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ESTRUTURA DO ENUNCIADO
V. N. VOLOSHINOV (1930)
(tradução de Ana Vaz, para fins didáticos)
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1. Comunicação Social e Interação Verbal
No artigo precedente�, nós evidenciamos a natureza social da linguagem. Nós também mostramos quais os fatores e forças que determinam o aparecimento e, em seguida, o desenvolvimento da linguagem, quais sejam, a organização social do trabalho e a luta de classes. Nós, finalmente, constatamos que o discurso humano é um fenômeno biface: todo enunciado exige, para que se realize, a presença simultânea de um locutor e de um ouvinte. Toda expressão lingüística de uma impressão proveniente do mundo exterior – seja ela imediata ou tenha ela permanecido por longo tempo nas profundezas de nossa consciência até adquirir uma forma ideológica mais sólida e mais constante -, toda expressão lingüística é sempre orientada em direção ao outro, em direção ao ouvinte, mesmo quando este outro se encontra fisicamente ausente. Nós vimos que as expressões as mais simples e mais primitivas de nossos desejos, até mesmo a mais fisiológica de nossas sensações, possuem uma estrutura sociológica bem determinada.
Tudo isto nos cria a possibilidade de elaborar uma definição de linguagem, a qual não se faz necessário retomar, passando-se, assim para um exame mais aprofundado da estrutura do enunciado – quer este pertença ao discurso cotidiano ou – nós o veremos em um segundo tempo -, à literatura.
Nos é necessário, sobretudo, reter a idéia de que a linguagem não é alguma coisa de imóvel, fornecida de uma vez por todas, e rigorosamente determinada em suas “regras” e em suas “exceções” gramaticais. Ela é um produto da vida social, a qual não é fixa e nem petrificada: a linguagem encontra-se em um perpétuo devir e seu desenvolvimento segue a evolução da vida social. A progressão da linguagem se concretiza na relação social de comunicação que cada homem mantém com seus semelhantes – relação que não existe apenas no nível de produção, mas também no nível do discurso. É na comunicação verbal, como um dos elementos do vasto conjunto formado pelas relações de comunicação social, que se elaboram os diferentes tipos de enunciados, correspondendo, cada um deles, a um diferente tipo de comunicação social.
É, portanto, impossível compreender como se constrói qualquer enunciado que tenha uma aparência autônoma e acabada, se não se o considera como um “momento”, uma simples gota no rio da comunicação verbal, cujo movimento incessante é o mesmo que o da vida social e da História.
Mas a comunicação verbal em si mesma não é senão uma das muitas formas do vir-a-ser da comunidade social onde ocorre, no nível do discurso, a interação (verbal) dos homens que vivem em sociedade. Esta a razão pela qual seria vão procurar resolver o problema da estrutura dos enunciados que fazem a comunicação, sem levar em conta as condições reais – isto é, a situação – que suscitam tais enunciados.
Desta forma, somos levados a formular uma última proposição: a verdadeira essência da linguagem é o evento social da interação verbal e ela se encontra concretizada em um ou vários enunciados.
Quanto às mudanças nas formas de linguagem, como elas se processam? De que dependem elas? Segundo que ordem elas ocorrem? Os dados do artigo precedente nos permitem elaborar um esquema que sintetiza e responde às questões ora postas:
Organização econômica da sociedade.
Relação de comunicação social.
Interação verbal
Enunciados
Formas gramaticais da linguagem.
Este esquema nos servirá como fio condutor no estudo desta unidade concreta, que se destaca da palavra e que nós chamaremos de enunciado.
Nós não nos deteremos, obviamente, sobre questões relacionadas ao estudo das formas e dos tipos de vida econômica da sociedade; essas questões dizem respeito a outras disciplinas: às ciências sociais e, sobretudo, à economia política.
Nós também não perderemos tempo examinando os diferentes tipos de relações de comunicação social. Nos será suficiente indicar quais são as mais significativas e as mais freqüentes dentre elas - com exceção de apenas um tipo, ao qual nos nossos trabalhos ulteriores nós daremos uma atenção especial: a comunicação artística.
Considerando a vida em sociedade, nós podemos facilmente destacar, além da relação da comunicação artística, os tipos de comunicação social seguintes: 
as relações de produção (nas fábricas, ateliers, “kolkhozes”, etc.);
as relações de negócio (nas administrações, organismos públicos, etc);
as relações quotidianas (os encontros e as conversas na rua, nos bares, em suas casas, etc.);
as relações ideológicas stricto sensu na propaganda, na escola, na ciência, na atividade filosófica sob todas as suas formas.
O que nós designamos pelo termo situação, em nosso artigo precedente, não é outra coisa senão a efetiva realização, na vida concreta, de uma determinada formação, de uma determinada variação da relação de comunicação social.
Mas toda situação vivida supõe, necessariamente, na medida em que ela produz um enunciado, a presença de um ou de vários atores/locutores. Nós daremos o nome de auditório do enunciado, à presença necessária daqueles que fazem parte de uma dada situação.
Assim, todo enunciado da vida quotidiana comporta – nós o veremos mais adiante -, junto à sua parte expressa verbalmente, uma parte extra-verbal, não exprimida mas sub-entendida, formada pela situação e pelo auditório. Se não se leva em conta este último elemento, o enunciado ele mesmo não pode ser compreendido.
Ora, o enunciado, considerado como unidade de comunicação e totalidade semântica, se constitui e se completa exatamente numa interação verbal determinada e engendrada por uma certa relação de comunicação social. Deste modo, cada um dos tipos de comunicação social que nós citamos organiza, constrói e completa, de modo específico, a forma gramatical e estilística do enunciado, assim como a estrutura de onde ela se destaca. Nós daremos o nome de gênero a esta estrutura. 
Examinemos, agora, o laço que une cada um desses tipos de comunicação social - as relações da vida quotidiana, por exemplo -, ao tipo de interação verbal correspondente.
Nós já tivemos a oportunidade de observar que a situação e o auditório obrigam o discurso interior a exprimir-se de uma determinada forma; essa expressão se integra imediatamente à situação concreta – não exprimida, mas subentendida -, e ela própria se completa pelo gesto, pela ação, ou pela resposta daqueles que fazem parte da enunciação.
“A questão bem formada, a exclamação, a ordem, o pedido, eis as formas mais típicas de enunciados da vida quotidiana. Elas todas exigem – e, sobretudo, a ordem e o pedido – um complemento extra-verbal e, também, um ponto de início que é de natureza extra-verbal. Cada um desses pequenos gêneros de enunciados, que ocorrem no quotidiano, pressupõe, para ser realizado, que o discurso esteja em contato tanto com o meio extra-verbal, como com o discurso do outro.
O modo como uma ordem é formulada, é determinado pelos elementos que podem obstaculizar a sua realização, pelo grau de submissão encontrado, etc. O gênero toma, portanto, sua forma “acabada” nos traços particulares, contingentes e únicos que definem cada situação vivida.
Mas não se pode falar de gêneros constituídos, próprios do discurso quotidiano, senão se se está em presença de formas de comunicação que sejam relativamente estáveis na vida quotidiana, e fixados pelos modos de vida e pelas circunstâncias.
É desta forma que se pode observar um tipo de gênero específico constituído nos bate-papos de festas sociais: há uma conversação superficial que não leva a nada, entre pessoas de um mesmo mundo, onde o único critério diferencial dos que ali participam – o auditório – é a distinção entre homens e mulheres. Ali, são elaboradas formas específicas de discurso: a alusão, o sub-entendido, a repetição de pequenas narrativas conhecidas por todos comofrívolas, etc.
