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PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON paridade 1 CONSTITUIÇÃO E PROCESSO CIVIL GARANTIA DO TRATAMENTO PARITÁRIO DAS PARTES1 PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON Mestre e Doutorando em Direito Processual na USP. Professor Universitário. Advogado em São Paulo. 1. Introdução: Constituição Federal e direito processual - 2. Princípios constitucionais - 3. Tratamento paritário: premissas - 4. Tratamento paritário e devido processo legal - 5. Tratamento paritário e contraditório - 6. Conclusão parcial e encaminhamento de novas questões - 7. Igualdade e imparcialidade - 8. Igualdade, acesso à justiça e assistência judiciária - 9. Igualdade substancial: a inversão do ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor - 10. Igualdade nas relações internacionais - 11. Igualdade e processo de execução - 12. Igualdade, Fazenda Pública e Ministério Público: I) introdução; II) prazos processuais; III) reexame necessário; IV) honorários advocatícios; V) outros inconstitucionais privilégios; VI) casos em que não há ofensa à igualdade; VII) conclusão parcial – 13. Conclusão 1. Introdução: Constituição Federal e direito processual Grande importância tem merecido o estudo do chamado direito processual constitucional, por meio do qual o operador do direito passa a se preocupar com os grandes temas constitucionais do processo civil. Torna-se, portanto, relevante a perspectiva do sistema 1 - Estudo atualizado e publicado originalmente no livro Garantias constitucionais no processo civil, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1999, pp. 91-131, coordenação de José Rogério Cruz e Tucci. PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON paridade 2 processual a partir da observância dos princípios, garantias e regramentos que a Constituição impõe. Exige-se, sempre com uma visão crítica de todo o ordenamento jurídico, que as regras relacionadas com o processo subordinem-se às normas constitucionais de caráter amplo e hierarquicamente superiores. O respeito aos preceitos constitucionais torna-se premissa ética na aplicação do direito processual. Mas a própria ordem constitucional também sofre influências do processo, na medida em que será ele o instrumento de efetivação e preservação das normas constitucionais. Essas assertivas parecem muito óbvias, mas têm importância ao revelarem uma preocupação diversa de outra tradicional, mas igualmente relevante, que diz respeito apenas e tão-somente ao estudo interno do sistema processual. Com isso, o processo passa a ser visto como técnica informada por objetivos e ideologias priorizados pelo direito processual e que tem como meta a efetivação do valor do justo, pacificando as pessoas à medida em que restam cumpridos os anseios políticos e sociais eleitos pela nação. O presente estudo preocupa-se com a análise da igualdade no processo civil a partir da Constituição Federal e sua inserção no sistema como verdadeiro princípio a ser observado por todo o ordenamento jurídico. 2. Princípios constitucionais Utilizado de maneira usual pelos estudiosos e operadores do direito, o termo princípio na ciência jurídica até de certa forma vulgarizou-se. Princípio vem do latim principium e tem significação variada. Por um lado, quer dizer começo, início, origem, ponto de partida; de outro, regra a seguir, norma. No plural, o termo princípios tem ampla significação, ora se referindo a elementos, ora a rudimentos ou mesmo a convicções.2 Na ciência jurídica, os princípios 2 - BUENO, Grande dicionário etimológico-prosódico da língua portuguesa, 6º v., p. 3.193. PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON paridade 3 têm a grande responsabilidade de organizar o sistema e atuar como elo de ligação de todo o conhecimento jurídico com a finalidade de atingir resultados eleitos; por isso, são também normas jurídicas, mas de natureza anterior e hierarquicamente superior às normas comuns (ou “normas não principais”); servem de base axiológica e estruturante do conhecimento jurídico, sendo fontes de sua criação, aplicação ou interpretação. As normas por assim dizer comuns são, como conseqüência, subordinadas aos princípios. Para o sistema jurídico, se princípio não for norma nenhuma relação tem com o direito.3 Com tal premissa, é correto afirmar que “os princípios jurídicos são os pensamentos diretores de uma regulação jurídica existente ou possível”, apresentando uma função positiva e outra negativa: a primeira “consiste no influxo que exercem nas sucessivas decisões e, desse modo, no conteúdo de regulação que tais decisões criam”; a segunda “consiste na exclusão dos valores contrapostos e das normas que assentam sobre tais valores”.4 Portanto, os princípios devem ser utilizados como critério superior de interpretação das demais normas, orientando sua aplicação no caso concreto. Além disso, exercem a função criativa, na medida em que impõem ao legislador a função de criar novas regras que complementem o sistema ou micro-sistema em que estão inseridos. Mas, antes de tudo, são harmônicos, não se admitindo choques entre eles; um nunca poderá eliminar outro. Por isso, devem procurar ser vetorizados, potencializando suas forças na busca da real intenção do sistema jurídico em que se situam. Entre os princípios não se admite antinomia jurídica, ou seja, não é possível a extirpação de um deles do 3 - Cfr. COMPARATO-GRAU, “Liberdade de empresa e proteção ao consumidor”, pp. 138-139. Relativamente aos princípios gerais de direito, GRAU observa que são proposições descritivas (e não-normativas), por meio das quais os juristas referem, sinteticamente, o conteúdo e as grandes tendências do direito positivo (Contribuição para a interpretação e a crítica da ordem econômica na Constituição de 1.988, n. 34, p. 95). V. também GRAU, com arrimo em JERZY WRÓBLEWSK (“Principes du droit”, p. 317) , “Interpretando o Código de Defesa do Consumidor; algumas notas”, n. 5, p. 183, com destaque para p. 188, e Contribuição para a interpretação e a crítica da ordem econômica na Constituição de 1.988, n. 34, pp. 94-7. PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON paridade 4 sistema. Quando duas normas jurídicas estão em confronto, uma delas é simplesmente excluída do ordenamento jurídico. No entanto, quando dois princípios estão em conflito nenhum deles é expulso ou excluído do sistema.5 Na realidade, há uma conjugação dos objetivos neles contidos ou, quando isso não for possível, a escolha do princípio prevalente sobre o caso concreto. Nesses casos, a fundamentação de tal opção é muito mais política e social do que jurídica; há verdadeiramente uma escolha do aplicador do direito ou do intérprete por um deles em detrimento do que a ele, diante de uma situação substancial, se opõe. Tal tipo de conflito não resulta em antinomia jurídica. Exemplificando, há efetivamente uma antinomia jurídica imprópria quando há normas que protegem valores opostos como liberdade e segurança (BOBBIO alude à antinomia de princípio, ao lado da antinomia de valoração e da antinomia teleológica).6 Enquanto a antinomia de regras é insolúvel ou real, exigindo a aplicação de critério cronológico (lex posterior derogat priori), hierárquico (lex superior derogat inferiori) e de especialidade (lex specialis derogat generali), a antinomia de princípios é solúvel ou aparente.7 Os conflitos entre as regras situam-se no plano da validade; os conflitos entre princípios verificam-se na dimensão do peso.84 - KARL LARENZ, Derecho justo, pp. 32-3. V. também, CANOTILHO, Direito constitucional, p. 171. 5 - KARL ENGISH entende que as contradições entre princípios são inevitáveis e surgem numa ordem jurídica em razão de, na constituição desta, tomarem parte diferentes idéias fundamentais entre as quais é possível se estabelecer um conflito (Introdução ao pensamento jurídico, p. 318). As diversas concepções de idéias fundamentais são resultantes dos diferentes critérios políticos e sociais adotados pelo constituinte ou pelo legislador. Por isso, a solução de um caso concreto exige verdadeira opção teleológica, ou seja, a escolha de certos critérios políticos e sociais com vista a atingir determinados resultados, dentro de parâmetros que o próprio ordenamento jurídico estabelece. 6 - DINIZ, Conflito de normas, p. 27. GRAU cita, como antinomia jurídica imprópria, a situação em que há preponderância do interesse social sobre o direito adquirido. O grande e inegável problema do exemplo dado é de se definir o conceito e a extensão de interesse público. De todo modo, fica claro que nenhum dos dois valores, interesse público e direito adquirido, será excluído do sistema (v. Contribuição para a interpretação e a crítica da ordem econômica na Constituição de 1.988, n. 41, pp. 114-6). 7 - Teoria do ordenamento jurídico, pp. 91-7. 