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FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA E SOCIOLOGIA JURÍDICA Anderson Eduardo Carvalho de Oliveira FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA E SOCIOLOGIA JURÍDICA IMES Instituto Mantenedor de Ensino Superior Metropolitano S/C Ltda. William Oliveira Presidente Cristiano Lobo Diretor de Operações Valdemir Ferreira Diretor Administrativo Financeiro MATERIAL DIDÁTICO Produção Acadêmica Produção Técnica Anderson Eduardo Carvalho de Oliveira | Autor(a) Imagens Corbis/Image100/Imagemsource copyright © FTC EAD Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer meios, sem autorização prévia, por escrito, da FTC EAD - Faculdade de Tecnologia e Ciências - Educação a Distância. SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ...........................................................................................................................7 1 SOCIOLOGIA ............................................................................................................................. 15 1.1 A INSTITUCIONALIZAÇÃO DAS CIÊNCIAS HUMANAS ........................................................................17 1.1.1 Dificuldades metodológicas das ciências humanas .............................................................. 21 1.2 A CONSTITUIÇÃO DA SOCIOLOGIA ENQUANTO CIÊNCIA .................................................................23 1.2.1 A sociologia funcionalista de Émile Durkheim ...................................................................... 25 1.2.2 A sociologia compreensiva de Max Weber ........................................................................... 27 1.3 A CONTRIBUIÇÃO DOS CLÁSSICOS ...................................................................................................30 1.3.1 Karl Marx e a luta de classes ................................................................................................ 30 1.3.2 Emile Durkheim e a divisão do trabalho social ...................................................................... 32 1.3.3 Max Weber e o processo de racionalização social ......................................................................34 1.4 PROBLEMAS E MÉTODOS DE PESQUISA NA SOCIOLOGIA ................................................................36 1.4.1 Principais métodos de pesquisa disponíveis ......................................................................... 37 Atividades complementares ...................................................................................................................39 2 SOCIOLOGIA JURÍDICA ............................................................................................................. 45 2.1 FUNÇÃO E OBJETO DE ESTUDO DA SOCIOLOGIA JURÍDICA .............................................................47 2.1.1 Efeitos, eficácia e adequação interna das normas jurídicas ................................................... 49 2.2 SOCIOLOGIA DA APLICAÇÃO DO DIREITO: OPERADORES DO DIREITO ............................................53 2.3 SOCIOLOGIA DA APLICAÇÃO DO DIREITO: ACESSO À JUSTIÇA .........................................................59 2.4 ESTRATIFICAÇÃO SOCIAL E DIREITO .................................................................................................62 2.4.1 Desigualdade, mobilidade e a perspectiva da sociologia jurídica ........................................... 63 Atividades complementares ...................................................................................................................66 3 ANTROPOLOGIA GERAL ............................................................................................................ 71 3.1 A CONSTITUIÇÃO DA ANTROPOLOGIA ENQUANTO CIÊNCIA ...........................................................73 3.2 ESCOLAS ANTROPOLÓGICAS ............................................................................................................76 3.3 O CONCEITO ANTROPOLÓGICO DE CULTURA ..................................................................................80 3.3.1 Processo cultural ................................................................................................................. 82 Trabalho de campo .................................................................................................................................85 Atividades complementares ...................................................................................................................88 4 ANTROPOLOGIA JURÍDICA ........................................................................................................ 93 4.1 FUNÇÃO E OBJETO DE ESTUDO ........................................................................................................95 4.2 PLURALISMO JURÍDICO.....................................................................................................................97 4.2.1 Concepções atuais do pluralismo jurídico ............................................................................. 98 4.3 DIREITO E RELAÇÕES DE GÊNERO ..................................................................................................101 4.4 RAÇA, RACISMO E SISTEMA DE JUSTIÇA ........................................................................................105 Atividades complementares .................................................................................................................109 Glossário .. ................................................................................................................................ 113 Referências ............................................................................................................................... 115 APRESENTAÇÃO Prezado/a estudante, No século XXI, os efeitos do processo de globalização, os avanços tecnológicos e os fluxos migratórios experimentados em nossa sociedade, para citar apenas alguns fatores, impõem a necessidade de um novo perfil para o profissional do Direito, cada vez mais crítico, flexível, engajado politicamente e capaz de desenvolver análises interdisciplinares. Como sustenta Reale (2002p. 264), antes de dedicar-se ao problema da norma, entendido como um problema de tomada de decisão ante o fato, “deve ser habilitado a analisar objetivamente a realidade social e a explicar os seus elementos e processos, segundo ditames de ciências não- normativas” , como é o caso da Antropologia e da Sociologia. A Antropologia e a Sociologia são duas das mais significativas ciências sociais e humanas, aqui agrupadas com a finalidade de gerar o componente curricular Fundamentos de Antropologia e Sociologia Jurídica. O objetivo principal deste componente reside em auxiliá- lo/a na compreensão dos aspectos culturais e das relações sociais e, assim, gerar a competência de correlacionar fenômenos históricos, políticos, sociais e econômicos com a criação, a interpretação e a aplicação do direito, valorizando e respeitando as diferenças culturais. O componente curricular foi organizado em duas partes, que foram divididas em duas unidades e, para cada unidade, foram fixados quatro conteúdos específicos. Assim, na primeira parte, dedicaremos os nossos esforços aos estudos sociológicos. Na Unidade 1, estudaremos a Sociologia Geral, analisando o processo de institucionalização das ciências sociais e humanas, principalmente da Sociologia, seu método e objeto de estudo, bem como a contribuição deixada por seus autores clássicos. Na Unidade 2, voltaremos o olhar para o campo da Sociologia Jurídica, seus pressupostos fundamentais e alguns conteúdos que lhe são caros: a eficáciadas normas jurídicas, a administração da justiça (profissões jurídicas e acesso à justiça) e a discussão sobre estratificação social e direito. Já na segunda parte, o foco é dado aos estudos antropológicos, seguindo a mesma lógica definida na parte anterior, de modo que trataremos, na Unidade 3, da Antropologia Geral, a partir do seu processo de institucionalização enquanto ciência, seu objeto e método de pesquisa, bem como as suas principais escolas de pensamento e o conceito de cultura. Por fim, na Unidade 4, será a vez de aproximar Antropologia e Direito, destacando alguns pontos de toque que nos parecem mais fundamentais: as discussões em torno do pluralismo jurídico e das categorias analíticas gênero e raça. 7 FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA E SOCIOLOGIA JURÍDICA Obviamente, com este componente curricular, não esperamos esgotar todas as intersecções entre Antropologia, Sociologia e Direito, senão possibilitar um primeiro contato com o universo das ciências sociais e humanas, ampliando suas possibilidades de análises teóricas e desenvolvendo o senso crítico necessário para a melhor compreensão dos problemas jurídicos que se impõem no cotidiano dos profissionais do Direito. Bons estudos! 8 ANDERSON EDUARDO CARVALHO DE OLIVEIRA CONHECENDO OS ÍCONES DO LIVRO Ao longo da exposição dos conteúdos deste componente curricular, você vai se deparar com ícones postos para orientar os seus estudos. A seguir, você conhecerá o que significa cada um deles: Propõe situações-problemas sobre o conteúdo abordado ao decorrer do texto, no intuito de promover uma postura crítico- reflexiva sobre a realidade. Evidencia um conteúdo importante para a compreensão da temática. São informações ou relatos de experiências relacionados ao conteúdo desenvolvido que possibilitem o seu melhor entendimento. Aparecerá sempre ao final de cada unidade temática, com a indicação de material bibliográfico que ampliam ou reforçam o conteúdo. Ao longo do módulo, indicaremos produções da “sétima arte” que auxiliam na compreensão do conteúdo abordado. 