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CAPÍTULO 2 A mODERNIDADE – A JUDICIALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES SOCIAIS Nesta parte propomos a estudar as dimensões científicas das abordagens da ordem social, a necessidade destas e as constelações compreensivas que influenciaram na formatação da cultura jurídica que marcam a historicidade atual. A idéia de modernidade, na sua forma mais ambiciosa, foi a afirmação de que o homem é o que ele faz, e que, portanto, deve existir uma correspondência cada vez mais estreita entre a produção, tornada mais eficaz pela ciência, a tecnologia ou a administração, a organização da sociedade, regulada pela lei e a vida pessoal, animada pelo interesse, mas também pela vontade de se liberar de todas as opressões. Sobre o que repousa essa correspondência de uma cultura científica, de uma sociedade ordenada e de indivíduos livres, senão sobre o triunfo da razão? Somente ela estabelece uma correspondência entre a ação humana e a ordem do mundo, o que já buscavam pensadores reli- giosos, mas que foram paralisados pelo finalismo próprio às religiões monoteístas baseadas numa revelação. É a razão que anima a ciência e suas aplicações; é ela também que comanda a adaptação da vida social às necessidades individuais ou coletivas; é ela, finalmente, que substitui a arbitrariedade e a violência pelo Estado de direito e pelo mercado. A humanidade, agindo segundo suas leis, avança simultaneamente em direção à abundância, à liberdade e à felicidade (Touraine, 1994, p. 9). Ao pesquisar empiricamente as ações características de grupos sociais, a Sociologia foi consolidando métodos que contribuíram para que a própria Ciência Jurídica fosse se tornando um estudo sistematizado e autônomo. Assim, desde os primeiros cursos de Direito a Sociologia contribuiu para dar rigor às compreensões sobre o social. Os estudos sociojurídicos possuem sempre um caráter interdisciplinar, em que se pressupõe a colaboração equilibrada entre juristas e sociólogos que compreendem não apenas o Direito em sentido estrito, mas também os modos de regulação de conflitos que dele se aproximam ou com ele se relacionam. Isso requer a compreensão de que há uma interação objeto/ sujeito e noção de que as realidades sociais podem ser diferentemente representadas nas teorias, necessitando diálogos entre elas. 54 E n i o W a l d i r d a S i l v a Para entendermos porque somos hoje tão dependentes das de- terminações jurídicas presentes na sociedade precisamos reconstituir as fontes que deram bases a essas necessidades de judicialização das relações sociais na cultura jurídica moderna. Ela tem bases no mundo da produção e arrastaram o desenvolvimento da vida urbana, do tráfego comercial na- cional e internacional, da produção manufatureira, da atividade bancária, etc. Nos centros europeus aparece cada vez mais o saber econômico, que passa de uma técnica de gerir patrimônios de famílias ou encher cofres de reinos para as ciências complexas que medem, proveem e preveem os atos de produção, circulação e consumo em espaços territoriais agora chamados de nação, a economia política. A sociedade moderna consiste na crescente submissão das mais diversas esferas da vida pública e privada à calculabilidade, à impesso- alidade e à uniformidade características do formalismo burocrático sob o regime de dominação tipicamente racional-legal, como afirma Max Weber (1999a). A modernidade se definiu a partir de dois componentes: O primeiro princípio é a crença na razão e na ação racional: a ciência e a tecnologia, o cálculo e a precisão, a aplicação dos resultados da ciência a campos cada vez mais diversos de nossa vida e da sociedade, passam ser componentes necessários, e quase evidentes, da civilização moderna. O segundo princípio fundador da modernidade é o reconhecimento dos direitos do indivíduo, isto é, a afirmação de um universalismo que dá a todos os indivíduos os mesmos direitos. A ação racional e o reconhecimento de direitos universais a todos os indivíduos. No que tange à formação das ideias