8 - Esse é o entendimento de ROBERT ALEXY (Theorie der Grundrech, p. 76, que remete o leitor à obra de DWORKIN, Taking rights seriously), apud GRAU, Contribuição para PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON paridade 5 Ninguém pode negar o caráter axiológico dos princípios. Desse modo, é correto afirmar-se que a maneira de interpretá- los evolui de acordo com o tempo; valores atuais eleitos pela nação definirão o que precisamente se tornou importante, isto é, quais são os resultados escolhidos e que devem preponderar. A partir daí, dá-se um novo enfoque à observância dos princípios ou, por que não dizer, um amálgama às necessidades emergentes das normas jurídicas hierarquicamente superiores consagradoras de tais princípios, mediante a adequação da técnica processual às regras de direito material. Um exemplo do que se procura demonstrar é a crescente necessidade de coletivização da tutela jurisdicional, que tem como um de seus corolários implementar a participação do chamado “bem-estar social”, ou seja, dos bens que os homens, através de um processo coletivo, vão acumulando no tempo. Será a técnica processual, conjugada com o direito material, que permitirá a participação coletiva desse bem-estar. Com a Constituição de 1.988, o Poder Judiciário passa a ter um controle da administração pública não somente tendo por escopo a tutela individual mas, também, a tutela coletiva. A idéia de que ninguém pode estar em juízo, em nome próprio, para a defesa de interesses alheios, vai gradativamente se relativizando, assim como a limitação dos efeitos da sentença às partes do processo em que foi proferida (eficácia ultra partes). Há uma verdadeira transmigração do individual para o coletivo (BARBOSA MOREIRA). Mais ainda, com a participação do Judiciário em todos os campos, inclusive na tutela dos direitos do consumidor, constata-se verdadeira “tendência a uma judicialização de todos os setores da vida humana”.9 Nos temas fundamentais do direito processual moderno merecem grande destaque os princípios e garantias consagrados na Constituição Federal, pois a tutela constitucional do processo realiza- se através de sua observância, que estabelecerá padrões políticos e éticos a interpretação e a crítica da ordem econômica na Constituição de 1.988, n. 42, p. 116. 9 - FERREIRA FILHO, “O Poder Judiciário na Constituição de 1.988”, p. 13. PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON paridade 6 destinados a também traçar o modo-de-ser do processo. Esse é o sentido hierárquico vertical que se espera; no entanto, algumas vezes não há como negar o sentido inverso, ou seja, a influência da tutela constitucional do processo na própria interpretação do texto constitucional. Nesses casos, os valores atuais, mediante o exercício contínuo e dinâmico da jurisdição, podem alterar o significado antes atribuído a alguma norma constitucional. A efetivação dos preceitos contidos na Constituição Federal dá-se através da realização do processo; a este caberá pôr em prática tais preceitos e impor verdadeiro controle sobre a vida das normas constitucionais. Assim ocorre no chamado controle indireto ou difuso, realizado diuturnamente pelo juiz ao examinar a compatibilidade existente entre o texto constitucional e determinado ato, e no controle direto ou concentrado, exercido pelo Supremo Tribunal Federal na ação direta de inconstitucionalidade. Em ambos os casos a incompatibilidade resulta no afastamento (temporário ou definitivo) do ato e na preservação da ordem constitucional. 3. Tratamento paritário: premissas Exatamente por ser um dos pilares da democracia moderna, a igualdade é multifacetária, apresentando-se de modo diverso conforme a natureza da situação jurídica, da situação social e da conduta a ser regulada.10 De todo o modo, seu primeiro e principal destinatário é o legislador, já que “por mais discricionários que possam ser os critérios da política legislativa, encontra no princípio da igualdade a primeira e mais fundamental de suas limitações”.11 No processo, a igualdade constitui princípio fundamental e revela-se no tratamento paritário das partes, pois é e sempre foi historicamente objetivada, progressivamente introduzida na consciência jurídica e encontra recepção expressa no texto constitucional. À igualdade é inerente o caráter de 10 - REALE, Lições preliminares de direito, p. 124. 11 - CAMPOS, Direito constitucional, t. II, p. 30. PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON paridade 7 idéia-mestra ou ponto de partida, pertencendo à ordem jurídica positiva consoante o previsto no caput do art. 5º da Constituição Federal. Não é à- toa que o legislador constituinte iniciou com o direito à igualdade a relação dos direitos individuais; “dando-lhe o primeiro lugar na enumeração, quis significar expressamente, embora de maneira tácita, que o princípio da igualdade rege todos os direitos em seguida a ele enumerados”. 12 No Código de Processo Civil, o art. 125, inc. I, é muito claro e objetivo ao estabelecer como dever primário do juiz o tratamento paritário das partes e dos procuradores. Por tudo isso, não há como deixar de erigir a igualdade à condição de princípio, constituindo importante fundamento para a interpretação, integração, conhecimento e aplicação do direito positivo.13 A responsabilidade por sua preservação, a fim de que arbitrariedades não sejam cometidas, é principalmente do legislador e do juiz, responsáveis em grande parte pela criação e interpretação do direito. A cláusula garantidora da isonomia, inserida no sistema jurídico, tem por finalidade coibir abusos na elaboração e aplicação da norma.14 No processo, a isonomia revela-se na garantia do tratamento igualitário das partes, que deve ser vista não apenas sob o aspecto formal, mas também (e principalmente) analisada pelo prisma 12 - FRANCISCO CAMPOS, Direito constitucional, v. II, p. 12. Positivada pela primeira vez na Virginia Bill of Rights, de 12 de junho de 1.776, a isonomia era assim tratada: “all men are by nature equally freeand independent and have certain inerent rights”. Logo em seguida, a Constituição de Massachussets, de 2 de março de 1.780, assim cuidava do tema: “all men are born free and equal and have certain inerent rights”. Na França, a Déclaration des Droits de l’Homme et du Citoyen de 1.789 cuidava da igualdade no art. 1o: “les hommes naissent et demeurent libres et égaux en droits”. Por fim, a Constituição Francesa de 1.791 previa a igualdade no seu preâmbulo: “l’Assemblée nationale... abolit irrévocablement les institutions qui blessaient la liberté et l’égalité des droits. Il n’a plus ni noblesse, ni pairie, ni distinctions héreditaires, ni distinction d’ordres...”. No Brasil, a Constituição do Império de 1.824 assim dispunha sobre a igualdade: “a lei será igual para todos quer proteja, quer castigue, e recompensará em proporção dos merecimentos de cada um” (art. 179, 13). Já a Constituição Republicana de 1.891, disciplinava o tema no § 2o do art. 72: “todos são iguais perante a lei. A República não admite privilégios de nascimento, desconhece foros de nobreza, e extingue as origens honoríficas existentes e todas as suas prerrogativas e regalias bem como os títulos nobiliárquicos e de conselho”. Nas demais Constituições, de 1.937 (art. 122, 1), de 1.946 (art. 141, § 1o) e de 1.969 (art. 153, § 1o ), a isonomia vem positivada de forma idêntica: “todos são iguais perante a lei”. 13 - Cfr., sobre os princípios jurídicos fundamentais e em sentido semelhante, CANOTILHO, Direito constitucional, p. 171. PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON paridade 8 substancial. A paridade das partes no processo tem por fundamento o escopo social e político do direito; não basta igualdade formal, sendo relevante a igualdade técnica e econômica, pois elas também revelarão o modo-de-ser do processo.15 Enquanto a igualdade formal diz respeito à identidade de direitos e deveres estatuídos pelo ordenamento jurídico às pessoas, a igualdade material leva em consideração os casos concretos nos quais essas pessoas exercitam seus direitos e cumprem seus deveres.16 Ao julgador compete assegurar às partes a paridade de tratamento, cabendo-lhe observar e fazer observar a igualdade entre os iguais e a desigualdade entre os desiguais, na exata medida das desigualdades presentes no caso concreto. Como observa KELSEN, “a igualdade dos indivíduos sujeitos à ordem jurídica, garantida pela Constituição, não significa que aqueles devam ser tratados por forma igual nas normas legisladas com fundamento na Constituição, especialmente nas leis. Não pode ser uma tal igualdade aquela que se tem em vista, pois seria absurdo impor os mesmos deveres e conferir os mesmos direitos a todos os indivíduos sem fazer quaisquer distinções, por exemplo, entre crianças e adultos, sãos de espírito e doentes mentais, homens e mulheres”.17 A igualdade está estreitamente vinculada ao devido processo legal, ao contraditório e à imparcialidade. Há, por assim dizer, uma importante conjugação de princípios que contribuem para formar um todo dotado de coerência teleológica, atribuindo desse modo um propósito comum às normas, em consonância com os anseios politicamente eleitos pela nação.18 14 - SAN TIAGO DANTAS, “Igualdade perante a lei e ‘due process of law’”, p. 58. 15 - Cfr, em sentido semelhante, CALAMANDREI, Istituzioni di diritto processuale civile, p. 231. 16 - V. ÁLVARO MELO FILHO, “O princípio da isonomia e os privilégios processuais da Fazenda Pública”, p. 168. 17 - Teoria pura do direito, p. 154. 