9 FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA E SOCIOLOGIA JURÍDICA PARA INÍCIO DE CONVERSA... A IMPORTÂNCIA DA ANTROPOLOGIA E DA SOCIOLOGIA JURÍDICA Neste momento, iniciamos a nossa jornada de estudos acerca dos Fundamentos de Antropologia e Sociologia Jurídica. Você consegue mensurar a importância do conhecimento que será aqui produzido para pensar a formulação e a aplicação do direito? Para te preparar para este grande desafio, pedimos que reflita sobre a questão proposta a seguir: Pontes de Miranda, grande jurista alagoano morto em 1979, certa feita proclamou: “Quem só Direito sabe, nem Direito sabe”. Como essa frase repercute para você? As novas demandas sociais impõem para os futuros profissionais do direito a necessidade de uma leitura crítico-reflexiva acerca da dinâmica da vida em sociedade, que não está limitada a um emaranhado de normas jurídicas e suas sistematizações. Vamos entender um pouco melhor essa discussão, analisando o mapa mental a seguir: Figura 1 – Mapa Mental das Abordagens Teóricas Para o Estudo do Direito Fonte: Autoria Própria (2018) 10 ANDERSON EDUARDO CARVALHO DE OLIVEIRA Se hoje defendemos um novo modelo para a produção de estudos no campo das ciências jurídicas, que não só contemple uma perspectiva epistemológica, mas também aspectos axiológicos, este não foi o paradigma sustentado durante todo o século XIX e boa parte do século XX. Até a primeira metade do século XX, o Direito esteve fortemente alinhado a uma abordagem teórica conhecida como positivismo jurídico, que tem na figura de Hans Kelsen um de seus maiores expoentes. Como visto na figura 1, em sua Teoria Pura do Direito, Kelsen propõe a autonomia do Direito como um problema científico relevante, desenhando métodos e objetos específicos capazes de garantir aos estudiosos o alcance do seu conhecimento científico. O ponto de partida de sua construção teórica é o princípio da pureza, segundo o qual se busca alcançar uma pretensa neutralidade científica, afastando o estudo do direito da influência de outros campos do saber, como a própria Antropologia e a Sociologia, mas também de uma ordem axiológica. Para Nader (2015, p. 238), “a pureza metódica consiste na adstrição da teoria a fatores estritamente jurídicos, sem a ingerência de ideologias políticas e das ciências da natureza.” Com isso, este autor sustenta que Kelsen, ao rejeitar a inclusão do fato e do valor, não anula a importância destes para o direito. Faz, no entanto, no intuito de distinguir a ciência do direito dos demais campos disciplinares que tratam do fenômeno jurídico. Neste sentido, a teoria proposta por ele pode ser entendida como reducionista, uma vez que identifica o direito com a norma jurídica, sem promover juízos de valor. Não importa se a prescrição é justa ou injusta, mas que observe os padrões de validade e eficácia. O Direito é, então, colocado como uma ciência social que integra o mundo do dever ser. Logo, não necessariamente caracteriza os fatos ocorridos, ocupando-se em estabelecer o dever ser das condutas sociais (NADER, 2015). Ademais, diferente das ciências naturais, que ao se debruçarem sobre os fenômenos que apresentam regularidades aplicam o princípio da Hans Kelsen (1881-1973) foi um jurista e filósofo austríaco, sendo um dos mais influentes teóricos do Direito de seu tempo. É considerado o principal representante da Escola Normativista do Direito, ramo da Escola Positivista. Ganhou grande notoriedade com a publicação da obra Teoria Pura do Direito. Fotografia 1 - Hans Kelsen Fonte: <https://www.google.com.br/sea rch?q=Hans+Kelsen&oq=Hans+ Kelsen&aqs=chrome..69i57j0l5.4 722j0j8&sourceid=chrome&ie=U TF-8> 11 FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA E SOCIOLOGIA JURÍDICA Fonte: Disponível em:<https://educacao.uol . com.br/biografias/miguel - reale.htm> causalidade (ou seja, a uniformidade e a constância de certos fatos sugerem dadas consequências: dado A é B), as ciências normativas, como o Direito, não registram com regularidade a sucessão de fatos e efeitos, devendo ser subordinadas ao princípio da imputabilidade (dado A, deve ser B). Ainda conforme explica Nader (2005, p. 240), “as ciências normativas não prescrevem normas, pois seu papel seria apenas o de estudar conteúdos normativos e os vínculos sociais correspondentes”. Ademais, os indivíduos somente se submetem a uma norma dada a partir do momento em que ela dispõe sobre a sua conduta, de modo que o sistema jurídico se constitui meramente como uma ordem coercitiva, um sistema de sanções. Porém, a partir da segunda metade do século XX, iniciou-se um esforço para a incorporação de valores sociais à análise da ordem jurídica, em um movimento que ficou conhecido como Pós-Positivismo Jurídico. Dentre as principais construções teóricas deste novo momento, destacamos a Teoria Tridimensional do Direito proposta pelo brasileiro Miguel Reale, igualmente sintetizada na figura 1. Por intermédio desta teoria, Reale promoveu a unificação de três concepções unilaterais do direito, quais sejam: a) o sociologismo jurídico: que se associa aos fatos e à eficácia do direito; b) o moralismo jurídico: vinculado aos valores e aos fundamentos do direito; c) o normativismo abstrato: no que diz respeito às normas e à vigência do direito. Em sua formulação, o autor concebe “a tridimensionalidade do Direito em fórmula própria, em que os elementos fato, valor e norma, sem predominância e sem justaposição, se interdependem na formação do Direito.” (NADER, 2015p. 329). É a interação constante entre o aspecto fático (fato) e o axiológico (valor) que gera – e também relaciona – a norma.Esta Fotografia 2 - Miguel Reale Nascido em 1910 e morto em 2006, Miguel Reale é um jusfilósofo brasileiro que alcançou projeção internacional ao propor sua teoria tridimensional do direito. 12 ANDERSON EDUARDO CARVALHO DE OLIVEIRA interação é denominada pelo próprio Miguel Reale como “dialética da complementariedade” e é ela a responsável por apresentar o Direito como uma ciência aberta. As duas formas distintas de perceber a ciência do Direito aqui apresentadas geram também duas maneiras diversas de proceder com a investigação de um problema jurídico. Como mostra a figura 1, o positivismo nos encaminha para um enfoque dogmático, enquanto a tridimensionalidade do direito nos conduz para um enfoque zetético. No enfoque dogmático, o direito é analisado como prescrições de condutas, sem que as suas premissas técnicas (as normas jurídicas) sejam questionadas, promovendo apenas suas sistematizações, conceitos e classificações. Diz-se, por isso, que se assume um sentido diretivo do discurso, isto é, aquele que visa dirigir o comportamento humano. Já o termo zetética vem do grego zetein, que significa perquirir, investigar. Isto quer dizer que, no enfoque zetético, o pesquisador preocupa-se fundamentalmente com o problema especulativo, visando uma vasta caracterização dos fenômenos jurídicos que possa garantir uma compreensão mais ampliada deles. Assim, assume-se um sentido informativo do discurso, aproximando a ciência do Direito dos demais campos disciplinares, como a Biologia, a Medicina, a História, e também a Antropologia e a Sociologia, entre outras. É este o enfoque, portanto, que representa a verdadeira reflexão jurídica, questionando a ordem normativa e reunindo os conhecimentos das ciências afins para melhor intervir na realidade social. Como é possível interpretar a realidade do sistema prisional brasileiro ou o número cada vez maior de jovens da periferia dos grandes centros urbanos mortos em ações policiais sem pensar na seletividade advinda do racismo institucional arraigado em nossa cultura? Ou, de que modo analisar os elevados índices de violência doméstica e familiar contra as mulheres e as reivindicações por parte dos movimentos feministas para a criação de leis específicas que pautem o enfrentamento desta grave violação de direitos humanos senão a partir de um resgate histórico, capaz de revelar a leniência com a qual o Estado sempre tratou tais situações? Poderíamos, ainda, refletir sobre os processos de criminalização da pobreza; o reconhecimento de direitos e garantias fundamentais para a população de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transgêneros, Intersexo e Queer – LGBTTIQ; a demarcação de terras indígenas e quilombolas ou a desapropriação para fins de reforma agrária; as constantes propostas de reformas trabalhistas e previdenciárias etc. Com isso, queremos dizer que a melhor compreensão dos fenômenos jurídicos nos coloca diante da necessidade de um olhar para as nossas condições históricas e sociais. 13 FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA E SOCIOLOGIA JURÍDICA Portanto, a Sociologia, ao produzir conhecimento acerca da dinâmica das relações sociais, e a Antropologia em sua busca constante por compreender a alteridade humana, acabam por assumir um papel fundamental para a ciência do Direito, constituindo-se em componentes curriculares zetéticos indispensáveis para a sua formação acadêmica e profissional. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999. REALE, Miguel. Teoria tridimensional do direito. São Paulo: Saraiva, 1980. 