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Edição por uma PSICOLOGIA Mauro Martins Amatuzzi HUMANA AlíneaEdição É preciso que a Psicologia busque se aprofundar naquilo que é caracteristicamente Do contrário ela não poderá contribuir no diálogo dos que buscam saídas verdadeiras para os problemas pessoais e sociais que enfrentamos em nosso mundo É preciso que ela se debruce sobre os sonhos que alimentamos em nosso intimo, sobre nosso desejo de uma vida mais Por uma digna, sobre o sentido que queremos dar às nossas vidas, sobre as formas como podemos, de verdade, dar andamento às PSICOLOGIA nossas mais legítimas aspirações. E isso não apenas em termos individuais, mas, também, Humana em termos da comunidade que constituímos, entre nós humanos e com a natureza, mãe que nos Este livro procura resgatar para a Mauro Martins Amatuzzi Psicologia - como estudo e prática de desenvolvimento da pessoa humana aquilo que nos vem da tradição humanista. Procura o sentido que pode ter o humanismo para a Psicologia (capítulo 1), e os fundamentos desse sentido numa fenomenologia da fala e do silêncio (capítulo 2). Busca aplicar, em seguida, que foi ai levantado ao campo da pesquisa do humano (capitulos 3, 4 e 6), à psicoterapia (capítulos 5 e 7), à construção de uma psicologia popular (capitulo 8), e ao esforço de construir uma comunidade verdadeiramente humana AlíneaA Alínea EDITORA DIRETOR GERAL Wilon Mazalla Jr. COORDENAÇÃO EDITORIAL Willian F. Mighton COORDENAÇÃO DE REVISÃO Erika F. Silva REVISÃO DE TEXTOS Vera Luciana Morandim R. da Silva EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Sofia REVISÃO DE FILMES Rosangela A. Santos CAPA Fábio Cyrino Mortari Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Amatuzzi, Mauro Martins Por uma psicologia humana / Mauro Martins Campinas, SP: Editora 2008. edição. 1. Psicologia humanista I. Agradeço aos editores das revistas abaixo mencion da ANPEPP juntamente com a Regina Maria Leme L 01-4247 CDD - 150.198 permissão de retomar textos ai publicados originalmente, pa para catálogo sistemático: do presente livro: 1. Psicologia humanista 150.198 Arquivos Brasileiros de Psicologia Estudos de Psicologia (PUC-Campinas) ISBN 978-85-7516-243-9 Psicologia em Estudo Psicologia: Teoria e Pesquisa Todos os direitos reservados à Prometeo - revista mexicana de psicologia Editora Alínea humanista y desarrollo humano Rua Tiradentes, 1053 - Guanabara - Campinas-SP Coletâneas da ANPEPP. CEP 13023-191 - PABX: (0xx19) 3232.9340 e 3232.2319 Impresso no BrasilSumário Apresentação 7 Capítulo I. Humanismo e psicologia 9 Capítulo II. Silêncio e palavra 21 Da fala ao silêncio 23 Do silêncio à fala 27 O surgimento do secundário 32 A compreensão 39 Capítulo III. Investigação do humano 45 Capítulo IV. Pesquisa do vivido 53 Capítulo V. Atendimento psicoterápico 63 A palavra foi feita para calar 63 Escutar é abrir-se para o mundo, e responder 69 Capítulo VI. Versão de Sentido 75 Compreendendo a a partir de sua história 76 Pré-história e outras abordagens 82 Tentativa de definição 84 Para uma fundamentação teórica 85 Princípios gerais para o uso da Versão de Sentido 88Capítulo VII. Etapas do processo terapêutico 91 A problemática 91 O material 95 Os caminhos da análise 100 Os resultados 103 alcance desses resultados 106 Confirmações externas 107 Considerações finais 113 Apresentação Capítulo VIII. Psicologia popular 115 Capítulo IX. Processos humanos 123 que é processo 123 Este é um livro sobre o resgate do humano em Psicologia, Os processos na vida 125 escrito na primeira pessoa por alguém com coragem suficiente para A explicação psicológica do processo 127 a si mesmo na busca pelo sentido do ser e do relacionar-se. É Processos grupais 129 também sobre todos os humanos que em salas de aula, em ruas e Processo comunitário e outros âmbitos 132 praças, em sessões de psicoterapia, em reuniões de sindicatos, em cuidar 133 e igrejas traduziram em atitudes seus compromissos e valores. Criando bolsões de humanismo 135 de tudo um manifesto a favor do existir humano em processo, numa arrojada aventura iluminada e nutrida pela palavra. Referências 139 Mauro Amatuzzi tem sido assim, um psicólogo que filosofa, em múltiplas atividades como professor, pesquisador, conselheiro e Este não é apenas mais um de seus livros; constitui uma sintese dos significados atribuídos, ao longo de mais de três décadas, a esforços consistentes no sentido de um engajamento com pessoas e comunidades na lida diária pela recuperação da dignidade humana. Muitas foram, certamente, as versões de sentido, mas nunca em detrimento do sentido do próprio viver, como valorização do cotidiano construção de experiências Os capítulos que compõem esta obra mantêm a ênfase no humanismo como uma perspectiva de abordagem ao psicológico, na palavra como definição primeira do ser humano, na investigação do como possibilidade de uma apreensão compreensiva do cotidiano, no processo como historicidade crítica e constitutiva. Por uma Psicologia Humana é um título que marca a identificação do autor com a práxis de uma atividade profissional,cuja matriz de pensamento substancia um compromisso com I desenvolvimento de uma abordagem interdisciplinar aos problemas e ao desenvolvimento humano, aplicada a grupos e comunidades. Isso, em essência, define o próprio surgimento da Psicologia Humanista em sua retomada dos valores renascentistas, Humanismo e Psicologia com ênfase na recuperação da importância do homem em seu tempo e contexto, valorizado em sua Sim, quero a palavra última que também é tão primeira que já se confunde com a parte intangível do real. Ainda tenho medo de me afastar da O texto a seguir corresponde originalmente a uma palestra lógica, porque caio no instintivo e no direto, e no futuro: a invenção do hoje é pronunciada na IV Jornada de Psicologia Humanista, o meu único meio de instaurar o futuro. Clarice Lispector em sua Agua promovida pelo Centro de Psicologia da Pessoa e pela Viva parece traduzir de maneira simples e ainda assim magnífica a Universidade Federal do Rio de Janeiro, em agosto de 1988, e importância de um livro como este, em que da palavra emerge a depois publicada em Arquivos Brasileiros de Psicologia, 41, (4), pp. 88-95, de 1989, com o título significado da confirmação do vivido em sua concretude atual e do transcendente Psicologia Humanista, posicionamentos como devir Ainda gosto bastante dele. Parece-me que ele De um ponto de vista estritamente pessoal, julgo imprescindível aponta para a largueza do território de uma Psicologia também reverenciar o homem Mauro Amatuzzi, meu colega e parceiro realmente Humana. Fiz pouquissimas modificações, somente num processo em que a cronologia do tempo é de menor importância para adaptar o texto ao novo Hoje creio que é melhor face à grandeza do inusitado, das vivências diversas, das contradições falarmos do Humanismo na Psicologia, do que da Psicologia Humanista. feitas de encontros e desencontros, da magia em momentos de descoberta Em meio ao turbilhão das pesquisas, dos relatórios, das reuniões administrativas, sobrevive o aconchego de abraços essenciais, de olhares certeiros, a nos acalentar a certeza de que ainda nos importamos com o outro, este amigo que pode ainda ser essencial do que quero dizer a respeito cúmplice nas horas, tantas vezes vazias e despidas de significados, em que o humano parece escapar de dentro de nossos papéis e O desse assunto pode ser colocado em algu- mas poucas proposições. E a primeira é a desempenhos. seguinte: o homem não é um "bicho que fala", mas ele é a própria palavra, isto é, ele é palavra. Reen- contro aqui uma idéia que é tanto de Heidegger Vera Engler Cury como de Buber: não é a linguagem que se encontra no homem, mas o homem que se encontra na lin- guagem. A segunda proposição é que isso não é "poesia" ou jogo de palavras, como talvez possa parecer. Trata-se de uma afirmação muito precisa, que nos coloca num outro âmbito de considera- ou seja, que implica mudança radical de pon- to de vista. E a terceira é justamente que essa10 Mauro Martins Amatuzzi Por uma Psicologia Humana 11 mudança radical de ponto de vista é o que mais caracteriza a