18 - Aliás, como bem observado por FERRAZ JR., “o pressuposto e, ao mesmo tempo, a regra básica dos métodos teleológicos é de que sempre é possível atribuir-se um propósito às normas” (Introdução ao estudo de direito - técnica, decisão, dominação, p. 291). PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON paridade 9 4. Tratamento paritário e devido processo legal A igualdade interage com o devido processo legal, pois o exercício do poder estatal só se legitima através de resultados justos e conformes com o ordenamento jurídico, por meio da plena observância da ordem estabelecida, com as oportunidades e garantias que assegurem o respeito ao tratamento paritário das partes. Tal é o direito ao processo justo,19 ou seja, o direito à efetividade das normas e garantias que as leis do processo e de direito material oferecem. A real consecução do acesso à justiça e do direito ao processo exige o respeito às normas processuais portadoras de garantias de tratamento isonômico dos sujeitos parciais do processo. Ao estabelecer a ordem de atos a serem praticados lógica e cronologicamente, com a observância de todos os requisitos inerentes a cada um deles e a exigência da realização de todos, a lei pretende atingir um resultado de modo a tutelar quem tem razão. Isso significa atingir a ordem jurídica justa,20 que tem estreita relação com o devido processo legal, pois igualmente pode ser vista como meio e fim; se de um lado é a própria abertura de caminhos para a obtenção de uma solução justa, de outro, constitui a própria solução justa que se espera – justa porque conforme com os padrões éticos e sociais eleitos pela nação.21 Daí por que o devido processo legal é uma cláusula de abertura do sistema na busca por resultados formal e substancialmente justos. Tal é a amplitude que se espera dessa garantia de meio e de resultado, que desenha o perfil democrático do processo brasileiro na obtenção da justiça substancial. Determinado modelo procedimental contido na lei absorve em si a efetividade do direito ao devido processo adequado, 19- Cfr. GRINOVER, O processo em sua unidade, cap. 8, nn. 5-6, pp. 138-139. 20 - A expressão é de WATANABE (v. “Assistência Judiciária e Juizado Especial de Pequenas Causas”, p. 161 e ss.). 21 - Em sentido semelhante, v. DINAMARCO, “Superior Tribunal de Justiça e acesso à ordem jurídica justa”, p. 251. PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON paridade 10 com a prática de todos os atos a ele inerentes, além do direito ao exame das provas constantes dos autos ou a serem a eles carreadas, e produção de alegações endereçadas à convicção do julgador. Prejudicando a participação igualitária das partes litigantes, desvios ou omissões do modelo procedimental previsto na lei violam frontalmente as garantias do devido processo legal e do tratamento paritário das partes no processo.22 Desse modo, a garantia constitucional da igualdade deve estar presente em todas as etapas do processo, de sorte que ninguém seja privado de seus direitos, a não ser que no procedimento se constatem todas as formalidades e exigências em lei previstas. Cumprir adequadamente o procedimento instituído em lei, com o tratamento isonômico das partes, significa, do lado dos sujeitos parciais do processo e de toda a comunidade, preservar os valores democráticos eleitos e legitimar o provimento jurisdicional; do ponto-de-vista do juiz, estar consciente de seu dever de pacificar com justiça os conflitos, não se limitando a um laissez faire da filosofia liberal, incompatível com o Estado social de direito da atualidade e com a realização do processo adequado e justo. O processo é um instrumento a serviço dos objetivos do Estado e não pode ficar ao bel prazer dos interesses e condutas das partes litigantes. A garantia constitucional do devido processo legal exige que se dê às partes a tutela jurisdicional adequada. Além disso, aos sujeitos do processo devem serconferidas amplas e iguais oportunidades para alegar e provar fatos inerentes à consecução daquela tutela. Para efetividade dessa garantia, é indispensável cumprir as exigências procedimentais trazidas na lei. Assim, quando se pretende a 22- Sobre a origem da cláusula do "due process of law" e seu significado, V. SAMPAIO DÓRIA, Direito constitucional tributário e "due process of law" - Ensaio sobre o controle da razoabilidade das leis, pp. 1-34; NERY JÚNIOR, Princípios do processo civil na Constituição Federal, n. 3, pp. 25-37. Para esse autor, com razão, "bastaria a norma constitucional haver adotado o princípio do due process of law para que daí decorressem todas as conseqüências processuais que garantiriam aos litigantes o direito a um processo e uma sentença justa. É, por assim dizer, o gênero do qual todos os demais princípios constitucionais do processo são espécies" (op. cit., p. 25). V. também CRUZ E TUCCI, "Garantia da prestação jurisdicional sem dilações indevidas como corolário do devido processo legal", p. 107, e LAURIA TUCCI e CRUZ E TUCCI, Constituição e processo, n. 6, p. 17. PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON paridade 11 tutela jurisdicional preventiva, são necessárias todas as medidas destinadas a evitar danos ao invés de permitir que eles ocorram para depois buscar sua reparação, sopesando o juiz as conseqüências de tais medidas sobre o eventual direito da parte contrária. Já a tutela ressarcitória visa a recompor situações de prejuízo já efetivadas, mas que deverão ser delimitadas antes da adoção de medidas constritivas. Por sua vez, essa modalidade de proteção é incompatível com a tutela específica, que procura outorgar a situação ou bem da vida desejado pelo demandante.23 O princípio-garantia do devido processo legal não pretende apenas a observância do procedimento estatuído na lei, com a realização de todos os atos inerentes a ele: pretende também a efetividade da tutela jurisdicional, concedendo proteção àqueles que merecem e necessitam dela. O direito material somente se efetiva se lhe corresponderem instrumentos adequados de tutela,24 com um processo justo mediante o tratamento igualitário das partes. Nesse ponto reside a preocupação do processualista moderno com o resultado jurídico- substancial do processo, seja para o demandante como para o demandado, com a relativização do binômio direito-processo.25 Observado o modelo procedimental previsto em lei, com o tratamento paritário das partes, a tutela jurisdicional será concedida à parte que tiver razão em suas alegações, de acordo com o disposto no direito material. A tutela, vista como proteção, independe do resultado do processo; está presente na extinção do processo com ou sem julgamento do mérito. A atuação jurisdicional do Estado ocorre na declaração de existência ou inexistência do direito afirmado pelo autor ou de ausência de uma das condições da ação e dos pressupostos processuais. Já a tutela jurisdicional está 23- V. BARBOSA MOREIRA, "Tutela sancionatória e tutela preventiva", pp. 24-25. 24- GRINOVER, "A tutela preventiva das liberdades: habeas corpus e mandado de segurança", n. 1, p. 70. Cfr. também BEDAQUE, Direito e processo, n. 7, pp. 24-26. 25- Cfr. importante trabalho de MONTESANO, Le tutele giurisdizionali dei diritti. Cfr. também DINAMARCO, "Direito e processo", pp. 12-37, esp. pp. 34-37. PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON paridade 12 reservada apenas para os casos que mereçam ser amparados pelo direito material. O processo é um instrumento à disposição das partes para que o Estado cumpra uma de suas funções, mais precisamente a jurisdição, chegando a um resultado justo. Por isso, a noção de efetividade da tutela jurisdicional coincide com a de pleno acesso à justiça.26 Esse entendimento vai ao encontro à conhecidíssima máxima de CHIOVENDA de que na medida do que for praticamente possível, o processo deve proporcionar a quem tem um direito, tudo aquilo e exatamente aquilo que ele tenha o direito de receber.27 Na experiência concreta, não se atinge o devido processo legal e a plenitude da igualdade jurídica sem um ordenamento jurídico igualitário e sem que as partes tenham acesso à informação plena sobre o conteúdo das normas que o compõem.28 Preservados estarão a igualdade e o devido processo legal quando, no caso de procedência parcial da demanda, o juiz fixa percentuais distintos de honorários de sucumbência, considerando precisamente a parte do litígio em que cada um ficou vencido. A sucumbência recíproca deve considerar a verdadeira extensão do êxito obtido com a propositura da demanda (CPC, arts. 20 e 21).29 O devido processo legal objetiva também à limitação política do poder estatal como um todo, mediante uma série de condicionamentos e restrições legítimas ao exercício das funções do Estado moderno. Relativamente à jurisdição, tais limitações referem-se a situações substanciais e às formas dos atos, mediante o adequado 26- Cfr. YARSHELL, Tutela jurisdicional específica nas obrigações de declaração de vontade, pp. 19-20. 27- As palavras constantes do texto não foram exatamente aquelas proferidas por CHIOVENDA, que foram propositadamente adaptadas com a finalidade de destacar o escopo instrumental do processo e se tornaram verdadeiro slogan do direito processual moderno: "il processo deve dare per quanto è possibile praticamente a chi ha um diritto tutto quello e proprio quello ch'egli ha diritto di conseguire" (Istituzioni di diritto processuale civile, v. I, n. 12, pp. 41-42). 28- Cfr. WATANABE, "Assistência Judiciária e o Juizado Especial de Pequenas Causas", p. 162. 