14 ANDERSON EDUARDO CARVALHO DE OLIVEIRA SOCIOLOGIA 15 FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA E SOCIOLOGIA JURÍDICA SOCIOLOGIA GERAL om a leitura de nossas notas introdutórias, esperamos que você tenha conseguido perceber a importância da Sociologia para o estudo do Direito. No entanto, antes de adentrarmos em um debate mais específico sobre as interfaces dessas duas ciências, é indispensável que você se aproprie do aparato teórico e metodológico das ciências sociais. Então, nesta primeira unidade, vamos traçar o processo histórico de institucionalização das ciências humanas, recuperando as contribuições mais fundamentais de seus teóricos clássicos e os problemas e métodos disponíveis para a pesquisa neste campo do saber. Vem comigo! C 16 FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA E SOCIOLOGIA JURÍDICA 1.1 A INSTITUCIONALIZAÇÃO DAS CIÊNCIAS HUMANAS “Penso, logo existo”. A máxima construída pelo filósofo francês René Descartes nos remete à capacidade que temos, enquanto seres pensantes, de apreender o mundo e a natureza de todas as coisas, bem como as relações desenvolvidas no seio da sociedade em que estamos inseridos, gerando uma sede insaciável por conhecimento. Hoje a ciência é considerada, a forma de acesso ao conhecimento por excelência. Porém, há de se evidenciar que, ao longo da história da humanidade, vários modos de produção dos saberes foram vislumbrados e legitimados. Vamos conferir, observando o diagrama a seguir: Figura 1 - Formas de Acesso ao Conhecimento Fonte: Autoria Própria (2018) Como exposto na figura 2, no período da Antiguidade, principalmente na fase tribal dos povos gregos, o conhecimento era acessado a partir de mitos, uma espécie de narrativa feita em público e adotada como verdadeira pelos seus ouvintes, com base na confiança e autoridade depositadas no narrador, chamado poeta-rapsodo. Este seria um escolhido dos deuses, que lhe mostravam os acontecimentos do passado, permitindo assim enxergar a origem dos seres e das coisas para em seguida repassá-las aos seus ouvintes. As narrativas míticas, em regra, buscavam explicar a realidade de três maneiras principais, quais sejam: a) as relações sexuais entre as forças divinas pessoais; b) situações de rivalidade ou aliança entre os deuses; e c) recompensas ou castigos atribuídos pelos deuses para aqueles que seguiam seus ditames ou os desobedeciam. (CHAUÍ, 2000). 17 FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA E SOCIOLOGIA JURÍDICA Na mitologia grega, o trabalho é apresentado como um castigo imposto aos homens pelos deuses. Segundo se narra, Prometeu, titã responsável pelos raios e tempestades, apiedou-se da condição humana e roubou o fogo dos deuses para presenteá-los. A partir do uso do fogo, os homens teriam começado seu processo de evolução, sendo tomados por um sentimento de poder e presunção que os fizeram não respeitar mais os deuses, decidindo que ocupariam o lugar deles. Após terem sido vencidos pelos deuses, os homens tiveram que se submeter a alguns castigos, sendo o trabalho o primeiro deles. Você conhece outras narrativas da mitologia grega? Compartilhe com os seus colegas. Porém, com o passar do tempo, uma série de fatores fizeram com que as narrativas míticas fossem desacreditadas, emergindo uma nova forma de produção do conhecimento entre os gregos. Dentre essas circunstâncias, podemos citar as viagens marítimas; a invenção do calendário, da moeda e da escrita alfabética; o desenvolvimento da vida urbana e da política, que promoveram uma mudança radical nas relações socioeconômicas. Segundo Lemos Filho e Pereira Júnior (2012, p. 21), esses fatos criaram “condições históricas para o aparecimento de grupos de pessoas ricas e liberadas do trabalho produtivo, que podiam se ‘dar ao luxo’ de se dedicar à cultura letrada.” É nessa conjuntura que, por volta do século V a.C., tem-se o surgimento da Filosofia. Conforme Chauí (2000), ela nasceu quando se descobriu que a verdade sobre o mundo e os humanos não era algo secreto e misterioso que necessitava ser revelado por seres divinos e seus escolhidos. Qualquer pessoa poderia conhecer, desde que fizesse uso sistemático da razão. Além da tendência à racionalidade, a Filosofiatambém apresenta como características fundamentais a recusa de explicações preestabelecidas e uma forte tendência a generalizações. Contudo, como advertem Lemos Filho e Pereira Júnior (2012, p. 23), “a produção do conhecimento, por mais racionalizada que tenha sido, expressava implicitamente, sob a forma de verdade, os valores e práticas sociais da época.” Já na Idade Média, a desagregação do Império Romano no ocidente e as constantes invasões bárbaras feitas por povos mulçumanos à Europa fizeram com que o continente se fechasse em si próprio, tornando o comércio inviável. Diante da crise comercial, a opção foi pelo investimento na agricultura e na pecuária de subsistência. Tem-se aí a criação das bases para o desenvolvimento do feudalismo e a elevação do status atribuído à Igreja Católica, que por ser a instituição melhor estruturada no período, assumiu certa centralidade no debate político, impondo, inclusive, um novo padrão para a produção do conhecimento. Pauta-se, a partir desse momento, no alinhamento dos saberes herdados da filosofia grega aos pressupostos do cristianismo. Isto é, uma tentativa de aliar razão e fé: “todo saber que pudesse 18 ANDERSON EDUARDO CARVALHO DE OLIVEIRA ser assimilado pela fé cristã era considerado verdadeiro; os demais, falsos” (LEMOS FILHO; PEREIRA JÚNIOR, 2012, p. 24), de modo que o conhecimento adquire traços teocêntricos. Você conhece a expressão dogma? Ela foi muito mobilizada naquele contexto histórico. Dogma é um termo de origem grega e que significa “o que se pensa é verdade”. Na Idade Média, o termo adquiriu um caráter religioso, tornando os fundamentos cristãos como verdades absolutas, inquestionáveis e irrevogáveis. Rejeitá-los poderia significar heresia e acarretar a excomunhão ou mesmo a perseguição pela Inquisição. Somente com o colapso do sistema feudal e a emergência do capitalismo, inaugurando a Idade Moderna, é que novos fatores concorreram para criar um cenário propício ao desenvolvimento da ciência. Os mesmos autores agrupam tais fatores em três ordens distintas: fatores socioculturais, fatores intelectuais, além do próprio sistema das ciências. Dentre os primeiros, destacamos como mais significativos a formação dos Estados Nacionais, a Revolução Comercial, a Reforma Protestante e, sobretudo, a Revolução Francesa e a Revolução Industrial. A Revolução Francesa promoveu a ascensão da burguesia e a consequente ruptura com a formação social observada na Idade Média, relativizando o poder político do clero e da nobreza. Por outro lado, a Revolução Industrial, iniciada com a introdução da máquina a vapor e a modernização dos métodos de produção, provocou significativos abalos na sociedade do século XVIII. Dentre eles, citamos o crescimento demográfico das cidades sem a devida infraestrutura básica; ausência de moradia; disseminação de epidemias; altos índices de violência, prostituição e suicídio; exploração do trabalho humano nas fábricas, inclusive com a introdução do trabalho feminino e infantil; concentração da propriedade nas mãos dos grandes empresários capitalistas e o surgimento de uma nova classe social, o proletariado. Alguns filmes ilustram bem o contexto social da Europa do século XVIII. Recomendamos, especialmente, Germinal, dirigido por Claude Berri e com Gérard Depardieu e Miou-Miou no elenco. 19 FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA E SOCIOLOGIA JURÍDICA Quanto aos fatores intelectuais, Lemos Filho e Pereira Júnior (2012) remontam para um movimento iniciado ainda na Idade Média, que advogava pela elevação dos estudos sobre a cultura greco-romana e o retorno aos ideais de exaltação do homem. Este movimento, chamado Renascimento, propagava que “o conhecimento deixa de ser revelado, como resultado de uma atividade de contemplação e fé, para voltar a ser o que era antes, entre gregos e romanos, o resultado de uma bem conduzida atividade mental.” (LEMOS FILHO; PEREIRA JÚNIOR, 2012, p. 29). O Renascimento foi sucedido pelo Iluminismo, movimento que ganhou força na França do século XVII, defendendo o domínio da razão sobre a leitura teocêntrica de realidade. Assim, no propósito de iluminar as trevas em que se encontrava a sociedade da época, defendiam que o pensamento racional deveria substituir as crenças religiosas e o misticismo. Duas vertentes principais se acentuaram: o racionalismo, que tem em René Descartes e seu método da dúvida um de seus maiores representantes; e o empirismo, pautado por filósofos como John Locke e David Hume, para quem o conhecimento era adquirido com o passar do tempo por meio das experiências humanas. Na tentativa de tornar mais fácil a sua compreensão, convidamos você a ler atentamente o quadro a seguir, que compara as principais características dessas duas vertentes distintas: Quadro 1 – Principais Características do Racionalismo e do Empirismo RACIONALISMO EMPIRISMO Conhecimento Dá-se pelas ideias inatas, ou seja, os pensamentos existentes no homem desde sua origem, que o permite deduzir as demais coisas do mundo. Experiência como base do conhecimento científico. A sabedoria é adquirida por intermédio da percepção do mundo exterior. Ideais Concedidas por Deus, são inatas, no sentido de que os sujeitos já nascem com elas. Tem sua origem nos processos de abstração, a partir dos sentidos. Razão Independe da experiência sensível, sendo capaz de discernir o bem e separar o verdadeiro do falso. Depende da experiência sensível e apenas opera a partir dela. Método Dedutivo Indutivo Fonte: Autoria Própria (2018) 20 ANDERSON EDUARDO CARVALHO DE OLIVEIRA Já a terceira ordem de fatores está relacionada diretamente com a dinâmica do “sistema das ciências”, cada vez mais voltada para a necessidade de controle e compreensão da natureza. Isso porque as crises observadas ao longo do século XVIII em função dos acontecimentos sociais que marcaram essa época “provocaram uma convicção de que os métodos das ciências da natureza deviam e podiam ser estendidos aos estudos das questões humanas e sociais”. (LEMOS FILHO; PEREIRA JÚNIOR, 2012, p. 31). Tivemos, então, o cenário propício para a institucionalização das ciências sociais e humanas. Você conhece a expressão dogma? Ela foi muito mobilizada naquele contexto histórico. Dogma é um termo de origem grega e que significa “o que se pensa é verdade”. Na Idade Média, o termo adquiriu um caráter religioso, tornando os fundamentos cristãos como verdades absolutas, inquestionáveis e irrevogáveis. Rejeitá-los poderia significar heresia e acarretar a excomunhão ou mesmo a perseguição pela Inquisição. 