con- pesquisar nessa linha. Mas a incompletude a que me refiro é de outra tribuição do humanismo para a psicologia. Não se trata, com efeito, ordem. Talvez "explicações" dessa natureza não bastem, e por mais nem de uma mudança de objeto, nem de uma mudança de método, e que somemos explicações não estaremos entendendo ainda o nem mesmo, quem sabe, de uma mudança teórica. Trata-se na rea- principal desafio que se coloca para nós face ao nosso viver: o que lidade de uma mudança na relação com o objeto. Essa mudança é vamos fazer com nossa vida? Que sentido vamos dar a ela, e de tal capaz de assumir em determinados momentos o mesmo método, só forma que não nos isole de um sentido mais global? que num contexto onde o sentido global é outro, o que faz com que a Sob esse enfoque o ser humano nos aparece não como visão resultante (a teoria, nesse sentido) seja outra, mais abrangente, resultante de uma série de coisas, mas como, fundamentalmente, capaz de conter as visões anteriores, só que como parciais, e reco- iniciante de uma série de coisas, e os desafios daquilo que ele deve nhecidas como parciais. Nessa nova visão a teoria, aliás, se torna ela criar não são respondíveis com explicações daquele tipo. homem mesma relativa: não se trata mais de teorizar, como um fim. A teoria só aparece naquilo que ele tem de mais próprio, com a questão do passa a ser ela também um momento de algo mais amplo, que é o que sentido, não com a questão da causa explicativa. A relação afinal importa. E esse algo mais amplo é antes um compromisso que explicativa se refere ao homem como resultado, como repertório, ou uma teoria. como recebido, e, portanto, em definitivo, ao homem como passado. Uma das coisas que subjaz a essas proposições é que a Não se refere ao homem atual, ao homem desafiado, ao homem tendo consideração do sentido é fundamental. Para compreender o ser que responder e posicionar-se, ao homem presente (face a um humano, tenho que lidar com questões de sentido. A consideração do futuro). Este homem atual, presente, desafiado, interpelado, em ser humano em termos de causa e efeito, antecedente e movimento, é o que encontra as questões de sentido: essas são as parte e todo, por mais cabível, correta ou verdadeira que possa ser, questões presentes, que surpreendem o homem como existente (não não dá conta do que seja o ser humano como totalidade em apenas como natureza, como diria Merleau-Ponty). movimento. Em outras palavras: posso explicar certas ocorrências Dizer que o homem é um "bicho que fala" (o que equivale a humanas ou comportamentos a partir de "causas" internas ou dizer que é um "animal racional") é ficar no âmbito das explicações, e externas (motivações inconscientes ou configurações de estímulo, portanto, do homem como resultado. Mas isso não é ainda o homem por exemplo), posso analisar relações de antecedente-consequente atual. Só poderemos chegar a ele mudando o ponto de vista e (como por exemplo o efeito de uma recompensa), ou posso explicar assumindo as questões de sentido que definem sua atualidade. O que certas coisas em função das relações parte-todo (como por exemplo ele fala? homem atual, presente, existente, é constituído pelas quando digo que o modo de ser de uma pessoa é a repercussão questões de sentido. Ora, a palavra é exatamente a questão do individual de problemas ou situações coletivas bem caracterizáveis). sentido. Por isso o homem atual se encontra na palavra, e não o Posso ainda descrever como é que tudo isso se articula numa espécie contrário. É na decifração de suas questões de sentido que o homem de história geral de conflitos e fantasias, e que se aplicaria a todas as pode se instaurar em sua atualidade. Mas é preciso tomar cuidado: pessoas ou à maioria (psicologia do desenvolvimento). Cada uma essa decifração pode ser vivida como uma redução ao esquema dessas coisas é válida e possível, e de fato é feita, com muitas explicativo onde apenas encontraremos o homem-resultado, e não o pesquisas, certamente. Mas nenhuma delas em separado, e nem todas homem em sua atualidade. Isso, para Merleau-Ponty, seria somadas, dão conta do ser humano como totalidade em movimento. permanecer no nível da palavra secundária, da fala inautêntica, do Algo fica faltando, e não é algo que possa ser cumprido dentro de falar sobre, da fala sobre falas. A fala sobre falas é ainda um discurso cada um daqueles enfoques. Não é tanto que essas explicações no passado. A decifração do sentido só será um discurso no presente estejam incompletas. Sim, até estão, e haverá sempre mais a se for vivencial, experiencial, uma vivência do próprio sentido12 Mauro Martins Amatuzzi Por uma Psicologia Humana 13 criando novos sentidos. É enfrentando os desafios que vou processo. O homem como resultado, ou a cultura como produto, não são decifrando os sentidos e criando novos sentidos. A decifração dos ainda o homem atual ou a cultura que se faz. sentidos que permanece no atual identifica-se com o enfrentamento Acredito que o sentido do humanismo em psicologia é o de nos dos desafios, e não é apenas um estudo deles. colocarmos na postura do atual, do presente, do atuante, do em curso; O homem atual, portanto, encontra-se no assumir as questões e todas as explicações só terão valor como instrumentos para isso, de sentido e isso significa uma reviravolta completa de perspectivas mesmo que, como instrumentos, permaneçam aquém dessa (do homem-resultado para o homem-atual). E é exatamente essa atualidade. reviravolta que faz o sentido do humanismo na psicologia. Voltemo-nos agora para o Humanismo, e vejamos o que essa Antes de passarmos para um outro ponto, gostaria de trazer aqui palavra nos sugere. Podemos encontrá-la usada pelo menos de quatro uma consideração paralela que pode nos ajudar a compreender essa modos diferentes em relação à Psicologia. questão que acabo de formular. A diferença que existe entre essas duas 1. No sentido estrito o Humanismo é um movimento cultural, perspectivas é a mesma que existe na consideração da cultura como europeu, tendo seus primórdios já no século XIV, e que resultado (ou como produto), e da cultura como ato cultural. Uma coisa é esteve intimamente ligado à Renascença. Mas é talvez dai estudar os produtos culturais (objetos, máquinas, obras de arte, que o termo tenha se generalizado, podendo ser aplicado a ou outros produtos como a ciência, a religião, ou as estruturas qualquer filosofia que coloque o homem no centro de suas de parentesco ou estruturas de relações de trabalho etc.) de algum grupo preocupações, ou como um adjetivo aplicável a outros social ou sociedade. Aqui estamos estudando a cultura de um povo movimentos, como é o caso da "psicologia humanista" como algo dado, e, portanto, acabado. Outra coisa completamente (ou do humanismo na psicologia). diferente (embora possa incluir a primeira) é ser agente cultural, O movimento cultural da Renascença precisa ser entendido produzir cultura, inserir-se num movimento vivo de produção cultural. em função de seu contexto. De algum modo ele aparece A diferença entre essas duas coisas é clara. Ora, acontece que o termo como uma espécie de reação contra um sobrenaturalismo "cultura" pode ser definido em uma dessas duas direções, originando-se medieval que naquela época significava um desprezo pelo dai muita A cultura que é vista pelo estudioso não tem nada a que é humano: nada das coisas desta vida é importante a não ver com a cultura que é praticada pelo agente cultural. No primeiro caso ser aquilo que aqui é uma aquisição de méritos para a vida temos um produto acabado e mais ou menos estático: é a cultura como futura, eterna, após a morte. A vida presente, nesse sentido, produto cultural. No segundo, temos a cultura como conteúdo de um não é levada a sério em sua consistência própria, não tem movimento incessante, algo em constante mutação. No primeiro caso valor nenhum em si mesma. próprio homem, em si, em seu fazemos história no sentido de retratar um passado (ou algo acabado), no corpo, não precisa ser cultivado, uma vez que seu destino é a segundo fazemos história no sentido de construir a história em curso. E a morte; o importante é cuidar