encontrou para interpretar seu
modelo social de pensamento. Para ele, a maneira como um grupo humano concebe o
envelhecimento biológico afeta profundamente a maneira como ele vê o tempo (Idem:
37 Sobre a diversidade de noções de tempo, ela pode ocorrer no interior de uma mesma sociedade. Neste
sentido, Leach observa que entre os Kachim não há um conceito equivalente a "tempo". Todavia, se não se
pode falar, neste contexto, de um conceito de tempo, tem-se uma ampla gama de conceitos particulares
aplicados às situações específicas. Ou seja, temos várias noções de tempo (Idem: 193). Algo semelhante
percebeu Ramos (1990: 179) entre os Sanumá, grupo Yanomami que habita o norte de Roraima, para os quais
julga mais apropriado falar em várias noções de tempo e não uma única, noções essas expressas num tempo
individual, num tempo social, num tempo do eterno retorno e num tempo histórico.
255). 
Pautando sua análise pela tipologia fenomenológica de Alfred Schultz acerca das
relações sociais38, Geertz observa que os balineses têm uma noção estática de tempo porque
possuem uma concepção despersonalizante da pessoa humana, uma concepção que se
esforça para enfocar os papéis sociais mais que os atores, que despreza a perecibilidade
destes e destaca a eternidade daqueles 39. Outra característica do sistema temporal balinês é
seu duplo calendário - "permutacional" e lunar-solar - que pressupõe uma noção
taxonômica de tempo, já que dividem e classificam os dias em "dias cheios" ou bons e
"dias vazios" ou ruins tanto no que concerne a vida religiosa quanto aos assuntos da vida
cotidiana (: 257-65). 
Geertz chegou à noção balinesa de tempo analisando as estruturas simbólicas
através das quais as pessoas são percebidas e as práticas sociais ordenadas. É também
como um sistema simbólico que Norbert Elias (1998 [1992]) propõe que se tome o tempo,
numa obra que tem pretensões outras que as do antropólogo americano 40. O símbolo
tempo é, em Elias, um símbolo relacional, pois sintetiza a relação que um grupo social
estabelece entre dois ou mais processos, sendo um deles padronizado socialmente para
servir aos outros como quadro de referência e padrão de medida. Os processos que podem
servir a esse propósito são caracterizados pelo seu desenrolar contínuo, por estarem
ininterruptamente num movimento que é unilinear, unidirecional e em velocidade
uniforme; em suma, têm um movimento regular. O relógio, bem como o sol ou as estações
são exemplos desses processos físicos que as sociedades institucionalizam como símbolos
temporais (Idem: 39-40; 95). Como símbolos, as unidades de tempo (p. ex., "hora", "dia",
"noite", "nascente", "poente") emitem mensagens àqueles que partilham o mesmo código
38 Alfred Schultz, filósofo e sociólogo alemão radicado nos Estados Unidos, divide as relações sociais que as
pessoas estabelecem na sua vida cotidiana em quatro tipos-ideais principais. Para ele, os "companheiros" ou
"parceiros" podem apresentar-se um ao outro como "predecessores", "contemporâneos", "consócios" ou
"sucessores". Cf. Geertz (Idem), pgs. 229-33, para um detalhamento destes conceitos.
39 Contudo, é digno de nota que a afirmação de que os balineses possuem "concepção atemporalizante de
tempo" (Geertz, 1989: 256-7; 260) parece antes de tudo repousar sobre a visão de tempo ocidental da qual
Geertz não consegue se libertar e segundo a qual a aptidão cultural para a mudança e para a história estaria
tão-somente ligada a uma noção linear do tempo, a noção do próprio antropólogo. Pelo menos essa é a crítica
que lhe dirigem Nancy Munn (Op. cit.: 98-100) e Nicholas Thomas (1994: 216), para quem esta postura é
ainda resquício do colonialismo que impregna o fazer antropológico, com o que concordo em parte. A
terminologia de Geertz de fato conduz a esse julgamento. Apesar disso, prefiro ver no estudo do antropólogo
estadunidense uma tentativa de compreender um modelo de pensamento que "vai numa direção
acentuadamente diferente da nossa" (Geertz, op. cit.: 258). O ímpeto anti-colonialista pode às vezes cavalgar
sobre a pretensão universalista da cosmologia ocidental, seu próprio alvo, e pode, assim, deixar de ver,
passando por cima, as particularidades dos casos etnográficos concretos.