1.1.1 Dificuldades metodológicas das ciências humanas O cenário propício para a institucionalização das ciências humanas, como vimos acima, não afastou a controvérsia deste processo. Se nas ciências da natureza o objeto de estudo está situado fora do sujeito que o busca conhecer, nas ciências humanas o objeto a ser conhecido se confunde com o próprio sujeito cognoscente, gerando amplos debates sobre a possibilidade de se estudar com isenção aquilo que diz respeito tão diretamente ao sujeito do conhecimento. Aranha e Martins (2009) destacam cinco entraves impostos às ciências humanas para o estabelecimento do seu método. Vejamos: 1) Complexidade dos fenômenos humanos, por ser resultado de múltiplas influências, que vão desde aspectos biopsicológicos até padrões vinculados ao meio social; 2) Experimentação, uma vez que é muito difícil identificar e controlar as mais variadas perspectivas que influenciam os atos humanos; 21 FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA E SOCIOLOGIA JURÍDICA 3) Matematização, pois os fenômenos humanos são essencialmente qualitativos, permitindo, no máximo, resultados aproximativos e, ainda assim, sujeitos à interpretação; 4) Subjetividade, já que as ciências naturais almejama objetividade e o objeto das ciências humanas é subjetivo por natureza; e 5) Liberdade, haja vista que mesmo o comportamento humano sendo passível de condicionamentos, não se alcança o nível de regularidades observados nas ciências da natureza. Essas dificuldades não foram suscitadas no sentido de atestar a inviabilidade das ciências humanas, mas sobretudo para enfrentar o debate acerca do tipo de método a ser empregado quando da realização de seus estudos (ARANHA; MARTINS, 2009). 22 ANDERSON EDUARDO CARVALHO DE OLIVEIRA 1.2 A CONSTITUIÇÃO DA SOCIOLOGIA ENQUANTO CIÊNCIA Como vimos no tópico anterior, o impacto do processo de industrialização no âmbito social experimentado na Europa do século XVIII impôs uma necessidade de compreensão do novo modo de vida em sociedade, marcado por crises e desordens. Na busca por explicações e soluções, constituiu-se a primeira forma de pensamento social: o positivismo. Segundo Lowi (1975, apud Lemos Filho, 2012), três ideias básicas caracterizam o positivismo: pressupor que a sociedade era regida por leis parecidas com as leis da natureza, ou seja, leis invariáveis e independentes do arbítrio humano; a utilização dos mesmos métodos empregados nas ciências naturais para a produção do conhecimento acerca da sociedade; e a defesa da objetividade cientifica, ou seja, assim como observado nas ciências da natureza, as ciências sociais deveriam adotar um modelo neutro, livre de ideologias e juízos de valor. Um dos precursores do positivismo foi Claude-Henri de Rouvroy, o Conde de Saint- Simon, filósofo e economista francês que, para restaurar a ordem social perdida, propôs a transferência de todo o poder da sociedade para os cientistas e industriais. Ele defendia a ideia de que o industrialismo trazia consigo a possibilidade de satisfação das necessidades dos indivíduos e que a ordem e a paz poderiam ser alcançadas a partir do progresso econômico, desde que fosse instituído um novo padrão a semelhança do que se observara na Idade Média. Se, naquele tempo, existia uma elite de sacerdotes que estipulavam as leis e senhores feudais que as faziam cumprir, na Idade Moderna, era preciso constituir uma nova elite, na qual os cientistas elaborassem as leis e os industriais as fizessem cumprir. (LEMOS FILHO, 2012). Assim, defendeu a criação de uma ciência que, tendo a sociedade como objeto e se valendo dos mesmos métodos das ciências naturais, fosse capaz de brecar os anseios revolucionários das classes trabalhadoras e elaborasse leis visando o progresso. Porém, coube a seu seguidor e secretário particular, Augusto Comte, começar a desenhar os traços dessa nova ciência, embora pouco se tenha aproveitado do seu pensamento quando pautamos a Fonte: Disponível em:<https://upload.wikm edia.org/wikipedia/commons /0/05/Flag_of_Brazil.svg> A frase escrita na bandeira do Brasil (ordem e progresso) é uma forma abreviada do lema do positivismo proposto por por Augusto Comte: “O amor por princípio e a ordem por base; o progresso por fim”. Figura 3 – Bandeira Nacional do Brasil 23 FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA E SOCIOLOGIA JURÍDICA Sociologia atualmente. Comte lançou, em 1830, o livro intitulado Curso de Filosofia Positiva, no qual sustenta a ideia de fundar uma “física social”, cuja função primordial seria aplicar o método científico para estudar a sociedade, demonstrando suas leis de funcionamento e, com isso, auxiliar no enfrentamento dos problemas verificados. Foi somente em 1839 que ele propôs o nome “sociologia” para identificar esta nova ciência, o que o fez ser comumente identificado como o “pai” da Sociologia. Na concepção de Comte, o positivismo era explicado pela Lei dos Três Estados, segundo a qual o desenvolvimento da inteligência humana percorreu três estágios distintos: o teológico (ou fictício), o metafísico (ou abstrato) e o positivo (ou científico). No estado teológico, os fenômenos eram explicados pelo espírito humano, partindo da ação direta e contínua de agentes sobrenaturais, já sendo possível estabelecer relações causais, mas estas eram atribuídas à divindade. Já no estado metafísico, tem-se a preponderância do conhecimento filosófico e, mais precisamente, metafísico, em que se substitui os agentes sobrenaturais por forças abstratas. Por fim, no estado positivo, a filosofia é substituída pelo conhecimento científico, buscando-se na observação e no raciocínio as respostas para a explicação do mundo e de todas as coisas (SELL, 2015). A síntese da lei dos três estados pode ser melhor compreendida na imagem a seguir (figura 3): Figura 3 - Lei dos Três Estados de Augusto Comte Fonte: Autoria Própria (2018) Já na fase final de sua vida, com a morte da mulher por quem era apaixonado, Comte assimilou características religiosas ao seu pensamento, apresentando proposta para criar uma 24 ANDERSON EDUARDO CARVALHO DE OLIVEIRA religião exclusivamente laica, fundada no culto da humanidade. No entanto, para a Sociologia se consolidar como campo científico, era preciso ter objeto delimitado e método constituído, de modo que foi apenas com Émile Durkheim e Max Weber que ela passou a ser considerada uma ciência e como tal ser desenvolvida. 1.2.1 A Sociologia funcionalista de Émile Durkheim Observa-se em Durkheim uma grande preocupação em fornecer para a moderna Sociologia bases filosóficas consistentes e métodos precisos para a realização de pesquisas sociais. Em sua obra clássica “As regras do método sociológico”, lançada originalmente em 1895, ele apresenta os instrumentos da pesquisa sociológica, separando-os em quatro categorias: objeto de estudo, observação, classificação e explicação dos fenômenos (SELL, 2015). Para Durkheim, o objeto de estudo da Sociologia é o que ele chamou de fato social, definido como “toda maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior”. E continua: “ou, ainda, toda maneira de fazer que é geral na extensão de uma sociedade dada e, ao mesmo tempo, possui uma existência própria, independente de suas manifestações individuais.” (DURKHEIM, 2014, p. 13). Os fatos sociais, portanto, possuem três características obrigatórias: coercitividade, exterioridade e generalidade. Vamos analisar o que significa cada uma delas: a) Coercitividade: a ideia de uma “coerção exterior” apresentada por Durkheim expressa uma força que os fatos exercem sobre os indivíduos, conduzindo-os a uma conformação às regras do meio social em que ele está inserido, independente de sua vontade. Ademais, esta força coercitiva se faz evidente pelas sanções legais e espontâneas a que os indivíduos estão submetidos quando não observam as regras impostas. As sanções legais são aquelas Fonte: Disponível em:< https://www.infoescola.com /biografias/emile- durkheim/> Fotografia 3 – David Émile Durkheim David Émile Durkheim nasceu na França, em 1858, e é considerado um dos principais fundadores do pensamento sociológico. Dentre suas principais obras, destacam-se destacam-se: A divisão do trabalho social (1893); As regras do método sociológico (1895); e O suicídio (1897). 