da alma imortal. As coisas do história que fazemos retratando só tem sentido em função da história que mundo são transitórias e um cenário passageiro para as estamos A cultura de um povo não é algo feito, mas algo coisas eternas, que são as que importam. A arte, a ciência, a que se faz, e reduzir uma coisa à outra é, na realidade, esmagar o política, a beleza, a flexibilidade corporal não são coisas que potencial criativo de um povo, e tentar estagnar um movimento, devam deter o interesse do sábio, mas sim, as coisas eternas, impedindo que esse povo enfrente seus verdadeiros desafios. A cultura sobrenaturais, as virtudes da alma. A saúde do corpo, a há que ser definida como um processo vivo e não como um conjunto de maturidade psicológica não são importantes a não ser como produtos acabados. O ser humano tem que ser captado em seu substrato mínimo para as virtudes que nos preparam para a movimento, e isso só pode ser feito movimentando-se, inserindo-se num vida eterna. O humano, o temporal, este mundo são assim14 Mauro Martins Amatuzzi Por uma Psicologia Humana 15 altamente desvalorizados em favor do espiritual, do eterno, 2. Erich Fromm fala do humanismo não como um movimento do A cultura antiga, representante desse localizado na Europa do século XIV. Ele fala de uma tradição humano, era, assim, mais ou menos desprezada, ou então era da ética humanista que encontra representantes em lida como um símbolo ou apelo de algo outro, maior. Não praticamente todas as épocas do pensamento Ele que isso tivesse caracterizado a Idade Média Mas era a próprio pretende ser um pensador que se insere nessa tradição. forma como uma face do pensamento medieval foi lida a "Na tradição da ética humanista", diz ele, predomina a opinião partir do ponto de vista da Renascença e do de que o conhecimento do homem é a base para o estabelecimento Uma nova necessidade nos faz caricaturar a de normas e valores (1947, 31). "Normas e valores" aqui visão anterior. Seja lá como for, esse humanismo nasceu sob referem-se à questão do caminho, por onde vamos, que é a a bandeira da revalorização do humano, o que significava na questão do sentido. Na tradição humanista essa questão se prática um retorno aos clássicos, e à cultura responde a partir de um conhecimento do homem. E Fromm greco-romana. O que é humano tem um valor em si mesmo, continua: Os tratados de ética de Aristóteles, Spinoza e Dewey [...] e não como mero suporte ao sobrenatural; este mundo não é são por isso, ao mesmo tempo, tratados de Psicologia ibid.). apenas um cenário provisório e sem importância para algo equacionamento e o encaminhamento desses problemas são que não tem nada a ver com ele; o tempo, o que se constrói ao mesmo tempo ética e psicologia. Ética, porque seu paulatinamente, o crescimento humano são importantes (o conteúdo é a questão do sentido, do por-onde-vamos; e tempo, e não a eternidade, é onde se constroem as coisas, e psicologia, porque para isso nos debruçamos sobre o homem estas coisas que construímos). O homem é corpo tanto buscando um conhecimento de sua natureza. Um pouco antes quanto alma, e é como um todo que ele tem que ser cuidado. Erich Fromm havia dito: Na ética humanista bem é a afirmação Virtude é o desenvolvimento das potencialidades humanas, da vida, desenvolvimento das capacidades do homem. A virtude e não algo acrescentado de fora. Para alguns isso representou consiste em assumir-se a responsabilidade por sua própria uma rejeição da visão teológica das coisas, e no século XX existência. mal constitui a mutilação das capacidades do homem; isso é representado pelo humanismo ateu (cujo exemplo o vício reside na irresponsabilidade perante si mesmo ibid., pp. mais contundente é Sartre). Para outros essa revalorização 27-8). Rogers e Maslow aproximam-se bastante de do humano, do mundo, do tempo não se define por um semelhantes concepções. No fundo existe uma crença no posicionamento anti-religioso ou Existe todo um homem, uma confiança no que nele se manifesta. A expressão humanismo cristão segundo o qual é na trama deste mundo teórica disso é a tendência atualizante de Rogers, ou o que realidades definitivas estão sendo construídas (e um conceito de auto-atualização de Maslow. exemplo eminente desse humanismo em nosso século é que está na raiz do humanismo não é, pois, apenas um Teilhard de Chardin). De qualquer forma essa revalorização postulado teórico, ou uma hipótese, mas uma atitude do homem, das coisas do homem, da história concreta em favor do homem. Isso é mais fundamental que daquilo que aqui efetivamente se faz, da atualidade do as teorias que a partir dai se constroem. Teorias diferentes humano, não se relaciona necessariamente com uma posição sobre o homem podem ser consideradas humanistas. O que religiosa ou anti-religiosa. O que polariza esse movimento é as une não é tanto que todas aceitem determinadas justamente uma volta à atualidade do humano, e um afirmações, mas uma atitude. Por isso Fromm fala de uma acreditar que esse é o tradição ética: há valores envolvidos, mais que afirmações abstratas. Há posicionamentos e compromissos, e não16 Mauro Martins Amatuzzi Por uma Psicologia Humana 17 apenas teses cognitivas (isso não quer dizer, é claro, que questionamento não era apenas teórico: teve inumeráveis esses posicionamentos devam ser existe toda manifestações pessoais e coletivas, as quais certamente uma elaboração posterior que tende a tiveram uma importância para a retirada das tropas e isso no próprio Erich Fromm). americanas do Vietnã. Tudo isso representou um grande 3. André Amar, numa visão de conjunto da história da questionamento coletivo do sentido da presença americana psicologia publicada num dicionário de psicologia no mundo. Uma crise ética. situa quatro momentos dessa história. O da psicologia Esta psicologia humanista surgiu como uma reação, a partir humanista, que, na sua consideração, é o que vem da Idade da insatisfação sentida face aos dois conjuntos teóricos mais Média ou mesmo da Antigüidade grega, e vai até o começo importantes em psicologia: o behaviorismo e a da psicologia caracteriza-se basicamente por um bem como face a uma descrença nas possibilidades da posicionamento ético, isto é, por uma não-dissociação entre filosofia. Não se tratava de negar as descobertas feitas no uma pesquisa objetiva, digamos, e um posicionamento de behaviorismo e na psicanálise, mas de um sentimento de que valores: é a psicologia brotando do contexto de uma ética, de eles, permanecendo em suas perspectivas originais, não uma visão do sentido da existência. O segundo momento é o traziam as respostas de que se precisava: ser humano com da psicologia onde exatamente se dá essa ruptura seus questionamentos atuais não estava lá, por mais válidas entre a objetividade científica e a ética. Ele situa depois, que fossem as explicações ai dadas. Poderíamos dizer que como terceiro e quarto momentos, a psicanálise e a essa psicologia, permanecendo nos quadros de sua ortodoxia, psicologia fenomenológica, e neste último, principalmente, podia nos dizer como treinar um soldado, ou porque um começam a reaparecer coisas do primeiro É soldado ficava perturbado quando voltava da guerra, mas não curioso notar que esse autor, sendo europeu, não fala da era esse o problema do povo O problema era qual psicologia humanista tal como esse conceito aparece nos o sentido da guerra, e qual o sentido da vida e da morte (ou da Estados Unidos, como algo bem específico, mais do que no minha vida e morte, ou de meu filho ou de meu marido). E sentido de Erich Fromm, inclusive. Sua classificação sugere aqui a psicologia tradicional não ajudava muito. E tudo isso também que além de um posicionamento ético era urgente: os jovens estavam morrendo, e o holocausto já indissociável, uma psicologia humanista implicaria uma estava no horizonte. Quanto à filosofia, para Maslow pelo crítica à atitude científica. Retornaremos a esse ponto. menos, ela aparecia como um conjunto de palavras apenas, Vemos que esses três sentidos de humanismo sem nada de mais concreto. em seu denominador comum, apontam para o mesmo ponto, têm o mesmo "sentido". Quando o humanismo afeta