modernas acerca do Estado e do Direito é o legado clássico do pensamento greco-romano e às trans- formações trazidas pela Igreja Romana Ocidental. A Filosofia grega, a República, o Direito Romano e Direito Canônico são raízes históricas mais antigas que deram origem aos valores político-jurídicos e às insti- tuições modernas dos séculos 14 e 16. Juntos (e misturados) também provocaram os fenômenos de dissolução das instituições até então he- gemônicas (Igreja Romana), o aumento do poder real com o surgimento 55 Capítulo 2 – A Modernidade – A Judicialização das Relações Sociais das monarquias nacionais (França, Inglaterra), o enfraquecimento do papado, a emergência do reformismo filosófico, o aparecimento cultural do humanismo renascentista e a secularização da política... reproduzindo as condições para o desenvolvimento de uma cultura jurídica no interior das relações histórico-sociais da sociedade moderna europeia. Segundo Wolkmer (2005), muitos pensadores conseguiram captar a dinâmica destas mudanças estruturais e mostrar que elas desencadearam, conjuntamente com o complexo e plural sistema herdado de legalidade (Direito Romano, Canônico, Germânico, Feudal e Mercantil), as bases fundantes da moderna cultura jurídica europeia. Em verdade, nesse horizonte de continuidades e de rupturas em que se forja os pensamen- tos políticos e jurídicos modernos, é que se destacam, com muita força e criatividade, os movimentos do Humanismo Jurídico e da Reforma Protestante.1 No âmbito da economia agrário-senhoril, o Direito serviu para a instituição da produtividade econômica de mercado livre, pela siste- matização do comércio por meio das trocas monetárias e pela força de trabalho assalariado, constituindo-se no capitalismo como um conjunto de práticas comerciais, ao empreendimento individualista e competitivo, bem como ao afã de lucro ilimitado, ao cálculo previsível e ao procedi- mento administrativo racionalizado (Weber, 1999a). Um novo grupo social diferente do clero e da nobreza vai se apropriando dos meios produtivos, impondo uma hegemonia de valores e ideias ao controlar os instrumentos políticos: a burguesia. Com a riqueza acumulada e concentrada nos meios urbanos passam a dar as coordenadas para a vida prática e profissional os prestigiados que começa a aparecer: médicos, advogados, contadores, administradores... 1 Ver artigo de Wolkmer na Revista Seqüência, n. 50, p. 9-27, jul. 2005 e em sua obra: Cultura Jurídica Moderna, Humanismo Renascentista e Reforma Protestante. In: Revista Sequëncia, n. 50, p. 9-27, jul. 2005. 56 E n i o W a l d i r d a S i l v a A “alma” burguesa começa a ser reconhecidas em todos os cenários onde o dinheiro era seu fim, as empresas seu meio. A nova virtuosi- dade deste grupo que parecia estar acima de todos os outros grupos passa a ser velada e interpretada como se fosse o máximo entendi- mento humano. Crescem seus asseclas intelectuais que se instalam na administração das esferas públicas e vão dar roupagem científica às suas vontades e desejos, como foi a doutrina do liberalismo- individualista. Assim, o liberalismo torna-se a manifestação mais autêntica de uma ética individualista, voltada basicamente para a noção de liberdade e que está presente em todos os aspectos da realidade, desde o filosófico até o social, o econômico, o político, o religioso etc. (Wolkmer, 2005). Ideias não bastavam, era preciso a estruturação do poder que efetivasse e mantivesse as classes dominantes: O Estado, o Direito, a burocracia, a escola passaram a ser redimensionados para garantir esta nova ordenação. Segundo o sociólogo Max Weber, o Estado moderno materializou uma associação humana institucionalizada, detendo o “monopólioda coação física legítima”, fundado na economia capitalista mercantil, na burocracia de agentes profissionais e na construção de uma legalidade formal e racionalizada. O poder agora passa a estar centralizado no Estado Nacional, liberal e representativo, que gerencia as leis do livre mercado e das relações privadas competitivas.2 Esta nova organização é fortalecida