40 O tempo, para Elias, é um "instrumento de diagnóstico sociológico" (Idem: 21) como o fora para os
fundadores da Escola Francesa de Sociologia, mas um instrumento que lança luz sobre o processo civilizador.
Esta, sua a preocupação central. De fato, "Sobre o tempo" é o terceiro ensaio, de uma série de três, que ele
dedica a esse tema.
de comunicação. Essas mensagens indicam às pessoas o momento de se realizaremdeterminadas atividades sociais e a duração que elas têm, fornecendo-lhes um meio de
orientação no fluxo incessante do devir, além de ser uma forma de coordenar as condutas e
as sensibilidades (: 30; 67; 83-4). 
Assim, os referenciais de tempo são processos físicos - "naturais" (o sol, as
estações) ou de origem humana (relógios) - transformados em símbolos que os grupos
humanos institucionalizam segundo seus interesses culturais específicos 41 (: 95). Elias
lembra ainda que o estudo da noção de tempo de um grupo humano deve relacioná-la a
outras instituições sociais e que ela é inseparável da representação do universo que tal
grupo faz e das condições nas quais vive (Elias, 1998 [1992]: 130; 141). É também
preocupada com os interesses culturais particulares das sociedades, ou com os "projetos"
culturais, que Nancy Munn (Op. cit.) propõe uma abordagem do tempo segundo a qual
processos naturais ou atividades sociais somente são utilizados como instrumentos
simbólicos após terem sido instituídos socialmente como "pontos de referência" para a
orientação da praxis, individual ou coletiva (: 102). 
Isso significa levar em conta o "projeto" cultural dos sujeitos, pois, observa ela, as
pessoas constróem sua temporalidade em modos particulares de relação entre si e entre elas
e seus pontos de referência temporal. O interesse dos atores na contagem do tempo está
ligado aos seus propósitos de ação e interação num mundo que é, antes de tudo, um mundo
vivido. Nesse sentido, Munn sugere o conceito de "temporalização" (: 116), que "vê o
tempo como um processo simbólico que é continuamente produzido nas atividades
cotidianas" 42, atividades que configuram os "projetos" culturais de um povo, o conjunto de
objetivos culturais que revelam sua avaliação do que é o bom viver, seu sistema de valores.
Para dar conta da relação entre a estrutura simbólica do tempo e as práticas sociais,
o francês Roger Sue (1995) propõe o conceito de "tempos sociais". Ao invés de um tempo
social único, cada sociedade teria vários blocos de tempo através dos quais articula, dá
ritmo e coordenação às principais atividades coletivas às quais atribui importância
particular (Idem: 29). Entre estes tempos sociais, um destaca-se como determinante do
ritmo preponderante em cuja base se encontra uma prática social assumida coletivamente
como sendo de maior relevância (p. ex., o trabalho nas sociedades altamente
41 Valer destacar que, enquanto para Leach a ordem que fornece os meios de orientação temporal a uma
sociedade humana são os rituais, ou seja, suas próprias atividades sociais, Elias localiza tal ordem no domínio
dos processos físicos: os relógios, o movimento do sol, a alternância das estações. Em momento algum ele
vislumbra os rituais como demarcadores simbólicos do tempo.
42 "I have tentatively sketched a notion of "temporalization" that views time as a symbolic process
continually being produced in everyday practices".
industrializadas, ou os rituais em sociedades indígenas como a Krahô) e em torno da qual
giram as outras práticas. É nesta estrutura simbólica dos tempos sociais que a vida social
encontra seus ritmos e alternâncias. Daí o autor falar em "tempo social dominante", um
tempo que, baseado numa prática social preponderante, estrutura e polariza os outros
tempos sociais em torno dele próprio 43 (: 124).