a psicologia, então, resulta dai não 4. Mas concentremo-nos agora, então, na psicologia uma teoria específica, nem mesmo uma escola, mas sim um lugar humanista no sentido restrito e contemporâneo do termo. E comum onde se encontram (ainda que com pensamentos diferentes) aqui dois livros que se tornaram clássicos, por exemplo, todos aqueles psicólogos insatisfeitos com a visão de homem Psicologia Existencial Humanista, de Thomas Greening, e nas psicologias oficiais disponíveis. O rótulo específico de A Psicologia do Ser, de Abraham Maslow. É o tempo e a psicologia humanista é apenas um episódio, diria momentâneo, de década de 1960 nos Estados Unidos. Tempo de guerra do algo que tem um sentido maior: a presença de uma atitude humanista crise moral, de valores. O país envolvido por uma no interior da psicologia. guerra considerada absurda pelo povo E esse18 Mauro Martins Amatizzi Por uma Psicologia Humana 19 Penso que posso colocar esse sentido maior em quatro pontos: 1. A primeira parte do livro de Maslow tem por título A atitude científica define um tipo de relação (a relação exatamente "Uma jurisdição mais ampla para a objetificante) que não capta a pessoa atual mas apenas os dois capítulos que compõem essa parte são: "Para uma o ser humano como resultado. Para Buber, o centro da psicologia da saúde", e "O que a psicologia pode aprender pessoa só se revela no ato da As afirmações com os existencialistas". Trata-se, no fundo, de admitir que a científicas podem ser verdadeiras mas não caracterizam psicologia possa trabalhar a questão dos fins, da saúde, da aquilo que é especificamente auto-realização, e não apenas dos meios, da doença ou do A maneira como costuma ser tratado o processo de ajustamento Mas isso tudo é a questão do comunicação dentro de uma abordagem seria um vamos". A psicologia não pode ser apenas um conjunto de exemplo interessante. O processo pode ser dividido em seis conhecimentos técnicos a serviço de qualquer finalidade; é momentos: 1) o da mensagem intencional a ser comunicada; enquanto toma para si também essa questão que ela se faz 2) o da codificação da mensagem; 3) a comunicação ou afinal uma ciência do homem, e não antes. expressão propriamente dita; 4) a recepção da comunicação Isso a ver com a neutralidade ética da ciência como através das janelas 5) a decodificação no nível alguma coisa a ser redimensionada (e acredito que essa central superior; e 6) a compreensão da mensagem. Tenho questão não se aplique apenas às ciências humanas). A seis coisas diferentes e bem (e um distúrbio de ciência eticamente neutra formalmente, comunicação pode ser situado em um desses seis estágios). concreto nunca é neutro: ele se insere num Por mais útil que possa ser tal esquema, em termos de contexto de sentido e serve a alguma direção do caminhar compreensão do que vem a ser a comunicação ou mesmo o ato Para nos convencermos disso, basta que expressivo, nada de mais falso do que esse retrato. Para não consideremos os critérios de financiamento de falar senão de um aspecto, a própria mensagem depende dos Mas essa não neutralidade vai mais longe e toca na própria passos seguintes, neles se transforma, não está plenamente questão do alcance do saber: aquilo que eu vejo depende do constituída independentemente deles. Ela só se torna o que é ponto de vista a partir do qual me coloco para olhar. É quando já não é mais pura mensagem intencional (mas já é dentro de um posicionamento de compromisso com se: comunicação, por exemplo). A ciência tradicional não tem humano como um todo (coisa que não é nada abstrata, mas como lidar com isso. acarreta até posições políticas) que meus olhos se abrem Um outro exemplo é o do gesto significativo: o dedo que para determinados aspectos do ser humano, ou que me aponta para a lua, por exemplo. Idiota é aquele que, quando disponho a pesquisar determinados problemas e de um aponto para a lua, olha para meu dedo. A essência de um determinado modo. gesto só é dada fora dele. Olhando para o dedo, por mais que 2. Husserl foi um dos que iniciou um questionamento da o analise e disseque cientificamente, não chegarei à lua, e aplicação do método à realidade Não se portanto, nem mesmo à realidade de minha mão atual como nega a validade das Mas se discute o alcance gesto, como presença. Ora, o homem é essencialmente um Aquilo que elas afirmam caracteriza o ser humano? gesto, em sua presença ou em sua existência. Ele é um Para Husserl, a originalidade da consciência fica fora do atribuidor de sentido, e é assim que ele constitui um mundo e alcance do método das ciências naturais exatamente por se constitui a si mesmo na relação com mundo. Se sua realidade intencional (que só é captada através da separarmos as coisas, compartimentalizando-as não mais questão do sentido). veremos a realidade significativa, a atual, o presente. Nada mais diferente de um movimento que um retrato, nada mais diferente de um ser vivo que um20 Mauro Martins Amatuzzi A diferença entre a pesquisa objetiva e a participante Capítulo II também ilustra a mesma questão. Não se trata apenas de uma diferença de método para se conseguir o mesmo saber produzido é concretamente outro, o assunto pesquisado é outro, o possuidor do saber é outro. Silêncio e Palavra Trata-se de uma diferença na forma de conceber a relação humana e o 3. Gosto de entender a atitude fenomenológica por comparação com a atitude ingênua e a Segundo a atitude ingênua, existe um mundo independente, constituído por si mesmo, e Juntamente com a questão do sentido, temos também a questão da palavra, não menos importante para caracterizar o como tal (e Maslow fica ainda nessa atitude, ao humano. Nada entenderemos do "aparelho significatório" que parece; é o preço que ele paga por não ter sido um pouco (expressão que poderia substituir a de "aparelho mais filósofo). Já na atitude sabemos que o que sem levar em conta a intencionalidade e a linguagem. Esse percebemos desse mundo depende de nossos referenciais. texto foi publicado originalmente em 1992, na revista Estudos Costuma-se referir a Kant, com sua ao conhecimento, de Psicologia (PUC-Campinas), 9(3), pp. 77-96, com o título para o nascimento mais forte dessa atitude; é preciso silêncio e a Faço aqui pequenas alterações de relativizar o conhecimento e estudar os referenciais através detalhes apenas para melhor expressar o que está sendo dos quais ele se dá. Creio que a atitude fenomenológica vai exposto. No item III, quando se trata do secundário, houve modificações um pouco maiores, mas mesmo assim além da crítica, e eu a formularia assim: é só na interação que consistiram apenas em acréscimos de algumas poucas frases teremos o verdadeiro conhecimento visando explicitar a relação do tema com a psicologia e a compõe a interação humana com o mundo, é um aspecto dela. psicoterapia. Uma interação sem conhecimento é pobre e de um nível inferior, e ilude se não nos dermos conta disso. O humanismo em psicologia aponta para uma atitude 4. É só nessa postura totalmente diferente que se revela o ste capítulo poderia ter o seguinte homem no que ele tem de próprio. Aquilo que se revela é E uma leitura de Merleau-Ponty a partir das uma totalidade em movimento, uma criatividade, e não preocupações de um psicoterapeuta. De completamente isolável de totalidades mais fato, ele não pretende reconstituir o pensamento homem como pessoa atual é o homem como palavra, isto é, desse Merleau-Ponty em seu contexto próprio e a como abertura para algo outro, onde corpo e alma são partir das questões que ele se colocava. Mas visa indissociáveis (não podendo ser compreendidos um sem o responder a uma pergunta como "em que esse filó- outro); é ato e não resultado (isto é, existe na teração com sofo nos faz pensar, a nós ou o mundo e com os outros homens); é busca de sentido, atribuição e comunicação de sentido, criação de mais "em que ele pode nos ajudar a pensar nossas pró- sentido. No fundo, a meu ver, a presença do Hum anismo na prias É claro que essa elaboração pres- Psicologia é a presença de uma saudade. Saudade do supõe uma primeira leitura dos textos a partir da homem atual, desafiado no presente em relação ao