Um outro tipo de gênero também é formado na conversação entre marido e mulher ou entre irmão e irmã. Supondo uma fila de espera, na qual se encontram reunidos, por acaso, pessoas de categorias sociais diferentes, em uma empresa qualquer, ou em qualquer outro lugar, ouvir-se-á, em cada caso, declarações e réplicas que se distinguem radicalmente umas das outras, em seu princípio, seu fim e na estrutura dos próprios enunciados que as compõem. Os velórios, as danças, as diversões dos trabalhadores durante o seu intervalo de almoço, conhecem tipos de gêneros que lhe são próprios.
Toda situação da vida quotidiana possui um auditório, cuja organização é bem precisa, e dispõe de um repertório específico de pequenos gêneros apropriados. Em cada caso, o gênero quotidiano se adapta à trilha que a comunicação social parece lhe ter traçado – e isto, pelo tanto que ele apresenta de reflexo ideológico do tipo, de estrutura, de objetivo e de constituição das relações de comunicação social.
O gênero quotidiano é um elemento do meio social, quer se trate de uma festa, de diversões, etc. Ele coincide com o meio e ali é limitado e determinado em todos os seus componentes internos.” �
2. O Discurso Monológico e o Discurso Dialógico
Ao observar o processo segundo o qual se formam estes pequenos gêneros cotidianos, remarca-se que a relação discursiva na qual eles aparecem e tomam sua forma acabada se divide em dois momentos: a enunciação, que é o ato do locutor; a compreensão do enunciado pelo ouvinte, a qual já contém em si elementos de resposta. Com efeito, em condições normais, nós sempre estamos ou de acordo ou em desacordo com o que se diz; e nós trazemos, via de regra, uma resposta a todo enunciado do nosso interlocutor – resposta que não é necessariamente verbal, podendo consistir em um gesto, um movimento das mãos, um sorriso, um franzimento de testa, etc. Pode-se, portanto, afirmar que toda comunicação, toda interação verbal, se realiza sob a forma de uma troca de enunciados, isto é, na dimensão de um diálogo.
O diálogo – troca de palavras – é a forma mais natural da linguagem.� Mais que isso: os enunciados, ainda que emanados de um interlocutor único (como, por exemplo, o discurso de um orador, a aula de um professor, o monólogo de um ator, os pensamentos em voz alta de um homem sozinho) são monológicos em razão da sua forma exterior, mas, dada a sua estrutura semântica e estilística, eles são, na realidade, essencialmente dialógicos. É importante que o escritor tenha consciência disso, quando ele faz uso do monólogo para um de seus personagens.
Assim, todo enunciado (pronunciamento, conferência, etc.) é concebido em função de um ouvinte, isto é, da sua compreensão e da sua resposta – não sua resposta imediata, é claro, uma vez que não se deve interromper um orador ou um conferencista com observações pessoais; mas também em função do seu acordo ou seu desacordo, ou, em outras palavras, da percepção avaliativa do ouvinte; enfim, em função do “auditório do enunciado”. Um orador ou um conferencista experiente sabe perfeitamente levar em conta esta dimensão dialógica do seu discurso; o orador não considera seus ouvintes como uma massa indiferente, inerte, imóvel, que o observa sem tomar partido; ao contrário, ele sabe que ele tem diante de si um ouvinte vivo e polimorfo. O movimento de um ouvinte qualquer, sua pose, a expressão de seu rosto, sua tosse, são, também percebidos por um orador profissional como um conjunto de respostas precisas e expressivas que acompanham de um ponto a outro, o seu discurso.� E se um orador é freqüentemente levado, de modo inesperado, a realizar uma digressão, a contar um episódio divertido ou uma história engraçada, nem sempre é para animar o seu público; algumas vezes é para sublinhar – digamos, acentuar – uma idéia que ele pode julgar não ter sido suficientemente remarcada por seus ouvintes.
Assim, um orador que se escuta falar é um mau orador; um professor que não se ocupa senão de suas notas é, igualmente, um mau professor. Eles desfazem o impacto de suas propostas, eles quebram o laço vivo, de natureza dialógica, que os une a seu auditório e, desta forma, eles próprios depreciam os seus préstimos.
3. O Caráter Dialógico do Discurso Interior
“Que seja. Estamos de acordo. Admitamos que é bem assim”, podem nos replicar, “mas acontece que, nos exemplos citados, o ouvinte-interlocutor estava, de fato presente; e se não existe nada de surpreendente no fato de que as palavras do locutor levem em conta essa presença, o que ocorre se o locutor está só e não existe ouvinte? É verdade que os pensamentos mais íntimos – advindos do discurso interior ou até mesmo pronunciados em voz alta -, é verdade que as proposições enunciadas no íntimo da alma sejam, em sua própria estrutura, igualmente orientadas em direção à sociedade? Em direção a um auditório? Deve-se acreditar que esse discurso solitário, endereçado a si próprio, não é a mais pura forma do monólogo, isto é, um discurso orientado exclusivamente para o locutor e para mais ninguém, dependendo apenas de um “estado psicológico”?
Nós não hesitamos em afirmar categoricamente que os discursos mais íntimos, eles também, são inteiramente dialógicos: eles são atravessados pelas avaliações de um ouvinte virtual, de um auditório potencial, mesmo se a representação de tal auditório não aparece de forma clara no espírito do locutor.
Isto foi demonstrado, não apenas nas conclusões de nosso artigo precedente, não apenas pelo elemento sociológico inerente à consciência humana, as suas “emoções” e a sua expressão. Não. Esta determinação social - esta determinação de classe, (dito de forma mais precisa e franca) - de todo discurso monológico, que se manifesta exteriormente sob um aspecto dialógico, nós podemos verificá-la sem recorrer a exemplos literários, mas nos reportando a nossa própria experiência, ao nosso diário íntimo, a nossas notas de uso privado, etc.
E, para que nos convençamos, é suficiente considerar que quando nós nos pomos a refletir sobre um tema qualquer, quando nós o examinamos atentamente, nosso discurso interior – que, se estamos sós, pode ser pronunciado em alta voz -, toma imediatamente a forma de um debate com perguntas e respostas, feito de afirmações seguidas de objeções; em suma, nosso discurso se auto-analisa por meio de réplicas nitidamente separadas e mais ou menos desenvolvidas; ele é pronunciado sob a forma de um diálogo.
Esta forma dialógica aparece claramente quando nós temos que tomar uma decisão. Nós estamos cheios de hesitação e não sabemos que partido tomar. Nós iniciamos uma discussão conosco mesmos, nós tentamos nos convencer a nós mesmos da justeza de tal ou tal decisão. Nossa consciência parece, desta forma, nos falar por meio de duas vozes independentes uma da outra, e cujas propostas são contrárias.
E, a cada vez, independentemente de nossa vontade e de nossa consciência, uma dessas vozes se confunde com a que exprime o ponto de vista da classe à qual nós pertencemos, suas opiniões, suas avaliações. Ela se torna sempre a voz que seria a representante mais típica do ideal de sua classe.
“Esta ação, se eu a pratico, será uma má ação” – mas, segundo qual ponto de vista? Segundo meu ponto de vista pessoal? Mas, de onde me vem este “ponto de vista pessoal”, senão da opinião daqueles que me educaram, de meus colegas de escola, dos autores dos livros e dos jornais que eu li, dos oradores que eu escutei em conferências e em salas de aula? Se eu renuncio a esta visão de mundo própria do grupo social ao qual eu pertencia até então, é unicamente porque a ideologia de um outro grupo social terá investido na minha consciência, a terá invadido e obrigado ao reconhecimento da legitimidade da realidade social que a produziu.
“Esta ação, se eu a pratico, será uma má ação” – esta “voz da minha consciência” deveria, na realidade, fazer compreender o seguinte: “Esta ação, se você a pratica, será uma má ação do ponto de vista de outras pessoas, que são os mais eminentes representantesda classe social à qual você pertence”.