25 FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA E SOCIOLOGIA JURÍDICA previstas em forma de leis, enquanto as sanções espontâneas são aquelas desencadeadas pela própria sociedade em resposta a uma conduta considerada inadequada; b) Exterioridade, ou seja, a ideia de que os fatos sociais não procedem do próprio indivíduo, senão de algo que lhe é exterior: a sociedade; c) Generalidade: para ser considerado fato social, é preciso ser geral ou, ao menos, que se repita em uma parcela significativa da sociedade, manifestando assim a sua natureza coletiva. Em sua obra O suicídio, Durkheim busca demonstrar a coerênciade seu pensamento sociológico, trazendo o suicídio como um exemplo de fato social. Para o autor, embora, à primeira vista, o suicídio seja encarado como um fenômeno individual, a constatação da sua regularidade ao longo do tempo o faz ser percebido como um fato social, explicado como consequência de uma crise moral da sociedade. Que outros exemplos de fato social você consegue pensar? No que diz respeito à observação, Durkheim (2014) advertiu ser necessário tratar os fatos sociais como coisas dotadas de um caráter objetivo, em clara alusão aos pressupostos positivistas de adoção dos métodos e procedimentos das ciências naturais. Neste sentido, Sell (2015) aponta para as regras que um sociólogo deve seguir para produzir conhecimento na perspectiva durkheimiana: 1º) É necessário afastar sistematicamente todas as noções prévias: significa que o sociólogo deve romper com as representações, ideias e conceitos elaborados pelo senso comum a respeito da vida social em geral; 2º) Tomar sempre como objeto de investigação um grupo de fenômenos previamente definidos por certas características exteriores que lhes sejam comuns, e incluir na mesma investigação todos os que correspondem a esta definição; 3º) Quando o sociólogo empreende a exploração de uma qualquer ordem de fatos sociais, deve esforçar-se por considerá-los sob um ângulo em que eles se apresentam isolados de suas manifestações individuais. (SELL, 2015, p. 84). Durkheim (2014) procede ainda uma classificação dos fatos sociais em normal e patológico, utilizando como critério a sua regularidade. Desta forma, um fato social normal é aquele encontrado na média das sociedades, enquanto anormal (ou patológico) é aquele 26 ANDERSON EDUARDO CARVALHO DE OLIVEIRA extraordinário e eventual. Esta tese, inclusive, provocou grande celeuma no meio científico, sendo severamente criticada, pois, como explica Sell (2015, p. 85), “a análise dos comportamentos- padrão e do comportamento desviante não pode assumir premissas morais em suas conclusões, como acaba fazendo a distinção durkheimiana entre normal e patológico”. Para Durkheim (2014), o crime, mesmo percebido socialmente como algo negativo, era um fato social normal, pois se adequava ao critério de regularidade. No mais, vale destacar que para Durkheim, além de descrever e classificar os fatos sociais, a Sociologia deveria explicá-los, apontando as razões de sua ocorrência e as características do comportamento coletivo, para assim compreender a função que eles desempenham. Daí decorre o porquê de chamar a sua teoria sociológica de funcionalista. “O fundamental é identificar a que tipo de necessidade corresponde qualquer fenômeno ou fato social e de que forma ele contribui para produzir a harmonia social.” (SELL, 2015, p. 86). 1.2.2 A Sociologia compreensiva de Max Weber Se Durkheim constrói sua teoria sociológica a partir do objeto, Max Weber toma como ponto de partida o próprio sujeito. Para ele, o indivíduo é o agente fundante da explicação da realidade social, operando assim uma verdadeira revolução no campo das ciências sociais. Na perspectiva weberiana, o objeto de estudo da Sociologia deveria ser a ação social: uma conduta humana dotada de sentido ou, em outras palavras, de uma justificativa subjetivamente elaborada. Nas linhas iniciais de Economia e Sociedade, Weber consagra que ação social “significa uma ação que, quanto a seu sentido visado pelo agente ou os agentes, se refere ao comportamento de outros, orientando-se por este em seu curso.” (WEBER, 2014, p. 3). O ser humano, então, adquire um lugar privilegiado em sua teoria sociológica, pois se reconhece que é o agente social que dá sentido à sua ação. Deste modo, Weber (2014) minimiza a força da ordem social, propondo que cada sujeito age tomado por um motivo que é dado pela tradição, afetividade ou por interesses racionais, sejam eles relacionados a fins ou a valores. Daí sua classificação da ação social, conforme podemos ver na figura a seguir: 27 FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA E SOCIOLOGIA JURÍDICA Figura 4 - Tipos de Ação Social Fonte: Autoria Própria (2018) Vamos agora entender cada um desses tipos de ação social expostos na figura 5: a ação social de modo racional referente a fins é aquela gerida por expectativas quanto ao comportamento de objetos do mundo exterior e de outras pessoas, que atuam como condições para determinados interesses racionalmente estabelecidos. A ação social de modo racional referente a valores rege-se pela crença consciente no valor, seja ele ético, religioso ou de qualquer outra natureza, independente do resultado. Já a ação de modo afetivo, do tipo não racional, é guiada por afetos ou estados emocionais atuais; e, por fim, ação social de modo tradicional, também não racional, pauta-se em um costume socialmente arraigado. Ouça a música intitulada Eduardo e Mônica, do grupo de pop rock brasileiro Legião Urbana, que fez muito sucesso entre as décadas de 1980 e 1990. A partir da letra da canção, busque refletir sobre as ações apresentadas, fazendo, sempre que possível, conexões com o pensamento weberiano. Essa tipologia da ação social apresentada por Weber (2014) e esquematizada na figura 4 nada mais é do que um recurso metodológico (típico-ideal) que possibilita perceber a variabilidade da conduta humana com base em sua coerência racional. Na vida real, não é possível encontrar esses tipos em suas formas puras. 28 ANDERSON EDUARDO CARVALHO DE OLIVEIRA Tipo ideal consiste em uma construção mental da realidade pela qual o pesquisador seleciona um dado número de características do objeto no intuito de construir um tipo útil para classificar os objetos de estudo. Com ele não se esgota todas as possibilidades de interpretação da realidade empírica, mas serve para criar um instrumento teórico analítico. Para Weber, a tarefa do sociólogo consiste em compreender o sentido empregado pelos sujeitos em suas ações. Dizia ele: “Sociologia [...] significa: uma ciência que pretende compreender interpretativamente a ação social e assim explicá-la causalmente em seu curso e em seus efeitos.” (WEBER, 2014, p. 3). Por isso, identificamos sua Sociologia como compreensiva. Ademais, vale frisar que Weber rompe frontalmente com as proposições positivistas. Para ele, o cientista age sempre norteado por sua cultura, tradição e motivações, de modo que não é possível descartar suas noções prévias, como defendia Durkheim. A parcialidade da análise sociológica é inerente a toda forma de conhecimento. Entretanto, quando do início do estudo, o pesquisador deve buscar empregar a maior objetividade possível na análise dos acontecimentos. 29 FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA E SOCIOLOGIA JURÍDICA 1.3 A CONTRIBUIÇÃO DOS CLÁSSICOS Dado o contexto social de emergência da Sociologia, grandes pensadores da época dedicaram-se a explicar a dinâmica das relações sociais, criando verdadeiras teorias da modernidade. Três ganharam bastante destaque, constituindo-se em grandes clássicos da Sociologia moderna: Karl Marx, Émile Durkheim e Max Weber. Parafraseando Jeffrey C. Alexander (1999), tem-se como clássico todo esforço primitivo de explicação da realidade que goza de um status privilegiado em virtude de sua adequação contemporânea no mesmo campo. Assim, embora o esforço empreendido por esses autores mirasse a explicação da sociedade industrial do século XVIII, muitas de suas proposições teóricas seguem úteis para a compreensão da sociedade hodierna. Chegou a hora de saber um pouco mais sobre essas teorias! 1.3.1 Karl Marx e a luta de classes Marx explicita sua teoria da modernidade na obra O capital, na qual promove uma intensa crítica à economia política tradicional, tida porele como burguesa e ideológica. Para entender o capitalismo e explicar a natureza da organização social, ele desenvolve a teoria do materialismo histórico dialético. Segundo ela, a estrutura de toda e qualquer sociedade deve ser interpretada a partir do modo pelo qual os indivíduos se relacionam para a produção social dos bens e serviços necessários para a subsistência humana, o que ele denominou de modo de produção. Fonte: Disponível em:<https://pt.wikipedia.or g/wiki/karl_marx#/media /file:marx_old.jpg> Fotografia 4 - Karl Marx Karl Marx nasceu em 1818, na cidade de Trier, Alemanha. Foi um dos mais incisivos críticos do capitalismo. Junto com Friedrich Engels, escreveu uma vasta literatura sobre temas diversificados, desde a filosofia, história, política, religião e economia. Dentre suas principais obras, destaca-se O capital (1867). 