pelas descobertas científicas (racionalismo), pelas explorações nas novas terras descobertas (colonialismo) e pelo envolvimento das pes- soas nas novas atividades produtivas (industrialismo), tudo necessitando ser garantido por uma cultura jurídica. A unidade política, a elite cultural, instituições eficazes, a hierar- quia da autoridade, a técnicas documentais, processuais e notariais, além de um ensino escolar organizado, passaram a fazer parte deste horizonte vislumbrado para a nova cultura jurídica, para a consciência de viver com bases em relações jurídicas. Claro está que a nascente ciência jurídica 2 Idem Wolkmer, 2005. 57 Capítulo 2 – A Modernidade – A Judicialização das Relações Sociais moderna não só se revela como produção de uma específica formação social e econômica, mas principalmente consolida-se no processo de junção histórica entre a legalidade estatal e a centralização burocrática. O ápice teórico de convergência entre a unicidade do poder político e a nova ordenação do Direito pode ser encontrado na filosofia política de pensadores da época, como Thomas Hobbes. Certamente, assinala-se que Hobbes não é apenas um dos construtores do moderno Estado absolutista, mas igualmente um dos primeiros intérpretes a identificar o Direito como manifestação do Direito do soberano. Tratava-se da tendência, que acabará sendo predominante, do Direito identificado com a legislação posta pela autoridade revestida do poder máximo e, ainda mais, o Direito como criação do Estado. Assim, um dos traços marcantes do Direito Moderno emergente entre os séculos XVI e XVII está na íntima relação do Direito com o poder estatal e na sua identificação com a lei escrita. Trata-se da instrumentalização do jurídico como significação dos interesses da burguesia e da dinâmica produtiva capitalista (Wolkmer, 2005). Assim, destes fenômenos emergiram de modo acelerado outras necessidades, tais como: o processo de secularização de atitudes e dos modos de compreender a natureza humana, a origem e o funcionamen- to das instituições sociais e os motivos do comportamento humano; o processo de racionalização que projetou, na esfera da ação coletiva, a ambição de conhecer, explicar e dirigir o curso dos acontecimentos, das relações dos homens com o universo às condições de existência social. O programa moderno estava embasado no desenvolvimento implacável das ciências objetivas, das bases universalistas da ética e de uma arte autônoma. Seriam, então, libertadas as forças cognitivas acumuladas, tendo em vista a organização racional das condições de vida em socie- dade. Os proponentes da modernidade cultivavam ainda a expectativa de que as artes e as ciências não somente aperfeiçoariam o controle das forças da natureza, como também a compreensão do ser e do mundo, o progresso moral, a justiça nas instituições sociais e até mesmo a felici- dade humana. 58 E n i o W a l d i r d a S i l v a Percebia-se então que a ampliação da judicialização das relações sociais no período histórico da Modernidade se justificava para: regular as práticas econômicas em franca expansão; garantia da paridade nos negócios; afirmar a nação como espaço de produção e distribuição; pre- ver e prover ações planejadas; garantir a impessoalidade no trato com as questões coletivas e nas relações sociais; uniformidade nos tratamentos pessoais (burocracia); garantir o direito da pessoa, da propriedade, do lucro e da acumulação; enfraquecer o controle da Igreja e admitir necessidade de outra centralidade social; garantir a secularização da política; regular as concorrências; fortalecer o mercado como lugar de trocas; garantir a organização empresarial e industrial; controlar as imigrações e migrações populacionais; fortalecer as profissões e divisão do trabalho social, garantir o comércio internacional... A base para a realização dos objetivos do projeto da modernidade seria garantido, no plano histórico, pelo equilíbrio entre os vetores socie- tários de regulação e emancipação. As forças regulatórias englobariam as instâncias de controle e heteronomia. De outro