sentido qual algumas pistas foram surgindo. Uma dessas de sua vida. pistas é a idéia de silêncio, não apenas como ausên- cia de mas como algo positivo e embrioná-22 Mauro Martins Amatuzzi Por uma Psicologia Humana 23 rio no plano das significações. Não pretendemos seguir odas as fala autêntica decide e desencadeia algo. Ela não apenas traduz, mas pistas, mas começaremos por esta. cumpre, dá andamento a uma intenção, tornando-a, de certa forma, Essa maneira de ler um autor (já falecido) não é isenta de riscos e passado como mera intenção, e dando origem a novas intenções no armadilhas. Contudo penso que poderemos evitá-las se em interior de um conta que as preocupações que nos guiam não são as De que se trata, na realidade? Que silêncio é esse e como ele do autor lido e que devemos tomar cuidado para não misturar coisas, germina num falar? Não é a esse silêncio que importa chegar no pro- atribuindo a ele pensamentos que serão nossos, mesmo quando cesso terapêutico, para que ele possa ser falado e assim desencadear o suscitados por ele. viver criativo? A pesquisa foi feita basicamente em quatro textos: Fenomenologia da Percepção (FP), A Estrutura do Comportamento (EC), a Fenomenologia da Linguagem (FL), a Linguagem Indireta e as do Silêncio (LIVS), os quais foram citados a partir da edição em se Da fala ao silêncio bem que algumas vezes a tradução tenha sido modificada em 1. Eis como Merleau-Ponty fala desse silêncio: conta o original francês. Vamos formular agora, a título de hipóteses, algumas Perdemos a consciência do que há de contingente na afirmações que poderão nos orientar no começo dessa expressão e na comunicação, seja na criança que aprende a falar, seja no escritor que diz e pensa pela primeira vez alguma Veremos depois o que os textos nos dizem a respeito. coisa, finalmente em todos aqueles que transformam em A plena expressividade ou não da fala, ou seja, sua palavras um certo silêncio (FP, 194). pode ser descrita a partir de sua relação com o pré-verbal que a Este algo que a precede e a mobiliza, posto que não-verbal, ser A criança que aprende a falar não apenas incorpora signos denominado, numa aproximação primeira, de A fala é novos ao seu repertório: ela tem acesso a um novo modo de de um determinado comunicação e de relação com o mundo. Esse exemplo vem ao lado Do silêncio total do viver biológico emerge uma que daquele do escritor quando diz e pensa pela primeira vez alguma vem a ser a intenção significativa (ou intenção de significar). É a essa o que é diferente de simplesmente repetir o já pensado ou de intenção que remete a fala como à sua origem. fazer um novo arranjo, mas que, na verdade, nada cria de Quando falamos de significado, referimo-nos, na ao Trata-se sempre do acesso primeiro à palavra. E mesmo aspecto conceitual, abstrato, de algo que é mais vasto e, sua quando usamos para isso palavras já conhecidas, se realmente concretude, envolve outros aspectos, pois é também estamos dizendo algo pela primeira vez, e assim criando para nós experiência de valor, desejo, intenção. A maneira pela qual a fala se significados, é mais verdade dizer que a fala contribui para modificar une a esse algo mais amplo o expressa e lhe dá forma, é aquilo lhe sentido comum das palavras, do que dizer que ela é constituída por constitui sua significância, ou digamos assim. esses sentidos comuns (FP, p. 190). Uma fala será tanto mais significativa, quanto mais estiver Quando a fala é original ela faz evoluir a própria Esses diretamente conectada com essa porção emergente de que dois casos de acesso à palavra (o da criança e do escritor) são coloca o falante face a um mundo Prefiro aqui o justamente exemplos de todos aqueles que transformam em palavras significância, ao invés de significação, porque este último é ainda certo Um certo silêncio. Não todo silêncio, nem limitado ao aspecto conceitual daquilo que quero Ao não qualquer Um certo. Perdemos consciência do que há de apenas faço signos a partir de uma intenção já pronta. Na verdade a único e novo no ato realmente expressivo.24 Mauro Martins Amatuzzi Por uma Psicologia Humana 25 E logo em seguida Merleau-Ponty acrescenta: Com a fala autêntica ocorre algo semelhante: A fala, naquele que Nossa vista sobre o homem permanecerá superficial fala, não traduz um pensamento já feito, mas o cumpre (FP, p. 189). Ou: enquanto não remontarmos a esta origem, enquanto não próprio sujeito pensante está numa espécie de encontrarmos, sob o barulho das palavras, silêncio ignorância de seus pensamentos enquanto não os formulou primordial, enquanto não descrevermos o gesto que rompe para si ou mesmo falou e escreveu, como mostra exemplo esse silêncio (FP, p. 194). de tantos escritores que começam um livro sem saber ao certo O silêncio primordial é, por assim dizer, a alma da palavra o que escreverão nele (FP, p. 188). pronunciada, é aquilo que se concretiza e adquire sentido no mundo 4. Dois tipos de expressão descrevem esse silêncio: com o discurso. A ruptura do silêncio que dá origem à fala não é 1. um certo vazio da consciência (FP, p. 194); um voto (desejo) propriamente a eliminação do silêncio, mas uma realização dele. instantâneo (FP, p. 194); um vazio determinado (FL, p. 134); um 2. Merleau-Ponty dá, dentre outros, os seguintes exemplos da fala certo vazio (FL, p. 134); uma certa carência que procura se originária: a do apaixonado que descobre seu sentimento, a do escritor e preencher (FL, p. 194); e do filósofo que despertam a experiência primordial anterior às 2 intenção significativa nova (FP, p. 194); intenção de falar (FP, p. tradições (FP, p. 189). Nesses exemplos o silêncio pré-verbal que 185); intenção significativa em estado nascente (FP, p. 207); mobiliza e dá vida à fala é identificado como o sentimento que o intenção significativa que em movimento a fala (FP, 194). apaixonado descobre (revela-percebe) e a experiência primordial (anterior às tradições) que o escritor ou filósofo despertam (acordam, Eis alguns textos onde aparecem essas expressões: trazem à vida ou à consciência). sentimento preexistia, mas quando Para o sujeito falante exprimir é tomar consciência; não descoberto ele adquire um estatuto existencial novo. A esta luz, antes de exprime somente para os outros, exprime para que ele próprio ser pronunciado, ele era um pré-sentimento. Só agora ele é assumido saiba que visa. Se a palavra quer encarnar uma intenção como tal, com esse sentido. A experiência primordial preexistia, mas só significativa, que é apenas um certo vazio, não é somente para recriar em outrem a mesma falta, a mesma privação, mas ainda quando desperta é que ela tem acesso a um outro nível e se realiza no para saber de que há falta e privação. [...] Para a intenção compromisso da pessoa. Só quando pronunciados é que sentimento e significativa, voto mudo, trata-se de realizar um certo arranjo experiência adquirem sua realidade determinada e plena. Descobrir o dos instrumentos já significantes ou das significações já falantes sentimento e despertar a experiência primordial são também formas de [...] suscitando no ouvinte o pressentimento de uma significação romper o Quando rompido o silêncio se revela pois como outra e nova, e, inversamente, promovendo naquele que fala ou sentimento ou experiência. Não como conceito ou Estes mais o escreve a ancoragem da significação inédita nas significações já exprimem posteriormente do que o constituem. disponíveis. [...] Exprimo quando, utilizando todos esses 3. silêncio está para a fala assim como a inspiração está para instrumentos já falantes, faço-os dizer alguma coisa que nunca haviam dito (FL, pp. 134-135). a obra de arte. A inspiração antes da obra é uma inquietação apenas, um determinado estado de procura, e o artista só sabe definitivamente A intenção significativa é mais de ordem dinâmica, do desejo, o que ele queria pintar depois do quadro pronto. A inspiração o guia, do que de ordem cognitiva, conceitual. E a fala é primeiramente o mas não é um quadro interior. pintar é o ato criativo. artista só tem desencadeamento de algo dessa ordem dinâmica, mesmo que possam um meio de se representar a obra na qual trabalha: é necessário