Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
1 1 Universidade Federal do Rio Grande do Norte Escola de Ciências e Tecnologia Ciência, Tecnologia e Sociedade Capítulo I: A Questão da Neutralidade da Ciência Sumário 1.0 Apresentação .......................................................................................................................... 2 2.0 Objetivos ................................................................................................................................. 2 3.0 A construção da ciência moderna ........................................................................................... 2 4.0 A Neutralidade da Ciência ....................................................................................................... 5 5.0 Crítica da Neutralidade da Ciência .......................................................................................... 6 6.0 Nova concepção da Ciência ................................................................................................... 10 7.0 Política Científica e Tecnológica ............................................................................................ 10 8.0 Considerações Finais ............................................................................................................. 11 9.0 Resumo .................................................................................................................................. 11 Autor: Guilherme Reis Pereira Natal, 2011 2 2 1.0 Apresentação Neste capítulo vamos discutir a ideia de neutralidade da ciência, partindo das origens da ciência moderna constituída a partir do século XVI. A questão da neutralidade da ciência está no centro do debate entre os estudos sobre as características da ciência e seu papel na sociedade. A questão principal do debate é se a ciência é ou não influenciada pelo contexto sócio-cultural, valores sociais, interesses políticos e econômicos. Tal discussão é importante porque a visão da ciência neutra tem implicações na escolha dos temas, na política que define as prioridades de pesquisa e influencia as relações entre o ambiente científico e os outros setores da sociedade. Faremos um breve resgate das raízes da ideia de ciência neutra, autônoma e universal a partir do processo de formação da ciência moderna. A questão da neutralidade da ciência está relacionada a um modo de produzir conhecimento sobre os fenômenos da natureza baseado na matemática, que procurou definir leis gerais de alcance universal para controlar e transformar a natureza. Este modo de fazer ciência separa a natureza (objeto) da sociedade (sujeito). Veremos que a visão dominante de ciência neutra, autônoma e universal está sendo negada pelo próprio avanço do conhecimento, com o surgimento de novas teorias nas ciências naturais que superam as anteriores, e por fatos históricos que estão relacionados ao uso da ciência para fins político-militares no desenvolvimento de armas e aplicação no processo de produção capitalista. 2.0 Objetivos Apresentar, de forma sucinta, o debate sobre a questão da neutralidade da ciência que é uma das características da ciência moderna. A visão dominante da ciência tem recebido muitas críticas por diversos autores ao longo do século XX . 3.0 A construção da ciência moderna Desde o século XVI a ciência moderna foi se formando de acordo com um modo de produzir conhecimento que deveria se diferenciar do conhecimento da época que estava ligado ao pensamento religioso. Este pensamento justificava a ordem feudal e o exercício do poder. De acordo com Hessen (p.50), as universidades eram o centro das tradições feudais, onde o sistema pedagógico era escolástico fechado e toda a ciência era baseada na lógica aristotélica. 