lado, as forças emancipa- tórias expressariam as alternativas de expansão da personalidade humana, oportunizando rupturas, descontinuidades e transformações. Nas suas conotações mais positivas, o conceito de modernidade indica uma formação social que multiplicava sua capacidade produtiva, pelo aproveitamento mais eficaz dos recursos humanos e materiais, graças ao desenvolvimento técnico e científico, de modo que as necessidades sociais pudessem ser respondidas com o uso mais rigoroso e sistemático da razão Neste sentido, discorre Boaventura de Sousa Santos (2004): O projecto sócio-cultural da modernidade é um projecto muito rico, capaz de infinitas possibilidades e, como tal, muito complexo e sujeito a desenvolvimentos contraditórios. Assenta em dois pilares fundamentais, o pilar da regulação e o pilar da emancipação. São pilares, eles próprios, complexos, cada um constituído por três prin- cípios. O pilar da regulação é constituído pelo princípio do Estado, 59 Capítulo 2 – A Modernidade – A Judicialização das Relações Sociais cuja articulação se deve principalmente a Hobbes; pelo princípio do mercado, dominante sobretudo na obra de Locke; pelo princípio da comunidade, cuja formulação domina toda a filosofia política de Rousseau. Por sua vez, o pilar da emancipação é constituído por três lógicas de racionalidade: a racionalidade estético-expressiva da arte e da literatura; a racionalidade moral-prática da ética e do direito; e a racionalidade cognitivo-instrumental da ciência e da técnica. O programa da modernidade fundar-se-ia na estabilidade dos re- feridos pilares, assegurada pela correlação existente entre os princípios regulatórios e as lógicas emancipatórias. Sendo assim, a racionalidade ético-prática, que rege o Direito seria relacionada ao princípio do Esta- do, uma vez que o Estado moderno era concebido como o detentor do monopólio de produção e aplicação das normas jurídicas. A racionalidade cognitivo-instrumental, por seu turno, seria alinhada ao princípio do mercado, porquanto a ciência e a técnica afiguravam-se como as molas mestras da expansão do sistema capitalista. A dinâmica da Sociologia está ligada ao contexto seu surgimento: emergiu do interior do pensamento social da modernidade chamado de muitas formas: racionalismo, iluminismo, jusnaturalismo, evolucionis- mo, contratualismo, constitucionalismo, idealismo, etc., que partia do pressuposto de que o homem é o centro de todas as coisas; de que o homem é o principal ser natural capaz de pensar, falar, agir e usar seu corpo do modo que mais lhe convier. Assim, para esta compreensão, bastava criarmos forças capazes de ordenar estas potências naturais para criar outra potência artificial – positivar o existente que o submeteria (o social submeteria o natural). Ou seja, a principal potência que deveria ser bem preparada seria o pensamento, pois este coordenaria as outras, as palavras e a ação (diziam os racionalistas, iluministas e idealistas – as ideias iluminarão o mundo). Esta compreensão levou à recuperação de outra potência histórica necessária para ordenar o mundo: a quarta potência se tornou impres- cindível, a potência da escrita, ou seja, não basta saber pensar, saber 60 E n i o W a l d i r d a S i lv a falar ou saber agir ordenadamente (racionalmente), era preciso colocar tudo isso por escrito no papel, para que todos possam seguir as melho- res orientações (afirmavam os contratualistas, os constitucionalistas, os jusnaturalistas). Assim, para preparar as ideias e escrever o melhor delas era preciso institucionalizar a educação, que também era uma herança da cultura ocidental, ou melhor, já havia muitas experiências de educa- ção escolarizada, mas agora ela faz parte do mundo social e vai se tornar universal, atingir a todos os sujeitos, pois precisam ser preparados para viverem o social, sair do natural. Para assegurar que estas potências sejam desenvolvidas foram redimensionadas e fortalecidas mais duas potências sociais, o Estado e o Direito (Sousa Santos, 2004), além das que já existiam. AÇÃOH RAZÃO/CIENCIA EDUCAÇÃO