29 - V. CHIOVENDA, La condanna nelle spese giudiziari, nn. 270-274, pp. 268-276. PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON paridade 13 processo legal, no qual o julgador deve fazer cumprir as normas constitucionais e infra-constitucionais para que as partes tenham no processo, administrativo ou judicial, tratamento paritário. Em última análise, a legítima limitação ao poder, mediante o due process of law, visa a impedir que a desigualdade impere no processo, tornando-o justo na exata medida em que assegure às partes participação paritária e proporcione o resultado esperado pela sociedade. 5. Tratamento paritário e contraditório Na síntese tantas vezes difundida, MENDES DE ALMEIDA define o princípio do contraditório como sendo a expressão da "ciência bilateral dos atos e termos do processo e possibilidade de contrariá-los".30 Hodiernamente, o contraditório representa verdadeira meta política de legitimação do provimento jurisdicional ou administrativo mediante a outorga, pelo ordenamento jurídico, de garantias de participação igualitária das partes no processo. Ao juiz, sujeito também do contraditório, cabe observar e fazer observar essas garantias. Por isso, contraditório e ampla defesa relacionam-se tão intimamente com o tratamento paritário das partes no processo, pois nele se inclui a igualdade de oportunidades de participação, absolutamente necessária para a defesa dos direitos em juízo. Como direito de pedir a tutela jurisdicional para determinada pretensão fundada em direito material, é possível afirmar-se que a ação tem uma espécie de réplica na exceção, na qual o réu tem o direito de pedir que a tutela jurisdicional pedida pelo autor seja denegada por não se conformar com o direito objetivo.31 A exceção é resultado da bilateralidade do processo e determina que deve haver tratamentoigual ao sujeito da ação e ao sujeito da exceção. É absolutamente incompatível 30- Cfr. A contrariedade na instrução criminal, p. 110. 31- CINTRA, GRINOVER, DINAMARCO, Teoria Geral do Processo, n. 166, pp. 228-9. PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON paridade 14 com a isonomia e com os próprios princípios da tutela jurisdicional um tratamento unilateral no processo. Assim, a exceção é um direito processual análogo à ação.32 É importante afastar a ultrapassada concepção do processo civil do autor, hoje com nova roupagem, nos casos em que sem fundamento suficiente outorga-se a antecipação de tutela (CPC, arts. 273 e 461, § 3º), ou seja, o direito de ação é igual ao direito de defesa, diferindo apenas na faculdade de o demandante ter iniciado o processo. A circunstância, ocasional e exterior, de um dos sujeitos do processo ter promovido sua demanda antes do demandado não parece por si só suficiente a justificar a atribuição a um dos litigantes de armas diversas daquelas conferidas a outro.33 Ou seja, a paridade de armas entre os sujeitos parciais do processo deve ser uma realidade e realiza-se com a outorga, pelo julgador, a partir da observância dos poderes e dos limites que o ordenamento lhe confere e impõe, de meios processuais idênticos às partes para fazerem valer suas próprias razões. O contraditório está precisamente no direito de participação no processo, mediante a utilização de todas as armas legítimas e disponíveis destinadas a convencer o julgador a outorgar um julgamento favorável a quem tem um direito. O contraditório é preservado na medida em que a igualdade entre os litigantes o seja. É natural que a parte com melhores recursos quase sempre tem mais fácil acesso a informações processuais, está em condições mais favoráveis para recolher dados relevantes e valer- se de provas, contrata os serviços de profissionais mais competentes. O poder econômico facilita a resistência à longa duração do processo. Pelo enfoque do direito processual constitucional, o poder (genérico, indeterminado e inexaurível) do autor agir em juízo e do réu apresentar defesa a qualquer pretensão de outrem 32- LIEBMAN, "Intorno ai rapporti tra azione ed eccezione", p. 75. Cfr. também ADA P. GRINOVER, Os princípios constitucionais e o CPC, n. 9.1, p. 92. 33 - ANDOLINA-VIGNERA, Il modelo costituzionale del processo civile italiano, p. 107. V. também HABSCHEID, Introduzione al diritto processuale civile comparato, p. 132. PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON paridade 15 representa garantia fundamental para a defesa de seus direitos e compete a todos, indistintamente, como atributo imediato da personalidade e, por essa razão, pertence à categoria dos direitos democráticos, que se baseiam nas três colunas da liberdade, igualdade e fraternidade.34 Desse modo, não se pode conceber um processo unilateral, em que somente uma parte age no sentido de obter vantagem em relação ao adversário, sem que este apresente suas razões ou, pelo menos, sem que se lhe dê efetiva oportunidade de manifestar-se.35 Nessa linha está o moderno enfoque do processo como procedimento em contraditório, desenvolvido por FAZZALARI.36 Os poderes, faculdades, ônus, deveres e sujeições das partes no processo significam que estão em determinada relação jurídica exercendo o contraditório. Ou seja, fundamentalmente, o processo é caracterizado pelo contraditório estabelecido no procedimento, sendo a participação assegurada aos interessados por meio do exercício das faculdades e poderes que integram a relação jurídica processual.37 CARNELUTTI entende que o princípio do contraditório seria a própria igualdade entre as partes, porquanto, como sustenta, "è fondato sulla duplicità e sulla opposizione delle parti, mirabilmente intuito in un versetto del Cantico dell'Eclesiastico (43, 22): 'omnia duplicia, unum contra unum'; non esiste una parte senza l'altra e ciascuna parte si oppone all'altra".38 A igualdade de oportunidades de participação no processo diz respeito diretamente ao contraditório estabelecido entre as partes. Nesse mesmo sentido, como assevera 34- Com acerto, LIEBMAN entende que o direito de participação das partes no processo deve ser elevado à categoria de direitos cívicos (Manual de direito processual civil, n. 73, esp. pp. 150-1). 35- LAURIA TUCCI e CRUZ E TUCCI, Constituição de 1.988 e processo, p. 65. 36- Cfr. Istituzioni di diritto processuale, com destaque para p. 29, e Il processo ordinario di cognizione, pp. 51-4. 37- DINAMARCO, A instrumentalidade do processo, n. 8, p. 67. Na preparação do provimento jurisdicional, a participação das pessoas que poderão afinal ser atingidas por ele em sua esfera de direitos é expressa pelo contraditório, que transparece nos atos com que cada uma procura influir no espírito do julgador, objetivando um pronunciamento favorável (cfr. ainda, DINAMARCO, "Institutos fundamentais do direito processual", n. 37, p. 64- 72). 38- Diritto e processo, n. 59, p. 99, nota 2. PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON paridade 16 GIMENO SENDRA, o princípio do contraditório deve ser completado pelo da igualdade no processo, pois "no es suficiente que exista contradicción en el proceso, sino que, para que ésta sea efectiva, se hace necesario que ambas partes tengan las mismas posibilidades de ataque y defensa".39 Igualdade e contraditório estão preservados quando o juiz outorga às partes prazos idênticos para a apresentação de memoriais e vista deles após sua juntada aos autos. Esse mesmo escopo de preservação ocorre quando o juiz, sensível às circunstâncias do caso concreto, permite a manifestação da parte contrária nos casos de embargos de declaração de nítido caráter infringente. Plenitude e efetividade do contraditório revelam a necessidade de utilização de todos os meios necessários para impedir que a diferença de posições no processo possa influenciar no seu êxito, condicionando-o a uma distribuição desigual de forças, isto é, a possibilidade de obter a tutela de suas razões deve ser assegurada de forma equânime a quem age e a quem se defende em Juízo.40 O contraditório traduz-se no binômio informação-reação, sendo relevante a observação de que a primeira é sempre necessária, sob pena de provocar nulidade dos atos e termos do processo e tornar ilegítimo o provimento final, e a segunda é apenas possível.41 É pressuposto da reação aos atos desfavoráveis a comunicação ou ciência dos atos e termos que ocorrem ao longo do processo. O culto à liberdade expresso na eventualidade da reação torna o objeto do processo sujeito a diferentes situações jurídicas. A possibilidade equânime de obter a tutela de suas razões somente se realizará com a participação dos litigantes em todas as fases do processo, mais precipuamente na instrução. Como observa BARBOSA MOREIRA, "é missão do processo conduzir o litígio a uma solução que corresponda, com a maior fidelidade possível, à 39- Fundamentos del derecho procesal, p. 183. Sobre o contraditório e sua importância sob o enfoque constitucional, ver ainda de GIMENO SENDRA, Constitución y proceso, cap. 5, "El derecho de defensa", pp. 88 e ss.. 40- Cfr. GRINOVER, "O conteúdo da garantia do contraditório", p. 18. 