3 3 “Tudo que não fosse encontrado em Aristóteles não existia”, diz Hessen. As universidades ligadas à Igreja não davam espaço para o desenvolvimento das ciências naturais. Enquanto os filósofos buscavam a verdade nos textos, os cientistas naturais buscavam a verdade no mundo, na natureza inspirados pelos problemas técnicos da nascente burguesia mercantil. As grandes descobertas deste período como o Heliocentrismo de Copérnico, os estudos de mecânica de Galileu e Newton convergiam para uma lógica da investigação na qual a matemática era um instrumento de análise e também fornecia um modelo de representação da própria estrutura da matéria. Com base na matemática era feita observação e experimentação para se alcançar um conhecimento profundo e rigoroso da natureza. Naquela época, o novo modo de fazer ciência teve a contribuição das reflexões filosóficas de Descartes, que também fundou a geometria analítica. Descartes introduziu um racionalismo radical no qual as ideias eram colhidas independentemente da experiência. Esse modo de fazer ciência se inicia com idéias claras e simples e não do sensível e dos fatos. Essas ideias são as ideias matemáticas que podem ser comprovadas. Para Galileu, o livro da natureza está inscrito em caracteres geométricos. Desse modo, a matemática vai propiciar um caráter racional para a ciência fazendo assim uma distinção hierárquica entre conhecimento científico e conhecimento vulgar. Como conseqüência, para conhecer é preciso quantificar e o rigor científico é verificado pelo rigor das medições. Era considerada boa ciência as hipóteses que pudessem ser comprovadas. Outra característica do método científico, que é a base da ciência moderna, é a simplificação da realidade porque a mente humana não consegue compreender a totalidade. Isto quer dizer que, para conhecer é preciso dividir e classificar e depois estabelecer relações sistemáticas. A primeira divisão é separar as leis da natureza das condições iniciais presumindo que estas leis têm uma ordem e estabilidade, isto é, elas não mudam com o tempo, é invariável e determinante. Em função disso, pode-se fazer previsões, controlar e transformar a natureza. A ciência moderna procura saber a causa formal dos fenômenos naturais, ou seja, como funcionam as coisas sem se preocupar com a finalidade das coisas. Diferente do conhecimento prático no qual a causa e a intenção convivem. A ideia do mundo-máquina presente no determinismo mecanicista1 se tornou na hipótese universal da época moderna e foi um dos pilares da ideia de progresso que surgiu no contexto da ascensão da burguesia e revolução industrial no século XVIII. A capacidade de entender leis da natureza que apresentam a ordem e estabilidade do mundo vai permitir a transformação tecnológica da realidade, do mundo. Como exemplo do avanço da ciência que propiciou a transformação da sociedade foi a descoberta da Termodinâmica que permitiu a introdução da máquina a vapor na produção industrial que aumentou o ritmo do trabalho e impulsionou o sistema capitalista industrial. Como o determinismo mecanicista das leis de Newton possibilitava dominar e transformar a natureza, era uma forma de conhecimento que teve grande aceitação na época pela sua 1 O determinismo mecanicista é a ideia de que o mundo estático da matéria é susceptível de ser determinado através de leis físicas e matemáticas. 4 4 utilidade e funcionalidade em pleno período de transformação da sociedade industrial. O estudo dos fenômenos da natureza atendia os interesses da burguesia de expansão econômica transformando matéria-prima em produtos industrializados. As demandas por certos conhecimentos, colocadas pela indústria da época, eram objeto de estudo dos físicos e matemáticos. Se o contexto histórico estabelece os desafios para a ciência, não há neutralidade. A racionalidade da ciência é adequada aos interesses de crescimento da economia capitalista e também contribuiu para a consolidação do Estado Moderno2 através das aplicações militaresdo conhecimento. Da mesma forma que era possível conhecer as leis da natureza, alguns intelectuais acreditaram que era possível investigar as leis que determinam a forma de organização da sociedade e prever os resultados das ações coletivas. O método das ciências naturais foi utilizado pelos pesquisadores que queriam entender o funcionamento da sociedade. A aplicação deste método nos estudos sobre a sociedade do século XIX foi chamado de positivismo lógico e foi compartilhado por vários pensadores entre eles Saint Simon, August Comte, Spencer, Durkheim e outros intelectuais do Círculo de Viena. Entre muitos cientistas formou-se um consenso de que era possível explicar os fenômenos da natureza identificando leis invariáveis que não dependiam da ação humana. As regras de como produzir conhecimento passa uma visão determinista do mundo e um discurso da neutralidade da ciência para se justificar como verdadeira. De acordo com Lowy, entende-se por positivismo lógico: “A sociedade é regida por leis