Pode parecer que este ponto de vista não é percebido como imperativo e definitivo: nós podemos, de fato, conceber que aí exista uma discussão, até mesmo polêmica com este ouvinte-interlocutor invisível. Tomemos como exemplo o caso-limite de uma individualidade em conflito com a sociedade: tanto mais seja grande sua aversão, mais suas tentativas de impor seu “eu” individual, sua “vontade própria” – segundo a expressão de um dos heróis de Dostoïevsky – serão violentas, e mais evidente será a forma dialógica de seu discurso interior, mais manifesto o ódio em um só e mesmo fluxo verbal de duas ideologias, dois pontos de vista de classes que se opõem.
Assim, a aversão violenta que qualquer “sabotador” sente em relação à classe proletária, assim como a hostilidade surda por quem é “cidadão mecanicamente” não exprimem de forma alguma a independência ou a auto-afirmação livre de suas individualidades. Seus monólogos, pronunciados a alta voz ou in petto, são necessariamente sustentados pela simpatia de supostos ouvintes – o público invisível que forma os restos de uma classe totalmente destruída. É exatamente segundo o ponto de vista próprio deste resto que se constituem todos os enunciados de suas individualidades: são suas opiniões presumidas, suas avaliações, que vão determinar a entonação da voz, seja interior ou não; e vão determinar também a escolha das palavras e sua distribuição na organização de um enunciado concreto. As exclamações as mais banais pronunciadas mentalmente – por exemplo, para marcar indignação: “Veja só você...”; ou para exprimir raiva: “Não, saiba você que...” – são endereçadas a um ouvinte virtual – aliado, testemunha simpatizante ou juiz reconhecido.
Existem, logicamente, casos mais complexos nos quais o discurso interior se exprime por dois caminhos contraditórios, mas sem que um dentre eles seja dominante; isto se dá quando a individualidade está dividida e não sabe que escolha realizar.
Situações desse tipo, características de certas épocas, testemunham a existência de um conflito entre duas classes sociais de igual força, e que lutam para ser, cada uma delas, a figura dominante no interior da história futura. Um tal conflito encontra-se, então, transferido para a arena da consciência individual.
Resta, ainda, um último caso, que é aquele de uma individualidade que perdeu seu ouvinte interior; assiste-se, então, à dissolução, no interior da consciência, de todo ponto de vista sólido e estável. O sujeito não possui mais referências e sua conduta social não é senão o efeito de impulsos e de tendências absolutamente contingentes, irresponsáveis e arbitrárias. Assiste-se, assim, a um fenômeno de cisão de natureza ideológica, da individualidade com o seu meio social; este é o resultado habitual de uma “des-classilização” do indivíduo. Em certas condições sociais particularmente desfavoráveis, quando a individualidade é, desta forma arrancada, do meio social que a nutriu, isto pode a médio ou longo prazos conduzir a uma desagregação total da consciência, à loucura ou à idiotia.
E é aí que se pode observar os conflitos mais violentos entre discurso interior e discurso exterior.
Quando a individualidade vacila fora da vida social, quando o sistema de valores e os pontos de vista familiares são destruídos, nada mais resta na consciência que possa representar a expressão de uma conduta social produtiva e ideologicamente justificada por uma instância superior cuja autoridade seja reconhecida. O mundo de novas palavras e de novas significações, este mundo nascido “das chamas e da luz” revolucionárias, não menos que o novo modo de ser social, tudo isto restou aquém da consciência, fora do seu campo, e ela não pode assimilá-lo. Quanto às palavras antigas, elas deixaram de corresponder à realidade, de constituírem signos e símbolos: a personalidade é deixada à deriva de seus estados de alma, de suas impressões que são, a esta altura, em sua maioria, estranhas às expressões lingüísticas em uso na sociedade. Na medida em que esses estados de alma e essas impressões não são mais definidas por um modo de formação e de expressão de natureza ideológica – eles se voltam para as camadas mais baixas da consciência vivida, as quais fazem fronteira com o estado fisiológico do organismo – eles tendem a se reagruparem em torno de um único centro.
A individualidade é, pois, perdida no mundo social; mas ela se reencontra, então, no mundo de suas pulsões sensuais, de sua natureza em estado bruto. Tudo se organiza, desta forma, não em torno da vida social e dos seus centros de interesse ditos espirituais, mas em torno da via sexual e dos centros de interesses eróticos. Os períodos de crise e de decadência, que são acompanhados de mudanças profundas no interior das relações econômicas e políticas, conhecem este triunfo do “homem animal” sobre o “homem social”. Tanto mais se penetra profundamente na ideologia da classe condenada, mais este motivo se reforça. O sexual torna-se um sucedâneo – a contrafação, a falsificação – do social. O amor sob sua forma mais elementar, fisiológica, é declarado valor supremo e seus representantes literários, a consciência empodrecida da inteligência burguesa da Europa Ocidental, se esforça por promover um “novo” Evangelho: “No início era o sexo” (Przibyzewski).
A literatura russa já deu exemplos perfeitos deste tipo de homem social, onde a individualidade torna-se a presa de uma pulsão sexual exclusiva e devorante. Estes exemplos, nós os encontramos, sobretudo, em Dostoévski (em um diferente contexto de classe, evidentemente); nós os analisaremos futuramente, quando do estudo da estrutura do monólogo e do diálogo na obra literária. Entretanto, nós consideramos ter sido oportuno nos deter por tanto tempo na questão do fundamento dialógico de todo discurso da vida quotidiana e das suas relações com um ouvinte interior virtual ou realmente presente, porque nós quisemos dar ao escritor iniciante um esclarecimento rigorosamente materialista e marxista sobre os problemas que são freqüentemente abordados sob um ângulo excessivamente psicologista, talvez abertamente idealista, que falseia a abordagem. O escritor deve compreender as causas e as condições sociais que suscitam na vida real as características e as ações que são de seu interesse. O escritor não deve jamais esquecer, no momento em que ele elabora seu personagem, que a força expressiva da obra literária depende, em larga medida, do que existe de verdade sobre a vida dentro dela.
A impiedosa dialética dos eventos sociais, o implacável encadeamento de causa e efeito, devem ser, tanto na vida como no romance, idênticos.
4. A Orientação Social do Enunciado
Voltemos, agora, ao nosso objetivo específico.
Nós sabemos que todo discurso é um discurso dialógico orientado em direção a alguém que seja capaz de compreendê-lo e dar-lhe uma resposta, real ou virtual. Esta orientação em direção ao “outro”, em direção ao ouvinte, conduz necessariamente a se levar em conta a relação social e hierárquica que existe entre os interlocutores. Nós já mostramos, em nosso artigo precedente, as modificações que se produzem na forma do enunciado de acordo com a situação do locutor e do ouvinte, e de acordo com o todo do contexto social do enunciado. Nós propomos chamar de “orientação social” do enunciado, esta dependência do enunciado face ao peso hierárquico e social do auditório (isto é, tendo em vista a(s) classe(s) social(is) a qual pertence(m) os interlocutores, sua situação financeira, sua profissão, sua função; ou ainda, como era o caso da Rússia anterior à reforma de 1861, em face do número de camponeses que eles possuíam, seu capital, etc.). 
Esta orientação social estará presente em todo enunciado verbal ou gestual – a mímica, por exemplo -, qualquer que seja a forma que ele adote: o monólogo – um homem falando para si mesmo – ou o diálogo – duas ou mais pessoas participando de uma conversa. A orientação social é precisamente uma das forças vivas e constitutivas que, ao mesmotempo em que organizam o contexto do enunciado – a situação -, determinam também a sua forma estilística e sua estrutura estritamente gramatical. �
E é justamente na orientação social que se encontra refletido o auditório do enunciado, seja ele realmente presente ou simplesmente pressuposto, fora do qual nenhum ato de comunicação verbal se desenvolve nem pode se desenvolver.