41- DINAMARCO, “Princípios e garantias no processo”. PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON paridade 17 realização do direito material no caso concreto; por conseguinte, a atividade judicial cognitiva,consciente embora das suas inevitáveis limitações, deve tender à reconstituição verdadeira dos fatos, pressuposto da correta aplicação das normas jurídicas. Ora, o conhecimento humano da realidade, unilateral e fragmentário por natureza, só pode tornar-se menos imperfeito na medida em que as coisas sejam contempladas por mais de um ângulo e se ponham em confronto as diversas imagens parciais assim colhidas".42A cognição é um ato prevalentemente de inteligência, pois consiste na atividade de considerar, analisar e valorar as alegações e as provas produzidas pelas partes litigantes em torno das questões de fato e de direito que são deduzidas no processo. Por essa razão, a cognição pressupõe, de um lado, a participação das partes por meio de um contraditório pleno, efetivo e equilibrado e, de outro, a participação do juiz na preparação do julgamento a ser realizado.43 A observância de um procedimento apto a garantir às partes litigantes o amplo exercício dos poderes e faculdades inerentes ao princípio do contraditório legitima a autoridade dos provimentos jurisdicionais, destinados, em última análise, a disciplinar os interesses alheios. Aliás, "a democratização do exercício do poder através da participação pressupõe que esta participação se traduza, mediante sua canalização através de 'procedimentos justos', numa influência qualitativa no resultado das decisões".44 O contraditório interessa aos sujeitos do processo e não apenas aos sujeitos parciais do processo, ou seja, o juiz deve participar ativamente da preparação do julgamento a ser proferido. Isso porque é escopo da jurisdição a pacificação social com justiça. O juiz tem deveres primários de promoção e preservação da igualdade 42- BARBOSA MOREIRA, "A garantia do contraditório na atividade de instrução", p. 232. 43- Cfr. WATANABE, Da cognição no processo civil, p. 41. Sobre a importância da participação das partes no processo e efetividade e plenitude do contraditório, cfr. ainda COMOGLIO, La garantia costituzionale dell'azione ed il processo civile, p. 152. 44- CANOTILHO, Direito Constitucional, p. 1.024. PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON paridade 18 substancial entre as partes, neutralizando eventuais desigualdades. Essa é a idéia contida no art. 125 do Código de Processo Civil.45 Por esse motivo, hoje é inegável a possibilidade de o juiz adotar de-ofício iniciativas relacionadas com a instrução da causa.46 A utilização das faculdades instrutórias previstas no ordenamento jurídico não é, em absoluto, incompatível com a preservação da imparcialidade do juiz. O objetivo do órgão jurisdicional de decidir com justiça permanece o mesmo, dando ganho de causa à parte que tenha razão em sua alegações. A produção da prova pode auxiliar o juiz a aferir qual das partes está certa e esse resultado não dever ser desprezado pelo direito.47 Os poderes instrutórios do juiz têm por escopo precípuo perseguir a verdade real, mas não há dúvida de que consistem também em uma forma de tutela à igualdade real entre as partes litigantes, principalmente nos casos de hiposuficiência econômica de uma delas, garantindo o contraditório efetivo. Assim é que o correto uso dos poderes instrutórios pelo juiz tem por finalidade última suprir inferioridades relacionadas com a carência de recursos e de informações, ou mesmo com a dificuldade de obter o patrocínio de advogados mais capacitados.48 45- DINAMARCO, “Princípios e garantias do processo”, texto cedido aos alunos do curso de pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. 46- "La facultad que se otorga al juez es la de esclarecer esos hechos. Esclarecer significa etimológicamente 'poner en claro una cosa'. En virtud de ese poder el juez puede ordenar las diligencias necesarias a esos efectos. Y así podrá complementar la prueba producida por las partes, y aún en el caso de que no hayan producido prueba, en ejercicio de ese poder jurídico de esclarecimiento de la verdad que se le otorga al juzgador, puede suplir la no producida por las partes, ya sea por omisión, negligencia, etc." (ABELLA, "Los deberes y faculdades del Juez y de las partes", p. 47). 47- Cfr. BARBOSA MOREIRA, "Poderes do juiz na direção e na instrução do processo", pp. 45- 51. A iniciativa continua sendo da parte, mas existem modos pelos quais o juiz pode participar ativamente na sua "direção formal", principalmente nos casos de "disparidade das forças em conflito" (cfr. "Tendências contemporâneas do direito processual civil", n. 3, p. 40 e "A função social do processo civil moderno e o papel do juiz e das partes na direção e na instrução do processo", pp. 145-147). 48- Cfr. BARBOSA MOREIRA, "A função social do processo civil moderno e o papel do juiz e das partes na direção e na instrução do processo", pp. 146-149). Do mesmo autor, v. ainda "A garantia do contraditório na atividade de instrução", pp. 237-238; "Breves reflexiones sobre la iniciativa oficial en materia de prueba", pp. 79-86; "O juiz e a prova", pp. 178-184. Cfr. também BEDAQUE, Poderes instrutórios do juiz, pp. 67-73. PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON paridade 19 Na mesma linha do Estado social de direito que participa através de seus órgãos ativamente na vida da sociedade, o juiz de hoje não é um mero espectador dos fatos diante do conflito de interesses estabelecido entre os seus jurisdicionados; deve preocupar-se com a sua incumbência de perseguir a verdade real, não se contentando, na medida do possível, com a meramente formal. Deve, portanto, ordenar a produção de todas as provas pertinentes ao caso concreto, requeridas pelas partes ou por ele determinadas de-ofício. Os poderes instrutórios fundam-se também na igualdade, pois através deles procurará o julgador diminuir as diferenças substanciais existentes entre as partes, tornando sem efeito desigualdades econômicas ou culturais ao evitar qualquer possibilidade de omissão na instrução da causa.49 No entanto, a iniciativa do magistrado no campo probatório está muito longe de afastar a realidade de que a parte com melhores condições econômicas tem maiores possibilidades de contratar profissionais mais preparados (advogados, assistentes técnicos etc.). No processo caracterizado como adversary system, presente nos países de tradição anglo-saxônica, compete aos maiores interessados, ou seja, às partes, encartar aos autos os elementos de convicção segundo os quais o juiz decidirá. No processo dos países de tradição romano-germânica essa regra também vale pois o interesse pessoal é, sem qualquer questionamento, a maior força de realização dos direitos; mas não se ignora que caberá ao julgador, ao observar as diferenças substanciais no processo, propiciar um tratamento desigual entre desiguais valendo-se também e não só das regras de experiência comum, subministradas pela observação do que ordinariamente acontece, bem como das regras de experiência técnica. Tal é a regra contida no art. 335 do Código de Processo Civil. Isso significa que, mesmo na prova pericial, não deve o julgador subscrever in totum as observações expendidas pelo perito judicial, mas verificar o que 49 - V. BEDAQUE, Poderes instrutórios do juiz, pp. 67-68. PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON paridade 20 comumente ocorre valendo-se de regras de experiência e procurando compreender os fundamentos de critérios técnicos. A justiça no processo não começa com a decisão, mas já com o início da causa, no qual se abre desde logo umlargo campo à justiça distributiva.50 Ao longo de todo o arco procedimental, o julgador deve promover um tratamento igualitário entre os sujeitos parciais do processo, outorgando a eles as mesmas oportunidades de participação e o mesmo tratamento. Tratar igualitariamente não é tratar da mesma forma, mas tratar de maneira a atingir o acesso à ordem jurídica justa, possibilitando isonomicamente às partes a possibilidade de efetiva defesa de seus direitos, sustentação de suas razões, produção de provas.51 A promoção dessa atividade das partes tem por finalidade influenciar o espírito do juiz, destinatário final das provas. Portanto, é correto afirmar que é também de seu interesse a observância do contraditório,52 a fim de fazer prevalecer a isonomia processual. Daí ser correto afirmar a existência de verdadeira união funcional entre igualdade e contraditório pois ambos representam verdadeiros pilares da democracia, na qual o moderno direito processual está completamente inserido. 6. Conclusão parcial e encaminhamento de novas questões 50 - CHIOVENDA, “Le riforme processuali e le correnti del pensiero moderno”, p. 385. 51- GRINOVER, As garantias constitucionais e o direito de ação, p. 15. 