naturais, isto é, leis invariáveis, independentes da vontade e ação humanas; na vida social, reina uma harmonia natural. As ciências da sociedade, assim como as da natureza, devem limitar-se à observação e à explicação causal dos fenômenos, de forma objetiva, neutra, livre de julgamentos de valor ou ideologias, descartando previamente todas as prenoções e preconceitos.” Os pioneiros do positivismo, Condorcet e Saint-Simon, faziam a defesa da neutralidade ciência em relação às paixões e interesses das classes dominantes da época. Os positivistas se colocavam contra as doutrinas religiosas e o argumento de autoridade da ordem feudal- absolutista. A intenção dos positivistas era livrar o conhecimento da influência das crenças e da política feudal e absolutista. Diferente dos pioneiros que atacavam os preconceitos do Antigo Regime, Comte e Durkheim são autores positivistas que assumiram uma posição de defesa da ordem estabelecida ao reconhecer a ideia de lei social natural, isto é, a existência de elementos imutáveis na sociedade. Eles se tornaram conservadores da ordem estabelecida ao atacar os chamados preconceitos revolucionários do Iluminismo, as ideias socialistas e o marxismo. 2 O Estado Moderno é entendimento por um conjunto de instituições que procura manter a ordem e o bem estar social, bem como promover o desenvolvimento socioeconômico. 5 5 A influência do positivismo de analisar a realidade de forma objetiva baseada na comprovação das hipóteses com dados empíricos, livre dos preconceitos, interesses e ideologias continuou no início do século XX com os autores do Círculo de Viena. O Círculo de Viena era um movimento a favor da concepção científica do mundo em termos de seu conteúdo lógico, epistemológico e metodológico e contra a teologia e a influencia da Igreja Católica. Na medida em que os autores positivistas davam um papel de destaque para a ciência no projeto político de uma sociedade em transformação, reconhecem que a ciência pode ter um impacto na sociedade. Então, como fica a ideia de neutralidade da ciência? Vamos discutir este ponto na seção a seguir. 4.0 A Neutralidade da Ciência O debate sobre se a ciência deve ser neutra, livre de valores e interesses vai perpassar todo o século XX. Alguns autores vão defender que a ciência deve ser descompromissada e não pode sofrer influência externa dos políticos e da cultura na qual o cientista está imerso, enquanto outros autores argumentam sobre a necessidade de orientar o desenvolvimento da ciência para atender interesses econômicos, políticos e sociais. Mas antes de entrar neste debate, você precisa entender o que se entende por ciência neutra. A ideia da neutralidade significa que a ciência não é influenciada pelo contexto social, político e econômico. Existe uma muralha separando a comunidade científica que protege a produção de conhecimento científico das interferências dos interesses econômicos e políticos. Também não pode haver uma influência dos valores da sociedade onde vive o cientista na pesquisa. A imagem clássica do cientista é de um sujeito genial que fica em uma torre de marfim isolado da sociedade. Os dados do objeto da pesquisa precisam ser analisados objetivamente sem ser contaminado pelo olhar do que a sociedade considerar bom ou mau. Uma vez que a ciência não sofreu nenhum tipo de influência externa ao ambiente científico ela é considerada neutra, porque se criou uma barreira virtual entre a ciência e a sociedade. Nesta concepção, a produção de conhecimento científico tem um desenvolvimento livre e espontâneo em busca da verdade. Apesar de alguns autores, como os humanistas ingleses, defenderem um direcionamento da ciência para atender objetivos sociais, econômicos específicos, era dominante no início do século XX a visão da ciência neutra. Só para citar alguns nomes, Polanyi, em sua conferência Autogoverno na Ciência, se opõe a ideia da ciência dirigida e defende a comunidade científica baseada na concepção de liberdade da ciência e sua desvinculação de interferências políticas e religiosas. Outro autor importante foi Merton que, em 1942, introduziu a ideia de que o cientista deve desempenhar suas atividades de acordo com um conjunto de normas e valores específicos, entre elas o desinteresse. É importante lembrar que o mundo estava em plena Segunda Guerra Mundial e sob regimes totalitários, como o nazismo, que obrigava