DIREITO/ESTADO Isso que se passava nos contornos do pensamento social se enterrou no mundo prático e vai ser chamado de alta modernidade. Antecedentes igualmente notáveis estão nas teorias contratualistas de T. Hobbes, J. Locke e J. J. Rousseau. Do desenvolvimento de temas destas filosofias sociais depreendem-se concepções significativas acerca das funções que o Direito assumiria em decorrência do contrato social. As principais conclusões giravam em torno da garantia dos direitos na- turais de liberdade, vida e propriedade. Montesquieu, por outro lado, usa a estratégia de aplicar o princípio da causalidade física à sociedade. O autor afasta as concepções normativas do fato jurídico, explicando o Direito enquanto fenômeno social inserido em um contexto histórico- social particular, adotando uma visão empírica e relativista do Direito. 61 Capítulo 2 – A Modernidade – A Judicialização das Relações Sociais Montesquieu introduzia novos elementos na reflexão sobre o Direito Positivo e sobre suas relações com o Direito Natural. Este novo “espírito” consistia em procurar o conjunto de relações que as leis podem ter com as condições climáticas e geográficas, os tipos de vida, a religião, o comércio e os costumes, e não só tratar de desvendar as relações que as leis podem ter entre si e com a intenção do legislador. Relacionava o Direito com todos os elementos do contexto político, social, econômico e cultural, assim como com o entorno físico e geográfico. O resultado era já uma Sociologia Jurídica, só que revestida com a linguagem do século 18.3 O impacto destes estudos deveu-se mais às situações de perplexi- dade que se via na época: rejeitava-se uma ordem social, mas não se sabia qual ordem iria lhe substituí-la. A intelectualidade mostra-se preocupada com a situação de desordem e entrega-se à missão de restabelecer a “ordem e a paz”. Para isso, sente a necessidade de conhecer as leis que regem o funcionamento da sociedade, sua organização, as relações dos grupos, etc. Intui, portanto, uma “ciência da sociedade” que pudesse dar respostas àquilo que passou a denominar de “crise moral”. Os primeiros sociólogos propõem revalorizar determinadas instituições que, segundo eles, desempenhariam papel fundamental na integração e na coesão da vida social. A jovem ciência, a Sociologia, assumia a tarefa de repensar o problema da “ordem social”, enfatizando as instituições, a autoridade, as leis e normas de conduta, procurando descobrir onde havia se perdido a coesão social e indicar como esta poderia ser reconstituída. A nova ciência adota uma postura reformista, buscando legitimar intelectualmente a nova ordem estabelecida, encontrar uma solução para os problemas que se apresentavam. Contra os que pregavam a volta ao passado, queriam a volta da monarquia (os “restauradores”), estavam os 3 Azevedo, Rodrigo Ghiringhelli de; Rojo, Raúl Enrique. Sociedade, direito, justiça. Relações conflituosas, relações harmoniosas? Revista Sociologias, Porto Alegre: UFRGS, ano 7, n. 13, p. 16-34, jan./jun. 2005. 62 E n i o W a l d i r d a S i l v a “positivistas”,4 que propunham restabelecer a ordem como condição para a continuidade do progresso desencadeado pela revolução econômica, política, social e cultural por que passava a sociedade europeia. Para eles, a raiz dos problemas estava na falta de uma classe, grupo ou instituição que conduzisse o processo de mudança preservando a ordem por meio da autoridade. Propunha a união dos industriais com os cientistas para formar uma elite esclarecida capaz de conduzir os rumos da sociedade. A tarefa da Sociologia seria ajudar esta “elite” a detectar os pro- blemas e apontar as soluções que seriam postas em prática pela liderança política estabelecida no poder do Estado. Assim estaria restabelecida a normalidade social e criadas as condições para o progresso. Na sequência dos positivistas (dedicado a fundamentar uma moral social), os funcionalis- tas (dedicados a entender a sociedade a partir das funções exercidas pelos indivíduos) reafirmavam a ideia de que a nova realidade surgida havia alterado o equilíbrio social em função da falta de regulamentação jurídica das novas profissões surgidas com a revolução industrial. Era necessário que estas profissões organizassem suas corporações para regulamentar o trabalho e, a partir das corporações, criar um novo código de conduta socioprofissional e um novo sentido de pertença à sociedade. Com isso reconstitui-se a divisão do trabalho e a solidariedade, fundamental para o equilíbrio social. 