O escritor que não cria unicamente os enunciados de seus personagens, mas cria igualmente o seu aspecto exterior, tem interesse em observar que aquilo a que se chama de “boas maneiras” – o modo de comportar-se em sociedade – nada mais realiza do que “a expressão gestual da orientação social do enunciado”.
Esta manifestação exterior e física da conduta social – o movimento das mãos, a pose, o tom da voz -, que acompanham habitualmente o discurso, é, antes de mais nada, determinado pela consideração do auditório e pela sua avaliação. O que significam as “boas maneiras” de Tchitchkov – maneiras que, inclusive, tomam diferentes formas se ele se encontra com Korobotchka, com Pliouchkine ou com o general Betrichtchev -, senão que elas são a impressão gestual de uma constante consideração do auditório, de uma avaliação sutil da situação social do seu interlocutor, que são a própria essência do seu caráter e representam a condição necessária ao sucesso de suas iniciativas?
A palavra, o gesto da mão, a expressão do rosto e a postura do corpo são igualmente submissas à orientação e por ela estruturadas; as “más maneiras” refletem o fato de que não se leva em conta o interlocutor, refletem a ignorância acerca do laço social e hierárquico existente entre o locutor e o ouvinte �, e o hábito, quase sempre inconsciente, de não se modificar a orientação social dos seus enunciados – sejam expressos em palavra ou em gesto – enquanto as condições sociais e o auditório se encontram modificados.
Esta a razão pela qual o escritor, quando decide dotar um de seus personagens de “boas” ou “más” maneiras, deve sempre considerar que estas maneiras não são explicáveis como mero resultado de “algumas particularidades inatas” ou como expressão do seu “caráter”. Pode-se afirmar que, a rigor, o personagem é devedor de sua educação, mas não se pode esquecer que a educação corresponde ao esforço por habituar a pessoa a sempre levar em conta seu auditório – dá-se a isto o nome de “saber se comportar socialmente” -, a exprimir pelo gesto ou pela mímica, mas de modo conforme e prudente, a orientação social dos seus enunciados.
5. O Lado Extra-Verbal (Subentendido) do Enunciado
		Todo enunciado, além da sua orientação social, comporta um sentido, um conteúdo. Se é privado deste conteúdo, o enunciado transforma-se em um arranjo de sons que nada significam, e ele passa a não mais caracterizar uma interação verbal. O “outro”, o ouvinte, nada pode fazer: o enunciado permanece inacessível à compreensão e deixa de constituir a condição e o meio de comunicação lingüística. O “poema” de Kroutchënyck, citado no nosso artigo precedente, é exatamente o exemplo desse tipo de “enunciado” purificado de todo sentido: “Go osneg kaïd Mr batul’ba...”, etc. Enunciados deste gênero são, sem dúvida, interessantes em razão de sua sonoridade, mas eles nada têm a ver com a linguagem stricto sensu, e por tal razão, eles não fazem parte de nosso estudo.
		Todo enunciado real, verdadeiro, possui um sentido. Mas, se nós tomarmos um enunciado qualquer, dentre os mais freqüentes – dentre as “frases já feitas”, por exemplo -, nós veremos que nem sempre é possível compreender o seu sentido. A maior parte de nossos leitores terá, certamente, ouvido, e mesmo pronunciado frases tais como: “Que história!”; e, no entanto, ainda que nós “quebremos a cabeça”, o sentido de tal enunciado permanecerá obscuro se nós não conhecermos o conjunto das circunstâncias nas quais ele foi pronunciado. Pois é de acordo com as circunstâncias, de acordo com o contexto, que este enunciado terá um sentido, a cada vez, diferente.
		Deixemos a nossos leitores a missão de buscar, eles próprios, exemplos onde a mesma expressão verbal – a nossa “Que história!” – possa ter sentidos radicalmente diferentes – significando em um momento estupefação, em outro momento indignação, ou ainda alegria ou mesmo tristeza. Isto significa dizer, em outras palavras, que tal expressão representará nossa resposta, nossa réplica, a situações e a eventos totalmente diversos. Quase todas as palavras de nossa língua têm inúmeras significações em função do sentido do enunciado por inteiro; sentido que depende, ao mesmo tempo, das circunstâncias imediatas que suscitaram o enunciado, e das causas sociais mediatas que estão na origem do ato de comunicação verbal considerado.
		Todo enunciado parece, conseqüentemente, ser constituído de duas partes: uma parte verbal e uma parte extraverbal.
		Não esqueçamos que o que nós aqui examinamos são os enunciados da vida quotidiana, fixados – ou em processo de fixação – em gêneros determinados aos quais correspondem.
É apenas ali, nos enunciados mais simples, que nós encontraremos a chave da estrutura lingüística dos enunciados literários.
		O que é, então, a parte extraverbal do enunciado?
		Nós a compreenderemos facilmente se considerarmos o seguinte exemplo: “O homem de barbicha grisalha, que se encontrava sentado em uma mesa, disse, depois de um momento de silêncio: “Pois sim!” O adolescente que se mantinha de pé a sua frente, enrubesceu violentamente, virou-se e deixou o local”.
		O que pode significar este “Pois sim!” ? enunciado lacônico mas, ao que parece, altamente expressivo. Nós podemos realizar, sob todos os seus aspectos, uma análise gramatical; nós podemos procurar nos dicionários todos os sentidos possíveis desta palavra e, ainda assim, nos será impossível compreender esta conversação.
		Entretanto, ela foi entabulada de forma plena de sentido; trata-se de um verdadeiro e completo diálogo, ainda que breve: sua primeira réplica (verbal) é constituída por “Pois sim!”; quanto à segunda parte (extraverbal) do enunciado, ela constitui-se na reação orgânica (o rosto do adolescente que se torna rubro) e no gesto (a sua retirada sem qualquer palavra).
		Então, por que nossa dificuldade?
		Porque nós ignoramos tudo o que constitui a segunda parte (extraverbal) do enunciado, enquanto que é esta que determina o sentido da sua primeira parte (verbal). Nós ignoramos, antes de mais nada, onde e quando se processa tal conversação; em seguida, nós desconhecemos o seu objeto; e, finalmente, nós nada sabemos da posição de cada um dos interlocutores em relação a este objeto nem das respectivas avaliações que eles portam sobre tal objeto.
		Suponhamos que estes três componentes da parte extraverbal do enunciado deixem de nos ser desconhecidos; nós sabemos que o fato ocorreu durante uma prova; o candidato não respondeu a nenhuma das questões, ainda que simples, que o examinador lhe propôs; este último, instalado em seu bureau, diz “Pois sim!”, com um ar de reprovação e uma ponta de compaixão; o candidato compreende que o examinador o reprovou, ele sente vergonha, e ele deixa a sala.
		Agora, todos os aspectos dissimulados do enunciado – mas que os locutores conhecem, ainda que se trate de subentendidos – nos são revelados. Este pequeno “Pois sim!”, inicialmente vazio e desprovido de significação, ganha sentido. Ele adquire uma significação perfeitamente determinada passível de – se se deseja -, ser decifrada sob a forma de uma frase determinada, clara e completa; assim por exemplo, “Você foi mal, muito mal meu camarada! Eu sinto muito, mas eu não posso lhe dar a nota necessária”. É exatamente assim que o candidato compreende o enunciado “Pois sim!”, e ele está de acordo com o que ele significa.
		Estes três aspectos subentendidos formam a parte extra-verbal do enunciado - a saber, o espaço e o tempo do evento, o objeto ou o tema do enunciado (aquilo de que se fala), e a posição dos interlocutores diante do fato (a “avaliação”); nós convencionamos designar o conjunto assimformado, pelo termo já familiar de situação. 
		Nós vemos agora, claramente, que é precisamente a diferença das situações que determina a diferença de sentidos de uma única e mesma expressão verbal. A expressão verbal – o enunciado – não se limita a refletir passivamente a situação; ela constitui, de fato, sua resolução, ela completa a avaliação, e ela representa, ao mesmo tempo, a condição necessária ao seu posterior desenvolvimento ideológico.