os cientistas a fazer pesquisa para produção de armas de destruição em massa. A intenção de 6 6 Merton era mostrar que o nazismo e a ciência não podiam andar juntos. O autor concebe a comunidade científica como um subsistema autônomo em relação à sociedade. Dessa forma, Merton reforça a tradição da sociologia do conhecimento de que a ciência é neutra, isto é, o fenômeno deve ser investigado sem interferência dos valores sociais, interesses e opinião. Para fazer ciência a razão precisa estar separada da emoção. Como você pode notar, havia um consenso sobre a liberdade e autonomia da ciência em relação à sociedade que começou no Iluminismo, nos estudos da sociedade foi denominado positivismo e permanece impregnado nas mentes de muitos cientistas no final do século XX. A valorização do conhecimento científico baseado na observação dos fenômenos para entender a realidade com ela é, colocava a ciência acima sociedade. Os cientistas acreditavam que a acumulação pura e simples de conhecimentos científico-tecnológicos seria suficiente para garantir o progresso econômico e social de todos. Desse modo, essa visão de ciência introduziu a ideia de progresso como um desenvolvimento linear que começa com o avanço do conhecimento que transborda e se espalha para a sociedade beneficiando a todos. A conseqüência dessa visão de ciência neutra que prega a necessidade de distanciamento em relação ao contexto social, político e econômico tornou a ciência um assunto técnico exclusivo aos cientistas. Os demais segmentos e pessoas da sociedade não estariam capacitados a discutir quais os problemas os cientistas deveriam se debruçar. Isto vez com que a política científica, que estabelecia quais eram as prioridades de pesquisa para receber recursos públicos, era definida pelos próprios cientistas. Só que o conhecimento científico tornou-se importante demais para ser deixado por conta dos cientistas, demasiadamente ocupados em fazer ciência. Existem vários exemplos na História que comprovam o impacto causado pela ciência na relação entre os países, como o desenvolvimento de armas, por exemplo, a bomba nuclear. Você pode perceber o impacto da aplicação da ciência na vida das pessoas com a popularização de tecnologias como o automóvel movido a álcool, celular, internet, microondas, etc. Ao longo do século XX, a ciência e a tecnologia assumiram umcaráter político, ou seja, a ciência e a tecnologia são de interesse público por causa das transformações provocadas na vida das pessoas e no desenvolvimento socioeconômico. Mesmo com tantas evidências, existe uma tradição entre os cientistas naturais de manter uma autonomia e liberdade da ciência pura e resistem às iniciativas do governo de administração e direção do desenvolvimento científico. Apresentamos para você como se formou a ideia de neutralidade da ciência a partir da revolução científica dos séculos XVI e XVII. Na seqüência vamos discutir como esta ideia é questionada por diversos autores das ciências naturais e sociais. 5.0 Crítica da Neutralidade da Ciência a) Crítica dos cientistas naturais baseada em novas teorias 7 7 A partir da segunda metade do século XX, a visão de ciência neutra construída a partir das contribuições de Galileu, Newton, Descartes e dos positivistas é coloca em dúvida em função do avanço do conhecimento com novas teorias que questionam as bases desse modelo de ciência e também recebe críticas sociológicas de autores que defendem que existe influência do contexto sócio-cultural na produção de conhecimento. Quando teorias que formam as bases da ciência são negadas por outras, é uma situação chamada de revolução científica. Se as bases da ciência moderna que deu origem a visão de ciência neutra estão sendo questionadas, conseqüentemente a objetividade e neutralidade da ciência também caem por terra. O primeiro abalo no alicerce da ciência está relacionado à teoria da relatividade de Einstein. Este cientista detona com a lei da física de Newton sobre as ideias de simultaneidade universal e de tempo e espaço absolutos. Einstein distingue a medição de acontecimentos em um mesmo lugar de acontecimentos em lugares distantes. Ele questiona como o observador pode saber o que aconteceu primeiro em lugares diferentes. Mesmo que o observador souber qual é a velocidade da luz não é possível medir porque não sabe qual é a simultaneidade dos acontecimentos. Nesse