52 - Nesse sentido é o art. 16 do Novo Código de Processo Civil Francês: “le juge doit, en toutes circonstances, faire observer lui-même le principe de la contradiction. Il ne peut retenir, dans sa décision, les moyens, les explications et les documents invoqués ou produits par les parties que si celles-ci ont éte à même dén débattre contradictoirement. Il ne peut fonder sa décision sur les moyens de droit qu’il a relevés d’office sans aboir au préalable invité les parties à présenter leur observations”. Como observado por ROGER PERROT e HENRY SOLUS, “a partir du moment où le juge est appelé à participer activement à l’instruction de la cause en relevant d’office certains moyens ou en modifiant de sa propre autorité la qualification des faites, des devoirs s’imposent à lui comme aux parties elles-mêmes et, en particulier, le devoir de provoquer les observations des parties sur les moyens dont peut dépendre la solution d’un litige qui met en cause leurs propres intérets” (Droit judiciaire privé, p. 122). PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON paridade 21 O objetivo principal até aqui traçado foi o de demonstrar a estreita relação existente entre igualdade das partes no processo e devido processo legal e contraditório. Nos itens subseqüentes, procurar-se-á traçar um desenho mais detalhado do tratamento paritário das partes no processo a partir da análise de situações específicas. 7. Igualdade e imparcialidade A igualdade entre as partes exige também a imparcialidade, i. e., o provimento jurisdicional deve ser concedido por um juiz independente, que atua de modo equilibrado. Os conceitos de igualdade e imparcialidade caminham em conjunto há muito; na Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1.948, está consagrado o direito ao julgamento por juiz imparcial: “todos homens têm direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial...” (art. 10). Para que tal preceito se realize, caberá ao julgador decidir em consonância com a lei e com os valores vigentes na sociedade em que se insere, fundamentando suficientemente suas decisões e conferindo tratamento paritário aos sujeitos parciais do processo. É repugnante aceitar que os agentes do Estado solucionem conflitos movidos por interesses ou sentimentos próprios, com total desprezo à lei. Não podem também prevalecer no processo opções pessoais do juiz ligadas unicamente a preferências sociais, políticas ou econômicas. A liberdade de julgar está vinculada à correta interpretação do ordenamento jurídico que, por sua vez, deve exprimir os valores preponderantes na sociedade. Vincular o sistema jurídico à realidade em que atua significa, da parte do juiz, revelar a norma a partir dos princípios e garantias que sobre ela sempre devem atuar. PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON paridade 22 Para coibir atos arbitrários existem os instrumentos legítimos da suspeição e do impedimento, garantias infra- constitucionais que têm por escopo propiciar a imparcialidade do juiz e, em última análise, garantir a própria igualdade entre as partes. Outros meios para garantir a imparcialidade do juiz e fiscalizar a liberdade interpretativa do texto legal são a publicidade dos atos judiciais e o sistema de pluralidade de graus de jurisdição. A possibilidade de conhecimento dos autos do processo aos órgãos hierarquicamente superiores de jurisdição preserva a igualdade das partes na medida em que elas não terão apenas uma chance de demonstrar suas razões e os atos judiciais serão suscetíveis de um controle interno. Espera-se que a segurança jurídica resultante de mais de um julgamento sobre o mesmo caso permita a melhora qualitativa da atuação dos órgãos jurisdicionais e a maior confiabilidade da população nessa atuação. Já a publicidade tem sua importância pois preserva o direito à informação e permite que a população faça a fiscalização de seus juízes mediante um controle externo legítimo. Todavia, esses meios de controle não têm se mostrado suficientes. A responsabilidade penal, civil e disciplinar do juiz deve ser uma realidade, mediante a instauração de processos de publicidade plena. Agindo com dolo ou culpa grave ou, ainda, tendo denegado justiça sem a interpretação da lei e a análise das circunstâncias que norteiam o caso concreto, deve o juiz responder pelos prejuízos causados. Não se pode admitir, sob pena de comprometer a promessa do tratamento igualitário das partes no processo, a violação da lei por negligência inescusável, a afirmação da inexistência de um fato incontrastavelmente existente ou da existência de um fato incontrastavelmente inexistente.53 Por outro lado, imparcialidade não se confunde com passividade e neutralidade absoluta. Observando uma situação de 53 - No mesmo sentido, PROTO PISANI, Lezioni di diritto processuale civile, p. 314. PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON paridade 23 extrema desigualdade entre as partes litigantes, deve o julgador intervir no sentido de propiciar o tratamento paritário. Partes hipossuficientes, sem condições de contratar bons profissionais para defesa de seus interesses, devem ter seus direitos tutelados mediante a participação efetiva do julgador. Dele se espera um conhecimento do contexto social em que atua. 8. Igualdade, acesso à justiça e assistência judiciária Óbices perversos, a maioria deles estranha à ordem jurídica processual, são decorrentes da interpretação retrógrada da lei e da realidade sócio-econômica. Pobreza, desinformação, custo e duração do processo, burocracia, desídia e falta de compromisso dos operadores do direito com a justiça são alguns dos obstáculos que afastam o leigo da Justiça. Por isso, ao fazer observar a igualdade das partes no processo, caberá ao juiz compensar de modo adequado desigualdades econômicas de modo a permitir a efetiva, correta e tempestiva defesa dos direitos e interesses em juízo. Tal é a igualdade real e proporcional, isto é, o tratamento desigual deve ser dispensado aos substancialmente desiguais na exata medida da desigualdade.54 Neutralizando carências culturais e econômicas, estará o juiz demonstrando consciência da realidade na qual está inseridoe promovendo a verdadeira igualdade substancial. Indiretamente, está propiciando a educação dos jurisdicionados. “Está bem claro hoje que tratar como igual – de forma igual – sujeitos que econômica e socialmente estão em desvantagem, não é outra coisa senão uma ulterior 54 - É de CANARIS essa observação: “em termos esquemáticos, pode considerar-se que, mediante bitolas eleitas em cada cultura jurídica, o Direito tende a tratar o igual de modo igual e o diferente de modo diferente, de acordo com a medida da diferença. De outro modo, os diversos problemas concretos seriam resolvidos ao acaso, surgindo como expressão do puro arbítrio” (Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito, p. 63). Essas bitolas são os princípios jurídicos, que servem de base para o sistema. PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON paridade 24 forma de desigualdade e de injustiça”.55 Por ser natural e extremamente razoável, tratar desigualmente os desiguais é uma forma legítima de fazer com que o processo atinja os resultados previamente eleitos. A assistência jurídica integral aos necessitados, embora elevada a verdadeira promessa constitucional (art. 5º, inc. LXXIV), está longe de ser uma realidade. Mas muito já foi feito. A lei n. 1.060, de 5 de fevereiro de 1950, que estabelece normas para a concessão de assistência judiciária aos necessitados, tem ainda a sua importância, embora até hoje importantes questões relativas ao modo-de-ser do processo civil não estejam bem resolvidas. Exemplo vivo do que se procura ilustrar ocorre quando o beneficiário da justiça gratuita necessita de prova pericial para a demonstração dos fatos alegados; as dificuldades são tantas que, muitas vezes, a prova não é realizada ou resta de alguma forma comprometida. Recentemente, a jurisprudência tem se mostrado sensível a tais problemas ao entender que a assistência judiciária abrange também os honorários do perito.56 A iniciativa do juiz no campo probatório é essencial à garantia constitucional da igualdade e à efetivação do processo justo. Ainda sobre a assistência judiciária, o § 5º ao art. 5º da lei n. 1.060, de 5 de fevereiro de 1950, outorga o prazo em dobro para o defensor público ou para quem exerça cargo equivalente (atenção: cargo e não munus semelhante). Além disso, os tribunais pátrios têm entendido que as intimações do defensor público devem ser feitas pessoalmente.57 Tais medidas parecem ser exageradas; melhor seria conceder ao juiz, nos casos de assistência judiciária, o poder de definir apenas e tão-somente o prazo para resposta. A instituição do prazo em dobro é genérica e permite o tratamento privilegiado de uma das partes. A 55 - Proceso, ideologia, sociedad, p. 67. 56 - STJ, RT 688/198; RSTJ 57/275. Em sentido contrário: RJTJERGS 167/270. V. THEOTONIO NEGRÃO, Código de Processo Civil e legislação processual em vigor, nota 7b ao art. 3º da lei n. 1.060, de 5 de fevereiro de 1.950, p. 815. 57 - Cfr. farta messe jurisprudencial citada por THEOTONIO NEGRÃO, Código de Processo Civil e legislação processual em vigor, p. 818. PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON paridade 25 mesma situação ocorre com a necessidade de intimação pessoal do defensor dativo, que só vem a retardar a prestação jurisdicional. Um sistema de assistência jurídica integral pressupõe um verdadeiro programa de seguridade social, destinado a auxiliar o jurisdicionado preventivamente e em juízo. Mais ainda, em consonância com as circunstâncias do caso concreto, o julgador deve verificar precisamente as condições de carência e, por conseqüência, em que condições a assistência jurídica será outorgada. Advogados do próprio poder público ou a ele vinculados por meio de algum modo justo de remuneração fazem parte de um sistema misto para permitir o efetivo acesso à justiça. Na segunda alternativa, o Estado está descentralizando suas atividades e permitindo a participação de indivíduos e grupos realmente interessados na consecução dos direitos sociais. 