		Nós propusemos aos nossos leitores operar mudanças no sentido da expressão “Que história!”, o que significaria localizar situações nas quais tal expressão teria, a cada vez, um diferente sentido. Para maior clareza, nós vamos mostrar, agora, as mudanças de sentido que podem ocorrer com a expressão “Pois sim!”.
		Modifiquemos, de início, a situação: no lugar de uma sala de aula, consideremos o guichet de um banco. O caixa está atando, em um pacote, diversas cédulas de dinheiro, provenientes de lucros obtidos por uma pessoa, e, em voz quase inaudível, ele pronuncia “Pois sim!”. Nesta nova situação, o sentido geral do enunciado não é mais a expressão de uma reprovação, é mais a de uma admiração misturada a inveja: “Tem gente que tem sorte! Não é todos os dias que se pode ganhar tal importância!”.
		Tudo isto nos mostra que a situação tem um papel predominante na formação de um enunciado. Sem o liame que a situação cria entre os locutores, sem uma proximidade do evento que lhes é comum, e sem a posição de cada um face a este evento, as palavras pronunciadas por um seriam ininteligíveis para o outro, destituídas de sentidos, desprezáveis. É unicamente porque existe alguma coisa de “subentendida” que a comunicação e a interação verbal se tornam possíveis.
		Nós voltaremos, posteriormente, ao papel desempenhado pela dimensão do subentendido no enunciado literário. Por enquanto, observemos que não existe enunciado – seja de natureza científica, filosófica ou literária – que possa abrir mão de uma certa parcela de subentendido.
6. Situação e Forma do Enunciado: Entonação, Escolha e Disposição das Palavras.
Nós estabelecemos que o sentido de todo enunciado quotidiano depende da situação e esta determina, por sua vez, a orientação social em direção ao ouvinte que participa da situação. Nós iremos proceder, agora, ao exame da forma do enunciado. É evidente que o conteúdo e o sentido de um enunciado não podem se realizar e se concretizar senão dentro de uma forma, sem a qual eles não existiriam. Mesmo nos casos onde o enunciado se apresentasse destituído de palavras, restaria, no mínimo, o som da voz (a entonação) ou até mesmo um único gesto. Fora da expressão material, não existe enunciado e não existe afeto.
Na medida em que nós nos ocupamos de enunciados verbais, nosso problema será, primeiramente, definir os liames existentes entre a forma verbal do enunciado, sua situação e seu auditório. Nós não abordaremos, no momento, a questão da forma artística.
Os elementos fundamentais que organizam a forma do enunciado são a entonação (o timbre expressivo da palavra), em seguida a escolha lexical e, finalmente, sua disposição no interior do enunciado como um todo.
Estes três elementos, que servem à construção de todo enunciado inteligível – que possui um conteúdo e é socialmente orientado -, serão aqui examinados de forma sucinta e preliminar; nós os retomaremos adiante, quando da análise, central em nosso estudo, da estrutura do enunciado literário.
Existe um provérbio muito comum de que “é o tom que faz a música”. Pois bem, é o tom – aqui tomado como entonação – que “faz a música” de todo enunciado – isto é, seu sentido geral, sua significação global. Uma única palavra, uma única expressão apresenta diferentes significações de acordo com a entonação que lhe é dada. Uma palavra agressiva pode se transformar em uma palavra gentil e vice-versa: (a) “Espere um pouco, meu querido, e você vai ver com quantos paus se faz uma jangada”; a afirmativa pode se transformar em uma interrogativa ou em uma exclamativa: (b) “Sim?” e “Sim!”; e a concessão pode se tornar reclamação: (c) “Desculpe, você está pisando no meu pé!” �
A situação e seu respectivo auditório determinam a entonação através da qual se realizam a escolha e a ordenação das palavras, fazendo com que o enunciado ganhe sentido próprio. A entonação desempenha o papel de um guia particularmente sutil e sensível no interior das relações sociais que, em uma determinada situação, se estabelecem entre o locutor e o ouvinte. Nós já mostramos, anteriormente, que o enunciado é a resolução da situação e que ele completa a avaliação; quando nós assim o dissemos, nós estávamos pensando, sobretudo, na entonação do enunciado. Sem estender excessivamente nossa linha de pensamento, nós afirmamos que a entonação é a expressão fônica da avaliação social. Nós teremos a chance, no momento oportuno, de demonstrar a importância primordial desta assertiva. Limitemo-nos, no momento, a citar um exemplo que ilustra bem nossa idéia.
“É necessário notar que na Rússia, se nós nos encontramos ainda, em certas coisas, atrasados em relação aos estrangeiros, nós os ultrapassamos em muito na arte da formulação. É impossível enumerar as nuanças, as sutilezas de nossa conversação. O francês e o alemão não compreenderiam jamais todas essas diferenças e particularidades; se bem que no fundo de seus corações eles se curvem diante de um milionário, eles lhe falam usando o mesmo tom de voz que usam quando se dirigem a um pequeno comerciante de uma lojinha de cigarros. Isto não se passa da mesma forma entre nós. A um dono de 200 “âmes”� nossos inescrupulosos recitam uma ladainha diversa daquela reservada a um dono de 300 “âmes”; eles não mantêm a mesma linguagem para um dono de 500 “âmes” e o acento varia ainda para o portador de 800 “âmes”; avancemos para os milhões e eles encontrarão ainda novas nuanças. Suponhamos que exista uma empresa – não aqui, mas em outro ponto extremo do mundo. Peguemos um chefe desta empresa; olhemos-no reinar em meio aos seus subordinados: o medo nos deixará mudos. Seu semblante transmite nobreza e orgulho. Sabe Deus mais o quê! Ele poderia posar como um Prometeu! Que exterior majestoso, que postura imponente! Dir-se-ia uma águia. Mas apenas saído de sua sala, com papéis debaixo do braço, para ir ao gabinete do diretor, a águia se faz perdiz. Em sociedade, se as pessoas presentes lhe são hierarquicamente inferiores, Prometeu permanece Prometeu. Mas basta que ele se encontre diante de um extrato ligeiramente superior, meu Prometeu sofre uma metamorfose que o próprio Ovídio jamais criou: ele se torna uma mosca, menos que uma mosca, um grão de areia! “Não pode ser Ivan Pétrovitch! - diria você olhando para ele. Ivan Pétrovitch não ri nunca, ele tem um porte imponente e a voz sempre alta, enquanto que esse franzino ri o tempo todo e grasna como um pássaro”. Aproxime-se, e você reconhecerá Ivan Pétrovitch. “Eh, eh!!” sonharia você...”
Neste extrato de “Ames mortes”, Gogol mostrou, com precisão, a mudança brutal de entonação que se produz no momento em que a situação e o auditório do enunciado se modificam. Na Rússia da subserviência, da burocracia e do poder policial, enquanto tudo o que havia de honestidade, de honra e de liberdade estava sufocado, a desigualdade social dos homens se fazia sentir de modo particularmente agudo. Esta desigualdade encontrava sua mais direta expressão na infinita variedade de nuanças de entonação, indo da arrogância estúpida ao servilismo degradante. Não era apenas a voz, mas todo o corpo do homem que se revestia desta entonação – seus movimentos, seus gestos, sua mímica. Na realidade, “a águia se tornava perdiz”.