sentido, Einstein conclui que é impossível verificar a simultaneidade temporal em espaços diferentes. Se não há simultaneidade universal, a ideia de tempo e espaço absoluto de Newton deixa de existir. As leis da física se baseiam em medições locais, na têm a abrangência universal. O segundo abalo no alicerce da ciência é o princípio da incerteza de Heisenberg e Bohr na área da mecânica quântica. Eles demonstram-nos que o conhecimento que temos da realidade é, inevitavelmente, afetado pela nossa interferência no objeto. O que conhecemos do real é a alteração que provocamos nele, não é o real em si. Um objeto que sai de um processo de medição é diferente de como entrou. Portanto, a mecânica quântica demonstra a interferência estrutural do sujeito no objeto. Se o rigor do conhecimento é limitado, as leis da física não são mais que probabilidades e, por outro lado, a hipótese do determinismo mecanicista é inviável porque a totalidade do real não é a soma das partes que dividimos para observar e medir. O terceiro abalo no alicerce da ciência é o teorema da incompletude de Gödel que questiona o rigor da matemática. O resultado puramente matemático deste teorema é que prova a afirmação de que nenhuma teoria formal pode ser, simultaneamente, poderosa, consistente e completa. Diz Boaventura de Souza Santos: “Se as leis da natureza fundamentam o seu rigor no rigor das formalizações matemáticas em que se expressam, as investigações de Gödel vêm demonstrar que o rigor da matemática carece ele próprio de fundamento.” b) Crítica dos Cientistas Sociais Alguns críticos da ideia de neutralidade da ciência adotam a sociedade como foco da análise para afirmar a não-neutralidade da ciência e da tecnologia. Boris Hessen em “Raízes Socioeconômicas de principia de Newton” descreve os problemas técnicos colocados pela navegação marítima, a indústria de mineração, metalurgia e da guerra que demandavam conhecimento de mecânica. Os problemas técnicos da navegação impulsionaram estudos de hidroestática, aeroestática e ótica. O problema da trajetória da bala inspirou Galileu a estudar 8 8 o movimento dos corpos, resistência e velocidade, a queda livre dos corpos. O recuo do canhão levou ao estudo da lei de ação e reação. Estes são exemplos de que os temas que a ciência procurou explicar foram determinados pelas necessidades da nascente burguesia, pelos interesses econômicos e políticos. A principal obra de Newton “Principia”, sistematizou todos os problemas físicos da mecânica da época numa linguagem matemática abstrata sem aparecer as fontes de inspiração. Além de Boris Hessen, que descreve o desenvolvimento da física a partir dos interesses econômicos e políticos, outros construtivistas mostram com base em estudos de caso que há influência das relações sociais e econômicas no desenvolvimento da ciência e tecnologia (C&T). Estes autores entendem que a C&T é uma construção social, ou seja, o desenvolvimento científico e tecnológico é influenciado pela política, economia e cultura e também produz efeitos sociais e políticos. O desenvolvimento tecnológico envolve conflito e negociação entre grupos sociais com concepções diferentes acerca dos problemas e soluções. O desenho dos artefatos tecnológicos é definido pelas correlações de força entre os diferentes grupos sociais, portanto, não é um processo determinista. Um dos exemplos usados pelos construtivistas Wiebe Bijker e Trevor Pinch de como os usuários interfere no desenho do artefato, é a história da bicicleta que inicialmente tinha a roda dianteira grande e com tração para alcançar velocidade que servia como equipamento esportivo, mas não era adequada como meio de transporte devido à instabilidade. O desenho da bicicleta gradativamente foi se adequando para atender melhor o usuário. Evolução da bicicleta Entre os críticos da neutralidade da ciência, o filósofo Lacey faz uma discussão com foco nos valores sociais. Para Lacey, a ciência moderna é conduzida de acordo com estratégias materialistas que valoriza o controle dos objetivos naturais. Lacey analisa a questão da neutralidade considerando três momentos da atividade científica, a saber: (1) adotar uma estratégia, (2) aceitar teorias e (3) aplicar o conhecimento científico e faz uma distinção entre valores cognitivos (valor de uma teoria aceita) e sociais. Os valores sociais têm um papel importante nos momentos 1 e 3, mas na