4 Cella, José Renato Gaziero. Positivismo jurídico no século XIX: relações entre direito e moral do ancien régime à modernidade. Texto direto do autor disponível em seu site: <www.cella.com.br>. O autor adverte que não se pode fazer nenhuma analogia entre o chamado positivismo jurídico e o positivismo filosófico, sob pena de se cair em erros grosseiros. Com efeito, segundo os ensinamentos de Norberto Bobbio, a “expressão ‘positivismo jurídico’ não deriva daquela de ‘positivismo’ em sentido filosófico, embora no século passado [século XIX] tenha havido uma certa ligação entre os dois termos, posto que alguns positivistas jurídicos eram também positivistas em sentido filosófico: mas em suas origens (que se encontram no início do século XIX) nada têm a ver com o positivismo filosófico — tanto é verdade que, enquanto o primeiro surge na Alemanha, o segundo surge na França. A expressão ‘positivismo jurídico’ deriva da locução direito positivo contraposta àquela de direito natural. Para compreender o significado do positivismo jurídico, portanto, é necessário esclarecer o sentido da expressão direito positivo” (Bobbio, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995. p. 15). 63 Capítulo 2 – A Modernidade – A Judicialização das Relações Sociais O positivismo refere-se a toda a construção humana que se impõe sobre o mundo natural. Trata-se de todo este processo artificial que ordena e até substitui a natureza, nega qualquer concepção de valores e pretende ser o reflexo do que é e não do que poderia ser. Desta asser- tiva de que o mundo natural precisa ser dominado e organizado nasce uma abordagem nova para as Ciências Sociais com a perspectiva de ser objetiva e útil da doutrinação da sociedade, de sua ordenação. Foi esta concepção que predominou no Ocidente até o fim da Segunda Guerra Mundial. Elimina do Direito qualquer referência à ideia de Justiça e, da Filosofia, qualquer referência a valores, procurando modelar tanto o Direito como a Filosofia pelas ciências, consideradas objetivas e im- pessoais e das quais compete eliminar tudo o que é subjetivo, portanto arbitrário. Ou seja, o Direito pode ser subdividido em Direito Natural e Direito Positivo (adquirido), sendo o primeiro inato a cada indivíduo e o segundo provém da vontade do legislador. Conforme se depreende,a ideia moderna de que os homens encontravam-se aptos a delinear um projeto racional informa as defini- ções clássicas de lei e Constituição. As normas legais afiguram-se como instrumentos de uma razão planificante, capaz de engendrar a codificação do ordenamento jurídico e a regulamentação pormenorizada dos proble- mas sociais. A Constituição, produto de uma razão imanente e universal que organiza o mundo, cristaliza, em última análise, o pacto fundador de toda a sociedade civil. O fenômeno da positivação é, pois, expressão da modernidade jurídica, permitindo a compreensão do Direito como um conjunto de normas postas. Ocorrido, em larga medida, a partir século 19, corresponde à legitimidade legal-burocrática preconizada por Max Weber, porquanto fundada em ritos e mecanismos de natureza formal. A positivação des- ponta como um novo processo de filtragem, mediante procedimentos decisórios, das valorações e expectativas comportamentais presentes na sociedade, que são, assim, convertidas em normas dotadas de validez jurídica. A lei, resultado de um conjunto de atos e procedimentos formais 64 E n i o W a l d i r d a S i l v a (iniciativa, discussão, quórum, deliberação) torna-se, destarte, a mani- festação cristalina do Direito. Daí advém a identificação moderna entre Direito e lei, restringindo