A modificação do auditório – relações de trabalho e relações privadas, não mais com subordinados, mas com superiores hierárquicos – provocou uma mudança na orientação social do enunciado. E, como nós o vemos, isto é imediatamente traduzido na entonação (a forma de falar) e na gesticulação (o modo de se conduzir).� Se, no extrato citado, Gogol houvesse igualmente introduzidoa expressão verbal dos enunciados de Ivan Pétrovitch, nós teríamos podido constatar que a mudança de orientação social, que é conseqüência da mudança de situação e de auditório, não estaria simplesmente refletida na entonação, mas também, através desta, na escolha das palavras e na sua disposição no interior das frases. Não esqueçamos que a entonação representa, antes de tudo, uma avaliação da situação e do auditório. Esta a razão pela qual cada entonação exige a palavra que lhe corresponde, que lhe “convém”, e ela atribui a esta palavra esse ou aquele lugar no interior da proposição, e à proposição este ou aquele lugar no interior da frase, e à frase este ou aquele lugar dentro do enunciado como um todo.
Em uma outra passagem de “Ames mortes”, o da cena na qual Tchitchikov conhece Pliouchkine, nós encontramos representado, de forma bastante precisa, o processo que conduz à escolha de uma palavra, da palavra que seja a mais apta a descrever as relações sociais do locutor e do ouvinte, e que retém com grande sutileza todos os detalhes que compõem o perfil social do interlocutor – sua riqueza, seu status, sua posição social, etc. Assim:
“Durante alguns minutos, Tchitchikov permaneceu plantado diante de Pliouchkine, silencioso; desconcertado pelo aspecto heteróclito do alojamento do mestre, ele permanecia incapaz de entabular uma conversação, não sabendo em que termos explicar o motivo da sua visita. Ele ia dizer a Pliouchkine que a fama de sua virtude o havia incitado a pagar-lhe, pessoalmente, um tributo sob a forma de homenagens, mas uma última olhadela no bric-à-brac o convenceu que a palavra virtude seria vantajosamente substituída por ordem e economia. Ele se recompôs rapidamente e declarou que tendo ouvido falar do seu espírito de economia e da sua habilidade em gerir seus bens, ele havia julgado ser bom vir em pessoa assegurá-lo acerca do respeito que lhe tinha. Ele teria podido, sem dúvida, invocar um melhor pretexto, mas ele não encontrou nenhum outro naquele momento”.
Assiste-se aqui, na consciência de Tchitchikov, a um debate que diz respeito à escolha da palavra mais apropriada. Foi-lhe necessário avaliar a relação entre, de um lado, a desordem abominável, a sujeira que reinava na casa de Pliouchkine, os trapos repugnantes com os quais ele estava vestido, e, de outro lado, sua posição de proprietário de terras imensamente rico, possuindo mais de mil “âmes”.
Na realidade, Tchitchikov terminou por se restabelecer frente à situação. Compreendendo-a, avaliando-a corretamente, ele conseguiu encontrar uma entonação justa e as palavras que lhe correspondem. Dispor estas palavras no interior de uma frase acabada não passa, então, de um jogo de criança. Dadas a situação e o ouvinte, não se faz nem um pouco necessário proceder a uma elaboração estilística particular; é possível se contentar com uma forma de expressão já feita, generalizante e estereotipada: “tendo ouvido falar de seu espírito de economia e da sua habilidade em gerir seus bens, ele havia julgado ser bom vir em pessoa assegurá-lo acerca do respeito que lhe tinha”.
7. Estilística do Enunciado Quotidiano
	Em uma outra passagem, Tchitchikov deve resolver um problema que não é apenas da escolha de palavras, mas, sobretudo, o da sua disposição e da construção global de seu enunciado. Seu interlocutor não é mais Pliouchkine, mas o general Betrichtchev. A importância social de Betrichtchev, sua patente de general, seu aspecto imponente, forçam Tchitchikov a construir um enunciado extremamente elaborado. Sem falar da entonação de suas frases, provavelmente muito respeitosas e um pouco solenes, a escolha das palavras que Tchitchikov faz indica a sua vontade de compor um discurso feito de termos livrescos, arcaicos, “nobres”.
	Em uma tal situação, a determinação da escolha das palavras procede, para Tchitchikov, de um princípio muito simples: a posição social eminente de seu interlocutor exige o emprego de um vocabulário elevado, de palavras escolhidas, de um estilo igualmente “elevado”, nobre. As palavras que ele freqüentemente utilizava quando de suas conversas com proprietários de terras de média importância e com funcionários subalternos lhe parecem, neste momento, inadmissíveis. E não se trata unicamente das palavras. A disposição destas deve ser particular, ele deve procurar no discurso um encadeamento regular, ritmado, ou seja, dar-lhe um caráter musical e poético. Não é suficiente expor de forma clara e simples seu pensamento: é necessário orná-lo com comparações, floreá-lo com expressões escolhidas, elaborar uma espécie de obra de arte, como se fossem versos.
	“Com a cabeça respeitosamente inclinada... ele profere: Pleno de respeito pela virtude dos bravos que salvaram a pátria nos campos de batalha, foi-me um dever apresentar-me a Vossa Excelência”.
	Esse preâmbulo pareceu satisfazer ao general. Após uma inclinação de cabeça das mais indulgentes, ele diz: 
	“Encantado por conhecê-lo. Venha sentar-se. Onde o senhor serviu?
	- Minha carreira começa nas finanças, respondeu Tchitchikov, sentando-se em uma poltrona, não no seu interior, mas atravessado, com o braço apoiado sobre o braço da poltrona. Ela se seguiu por inúmeros lugares: em tribunais, alfândegas, até mesmo numa empresa de construção. Minha vida, Excelência, pode ser comparada a um navio vagando sobre ondas. Envolto, encouraçado de paciência, por assim dizer, a encarnação da paciência. Quanto aos inimigos que atentaram contra minha vida, nem as palavras, nem as cores, nem mesmo os pincéis poderiam dela dar uma idéia, de modo que no declínio de meus dias, se ouso assim me exprimir, tudo o que eu procuro é um recanto onde possa passar os dias que de vida me restam”.
	Quais são os traços mais característicos na construção de tais enunciados? Nós deixamos de lado a substância do discurso de Tchitchikov, que se destaca do conjunto da obra; nós não consideramos senão a forma, sem esquecer nossa suposição que faz dele, não uma obra literária – cuja estilística será estudada posteriormente - mas um enunciado real, emitido por um personagem real, em circunstâncias reais.
	O procedimento que consiste em analisar um enunciado literário como se se tratasse de um enunciado quotidiano e atestado na história é, evidentemente, perigoso de um ponto de vista científico, e ele não pode ser utilizado senão excepcionalmente. Mas face à ausência de um registro gravado, que nos teria fornecido um documento autêntico sobre a conversação de personagens vivos, é necessário recorrer ao material literário, levando em conta, naturalmente, sua natureza específica.
	Consideremos, portanto, no momento, que a ficção que reflete a vida é a vida ela própria, sem nos ocuparmos da questão de saber se existem semelhanças entre a realidade artística de Ames mortes e a realidade histórica da vida na Rússia nos anos 1820-1830. Admitamos que tenha chegado a nossas mãos, um século depois, a conversação entre um personagem extremamente digno, considerável e imponente, o general Betrichtchev, e um outro personagem, menos importante, o conselheiro do Colégio Tchitchikov. 
		Para ser fiel a este esquema, nós deveríamos, inicialmente, verificar a relação de dependência existente entre o conjunto da situação econômica e política na Rússia àquela época e o tipo de comunicação social que nós submetemos à análise. Mas, nós não podemos proceder assim, pois isto implicaria passar da economia e da política reais a um tipo de comunicação social tal como ela é representada em uma obra literária. Nós podemos, entretanto, sem risco de errar, supor que a relação de dependência que existe entre a “infra-estrutura” econômica - a base econômica da sociedade e o tipo de comunicação quotidiana reproduzida no “poema” de Gogol, é medida segundo a importância que ela teria tido na vida real; nós diremos a mesma coisa da relação de dependência existente entre um tipo de comunicação quotidiana e o modo de interação verbal ali inscrito.