aceitação de teorias Para você entender melhor os conflitos de valores que podem ocorrer com o avanço da ciência, vamos tomar como exemplo o caso da pesquisa em genética. A polêmica em torno da pesquisa de manipulação genética com embrião humano deu origem a uma discussão sobre a 9 9 ética na ciência e os limites do desenvolvimento científico. A possibilidade de clonagem humana é visto como um risco, principalmente, pelas pessoas ligadas à religião. Mas, por outro lado, os resultados da pesquisa podem contribuir para evitar doenças transmitidas de pais para filhos, como o câncer. “Minha concepção de vida faz com que eu prefira a destruição de um embrião à sua instrumentalização como fábrica de órgãos por um projeto de pesquisa.” (Arnold Munnich, chefe do serviço de genética do hospital Necker, em Paris) “Polêmica, que polêmica? Todos os especialistas estão de acordo”. (François Thépot, então diretor-adjunto da Agência de Biomedicina da França, 2008). “Temos receio que seja um golpe contra a continuidade das pesquisas”. (A diretora da Agência de Biomedicina demitida pelo governo de Nicolas Sarkosy) Na década de 1970, vários autores passaram a questionar a visão positiva e neutra da ciência e denunciavam os impactos negativos que podiam ser observados no uso da ciência e tecnologia (C&T). Havia vários casos que evidenciavam os efeitos nocivos da ciência. Só paracitar alguns exemplos, os trabalhadores estavam perdendo o emprego por conta da introdução de novas tecnologias, o pesticida DDT provocava efeitos prejudiciais à saúde humana, o uso da C&T na guerra do Vietnam com as bombas de napalm. Nesse sentido, a degradação ambiental, o desemprego tecnológico e o uso destrutivo da C&T vão contribuir para a desconstrução da ciência neutra e conter a euforia sobre os resultados do avanço científico e tecnológico. Vários autores afirmam que a ciência carrega valores e não isolada da sociedade e muito menos é neutra e livre de influências externas ao meio acadêmico. Neste período fortalece o argumento de que a ciência precisa ser controlada e dirigida para solucionar problemas relevantes da sociedade. Já os críticos mais radicais da neutralidade, como os marxistas Coriat e Gorz, vão defender a tese de que a C&T é gerada sob a égide da sociedade capitalista e, por isso, é construída de forma que seja útil e funcional para aquela sociedade, isto é, ela é faz parte da engrenagem do sistema capitalista. A ciência e tecnologia está comprometida com a manutenção da sociedade onde foi produzida e, por isso, não seria funcional e nem adequada em um sistema social muito diferente, como se imaginava o socialismo. Também não poderia ser utilizada para a construção de uma nova sociedade em uma direção diferente daquela que orientou o seu desenvolvimento. Os marxistas argumentam que as ciências e as técnicas de produção trazem a marca das relações de produção e da divisão de trabalho capitalistas na sua orientação e especialização. Para ficar mais claro para você, vamos exemplificar com o caso do socialismo da União Soviética. Coriat afirma que um dos principais motivos da falência do socialismo soviético foi ter copiado o modelo de organização de produção capitalista. Foi mantida a 10 10 hierarquia na divisão do trabalho e a burocracia assumiu o papel que era da burguesia no capitalismo. Assim, pode-se dizer que C&T não existe historicamente de forma abstrata como é ensinada nos diversos cursos. A C&T tem características de sua época e da sociedade onde se desenvolve. O sucesso do cientista está ligado à utilidade do conhecimento para alcançar os objetivos da sociedade que no caso da sociedade capitalista é promover a inovação para gerar mais riqueza para as grandes empresas. Desde os tempos de Galileu e Newton, a C&T é a ferramenta utilizada no capitalismo para dominar a natureza e explorar os desprovidos de meios de produção. Por isso, por mais que a C&T tenha se desenvolvido, isto não implicou em desenvolvimento social e nem uma relação sustentável com a natureza. 