que ele a resultar pensamentos. faça (FP, p. 191). E ainda: A expressão estética confere ao que ela exprime A intenção significativa em mim (como também no a existência em si (FP, p. 193). ouvinte que a reencontra ao me escutar), mesmo que deva em seguida frutificar em "pensamentos", no momento é26 Mauro Martins Amatuzzi Por uma Psicologia Humana 27 apenas um vazio determinado a ser preenchido pelas palavras o excesso do que quero dizer sobre aquilo que já foi dito 6. Recuamos pois da fala autêntica para a intenção de falar que (FL, 134) (destaque do autor). é um certo vazio, um desejo, um silêncio determinado, que por sua E na Fenomenologia da Percepção: vez emerge da natureza ou do passado como um salto qualitativo pressupondo uma abertura na própria natureza. É pela fala original Da mesma forma que a intenção significativa que que o homem se transcende a si mesmo em direção a um sentido movimentou a palavra do outro não é um pensamento explícito, novo. Isso não é um mero movimento cognitivo. É um movimento mas uma certa carência que procura se da mesma existencial. forma a retomada por mim desta intenção não é uma operação de meu pensamento, mas uma modulação sincrônica de minha Reconhecemos alguns existência, uma transformação de meu ser (FP, p. 194). o da fala autêntica; o do sentimento ou experiência nomeados pela fala; 5. O que precede a fala original e a habita dando-lhe vida, o da intenção significativa na fala; Merleau-Ponty, não é o Este se cumpre na fala. para Só o da intenção significativa em estado nascente, carência, sabemos verdadeiramente o que pensamos quando o O vazio, silêncio determinado; e vem antes é pois uma mobilização para falar (intenção significativa que o da abertura ou potência aberta e indefinida de significar ou em estado nascente, desejo, carência, vazio, silêncio primordial). de se transcender. A intenção de falar só se encontra numa experiência Na verdade é dificil distinguir todos esses É nossa aberta, como a ebulição de um quando na densidade consideração que incide em separado sobre "partes" de um processo do ser, zonas de vazio se constituem e se deslocam para (FP, p. 206). em que concretamente eles estão interpenetrados. Se por vezes conseguimos separar um momento como anterior a outro, será mais esta mobilização lança o ser humano em outro nível, no novo como momento de gestação e não propriamente algo outro. em relação à natureza ou em relação ao passado. que está em jogo é uma capacidade de auto-ultrapassamento (A fala falante) é aquela na qual a intenção significativa se Do silêncio à fala encontra em estado Aqui a existência se polariza num certo sentido que não pode ser definido por nenhum 1. No caminho de volta do silêncio à fala um primeiro aspecto é o objeto natural. [...] Esta abertura sempre recriada na do mistério da expressão. Merleau-Ponty usa expressões como "lei plenitude do ser é o que condiciona a primeira palavra da desconhecida" e "milagre". Em nossa arqueologia fenomenológica, criança como a palavra do escritor, a construção da palavra como a dos conceitos (FP, p. 207). partindo da fala chegamos ao silêncio e suas por camadas que se misturam. E podemos voltar. Em tudo isso descrevemos processos, e E em outro lugar: nossas descrições têm certamente um referente identificável. Mas, em É necessário pois reconhecer como fato último estar definitivo, não explicamos o ato expressivo. potência aberta e indefinida de significar, isto é, ao A intenção significativa nova só se reconhece tempo de captar e de comunicar um sentido, pela qual homem recobrindo-se de significações já disponíveis, resultadas de se transcende em direção a um comportamento novo, ou em atos de expressão anteriores. As significações disponíveis se direção ao outro, ou em direção a seu próprio pensamento entrelaçam repentinamente segundo uma lei desconhecida, e através de seu corpo e de sua palavra (FP, p. 204). de uma vez por todas um novo ser cultural começou a existir. pensamento e a expressão constituem-se pois28 Mauro Martins Amatuzzi Por uma Psicologia Humana 29 simultaneamente, quando nossa aquisição cultural se mobiliza (As significações se tornam disponíveis) quando, em seu a serviço desta lei desconhecida, como nosso corpo de tempo, foram instituídas como significações a que posso repente se presta a uma gesto novo (FP, 194). recorrer, como significações que tenho e foram por uma E uma capacidade do corpo humano apropriar-se, em uma operação expressiva do mesmo tipo. [...] Exprimo quando, série indefinida de atos descontínuos, de núcleos significativos utilizando todos esses instrumentos já falantes, faço-os dizer que ultrapassam e transfiguram seus poderes naturais. Este ato alguma coisa que nunca haviam dito (FL, 135; cf. também de transcendência se encontra primeiramente na aquisição de FL, p. 136, e FP, p. 207). um comportamento, depois na comunicação muda do gesto: é 3. É importante ressaltar aqui o condicionamento que a pela mesma potência que corpo tanto se abre a uma conduta disponível representa, para que possamos depois na nova quanto a faz compreender a testemunhas Nos verdadeira expressão. dois casos um sistema de poderes definidos de repente se decentra, se rompe e se organiza sob uma lei desconhecida, A língua traz consigo uma atitude, um determinado modo de se tanto ao sujeito quanto à testemunha exterior, e que se revela a relacionar com o mundo, e suas palavras, antes de carregarem um eles nesse exato momento [...]. A linguagem coloca mesmo conceito abstrato, trazem uma significação emocional presa a elas, problema: uma contração da garganta, uma emissão sibilante de tudo isso resultando da sedimentação dos atos expressivos que vêm entre a língua e os dentes, uma certa maneira de movimentar constituir o conjunto de significações disponíveis. nosso corpo se deixa de repente investir de um sentido figurado, (As diferenças entre as diversas línguas) não representam e fora de nós. Isto não é nem mais nem menos diferentes convenções arbitrárias para exprimir mesmo milagroso que a emergência do amor no desejo, ou do gesto nos pensamento, mas sim diferentes maneiras para corpo humano movimentos desordenados do começo da vida (FP, p. 204). de celebrar o mundo e finalmente de o viver (FP, 198). 2. Como esta lei desconhecida atua? Ela trabalha sobre Ao vivermos numa portanto, somos subsidiários de significações disponíveis fornecidas pela cultura, (que abstratamente toda experiência acumulada que a constitui. Isso nada mais é que a consideradas constituem a língua como parte principal de um sistema comunidade cultural na qual crescemos e vivemos e que de signos), reorganiza os signos em função de uma intenção evidentemente determina nossas condutas. significativa nova, e os fazem dizer algo que nunca antes E Isso que estamos aqui chamando de conteúdo de uma língua, é por isso que as falas realmente expressivas acabam contribuindo um modo de ser sedimentado por ela (pela comunidade na qual para a própria evolução da língua. vivemos), pode se verificar até mesmo no nível das palavras. Sem Significações disponíveis, isto é, atos de expressão as palavras denunciam um modo de recortar o mundo e anteriores, estabelecem entre os sujeitos falantes um mundo portanto de se comportar. Merleau-Ponty fala da atitude que elas comum ao qual a palavra tual e nova se refere [...]