		Resta-nos, pois, demonstrar como uma situação e um auditório dados encontram suaexpressão na construção de um gênero quotidiano já determinado e acabado: o diálogo entre dois personagens situados em diferentes escalas da hierarquia social que são apresentados um ao outro.
		A situação e o auditório determinam, nós já o dissemos acima, a orientação social do enunciado e, obviamente, o sujeito da conversação. A orientação social, por sua vez, determina a entonação da voz e a gesticulação, que dependem, por seu turno, do sujeito da conversação, e onde encontram sua expressão tanto a relação do locutor com a situação dada e com o ouvinte, como a avaliação que o locutor faz destes dois últimos termos.
		Mas qual é o conteúdo, a substância temática dos enunciados de Tchitchikov? O extrato citado comporta dois temas: primeiro tema, “a exposição dos motivos de minha visita”; segundo tema, “a descrição de minha vida”.
		Esses dois temas são modulados segundo entonações de respeito e humildade extremas. É verdade que nós apenas podemos supor as entonações de Tchitchikov: elas não são dadas com o “discurso do autor”, que intervém nas proposições de seus personagens. Entretanto, se nós consideramos as indicações presentes no “discurso do autor” sobre o que exprime de modo gestual a orientação social dos enunciados de Tchitchikov (“a cabeça respeitosamente inclinada... sentando-se em uma poltrona, não no seu interior, mas atravessado, com o braço apoiado sobre o braço da poltrona”), nós podemos assegurar que a entonação de Tchitchikov corresponde perfeitamente a esta “águia que se faz perdiz”.
		A escolha das palavras é feita em harmonia com tal entonação. Inicialmente, nós já o remarcamos, são palavras livrescas e “nobres” que dominam. Notar-se-á, em seguida, a freqüência de palavras e expressões com “valor descritivo” que substituem os termos usualmente utilizados para designar esse ou aquele objeto. Finalmente, pode-se remarcar a ausência quase total do pronome “eu”.
		A primeira troca de réplicas entre Tchitchikov e o general Betrichtchev desvela por si mesma as verdadeiras relações sociais que existem entre os interlocutores e que determinam o estilo das suas proposições. É verdade que Tchitchikov não tem muita possibilidade de proceder, em sua réplica, a uma escolha extensa e original de palavras. Um gênero de comunicação quotidiana deste tipo – gênero historicamente constituído e acabado – não deixa, de fato, senão um pequeno espaço para variações livres. Tchitchikov consegue introduzir nuanças nas fórmulas tradicionais de apresentação - verdadeiros clichês -, e transformá-las não apenas sob o plano semântico, mas também gramatical, de tal modo, que a distância social entre os interlocutores é ainda mais sublinhada pela única expressão verbal ali formulada. 
 	A intenção estilística de Tchitchikov consiste, portanto, em, sobretudo, construir seu enunciado de modo que a sua pessoa apareça o menos possível e se torne apenas perceptível. O sentido literal de sua primeira frase é, por exemplo: “Vossa Excelência! Eu acreditei ser meu dever me apresentar, uma vez que eu sinto um profundo respeito... etc.”
O que se torna esta frase em Tchitchikov? Ele omite o pronome pessoal, emprega o verbo no passado e encurta a frase substituindo o apóstrofo por um complemento de objeto indireto: “Ce m’a été un devoir de me presenter à votre Excelence...” (“foi-me um dever apresentar-me a Vossa Excelência...”).
O resultado é uma curiosa marca semântica que sublinha a insignificância de Tchitchikov e a importância considerável de seu interlocutor; a frase adquire, assim, um sentido ligeiramente diferente, o qual poderia ser expresso da seguinte maneira: “Acreditou-se ser seu dever apresentar-se...”. Por que o uso da partícula “se”? simplesmente porque Tchitchikov é ainda desconhecido do general e não tem porque se fazer conhecido: “É necessário que sejam conhecidos o nome e o sobrenome de um homem que não se distinguiu por grandes virtudes?”, pergunta o mesmo Tchitchikov um pouco adiante. E por que Tchitchikov diz ainda “me foi um dever” em lugar de dizer “eu acreditei ser meu dever”? Simplesmente porque à fraca luz da consciência que se tem de um tal dever supõe que se pense nele como algo já cumprido. E eis que o feliz evento se realiza, não mais apenas em pensamento, mas na realidade: ele, um desconhecido, encontra-se ali, diante de um personagem da mais alta importância, e ele espera respeitosamente o resultado de sua ousada iniciativa.
	Também a fórmula verbal estereotipada de apresentação, utilizada por Tchitchikov, adquire um sentido novo; ela adquire novas cores estilísticas e ela reflete, com em um espelho, as relações sociais hierarquizadas que existem entre os interlocutores. E se nós conseguimos perceber todas estas novas nuanças de seu pensamento, se nós pudemos compreendê-las e pô-las em evidência, foi graças ao conhecimento da parte extra-verbal do enunciado.
	Vamos, então, ainda mais longe. Pode parecer que a empreitada levada a cabo por Tchitchikov seja mesmo excessivamente audaciosa. Parece, portanto, indispensável dar-lhe de imediato um fundamento e uma justificação. Este é exatamente o objeto da frase seguinte, onde não se encontra qualquer alusão gramatical à pessoa do locutor; seria, realmente fora de lugar por em evidência sua própria existência pelo emprego intempestivo do pronome pessoal, sobretudo numa frase prolixa como: “Pleno de respeito pela virtude dos bravos que salvaram a pátria... me foi um dever apresentar-me...” Dada a posição social ocupada por Tchitchikov em relação ao seu interlocutor, seus enunciados devem ser igualmente marcados pela discrição, brevidade e elevação de estilo, e não podem deixar de suscitar a consciência de estar na presença do general Betrichtchev em pessoa! Tchitchikov é um penetra, um aventureiro enganador e inteligente: ele não sabe senão bem se equilibrar sobre a corda da sensibilidade de seus interlocutores. A frase que ele preparara, longa e relativamente desenvolta, encurta-se rapidamente: os pronomes pessoais desaparecem, a designação precisa dos objetos é substituída por expressões descritivas: “Cheio de respeito...”, por que? Pela coragem? Não, é claro, pela “virtude”. A virtude de quem? Dos generais? Não, dos “bravos”. Que bravos? Aqueles que defenderam a Rússia? Não, aqueles “que salvaram a pátria”. Onde? Nas batalhas? Não, “nos campos de batalha”,
	Estas razões podem parecer, assim, suficientes para justificar a ação audaciosa de Tchitchikov, tanto mais que elas são formuladas com graça e convicção – do ponto de vista de Tchitchikov e do general, exclusivamente, é claro. E porque a proposição que fecha este fragmento renasce sob um novo dia, por meio da repetição a primeira frase de Tchitchikov “me foi um dever...” alcança um novo grau com a introdução da palavra “pessoalmente”. Esta palavra “pessoalmente”, cuja aparição é cuidadosamente preparada pela exposição de todos as razões que tem Tchitchikov para se apresentar desse modo, sugere a possibilidade de uma passagem, ou de uma transferência, do conjunto do enunciado para um outro plano que seria aquele das relações mais pessoais e mais diretas. A resposta do general, com efeito, apesar de seu caráter lacônico, breve e estereotipado – dada a orientação social em direção a um interlocutor de status menos elevado – indica, entretanto, por sua entonação amigável que a manobra verbal de Tchitchikov surtiu efeito. O tema “exposição dos motivos de minha visita” pode, assim, ceder lugar ao tema “história de minha vida”. No enunciado que se segue, Tchitchikov pode, a partir desse momento, dirigir-se diretamente ao general, fazendo do seu título um complemento de objeto indireto, e introduzindo no seu discurso um certo número de pronomes possessivos: minha carreira, minha vida, etc.