6.0 Nova concepção da Ciência A ideia da ciência neutra que se desenvolve a partir de uma lógica interna, da curiosidade do cientista desprovido de interesse que se isola no laboratório, passou a conviver com a visão de que a ciência é condicionada pelo contexto social, pelas circunstâncias do momento histórico e orientada por objetivos de desenvolvimento econômico e social. A ciência também deixa de ser vista como ponto de partida para se alcançar desenvolvimento tecnológico para atender as necessidades dos usuários. Essa mudança de entendimento de como é produzido o conhecimento científico e, principalmente dos impactos benéficos ou maléficos que podem ser gerados provocou uma mudança da política de C&T na qual as agências de financiamento passam a definir temas e áreas do conhecimento que recebem recursos visando o desenvolvimento científico e tecnológico em áreas consideradas mais importantes para o país. Neste novo contexto do final do século XX, os cientistas continuam a ser os principais atores da política de C&T, mas tiveram que dividir espaço com os gestores públicos, os empresários e os políticos na definição das prioridades. 7.0 Política Científica e Tecnológica Agora vamos mostrar como esta mudança da política de seu na prática usando a experiência do governo brasileiro. No caso do Brasil, foram elaborados os Planos Básicos de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (PBDCT) a partir da década de 1970 visando a geração e transferência de conhecimento científico e tecnológico para diversos setores produtivos nacionais, principalmente investir nas áreas de energia, agropecuária, transporte, telecomunicações e defesa. Em função da crise do petróleo, o país precisava descobrir nos reservas para diminuir a 11 11 dependência de importação. Além de financiar pesquisa de fontes alternativas de energia como biomassa, geração de energia hidrelétrica e o Programa Nacional do Álcool. No final da década de 1990, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) financiou uma pesquisa científica de seqüenciamento do genoma da bactéria Xylella fastidiosa, causadora da doença chamada amarelinho que ocorre na produção de laranja. A pesquisa foi realizada por uma rede de pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento. O projeto foi reconhecido por duas das mais conceituadas revistas científicas: a americana Science e a inglesa Nature publicaram um artigo sobre a pesquisa. 8.0 Considerações Finais Quando se faz uma crítica à herança da ciência moderna, não podemos jogar fora a criança junto com a água do banho. Quero dizer que devemos reconhecer que a ciência desempenhou um papel importante na transformação da sociedade e também passamos a conhecer melhor o mundo em que vivemos. A lógica de conhecer para poder dominar os recursos naturais foi útil para um estágio de desenvolvimento, mas teve como conseqüência uma relação predatória com o meio ambiente. Nos últimos anos, a humanidade tem sido afetada pelos desastres naturais que são provocados pela própria ação do homem. Ademais, a visão determinista e de neutralidade da ciência mascara a utilização do conhecimento pelo capital e dificulta projetar estratégias alternativas de desenvolvimento. 9.0 Resumo Você aprendeu que a ideia de neutralidade da ciência tem sua origem no modo de produzir conhecimento científico que procurava identificar as leis que determinam o mundo, o que permitia que a sociedade pudesse controlar e transformar a natureza. Com isso, as ciências naturais foram fundamentais para o desenvolvimento da sociedade industrial. Exemplificamos como os estudos da mecânica foram importantes para o desenvolvimento capitalista. Entretanto, a ciência moderna deixou como herança uma forma de conceber o mundo na qual a sociedade está separada da natureza e o progresso significa controlar e transformar a natureza. Também foi passada uma visão determinista e de neutralidade da ciência. Mostramos que a ciência não é neutra, isto é, ela é influenciada pelos interesses econômicos, políticos e valores de um determinado período. 12 12 Referências BIJKER, W. et al. The Social construction of Technological systems. Cambridge, MIT Press, 1990. BOAVENTURA SOUZA SANTOS – Um discurso sobre as Ciências, Universidade de Coimbra, 1985. DAGNINO, Renato - Neutralidade da ciência e determinismo tecnológico – um debate sobre a tecnociência, Editora Unicamp, Campinas, 2008. HESSEN, Boris – Raízes Sociais e Econômicas do Principia de Newton – Revista Ensino de Física, LACEY, H. Is science value-free?: values and Scientific Understanding. Londres, Routledge, 1999. OLIVEIRA, Marcos - Sobre o Significado Político do Positivismo Lógico, Cadernos de História e Filosofia da Educação, USP, São Paulo.
Compartilhar