30 ANDERSON EDUARDO CARVALHO DE OLIVEIRA O modo de produção conjuga dois fatores fundamentais: as forças produtivas, que consiste na união entre a força de trabalho e meios de produção, ou seja, o conjunto da matéria-prima e dos instrumentos necessários para a produção; e as relações de produção, compreendidas como as formas pelas quais os indivíduos se organizam para desenvolver a atividade produtiva. Em sua teoria, as relações de produção assumem o lugar de maior importância quando se pensa as relações sociais, de forma que o modo de produção é determinante para explicar os modelos de família, as leis, a religião, as ideias políticas e os valores sociais de toda e qualquer sociedade humana. Analisando o percurso histórico, Marx identificou vários modos de produção específicos. Em comum, observou que em cada um deles se desenvolveu uma desigualdade de propriedade que criou contradições básicas no desenvolvimento das relações de produção, por exemplo: na Antiguidade, um sistema escravista; na Idade Média, as relações servis da Europa feudal; e, na Idade Moderna, as contradições colocadas pelo capitalismo das sociedades industriais, em que as relações de produção se expressam na divisão entre proprietários dos meios de produção sob a forma legal de propriedade privada – os capitalistas – e os despossuídos dos meios de produção, que vendem a sua força de trabalho em troca de um salário – os proletários. Você já ouviu falar em mais-valia? É um dos conceitos mais famosos desenvolvidos por Marx, no sentido de revelar os mecanismos de reprodução e acumulação do capital, bem como da exploração do trabalho humano. Em linhas gerais, o que este autor defendia é que o trabalho humano agrega valor ao transformar os recursos naturais disponíveis em bens necessários à subsistência, gerando riqueza. Contudo, esse “mais valor” é apropriado pelos detentores dos meios de produção e não pelo trabalhador assalariado. Decerto, você estudará mais sobre este tema no componente curricular Economia. Na perspectiva de Marx, se a produção material da vida na luta pela sobrevivência é indispensável na sociedade, quem domina a estrutura produtiva, os meios e as formas de produção goza de um lugar de privilégio e tem mais poder para dominar o resto da sociedade. Porém, o acirramento dessas contradições provoca um processo revolucionário, impondo a derrocada de um modo de produção e a emergência de outro (por isso sua afirmação de que a história da humanidade é a história da luta de classes). Assim, Marx defendeu que a crise experimentada pela sociedade europeia do século 31 FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA E SOCIOLOGIA JURÍDICA XVIII era consequência direta da introdução do modo de produção capitalista e da apropriação privada das forças produtivas. A solução para a crise, portanto, perpassava a luta de classes e a queda do capitalismo, introduzindo um novo modo de produção – o comunismo. Se os problemas sociais derivam das desigualdades entre os indivíduos, era necessário introduzir um novo modo de produção, pautado no respeito a regras rígidas e na obrigação de todos trabalhar para todos na medida de suas possibilidades. Então, havia de se promover a socialização dos meios de produção e a extinção da propriedade privada e do Estado. Porém, em um estágio inicial, Marx considerava a importância do Estado para coordenar a socialização dos meios de produção e defender os interesses dos trabalhadores contra as investidas do capital. Por essa razão, propôs um estágio de transição que visa o desaparecimento do capitalismo – o socialismo, em que se promova o fim da propriedade privada, mas preservando a figura do Estado. Já no comunismo teríamos um sistema em que não existem classes sociais, propriedade privada, nem mesmo a figura do Estado, uma vez que todas as decisões políticas deveriam ser tomadas pela democracia operária. Se nós te pedíssemos para enumerar exemplos de países que experimentaram o comunismo, provavelmente você pensaria em Cuba, China e na antiga União Soviética. Pois bem: levando à risca a teoria proposta por Marx, poderíamos sustentar que esses países passaram por um sistema socialista, mas não alcançaram o comunismo, uma vez que não eliminaram a figura do Estado. Fique ligado! 1.3.2 Emile Durkheim e a divisão do trabalho social A chave explicativa da teoria da modernidade desenvolvida por Durkheim é a divisão do trabalho social, entendida como a distribuição das atividades necessárias à sobrevivência do grupo social, de modo que todos os seus membros sejam úteis. Esta questão se coloca evidente quando a sociedade percebe que a insuficiência da produção individual ou circunscrita ao âmbito familiar põe em risco a sobrevivência da coletividade, lançando-se em divisões mais primitivas, como aquelas promovidas por critérios de sexo e idade, ou mesmo as mais sofisticadas, observadas na moderna sociedade industrial. Como elucida Sell (2015), na leitura sociológica de Durkheim, a modernidade era caracterizada pela divisão do trabalho social e pela especialização das funções. Com a 32 ANDERSON EDUARDO CARVALHO DE OLIVEIRA introdução da máquina a vapor no processo de produção, acentuou-se a diferenciação social em virtude do surgimento de variadas esferas de atividades sociais e econômicas, o que desencadeou novos tipos de relações entre os indivíduos. Assim, para Durkheim, a sociologia deveria “refletir sobre a ambiguidade desta situação mostrando que, por um lado, ela implicava em maior autonomia individual e, por outro, trazia dificuldades para processo de coesão social” (SELL, 2015, p. 87). A tese defendida por Durkheim era no sentido de que o mundo moderno é produto de um processo de diferenciação social, que passa de uma solidariedade mecânica para uma solidariedade orgânica. Diferentemente de como é mobilizada no senso comum, quando é entendida como ajuda carismática, o conceito de solidariedade em Durkheim pressupõe dar importância ao agente social e reconhecer seu trabalho como importante para o grupo. Na solidariedade mecânica, típicas das sociedades pré-capitalistas, os indivíduos se identificavam pelos laços familiares e religiosos e pelas tradições e costumes, permanecendo, em regra, independentes e autônomos no que diz respeito à divisão do trabalho social, de modo que a consciência coletiva exercia um forte poder de coerção sobre os indivíduos. Já na solidariedade orgânica, observada nas sociedades capitalistas, a rápida divisão social do trabalho tornou os indivíduos interdependentes e tal interdependência é apontada como responsável por garantir a coesão social. A consciência coletiva, em contrapartida, tem sua força diminuída, pois cada indivíduo se especializa em uma dada atividade, tendendo a desenvolver maior autonomia pessoal. Por consciência coletiva, Durkheim (2010) identificou um conjunto de crenças e sentimentos partilhados pela média dos membros de uma determinada sociedade. Não se baseia, portanto,na consciência dos indivíduos singulares, nem é a soma delas, estando diluída por toda a sociedade. Na perspectiva durkheimiana, essa mudança social experimentada na Europa do século XVIII foi marcada por três fatores: volume (aumento do número de indivíduos), densidade material (número de indivíduos em relação ao espaço territorial) e densidade moral (intensidade das comunicações e trocas entre os indivíduos), que gerou não só o novo tipo de solidariedade como também um estado de desagregação social. Isto porque, neste processo, algumas funções sociais dissociaram-se sem que houvesse tempo hábil para se reajustar umas às outras, gerando um estado de anomia. Então, Durkheim propôs pensar a sociedade como um organismo vivo, em que cada órgão possui uma função e depende dos outros para sobreviver. Sendo assim, a solução para a superação do 33 FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA E SOCIOLOGIA JURÍDICA quadro de desagregação social estava no fato de cada indivíduo exercer uma função na divisão do trabalho que o imponha a necessidade de se manter coeso e solidário aos outros. O indivíduo deve se sentir parte do todo, carente da solidariedade orgânica. 1.3.3 Max Weber e o processo de racionalização social Em Weber (2004), a modernidade é proposta como resultado de um extenso processo histórico e social de racionalização, que mantém relações diretas com as mudanças estruturais, culturais e sociais experimentadas pelas sociedades modernas, gerando grandes impactos como o desenvolvimento do capitalismo e o crescimento acelerado dos centros urbanos. O processo de racionalização foi caracterizado, no pensamento weberiano, pela eliminação da magia como meio de salvação, promovendo um desencantamento do mundo que, por sua vez, apresentou uma dúplice dimensão: do ponto de vista religioso, o sujeito deixa de acreditar em um mundo habitado por forças divinas e impessoais, que tem início dentro das próprias religiões e que chega ao seu ápice com o surgimento da ciência e da técnica ocidentais; e, do ponto de vista científico, implica em um saber racional da natureza, que passa a ser vista como um mecanismo causal carente de sentido e passível de controle pela técnica (SELL, 2015). Um dos produtos obtidos a partir deste processo de racionalização e desencantamento do mundo é o que Weber vai chamar de secularização, característica de uma ordem social em que os ditames religiosos deixam de ser a força motriz da cultura, fazendo com que a crença seja colocada como uma questão de escolha individual. Secularização não significa a extinção das religiões ou o fim da influência que elas exercem sobre as pessoas. A religião apenas deixa de ser o fundamento da ordem social e política. Weber (2004) advertia, contudo, que o aumento da racionalidade não implicava necessariamente em um estágio superior de vida social, como defendiam os principais teóricos do positivismo ao colocar a razão como sinônimo de progresso material e cultural. Para ele, “o processo histórico-religioso de desencantamento e o mundo racionalizado, no qual a organização capitalista e a organização burocrática do Estado eram as maiores expressões, tinham também o seu lado problemático.” (SELL, 2015, p. 136). A substituição da religião pela razão promovia uma perda de sentido da vida, uma vez que era a visão religiosa que conferia 34 ANDERSON EDUARDO CARVALHO DE OLIVEIRA aos homens uma resposta acerca da finalidade da existência. Ademais, promovia a perda da liberdade, pois embora livre das forças divinas, o homem acabara escravo de sua própria racionalidade. Esses pensamentos são desenvolvidos por Weber em sua principal obra, A ética protestante e o espírito do capitalismo, escrita entre 1904 e 1905. Ainda nela, o autor busca demonstrar como os valores cultivados pelo protestantismo, a exemplo da disciplina ascética, a poupança, a austeridade etc., construíram um novo ethos mais adaptado aos pressupostos da filosofia capitalista. Diante