. sentido contêm e de seu significado gestual, linguageiro, que capta uma da fala nada mais é do que o modo como ela maneja este emocional. E é sobre esse significado gestual que se mundo linguístico ou como ela modula sobre este teclado de significações adquiridas (FP, p. 197). constrói posteriormente um significado conceitual (cf. FP, p. 190, A transmite diretamente, concretiza, um modo de se E como foram adquiridas essas significações? Como todos os relacionar com o mundo (FP, p. 201). gestos significativos que lançam o ser humano no nível propriamente 4. Mas ao mesmo tempo que isso se relaciona com um estilo de humano: um comportamento novo (de outra ordem de lingua (a conduta ai sedimentada), relaciona-se também com estilos complexidade), um gesto mudo, a linguagem, como vimos no texto Temos não só o estilo de nossa língua, mas também nossos anterior (FP, p. 204). estilos próprios. Quanto a isso podemos dizer que cada um tem sua30 Mauro Martins Amatuzzi Por uma Psicologia Humana 31 língua própria, constrói, com a forma que usa sua língua, seu jeito próprio (diríamos em português) de falar, o que equivale a dizer, jeito Mas isso que vale para a filosofia (só chego ao universal passando um próprio de se relacionar ou de construir o mundo. E temos seu pelo particular), vale também para o esforço de compreensão profunda comunidade segundo nível de determinação: somos tributários não aqui de uma pessoa em psicoterapia. desejo só aparece nas entrelinhas do história onde fomos socializados, mas também de nossa apenas própria da estilo. pessoal. que importa no momento, nessa viagem de volta do silêncio à fala, é nos darmos conta de como ele vai se revestindo de Assim como em país estrangeiro eu começo a compreender o sentido das palavras por seu lugar num contexto de ação e significados, passando pela cultura e pela história pessoal. participando da vida comum, do mesmo modo um Mas se estamos considerando a fala autêntica, a expressão filosófico ainda que mal compreendido, me revela ao menos texto final não termina aí. certo estilo, seja um estilo espinosista. criticista um 5. A expressão é, na verdade, um tatear em torno de algo que que é o primeiro esboço de seu sentido. ou nunca será plenamente esgotado. que ela faz é apontar para, Começo a compreender uma filosofia deslizando-me realmente, mas sem se apropriar e conter plenamente. Isso será maneira de existir desse pensamento, reproduzindo o tom, na o importante na hora de pensarmos a compreensão. Por ora fiquemos sotaque do filósofo (FP, p. 190). como algumas indicações de Merleau-Ponty. Mas isso que vale para uma língua estrangeira e Se ela (a língua) quer dizer e diz alguma coisa, não é porque Nossa filósofo vale para qualquer pessoa em se tratando de fala para um cada signo veicule uma significação que lhe pertenceria, mas fala não representa o nosso mas é o expressiva. porque todos juntos aludem a uma significação, sempre em mundo, ou é o mundo que Também que somos aqui há face uma ao sursis se considerados um a um, e em rumo à qual eu os sedimentação e uma experiência adquirida. ultrapasso sem que nunca a contenham (FL, p. 132). No caminho de volta do silêncio à fala, a intenção significativa No que se refere à linguagem, se o signo se torna então passa por pelo menos esses níveis de Mas onde está ela significante por sua relação lateral a outros, o sentido só em sua pureza? Em sua pureza, dirá Merleau-Ponty, ela é surge então à intersecção e como no intervalo das palavras um certo vazio, como vimos, um voto ou desejo que vai apenas (LIVS, p. 143). de significações e determinações na medida em se recobrindo sentido, quando é novo, não está contido pelas palavras, individual expressando. Se quisermos entretanto nos aproximar dela que (no vai se mas indicado por elas, e isso mesmo representa o caminhar do de qualquer discurso expressivo), ou de um plano ser humano. que queremos dizer [...] não é senão o excesso do que universal (no plano de um discurso para além dos pensamento estilos, é sobre o que já foi dito (LIVS, p. 175). preciso que passemos pela concretude de uma determinada expressão. 6. Finalmente a "determinação" última da fala autêntica. que Se houver um pensamento universal (para além dos representa ela? que ela faz, ou cumpre? estilos), será retomando o esforço de expressão comunicação tal como foi tentado por uma língua e Que exprime pois a linguagem se não exprime pensamentos? obteremos, assumindo todos os que o Ela representa, ou melhor ela é a tomada de posição do sujeito no deslizamentos de sentido de que uma tradição todos os mundo de suas significações [...]. gesto fonético realiza, para o feita e que justamente medem sua potência de expressão é sujeito falante e para aqueles que o escutam, uma certa (EC, p. 198). estruturação da experiência, uma certa modulação da existência, exatamente como um comportamento do meu corpo investe para mim e para o outro os objetos que me cercam de uma certa significação (FP, pp. 203-4).32 Mauro Martins Amatuzzi uma Psicologia Humana 33 (Na potência aberta de significar) o homem se transcende cada fala que rompe o silêncio lançando o falante numa nova em direção a um comportamento novo ou em direção ao outro ou em direção a seu próprio pensamento através de ordem. Merleau-Ponty chama a isso fala autêntica ou originária. E seu corpo e de sua palavra (FP, p. 204). vimos dentre os exemplos possíveis Tomada de posição do sujeito, estruturação da experiência, fala da criança que pronuncia sua primeira palavra, a do modulação da existência, transcendência em direção ao comportamento apaixonado que descobre seu sentimento, a do "primeiro homem que falou", a do escritor e do filósofo que despertam a novo. Essas afirmações mostram o caráter existencial, comprometedor, experiência primordial anterior às tradições (FP, p. 189, nt.5). envolvente, decisório da verdadeira expressão. Dizer realmente algo é tomar posição, e com isso entrar num mundo novo, pelo menos no que São essas falas assim densas que se identificam com o diz respeito a um aspecto particular. A fala autêntica depende mais do pensamento; nesses momentos expressivos a fala não traduz um "eu posso", do que do "eu sei", diz também Merleau-Ponty (FL, p. 133). pensamento já feito, mas o cumpre (FP, p. 189), ela é a efetuação do Com a fala autêntica o homem, apoiado no contexto cultural e em sua pensamento, como também diz Merleau-Ponty, e é por isso que só sei o própria experiência pessoal, os transforma e os leva adiante. que penso (em se tratando de pensamento novo, nascente) quando o No caminho de volta do silêncio à fala, encontramos pois: digo, assim como um artista só sabe o que quer pintar depois que uma lei desconhecida; o quadro, ou um poeta só sabe, em definitivo, o que quer dizer, significações disponíveis que estão no sujeito como uma depois que escreveu o poema. essa fala expressão originária que possibilidade corporal ou essências emocionais; desencadeia movimentos existenciais, transformadores do ser, da forma aquilo que a língua usada contém como atitude recebida ou de relacionar (e é por isso que ela interessa tanto aos terapeutas). modo de ser (a presença da cultura); Ora, evidentemente nem todas as falas são assim. A maioria os estilos pessoais ou modos de ser da experiência pessoal, mesmo não o é. E o problema geral das pessoas que procuram terapia também como recebidos e constituintes da expressão (a pre- que a desejada mobilização do ser em direção a sentidos novos está sença da história pessoal); estagnada no secundário, e com ela seu existir. A pessoa não encontra a expressão como um tatear em torno de um sentido nunca plenamente contido em palavras; e, finalmente Merleau-Ponty distingue pois a fala autêntica da expressão uma tomada de posição do sujeito (que transfigura todas as E as questões que nos ocorrem agora são: determinações anteriores). a. o que é exatamente essa expressão segunda (que não Ocorre que a maioria de nossas falas não tem essa densidade da cumpre tudo o que a originária cumpre), e como ela se fala verdadeiramente expressiva e nova. Como se introduz ai no tornou possível? mundo de nossa linguagem a fala banal, corriqueira, empírica, mais b. podemos separar claramente dois tipos de fala, uma autêntica ou menos repetitiva, que não acrescenta nada nem lança a pessoa em e outra não, ou trata-se mais de duas dimensões aparentes em um compromisso novo? qualquer fala, de forma que possamos encontrar um solo de autenticidade mesmo em uma expressão segunda? 