	O desenvolvimento do segundo tema faz igualmente uso de um léxico livresco e envelhecido (techenie onoï), de expressões descritivas carregadas, de comparações – por exemplo, “Minha vida... pode ser comparada a um navio vagando sobre ondas...” – e de metáforas – “no declínio de meus dias”,para referir à velhice.
	Mas se estas metáforas e estas comparações são excessivamente vivas, elas correm o risco de marcar a singularidade individual do estilo de Tchitchikov, de parecerem um pouco adocicadas, e, desta forma, chamar excessivamente a atenção sobre a própria pessoa do locutor. Razão pela qual Tchitchikov as atenua através de fórmulas restritivas, como se ele buscasse desculpar-se junto a seu interlocutor: “Envolto, encouraçado de paciência, por assim dizer, a encarnação da paciência... de modo que no declínio de meus dias, se ouso assim me exprimir...”
Todos estes procedimentos não são, obviamente, para construir uma frase. A entonação que exprime a orientação social contribui apenas na determinação de critérios estilísticos segundo os quais palavras e expressões são escolhidas, mas elas não se limitam a lhe atribuir um ou outro sentido, ela indica igualmente o seu lugar no conjunto do enunciado e os distribui.
Nesta perspectiva, um papel particularmente interessante é dado ao título do general, isto é, às palavras “Vossa Excelência”. Em um primeiro sentido, trata-se da forma de tratamento utilizada para dirigir-se a uma pessoa portadora do título de general e ela deveria estar situada no início da frase. Entretanto, seguindo um hábito fortemente presente na conversação quotidiana, tem-se a tendência a colocá-la seja no fim da frase, seja no meio dela, ou, o que é mais comum, depois da primeira proposição. Ora, Tchitchikov coloca estas palavras sempre ao fim da frase; por conseguinte, como elas recortam a massa verbal em seqüências distintas, estas palavras desempenham um certo papel na composição do enunciado: elas constituem como que acordes finais das seqüências de enunciados. Elas vêm inicialmente terminar uma frase breve: “me foi um dever...”; em seguida, uma frase mais longa: “respeitando...”; enfim, na passagem narrativa, a distância entre tais palavras se torna cada vez maior.
O recurso a tal procedimento é, para nós, inteiramente explicável em Tchitchikov. As palavras “Vossa Excelência” sublinham, antes de mais nada, a significação social e hierárquica da parte extra-verbal do enunciado. Tanto mais a situação se desenvolve, mais estas palavras se encontram acentuadas e, progressivamente, a massas verbais destinadas à percepção avaliativa do general ganham amplitude.
Essas massas verbais fluem com uma grande regularidade, uma grande qualidade rítmica, excluindo qualquer monotonia. O discurso de Tchitchikov se articula em várias partes desiguais que acabam, cada uma delas, pelas palavras “Vossa Excelência”. Elas exigem, desta forma, por meio do lugar que ocupam na composição do conjunto, esta espécie de parada do fluxo oratório, a que se dá usualmente o nome de pausa.
Nós não temos ainda o direito de nos deter nos problemas da rítmica do discurso prosaico; entretanto, nós examinaremos uma particularidade estilística que caracteriza o modo próprio a Tchitchikov de “arrumar” as palavras em seu discurso.
A acentuação do ritmo no movimento de cada frase – no tema “exposição dos motivos de minha visita” – ou de cada grupo de frases que participam de um mesmo desenvolvimento semântico – no tema “história da minha vida” – encontra um tipo de acabamento e de repouso nas palavras “Vossa Excelência”, que constituem o que nós chamaremos, daqui por diante, de retomada verbal ou “refrão”.
A função deste refrão é sublinhar o fato de que o discurso é constantemente orientado em direção ao interlocutor – um interlocutor que, por sua função hierárquica, é um superior. Mas esta orientação leva em conta a situação e, ao mesmo tempo, o tipo de interação verbal, o gênero desta conversação; não se trata de um relatório, nem de uma prestação de contas, nem de uma petição dirigida a um general, mas de uma situação que consiste no seguinte: Sua Excelência, o general Betrichtchev, consentiu em estabelecer uma conversação com um simples mortal, uma pessoa insignificante, um qualquer chamado Tchitchikov. Uma situação diferente teria suscitado um gênero diferente e a frase em seu conjunto teria sido composta de outra maneira; as palavras “Vossa Excelência”, não seriam presentes no fim da frase, marcando, desta forma o acabamento de seu movimento rítmico, mas no seu início, como um preâmbulo e não mais como um refrão. O gênero, assim determinado por uma situação diferente – aquela, por exemplo, própria a uma prestação de contas ou a um relatório – teria exigido uma entonação diversa, mais seca e mais oficial. Esta situação teria igualmente motivado a presença de outros critérios na escolha e na distribuição das palavras; em síntese, a coloração estilística de toda a frase se encontraria modificada, pois o gênero da prestação de contas ou do relatório, que é determinado por um outro tipo de relação de comunicação social, não teria tornado possível uma distribuição rítmica de palavras similares àquelas que nós encontramos nos enunciados de Tchitchikov.
Na situação presente, em revanche, esta rítmica, um pouco sublinhada e artificial, é inteiramente cabível. Recebido privativamente pelo general, Tchitchikov deve se esforçar em seduzi-lo pelo refinamento de suas maneiras, por sua inteligência, por seu domínio da arte de falar – o que ele consegue brilhantemente. *
Nós tentamos mostrar o mais claramente possível a originalidade estilística do enunciado quotidiano de Tchitchikov, com sua entonação elogiosa e insinuante, com seu vocabulário cuidadosamente escolhido a fim de agradar seu interlocutor.
Esta originalidade estilística é inteiramente determinada por momentos puramente sociais: a situação e o auditório do enunciado.
Nós devemos permanecer aqui neste momento.
__________________________
* Nós omitimos aqui uma página do original, consagrado à análise do ritmo de duas frases no discurso de Tchitchikov.
� O presente estudo é o segundo de uma série de três (foi prometido um outro que lhe daria continuidade, mas que jamais foi publicado). O título geral da trilogia é “Estilística do Discurso Artístico”; o primeiro ensaio intitula-se “O que é a linguagem?” e o terceiro “O Discurso e sua Função Social”. A revista Literaturnja Ucëba, criada e dirigida por Gorki, na qual foi publicada o presente ensaio (volume 3, 1930. p 65-87) era uma revista destinada a escritores iniciantes. Nós omitimos um certo número de notas que teciam explicações de palavras mais difíceis.
� V. N. Volochinov, Marksizm i filosofja jazyka, op. Cit., p. 115-116. Tradução francesa sob o nome de Bakhtine: Marxisme et Philosophie du langage, op. cit.
� Ver artigo de L. P. Jakubinskij (um pouco difícil, é verdade, para um escritor iniciante), na coletânea Russkaaja rech’, I, 192, sob o título “O dialogicheskoj rechi” (Do discurso dialógico).
� A este respeito, é divertido observar o embaraço completo de conferencistas ou de atores experientes que se apresentam pela primeira vez diante de um público totalmente invisível, impossível de ser sentido, como é o caso das emissões de rádio.
� Nós teremos a oportunidade de confirmar esta idéia um pouco adiante, ao analisarmos um extrato de “Ames mortes” de Gogol.
� É importante lembrar que, aqui, trata-se de personagens de obras literárias.
� Os exemplos foram adaptados para a língua portuguesa, sendo seus originais em francês: (a) “Attends um peu, mon petit, tu vas voir de quel bois je me chauffe!”; (b) “Oui!” et “Oui?”; (c) “Pardon, c’est mon manteau”.
� “âmes” pode ser traduzido por almas, no sentido de servos ou escravos.
� Lembremos que as “maneiras” são a expressão gestual da orientação social do enunciado. É exatamente isto o que pode ser observado no exemplo citado.

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