o âmbito da experiência jurídica. A análise global da conjuntura da época possibilita o entendi- mento do sentido desta idolatria à lei. O apego excessivo à norma legal refletia a postura conservadora de uma classe ascendente. A burguesia, ao encampar o poder político, passou a utilizar a aparelhagem jurídica em conformidade com seus interesses. Os estudos da Sociologia Jurídica ampliaram-se no século 20. Na- quele período havia aumentado a quantidade de atores do Estado e no controle social: Judiciário, polícia, prisões, burocracia, escolas e mesmo assim a desordem se ampliava. Então, a Sociologia procurou entender como funcionavam os mecanismos regulatórios e como os indivíduos se relacionam com o Direito, as normas, as regras, as distâncias e aproxima- ções entre Direito e sociedade, as razões para a desordem, os fracassos dos mecanismos controladores... As transformações principais ou mais notáveis deram-se no mundo da produção e arrastaram o desenvolvi- mento da vida urbana, do tráfego comercial nacional e internacional, da produção manufatureira, da atividade bancária, etc., assim como provo- caram mudanças nas relações sociais e culturais. Nos centros europeus aparece cada vez mais o saber econômico, que passa de uma técnica de gerir patrimônios de famílias ou encher cofres de reinos para uma das ciências complexas que mede, provê e prevê os atos de produção, cir- culação e consumo em espaços territoriais agora chamados de nações. A expansão da complexidade nas relações sociais e as dimensões práticas que estas proposições tiveram fizeram surgir vários estudos sociológicos sobre as dimensões da vida regulada e o esforço em se viver em liberdade, chamados de Sociologia Jurídica ou Sociologia do Direito. A Sociologia do Direito vai criando sua identidade diante da importância crescente dos marcos não nacionais e das redes regionais e internacionais, do desenvolvimento das instituições que asseguram a 65 Capítulo 2 – A Modernidade – A Judicialização das Relações Sociais produção (e a reprodução) do Direito: os tribunais, as profissões jurídicas, a polícia, etc. Em segundo lugar as pesquisas que se referem à efetividade e aos efeitos do Direito: estes concernem às vezes a domínios particulares (a família, a empresa, a proteção do meio ambiente, etc.), focalizam-se nos fenômenos de ineficácia (marginalidade e divergência), ou avaliam ainda a eficácia dos instrumentos jurídicos na prevenção ou resolução dos conflitos ou das demandas renovadas (políticas e sociais) de uma instância simbólica que deve agir seguindo formas adjudicatórias e que deveriam dizer o que é justo. Vêm depois outras duas categorias: por um lado, o estudo dos fenômenos de pluralismo normativo e, por outro, o dos fenômenos de produção do Direito, dos processos legislativos e de seu contexto social. Vamos nos dedicar agora a este esforço para criar uma positividade do mundo, justa e ordenada a ponto de ser obedecida por ser racional e, portanto, incontestável. Razão Positivista e Sistema Social Auguste Comte (1798-1857) reposicionou a ideia de se criar um sistema social, lógico e controlado que fosse expressão das necessidades coletivas e das estruturas lógicas naturais dos indivíduos. Comte defende, com sua teoria, as necessidades de uma orientação prática para a vida moderna organizada juridicamente. Defendeu uma ciência síntese, forte tanto quanto as verdades da Física ou da Biologia. Essa ciência síntese foi inicialmente chamada de física social e mais tarde Sociologia e traçou os contornos para que ela fosse uma ciência autônoma. Ele tratou a Sociologia como uma ciência positiva que construía conhecimentos por meio da interdependência entre teorias e observações empíricas. Se não é possível fazer observações sem ter uma teoria que seleciona os fatos a observar e uma definição do problema científico ao qual vamos resolver, também seria uma insensatez considerar que as teorias surgiram isoladas dos fatos sociais históricos em que os teóricos estavam inseridos. Esta é a
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