disso, sustentou que uma sociedade cujos valores éticos tivessem por base a religião protestante, teria possibilidade de se desenvolver mais rapidamente em relação ao modo de produção capitalista. Pois, apesar de ter suas essências instituídas na mesma moral cristã, a Reforma Protestante promoveu uma releitura dos escritos sagrados, aproximando-os dos ideais da revolução liberal burguesa. A propensão ao trabalho ilustra bem essa perspectiva. Segundo Weber (2004), a Reforma Protestante fez surgir uma concepção espiritual de trabalho. Até então, o trabalho era visto de maneira ambivalente: embora considerado indispensável para a reprodução da sociedade, não era desejado. A noção de trabalho como castigo já era evidente desde a mitologia grega, como exposto anteriormente, e permaneceu durante toda a tradição judaico- cristã. Com os ensinamentos de Lutero e Calvino, o trabalho adquiriu valorização, sendo encarado como o meio de conquistar independência e dignidade, além de ser parte dos eleitos de Deus. A seguir, oferecemos um quadro que acreditamos ser útil para a compreensão dos clássicos da Sociologia: Quadro 2 – Clássicos da Sociologia MARX DURKHEIM WEBER Teoria Sociológica Sociologia histórico-crítica Sociologia funcionalista Sociologia compreensiva Teoria da Modernidade Modo de produção capitalista Divisão do trabalho social Racionalização da cultura e da sociedade Projeto Político Revolucionário Conservador Neutralidade absoluta Fonte: Autoria Própria (2018) 35 FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA E SOCIOLOGIA JURÍDICA 1.4 PROBLEMAS E MÉTODOS DE PESQUISA NA SOCIOLOGIA Como objetivo geral deste componente curricular, propomo-nos a oferecer ferramentas teóricas e metodológicas das ciências sociais que sejam úteis para a análise dos problemas sócio-jurídicos contemporâneos. Neste sentido, gostaríamos de finalizar este bloco temático apresentando para você alguns pressupostos da pesquisa sociológica. A pesquisa sociológica consiste em um esforço científico que envolve o emprego de métodos sistemáticos de investigação empírica, análise de dados e teorias que possibilitem uma leitura crítico-reflexiva dos objetos estudados, numa ruptura com os conhecimentos de senso comum já produzidos. Com ela, buscamos responder a quatro tipos de questionamentos: o factual, que visa compreender o que aconteceu; o comparativo, para verificar a ocorrência do mesmo fenômeno em outros lugares; o evolutivo, pensando como a situação evolui no tempo e no espaço; e a questão teórica, que tenta responder o que está por trás do fenômeno investigado. A pesquisa sociológica se desenvolve em etapas. A seguir você encontra uma descrição dos momentos principais: - definição do objeto: é preciso indicar o que se pretende concretamente estudar. Por exemplo, os crimes cometidos nos meios eletrônicos, o processamento dos casos de posse de drogas ilícitas, a redução da maioridade penal etc.; - revisão da literatura disponível: para familiarizar-se com a questão investigada, é preciso conhecer o que já se tem produzido sobre ela; - formulação de hipóteses: isto é, formular proposições capazes de guiar a sua pesquisa, que podem ou não ser confirmadas ao final; - escolha dos métodos de pesquisa a ser empregados, de acordo com a conveniência do problema formulado; - execução da pesquisa, com a produção dos dados e registro de informações; - interpretação de dados: de posse do material produzido, é necessário interpretá-lo para, em seguida, difundir os resultados obtidos entre comunidade científica. Para a formulação das conclusões acerca do fenômeno investigado, o pesquisador pode se valer de dois procedimentos lógicos: o dedutivo, segundo qual se parte de duas premissas tomadas como verdadeiras e indiscutíveis que possibilite alcançar conclusões de maneira exclusivamente formal, ou seja, em virtudeda lógica (exemplo: os suspeitos de um crime estavam na cidade entre os dias 3 e 4 de abril – premissa 1; Maria não estava na cidade entre os dias 3 e 4 de abril – premissa 2; Maria não é suspeita do crime – conclusão); ou o indutivo, que parte do particular para propor generalizações posteriores, constatadas por intermédio da 36 ANDERSON EDUARDO CARVALHO DE OLIVEIRA observação dos fenômenos estudados (exemplo: retirando-se amostras de um saco de bananas, observa-se que 80% são do tipo prata. Então, conclui-se que o saco de bananas é do tipo prata). Na Sociologia, emprega-se em regra o método indutivo, buscando relacionar o fenômeno social investigado com a realidade social, a fim de promover a sua descrição e interpretação, partindo dos dados empíricos produzidos. Outra questão fundamental sobre a pesquisa sociológica diz respeito à objetividade. A defesa é no sentido de uma linha neutra e objetiva, mesmo que alguns defendam a neutralidade como algo impossível de ser concretizado, haja vista que os indivíduos não conseguem se desprender de seus sentimentos e preferências. Contudo, deve o pesquisador empreender o maior grau possível de objetividade, adotando uma postura imparcial e metodologicamente adequada. Em contraposição ao ideal de objetividade defendido pela ciência tradicional, cientistas feministas desenvolveram a noção de objetividade forte. Para elas, a objetividade forte exige colocar o sujeito do conhecimento no mesmo plano crítico do objeto. Pois, ao negar o caráter subjetivo das investigações, a ciência tradicional apenas alimenta uma lógica androcêntrica. 1.4.1 Principais métodos de pesquisa disponíveis Para produção dos dados, os cientistas sociais têm à sua disposição uma série de métodos e técnicas. Listamos a seguir os principais: a) entrevista: um dos mais utilizados, pressupõe contato pessoal do pesquisador com a amostra selecionada. As perguntas são preparadas com antecedência, podendo seguir um roteiro estruturado, semiestruturado ou aberto. A interação entre entrevistador e entrevistado deve ser direta e em tempo real; b) questionário: lista de questões sobre determinado assunto elaborada e entregue ao grupo de interesse, solicitando o seu preenchimento. Geralmente anônimo, pode conter perguntas abertas ou fechadas. As respostas dadas não são discutidas pelo pesquisador com o respondente; c) observação direta: tipo de atividade que utiliza dos sentidos para a apreensão de determinados aspectos da realidade investigada. O pesquisador desenvolve o 37 FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA E SOCIOLOGIA JURÍDICA acompanhamento presencial do grupo ou fenômeno pesquisado e, desta observação, propõe suas conclusões lógicas; d) análise de documentos: o pesquisador busca as respostas para o problema investigado a partir de documentos que ofereçam informações acerca do seu objeto. Podem ser textos doutrinários, jurisprudências, reportagens de jornais, documentos emitidos por órgãos oficiais etc.; e) estudo de caso: consiste em uma forma de aprofundar o conhecimento sobre uma unidade individual bastante representativa do todo, contribuindo para a melhor compreensão dos fenômenos. É muito útil quando se trata de um fenômeno amplo e complexo; f) grupo focal: derivada das entrevistas, é uma técnica que pressupõe a coleta de informações por meio de interações grupais. O método a ser empregado para subsidiar sua pesquisa deve ser aquele que melhor se adequa ao seu objeto e aos recursos disponíveis. Ademais, não há nenhum problema na conjugação de dois ou mais métodos para o desenvolvimento de uma mesma pesquisa. Com essas informações e as leituras complementares que serão sugeridas, esperamos que você reúna um bom referencial teórico sobre as ciências sociais e seus métodos de pesquisa e, assim, esteja pronto para mergulhar na sua interface com o Direito. POUPART, Jean et al. A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos. 4. Ed. Petrópolis: Vozes, 2014. SELL, Carlos Eduardo. Sociologia clássica: Marx, Durkheim e Weber. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2015. 38 ANDERSON EDUARDO CARVALHO DE OLIVEIRA ATIVIDADES COMPLEMENTARES QUESTÃO 01 (ENADE 2017) Segue uma lei da história o fato de a solidariedade mecânica, inicialmente única ou quase, perder progressivamente terreno e de a solidariedade orgânica tornar-se, pouco a pouco, preponderante. Entretanto, quando se modifica a maneira como os homens são solidários, a estrutura das sociedades não pode deixar de mudar. A forma de um corpo transforma-se necessariamente quando as afinidades moleculares já não são as mesmas. Por consequência, se a anterior é proposição exata, deve haver dois tipos sociais que correspondam a essas duas espécies de solidariedades. DURKHEIM, E. Da divisão do trabalho social. 4. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010 (adaptado). A partir do texto apresentado, avalie as asserções a seguir e a relação proposta entre elas. A divisão do trabalho é uma resultante necessária do desenvolvimento de um novo tipo social predominante nas sociedades modernas. PORQUE A substituição da solidariedade mecânica pela solidariedade orgânica está associada ao progresso da divisão do trabalho nas sociedades modernas. A respeito dessas asserções, assinale a opção correta: a) As asserções I e II são proposições verdadeiras, e a II é uma justificativa correta da I. b) As asserções I e II são proposições verdadeiras, mas a II não é uma justificativa correta da I. c) A asserção I é uma proposição verdadeira, e a II é uma proposição falsa. d) A asserção I é uma proposição falsa, e a II é uma proposição verdadeira. e) As asserções I e II são proposições falsas. QUESTÃO 02 (ENADE 2011) Entre o conjunto das técnicas de pesquisa das Ciências Sociais, o questionário destaca-se como uma das ferramentas mais habituais e tem como características a simplicidade e a economia. Seu uso é necessário sempre que o pesquisador não dispõe de dados previamente coletados pelas instituições públicas sobre determinadas características da população, e sempre que se quer obter levantamentos específicos sobre certos aspectos, 39 FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA E SOCIOLOGIA JURÍDICA opiniões e comportamentos de uma população. Não obstante, além de ser utilizado para fins mais explicitamente exploratórios, o questionário tem por função principal dar à pesquisa uma extensão maior e possibilitar que se verifique com dados estatísticos até que ponto são generalizáveis as informações e hipóteses da pesquisa previamente construídas. Todavia, a elaboração dos questionários deve se pautar em algumas regras simples. COMBOSSIE, J. C. O método em sociologia. São Paulo: Edições Loyola, 2004. Com relação às regras que devem ser observadas para a pesquisa sociológica feita com elaboração e aplicação de questionários, observa-se que: a) o questionário deve apresentar um conjunto de questões que possam resumir de modo eficaz o perfil do entrevistado para que seja útil como instrumento de pesquisa. b) a redação das perguntas do questionário deve revelar a familiaridade do pesquisador com sua área de pesquisa, com a inclusão de termos técnicos e acadêmicos. c) as perguntas do questionário devem ser do tipo fechada, pois elas evitam que o entrevistado conduza a entrevista e seu uso garante que o pesquisador receba as respostas desejadas. d) a ordem das perguntas do questionário deve ser estabelecida de maneira aleatória, para que as respostas dadas não sejam influenciadas pelas próprias perguntas. e) os entrevistados devem responder ao questionário antes de serem informados acerca da origem e da intenção da pesquisa e do questionário para que os dados coletados sejam objetivos. QUESTÃO 03 (ENADE 2011) Onde quer que tenha conquistado o poder, a burguesia calcou aospés das relações feudais, patriarcais e idílicas. Todos os complexos e variados laços que prendiam o homem feudal a seus “superiores naturais” ela os despedaçou sem piedade, para só deixar subsistir, de homem para homem, o laço do frio interesse, as duras exigências do “pagamento à vista”. A burguesia só pode existir com a condição de revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de produção e, com isso, todas as relações sociais. [...] Essa revolução contínua da produção, esse abalo constante de todo o sistema social, essa agitação permanente e essa falta de segurança distinguem a época burguesa de todas as precedentes. Dissolvem-se todas as relações sociais antigas e cristalizadas, com seu cortejo de concepções e de ideias secularmente veneradas, as relações que as substituem tornam-se antiquadas antes de se ossificar. Tudo que era sólido e estável se esfuma, tudo o que 40 ANDERSON EDUARDO CARVALHO DE OLIVEIRA era sagrado é profanado e os homens são obrigados finalmente a encarar com serenidade suas condições de existência e suas relações recíprocas. [...] As relações burguesas de produção e de troca, o regime burguês de propriedade, a sociedade burguesa moderna, que conjurou gigantescos meios de produção e de troca, assemelham-se ao feiticeiro que já não pode controlar as potências infernais que pôs em movimento com suas palavras mágicas. MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto do partido comunista. (com adaptações). A partir do texto acima e considerando as ideias de Marx e Engels, baseadas numa perspectiva dialética, avalie as afirmações que se seguem: I. A burguesia desempenhou um papel revolucionário na história. II. A classe social burguesa e a classe proletária surgiram a partir da sociedade capitalista. III. Nas sociedades capitalistas as relações sociais estão em constante transformação. IV. O proletariado possui a missão histórica de negar e superar a sociedade capitalista. É correto afirmar o que se afirma em: a) I e II. b) I e III. c) II e IV. d) I, III e IV. e) II, III e IV. QUESTÃO 04 (ENADE 2005) O século XVIII constitui um marco importante para a história do pensamento ocidental e para o surgimento das ciências sociais. As transformações econômicas, políticas e culturais, que se intensificaram a partir dessa época, colocaram problemas inéditos para a humanidade, que experimentava mudanças no Ocidente Europeu. Com referência aos marcos fundadores do pensamento social no Ocidente, assinale a opção correta. a) O feudalismo e o capitalismo, como marcos fundadores das ciências sociais, conviveram harmonicamente ao longo do processo de transformação social a partir do século XVIII. b) A Revolução Francesa, pelo seu potencial revolucionário e universal, dificultou o aparecimento das ciências sociais. c) Um dos marcos fundadores das mudanças no século XVIII foi a transformação da aristocracia inglesa em classe aliada à burguesia, que, a partir daí, comandou o processo econômico no Ocidente. 41 FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA E SOCIOLOGIA JURÍDICA d) O Renascimento e a Reforma são considerados marcos fundadores que permitiram o aparecimento das ciências sociais. e) A Revolução Industrial e a Revolução Francesa, ao redefinirem, respectivamente, as relações políticas e as relações de produção, deram condições para o surgimento de uma visão racional do mundo, da qual emerge a sociedade como objeto de estudo. QUESTÃO 05 (ENADE 2005) A respeito dos estudos comparativos, a resposta de Weber foi a elaboração de “tipos ideais”, que constituem um dispositivo generalizante, um modelo heurístico, sobre o qual era possível aplicar a comparação. Nas suas explicações históricas comparadas, Weber rejeita sempre a hipótese de leis ou de monocausalidade; ele pensa, portanto, que um evento pode ter diversas causas e que conjuntos diversos de causas podem ter o mesmo efeito. A validade das comparações em Weber provém das suas construções empíricas dos processos de indução e de introspecção mais do que de uma verificação causal de hipóteses. REBUGHINI, Paola. A comparação qualitativa de objetos complexos e o efeito da reflexividade. In: Alberto Melluci (org.) Por uma sociologia reflexiva: pesquisa qualitativa e cultura. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 242 (com adaptações). Tendo o fragmento de texto acima como referência inicial, assinale a opção correta a respeito de “tipos ideais”, segundo a formulação proposta por Max Weber. a) Os “tipos ideais” não são construções empíricas. b) A causalidade única é a base dos “tipos ideais”. c) A comparação não é essencial para a construção dos “tipos ideais”. d) Os “tipos ideais” não permitem uma explicação histórica. e) Os “tipos ideais” são construídos essencialmente a partir da verificação causal de hipóteses. 42 ANDERSON EDUARDO CARVALHO DE OLIVEIRA QUESTÃO 06 Observe a charge abaixo, bem como o fragmento do poema “Operário em construção”, de autoria de Vinícius de Moraes: Fonte: Disponível em:<http://www2.uol.com.br/laerte/tiras/> Operário em construção E foi assim que o operário Do edifício em construção Que sempre dizia sim Começou a dizer não. E aprendeu a notar coisas A que não dava atenção Notou que sua marmita Era o prato do patrão ... Qu sua imensa fadiga Era amiga do patrão. (Vinícius de Moraes) A análise da charge nos remete à discussão acerca do mundo do trabalho, que se constitui como tópico essencial da Sociologia, desde o seu período clássico, com Marx, Durkheim e Weber. Considerando que a divisão do trabalho é uma das principais características das sociedades modernas, construa um texto dissertativo em que se contemple os seguintes aspectos: a) A importância da divisão do trabalho social para a compreensão das sociedades 43 FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA E SOCIOLOGIA JURÍDICA modernas em Durkheim, destacando o conceito de solidariedade e suas formas, bem como a relação entre solidariedade e anomia. b) A relação entre trabalho e religião proposta por Weber para pensar o surgimento do racionalismo no ocidente. c) Como a questão do trabalho é elaborada em Marx para explicar os pressupostos de um regime capitalista. 44 ANDERSON EDUARDO CARVALHO DE OLIVEIRA SOCIOLOGIA JURÍDICA 45 FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA E SOCIOLOGIA JURÍDICA SOCIOLOGIA JURÍDICA Sociologia e o Direito mantêm uma relação bastante próxima, uma vez que sociedade e normas não podem ser entendidas separadamente. Enquanto a Sociologia se ocupa em pensar a vida em sociedade a partir de seus aspectos culturais, econômicos, religiosos etc., o direito busca fixar e sistematizar as regras indispensáveis para garantir o equilíbrio social. Sendo assim, a Sociologia não tardou em se especializar, criando um ramo próprio que tivesse o direito como objeto de estudo: a Sociologia Jurídica. Na segunda unidade deste primeiro bloco temático, nosso convite é para você conhecer um pouco mais sobre a Sociologia Jurídica. Vamos lhe apresentar os seus pressupostos fundamentais, bem como algumas das principais contribuições que ela já trouxe para o campo das ciências jurídicas, com o emprego dos métodos e das técnicas disponíveis nas ciências sociais para melhor caracterizar e compreender os fenômenos jurídicos. A 46 FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA E SOCIOLOGIA JURÍDICA 2.1 FUNÇÃO E OBJETO DE ESTUDO DA SOCIOLOGIA JURÍDICA Desde os clássicos, o direito tem um lugar de destaque nas análises sociológicas. É bastante evidente, por exemplo, a influência do pensamento de Émile Durkheim (2014) para o campo do Direito Penal, ao considerar o crime como um elemento de integração social e a
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