58 Outro ponto importante que representa um grande passo na consecução do efetivo acesso à justiça é a lei n. 9.099, de 26 de setembro de 1995, que instituiu os juizados especiais, destinados a resolver causas cíveis de menor complexidade e causas penais de menor potencial ofensivo. Por meio de um processo orientado pela oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, o processo dos juizados especiais procura diminuir óbices culturais, que comprometem a efetiva participação de jurisdicionados carentes. Mais ainda: os juizados especiais têm o grande mérito de tentar solucionar conflitos antes não-jurisdicionalizáveis.59 Todavia, é preciso que o Estado estruture e aparelhe os juizados especiais de maneira adequada, com juízes que exerçam apenas essa função e possam nela se especializar. Um dos grandes óbices à promessa constitucional de oferta integral de assistência judiciária é o custo do 58 - BERIZONCE, “Algunos obstáculos al acceso a la justicia”, nn. 4-5, p. 69. 59 -Isso significa universalizar a tutela jurisdicional, endereçando-a à maior abrangência possível e, com isso, reduzindo os resíduos não-jurisdicionalizáveis. O objetivo é fazer com que o universo dos litígios possa ser canalizado para o processo (v. DINAMARCO, “O futuro do direito processual civil”, pp. 38-40). PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON paridade 26 processo. A procrastinação do pagamento de custas processuais, como o preparo, é meio eficaz para preservar a isonomia entre as partes litigantes; mediante o tratamento formalmente desigual, objetiva-se a igualdade substancial. Medida que também se afigura justa e permite o acesso à justiça é a dispensa, aos beneficiários da assistência judiciária, de efetuar o depósito prévio no valor de cinco por cento do valor da causa para a propositura de ação rescisória (CPC, art. 488, par. ún.). Mas não há a menor dúvida de que o maior óbice da atualidade à efetividade do processo é sua duração excessiva. Demoras sem justificativa aumentam a descrença nos serviços judiciários e a angústia do litigante que pretende ver seu direito tutelado, além de abalar sensivelmente a segurança que deve haver nas relações jurídicas. A celeridade e a segurança jurídica são objetivos difíceis de serem delineados conjuntamente, mas o retardamento excessivo da prestação jurisdicional vem contribuir sensivelmente para o descaso com a lei. O direito à tempestiva prestação jurisdicional é inerente à igualdade jurídica, já que o tempo excessivo é fator de desequilíbrio, mormente naqueles casos em que estão envolvidos direitos patrimoniais. Sabe-se que a certeza absoluta não é inerente à idéia de processo, que se desenvolve de diversos modos em função dos vários sistemas de gradação da cognição. Todo e qualquer processo representa um espelho de uma realidade e, por isso, funda-se numa maior ou menor verossimilhança dos fatos. No processo de conhecimento, por exemplo, a sentença de mérito vem após atividade cognitiva exauriente, que permite um conhecimento total da realidade que lhe é trazida pelas partes; no processo cautelar ou na antecipação de tutela (art. 273), a decisão chega depois de realizada cognição sumária, na qual se evidencia a probabilidade, ou seja, a constatação da presença de mais pontos convergentes a uma dada realidade que é trazida ao julgador comparativamente aos pontos divergentes. Mediante a correta técnica processual pretende-se estabelecer umalinha de equilíbrio entre a PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON paridade 27 celeridade e segurança, fazendo com que o processo atinja os resultados práticos esperados no menor espaço de tempo e de modo a não prejudicar as partes litigantes. 9. Igualdade substancial: a inversão do ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor A denominada inversão do ônus da prova, na realidade, nada inverte. Etmologicamente, inverter vem do latim invertere e significa mudar a ordem de, dispor de maneira contrária ao normal.60 Portanto, quando se fala de inversão do ônus da prova quer o legislador dizer que, em determinadas situações, há a dispensa da parte de fazer prova de algum fato por ela alegado. Em tais circunstâncias, dispensa a lei que o demandante faça prova do fato constitutivo de seu direito. Ou seja, não basta ao demandado impugnar os fatos apenas alegados pela parte contrária; tem ele o encargo, como imperativo de seu próprio interesse,61 de fazer prova de que aqueles fatos alegados pelo demandante não ocorreram ou, admitindo-os, que não produziram as conseqüências afirmadas da petição inicial (defesa direta) ou, ainda, apresentar fatos impeditivos, modificativos ou extintivos daqueles integrantes da causa petendi descrita na petição inicial (defesa indireta). A inversão do ônus da prova está presente no ordenamento jurídico brasileiro há muito tempo. Não-obstante a regra rígida contida no art. 333 do Código de Processo Civil, pelo parágrafo único desse dispositivo, é possível a inversão convencional do ônus de provar quando a questão versar sobre direito disponível e não dificultar excessivamente o exercício do direito de defesa. No direito comparado essa possibilidade também está presente. No direito italiano, o art. 2.698 60 - BUENO, Grande dicionário etimológico-prosódico da língua portuguesa, p. 1.978. 61 - Muito atual ainda é o ensinamento de GOLDSCHMIDT, segundo o qual o ônus, considerado como imperativo do próprio interesse, tem estreita relação com a possibilidade processual, pois toda possibilidade impõe à parte o ônus de ser diligente (Derecho procesal civil, § 2º, n. 3, p. 8, e ainda, § 35, n. 3, p. 203). PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON paridade 28 do Código Civil, que serviu de matriz para o par. ún. do art. 333, admitiu implicitamente a convenção com o efeito de alterar a distribuição do onus probandi.62 O Código de Defesa do Consumidor representou um grande avanço a partir do momento em que disciplinou a inversão do ônus da prova por decisão judicial. Enquanto no sistema do Código de Processo Civil admite-se a inversão convencional, com as ressalvas contidas nos dois incisos do parágrafo único do art. 333, no sistema do Código de Defesa do Consumidor permite-se a inversão judicial do ônus da prova (CDC, art. 6º, inc. VIII). Essa nova situação jurídica processual tem estreita relação com o direito material, na medida em que a finalidade específica da norma é por fim à vulnerabilidade das alegações do consumidor no tocante à demonstração dos fatos constitutivos de seu direito.63 Mas essa inversão não é incondicionada pois, para que ela ocorra, os fatos devem ser verossímeis. Ao examinar a veromissilhança dos fatos deduzidos pelo consumidor em juízo, deve o julgador “imbuir- se do sentimento de que a realidade fática pode ser como a descreve o autor”.64 Isso significa condicionar a inversão à verossimilhança das alegações, que deve ser aferida segundo as regras ordinárias de experiência subministradas pela observação do que comumente acontece e ainda as regras de experiência técnica. A inversão judicial do Código de Defesa do Consumidor está condicionada à verossimilhança a fim de evitar uma absurda e impossível onerosidade ao produtor de bens ou serviços. Sem incluir tal condicionamento, o dispositivo seria inconstitucional, pois violaria de tal forma a paridade substancial das partes no processo e a ampla defesa que impediria o acesso à ordem jurídica justa (CF, art. 5º, caput, incs. XXXV e LIV). Estaria também prestigiada a probatio diabolica e ignorada a possibilidade, da qual falou 62 - V. MICHELI, L’onere della prova, n. 38, pp. 244 e ss.; cfr. também VERDE, L’onere della prova nel processo civile, n. 21, esp. p. 131, nota 194. 63 - MATOS, O ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor, p. 196. 64 - DINAMARCO, A Reforma do Código de Processo Civil, n. 106, p. 145. PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON paridade 29 GOLDSHMIDT, já que de nada adiantaria a parte ser diligente em torno de um fato impossível.65 No Código de Defesa do Consumidor, o art. 6º, inc. VIII, tem por fim aprimorar os mecanismos internos do processo e preservar o tratamento paritário das partes, uma vez que não havendo posições isonômicas dos sujeitos parciais do processo admite-se a inversão judicial do ônus da prova,66 condicionada sempre à verossimilhança das alegações aduzidas pelo consumidor em juízo. Com isso, evitam-se desigualdades e preserva-se a igualdade substancial das partes no processo. 