* * * * * * * 
E aqui, com Munn e Sue, concluímos nosso percurso. Ele nos levou do tempo como
um meio de medição das distâncias socioculturais, passando por abordagens que se
valeram dele para chegar às representações coletivas das sociedades, até propostas teóricas
que o tomam com um problema focal, como objeto principal de investigação
antropológica, como bem evidenciou minha própria abordagem dessa questão. Nesse
sentido, espero que tenha ficado claro que o "tempo" tem ganhado na antropologia cada
vez mais destaque como uma face na qual a alteridade se manifesta, como uma página na
qual se pode obter informações valiosíssimas acerca das cosmologias e da ordenação das
práticas culturais. Ademais, como assevera Cardoso de Oliveira (Op. cit.: 145), tomando
categorias como a de tempo como objeto privilegiado de estudo, as pesquisas
antropológicas podem tornar-se mais libertas dos etnocentrismos que em muito ainda
impregnam os horizontes conceituais da nossa disciplina.
43 "La structure des temps sociaux s'organise autour d'un temps dominant qui structure et polarise l'ensemble
des temps sociaux autour de sa propre structure" (grifos do original).
CAPÍTULO II
ALTERNÂNCIA E LINEARIDADE DO TEMPO: OS CICLOS COTIDIANOS
Antes de entrar na questão da noção de tempo Krahô propriamente dita, algumas
informações preliminares acerca da sua organização social e da sua cosmologia se fazem
necessárias de modo a deixar clara a leitura do que virá mais abaixo. 
Os Krahó, falantes de uma variante da língua Jê, tronco Macro-Jê, são uma
sociedade Timbira Oriental, do qual fazem parte ainda os Canela-Ramkokamekrá, os
Canela-Apaniekrá, os Krikati, os Pïkobyê e os Gaviões. Um dos aspectos fundamentais da
história da formação dos Krahô é, segundo Azanha (1984: 46-55), a relação entre dois
grupos Timbira, Mãkrare e Pãrekamekra-Kenpokateyê, dos quais eles teriam surgido44.
Ainda hoje esse subdivisão ressoa, em especial, no vigor com que as aldeias Krahô se
apegam às tradições timbira, ou ao que Azanha (Idem: 05; 51) chama de "Forma Timbira":
corrida de toras, aldeias circulares, rituais de iniciação e do ciclo anual, elementos
estreitamente relacionados à construção da sua temporalidade. Quanto ao ritual de
iniciação do Khetwaye, por exemplo, Melatti (1978: 274-293) indica a existência de
diferenças de detalhes na forma como é realizado pelos Mãkrare e pelos Kenpokateyê.
Gilberto Azanha lembra que os Mãkrare, de todos os Timbira, foram os que
primeiro estabeleceram uma aliança com um cupen (“civilizado”) rico, em 1810: o
fazendeiro e comerciante Francisco de Magalhães, fundador da atual cidade de Carolina
(MA). Essa aliança, da perspectiva dos índios, serviu aos seus propósitos de expansão
sobre o território de outros grupos. Penetrando no extremo norte do atual Estado do
Tocantins, os Mãkrare entraram em contato com os Pãrekamekra, cujos grupos locais -
Kenpokateyê e Põkateyê - estavam instalados em duas aldeias e com quem estabeleceram
uma aliança (1984: 46-47). Em 1848, os Mãkrare e os Pãrekamekra- Kenpokateyê, já
chamados de Krahô, foram levados para o sul pelo Frei Rafael de Taggia e em 1849/50,
após uma epidemia de sarampo, os sobreviventes seguiram para a região onde hoje estão
localizadas as suas aldeias (Idem: 47-8). Nesse sentido, Azanha destaca que, atualmente, as
aldeias Krahô ou são Mãkrare ou Pãrekamekra- Kenpokateyê 45 (Ib.idem: 49). 
44 Sem poder discutir em detalhes a complexa história da formação dos Krahô, indico o capítulo final da
dissertação de G. Azanha (1984), "Notas preliminares para uma etno-história Krahô".
45 Há um mito que explica a origem dos Mâkrare. Trata-se do mito da mulher e da cobra (Schultz, 1950:
156-8), que fala do tempo em que o mundo começou ser povoado pelos índios. Haviam então muitos índios,
Contudo, segundo Melatti (1978: 78), existiria ainda a subdivisão Krikatire e
Krïkateyê na aldeia Boa União, além da referência a outros grupos como Pãhãmekra e
Krãhamekra. Some-se que as aldeias Pãrekamekra têm vivido entre si uma rivalidade
levada a cabo pelos subgrupos Kenpokateyê (dentre as quais Azanha cita a aldeia Pedra
Branca) e Põkateyê (aldeia Rio Vermelho,

Continue navegando