10. Igualdade nas relações internacionais A coesão dos sistemas jurídicos é imperativa para a intensificação das relações entre os diversos países e, em particular, da atividade econômica. Nesse contexto têm muita importância os estudos desenvolvidos pelo Instituto Ibero-Americano de Direito Processual. O Código de Processo Civil Modelo para a Iberoamérica ou Código Tipo, elaborado por essa entidade, tem grande importância na medida em que reconhece institutos comuns (com a diferença de nomenclatura) e procura introduzir outros recepcionados pelo trabalho da doutrina e da jurisprudência. Esse compêndio tem grande importância pois oferece idéias que podem ser perfeitamente assimiladas pelos países integrantes da Iberoamérica. O importante não é criar um único diploma, mas compatibilizar os sistemas jurídicos de países integrantes de uma mesma comunidade de modo a atingir escopos previamente traçados. Todavia, é preciso que haja a preservação da reciprocidade e do princípio da igualdade de tratamento entre os litigantes nas relações internacionais. Assim, apenas exemplificando o que se procura demonstrar, no Brasil não 65 - Derecho procesal civil, § 35, n. 3, p. 203. 66. Cfr. ARRUDA ALVIM, Código do Consumidor comentado, cit., esp. p. 71, em comentário ao art. 6º. PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON paridade 30 seria válida prova produzida no exterior sem a participação das partes litigantes, porque violaria a garantia constitucional da igualdade. Portanto, também no campo do chamado direito processual internacional revela-se importante a observância do tratamento paritário das partes no processo. A cooperação jurídica entre os diversos países exige apenas coesão de sistemas, ou seja, ao operador do direito compete verificar apenas se garantias constitucionalmente eleitas foram observadas. Um apego excessivo às formalidades constantes do ordenamento jurídico nacional prejudicariam sensivelmente a coesão que se espera. Por tudo isso, na ciência do direito tende a crescer o valor sistemático dos princípios à medida que se torna imperativa a cooperação internacional; os princípios comuns terão o condão de harmonizar os diferentes sistemas jurídicos. A própria Constituição Federal, ao consagrar o modelo democrático e formular princípios, deseja um processo universal e isonômico. PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON paridade31 11. Igualdade e processo de execução O tratamento paritário das partes não se revela apenas no processo cognitivo, mas também no de execução. Embora o título executivo permita desde logo o desencadeamento de atos constritivos, é certo que o processo deve se desenvolver de modo a não ultrapassar os limites estabelecidos no título, tornando a execução, na medida do possível, menos gravosa. A igualdade no processo executivo está na observância da fidelidade do título executivo com os atos de agressão patrimonial. Em se tratando de matérias que devem ser conhecidas de-ofício (as assim denominadas objeções), viola a isonomia no processo quando deixa o magistrado de sobre elas se pronunciar.67 Demonstrada a inadmissibilidade da execução por ausência de pressupostos de constituição e de desenvolvimento do processo e das condições da ação, não é possível o desencadeamento de atos de agressão patrimonial, para somente depois de seguro o juízo pela penhora ou pelo depósito permitir a defesa do executado pela via incidental dos embargos. Portanto, se de um lado deve o juiz proporcionar ao exeqüente um processo de execução efetivo, coibindo expedientes procrastinatórios e totalmente infundados, de outro deve rejeitar de início execuções fundadas em obrigações inexistentes ou inadmissíveis. Para esses expedientes do exeqüente existe o que a doutrina nominou de exceções e objeções de pré-executividade, defesas de mérito ou processuais oferecidas diretamente no processo de execução. As primeiras devem ser necessariamente alegadas pelo executado e dizem respeito ao mérito do processo executivos (p. ex., pagamento, prescrição etc.); as outras, por se referirem à própria admissibilidade do processo de execução, devem ser 67 - Com esse entendimento também, SHIMURA, Título executivo, p. 72. PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON paridade 32 cognoscíveis de-ofício pelo juiz.68 Nas duas situações, impõe-se o dever de o julgador sobre elas se manifestar in executivis, sob pena de flagrante tratamento desigual entre os sujeitos parciais do processo. 68 - Mais amplamente, cfr. LUCON, “O controle dos atos executivos e a efetividade da execução”, nn. 6 e 11, pp. 341-344, 349-352, respectivamente. PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON paridade 33 12. Igualdade, Fazenda Pública e Ministério Público I) introdução Prerrogativas legais outorgadas a uma das partes no processo têm por finalidade restabelecer o equilíbrio, propiciando a chamada igualdade substancial na tutela dos direitos. Esse é, por assim dizer, o traço fundamental que legitima diferenciações feitas pelo legislador e pelo magistrado no caso concreto. O que não se pode admitir é o tratamento privilegiado dispensado a apenas uma das partes de modo arbitrário ou caprichoso, em total prejuízo da outra. Assim sucede com os inexplicáveis benefícios da Fazenda Pública (União, Estados, Municípios, Distrito Federal e respectivas autarquias), que remontam à época de um modelo estatal superado e não têm razão de hoje sobreviver. Como observa BANDEIRA DE MELLO, a igualdade é violada quando “a norma singulariza atual e definitivamente um destinatário determinado, ao invés de abranger uma categoria de pessoas, ou uma pessoa futura e indeterminada”69 ou ainda no momento em que o legislador cria o discrímen, quando não há qualquer previsão constitucional, implícita ou explícita, para tanto. Como adverte PONTES DE MIRANDA, a igualdade perante a lei é regra geral, não podendo ser invocada se a Constituição de modo implícito ou explícito permite a desigualdade.70 69 - O conteúdo jurídico do princípio da igualdade, p. 47. Para BANDEIRA DE MELLO, há também ofensa ao preceito constitucional da isonomia quando: “II - a norma adotada como critério discriminador, para fins de diferenciação de regimes, elementos não residentes nos fatos, situações ou pessoas por tal modo desequiparadas. É o que ocorre quando pretende tomar o fator ‘tempo’- que não descansa no objeto – como critério diferencial; III – a norma atribui tratamentos jurídicos diferentes em atenção a fator de discrímen adotado que, entretanto, não guarda relação de pertinência lógica com a disparidade de regimes outorgados; IV – a norma supõe relação de pertinência lógica existente em abstrato, mas o discrímen estabelecido conduz a efeitos contrapostos ou de qualquer modo dissonantes dos interesses prestigiados constitucionalmente; V – à interpretação da norma extrai dela distinções, discrímens, desequiparações que não foram professadamente assumidos por ela de modo claro, ainda que por via implícita (op. cit., pp. 47-48). 70 - Comentários à Constituição de 1.967, v. IV, p. 701. PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON paridade 34 Diferenciações feitas genericamente pela norma em função da parte litigante são inconstitucionais; é preciso que o discrímen seja feito de forma particularizada, tal como ocorre nos casos de concessão dos benefícios da assistência judiciária. Por isso, afigura-se genérico e inconstitucional o reexame obrigatório previsto na ação popular, quando decretada a carência de ação ou julgado improcedente o pedido, a teor do disposto no art. 19 da lei n. 4.717, de 29 de junho de 1965. O dia-a-dia forense tem demonstrado que o maior fomentador dos litígios é o próprio Estado, que tem no mais das vezes se comportado como inimigo na voracidade fiscal, no comportamento processual, muitas vezes eivado de má-fé, nos privilégios que a lei lhe confere em total violação ao princípio da igualdade.71 II) prazos processuais O primeiro desses privilégios indevidos refere-se aos prazos outorgados à Fazenda Pública (e ao Ministério Público) em quádruplo para contestar e em dobro para recorrer, constantes do art. 188 do Código de Processo Civil. Também aqui se inclui o prazo em dobro para a Fazenda Pública contestar no procedimento sumário (art. 277, caput); essas vantagens são inadmissíveis por violarem frontalmente a Constituição Federal no que diz respeito à igualdade das partes no processo. Por isso, não podem encontrar justificativa no complexo da administração pública. Caso contrário, as mega-empresas também deveriam ser assim beneficiadas. Nos dias de hoje, com o uso em larga escala do computador, não pode mais prevalecer o entendimento de que o Estado necessita de privilégios inconstitucionais. Aliás, “um Estado organizado, melhor do que qualquer particular, deve primar pela perfeição dos seus serviços, tendo, a tempo e hora, todos os elementos indispensáveis à sua mais perfeita quão possível atuação, e correlatas 71 - V. DINAMARCO, Privilégios do Estado em Juízo, p. 5. PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON paridade 35 informações”.72 Toda e qualquer discriminação tem por objetivo atender situações desiguais; caso contrário, mostra-se arbitrária e odiosa.73 Inconstitucional é também a possibilidade de prazo em dobro por terem os litisconsortes procuradores distintos, constante do art. 191 do Código de Processo Civil. Essa regra provoca a dilação excessiva do processo e beneficia um dos sujeitos parciais do processo em total detrimento do outro. Normalmente somente os litigantes com capacidade econômica é que têm a possibilidade de contratar procuradores autônomos, com escritórios muito bem montados e capacitados para cumprir regularmente os prazos, sem a necessidade do inconstitucional benefício
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