2. Vejamos então como Merleau-Ponty introduz a distinção. Um primeiro texto é o seguinte: surgimento do secundário Há lugar, é claro, para se distinguir uma fala autêntica, que 1. Tudo o que dissemos até agora refere-se à fala autêntica, aos formula pela primeira vez, e uma expressão segunda, uma fala momentos realmente expressivos da fala: a primeira fala pronunciada sobre falas, na qual consiste o ordinário da linguagem com sentido, cada fala onde um novo sentido se cria ou está se empírica. Somente a primeira é idêntica ao pensamento (FP, p. 189, nt. 4).34 Mauro Martins Amatuzzi Psicologia Humana 35 Nesse texto o que se opõe à fala autêntica é uma expressão Num texto bem posterior Merleau-Ponty retoma a mesma segunda. Em outros lugares aparecem termos como fala originária diferenciação e a confirma: opondo-se a uma fala A expressão pode ser segunda, ou derivada em relação a uma primeira. A palavra constituída, tal como Distingamos o uso empírico da linguagem já feita, e o uso criativo, de que o anterior, aliás, só pode ser um resultado. funciona na vida cotidiana, supõe preenchido o passo decisivo da expressão que é palavra no sentido da linguagem empírica, isto é, a (FP, p. 194). oportuna chamada de um signo pré-estabelecido, não o é Certamente podemos imaginar um homem que só falasse para a linguagem autêntica. É, como disse Mallarmé, a moeda automaticamente; mas isso seria ou efeito de danos cerebrais, como gasta que se passa em silêncio de mão em mão. Inversamente, no caso dos afásicos, ou então não seria uma linguagem propriamente a verdadeira palavra, aquela que significa, que torna enfim dita, como é o caso de macacos que "aprendem a falar", ou de presente a "ausente de todos os buquês" e libera o sentido perturbações genéticas muito severas e no entanto compatíveis com o cativo na coisa, não é, aos olhos do uso empírico, senão uso mais ou menos mecânico de algumas poucas palavras. A silêncio, visto que não vai até o nome comum. A linguagem é linguagem segunda, contudo, ao contrário disso tudo, é comum em por si mesma oblíqua e autônoma e, se lhe ocorre significar diretamente um pensamento ou uma coisa, trata-se apenas nossa vida. É nossa linguagem ordinária, corriqueira, pela qual de uma capacidade secundária, derivada de sua vida interior. designamos objetos e interagimos no Estamos falando De fato o escritor, como o tecelão, trabalha às avessas: pois de uma possibilidade comum, não extraordinária, de quem quer preocupa-se unicamente com a linguagem e em sua trilha que tenha tido acesso à fala. vê-se de repente rodeado de sentido (LIVS, p. 145). Uma outra característica dessas falas é que elas, ainda que às Notemos, de passagem, que aqui surgem dois sentidos novos de vezes complexas, na verdade não trazem nada de novo. São falas que o primeiro é o da linguagem empírica, que significa mas não não exigem de nós nenhum verdadeiro esforço de expressão (FP, p. presente um sentido novo. É o silêncio com que passamos para Passem-me o sal, vou comprar pão, que horas quanto custa? mãos a moeda conhecida e gasta. Outro é o silêncio da verdadeira são exemplos de falas de manutenção, e sua compreensão é imediata palavra, porque ao tornar presente um sentido novo ela não significa por qualquer pessoa que seja da mesma comunidade São os nomes comuns. É o sentido novo surge nas instrumentos de nosso cotidiano viver, do manuseio social de objetos entrelinhas, e por isso mesmo esta fala faz evoluir a língua. em função de nossas E são falas sobre falas porque 3. Mas como se forma essa expressão segunda, esse uso correspondem ao uso derivado de palavras que originariamente na derivado da linguagem? comunidade foram expressivas, a serviço de necessidades também derivadas, nesse sentido que não procuram romper algum silêncio ato de expressão (original) constitui um mundo primordial. Com elas não há necessidade de significações lingüistico e um mundo cultural, ele faz no ser o que Merleau-Ponty as chama de falas banais. tendia para além. a palavra falada que desfruta de significações disponíveis, como uma fortuna adquirida. A Vivemos num mundo onde a palavra está Para partir destas aquisições, outros atos de expressão autêntica todas essas falas banais possuímos em nós significações já [...] tornam-se possíveis (FP, p. 207). formadas. Elas somente suscitam em nós pensamentos segundos; e estes, por sua vez, se traduzem em outras tantas As expressões originais se sedimentam em aquisições palavras que não exigem de nós nenhum esforço verdadeiro culturais, significações disponíveis, as quais poderão ser retomadas de expressão, e não pedem de nossos ouvintes nenhum linguagem empírica derivada (expressão segunda), ou então esforço de compreensão (FP, 194). instrumentalizando expressões novas onde haverá, neste caso, uma transformação do sentido dos instrumentos culturais.36 Mauro Martins Amatuzzi uma Psicologia Humana 37 A palavra (fala) enquanto distinta da língua, é esse complexidade da operação. Nesse contexto a expressão "linguagem momento em que a intenção significativa, ainda muda e toda aparece significando a materialidade das palavras, por em ato, revela-se capaz de incorporar-se à cultura, minha e de outro, capaz de me formar e de formá-lo, transformando ao conceito/pensamento que seria o sentido. A "fala viva" e o sentido dos instrumentos Por sua vez torna-se expressiva os reúne. o sentido novo adquire corpo e se torna então um "disponível" porque, retrospectivamente, nos dá a ilusão de adquirido, disponível para operações ulteriores. que estava contida nas significações já disponíveis, quando na Pode-se certamente comparar as relações entre a alma e verdade, por uma espécie de astúcia ela as esposara apenas o corpo com as relações entre o conceito e a palavra vocábulo para infundir-lhes uma nova vida (FL, p. 136). (mot), mas com a condição de se perceber, sob esses pro- A expressão segunda, seja no sentido da linguagem empírica dutos separados, a operação constituinte que os une, e de se ordinária pela qual prosseguimos nosso cotidiano, seja no sentido de reencontrar, sob as linguagens empíricas, acompanhamento exterior ou vestimenta contingente do pensamento, a fala uma fala que de fato não cria um sentido novo (mesmo quando às (parole), que é, somente ela, a efetuação do pensamento, vezes o pretenda, como é o caso do discurso circular da pessoa que onde o sentido se formula pela primeira vez, funda-se assim procura terapia), é uma possibilidade que se insere na própria como sentido, e se torna disponível para operações ulteriores natureza da linguagem do homem. (EC, 243). 4. E, finalmente, para alargarmos um pouco mais o âmbito de A fala viva citada aqui é, evidentemente, a própria operação possibilidades dessa expressão segunda, citemos dois textos, um expressiva no sentido autêntico do termo. E a linguagem empírica anterior e outro posterior à "Fenomenologia da Percepção". como "corpo" dessa operação: "acompanhamento exterior ou No primeiro, para elucidar a questão das relações alma/corpo, vestimenta contingente do pensamento". É sob ela que devemos Merleau-Ponty evoca as relações conceito/palavra. Nos dois casos não encontrar a "fala viva" se quisermos chegar ao sentido. Aqui a podemos separar os dois termos como se fossem duas coisas ou linguagem empírica não é, pois, sinônimo ou exemplo de fala banal, substâncias. Eles se unem naquilo que é o concreto: o comportamento mas algo que está presente também na fala autêntica. humano (para os termos alma/corpo), e a fala viva (para os termos Há na fala uma camada superficial que devemos ultrapassar conceito/palavra). Esse concreto é a operação constituinte na qual para chegarmos ao sentido. texto não é completamente claro a percebemos depois os dois termos como "produtos separados". Assim respeito, mas creio podermos dizer que, desde que se trate de fala e sendo, cada grau de complexidade do comportamento humano não de mero automatismo ou reação mecânica, podemos procurar (operação constituinte do corpo/alma) seria corpo em relação ao grau que está sob a "linguagem". O tatear em torno do sentido mais complexo, e alma em relação ao menos complexo, assim como novo que se procura pode nos parecer linguagem empírica no sentido cada fala efetiva (operação constituinte do conceito/ palavra) é palavra de expressão segunda, mas contém algo vivo, um sentido em (vocábulo) em relação a falas posteriores e conceito (pensamento) em gestação, um silêncio que procura se romper. Ora, esse parece ser o relação a falas anteriores. Os dois pares são inseparáveis, mas os típico da pessoa que procura terapia: seus falares parecem distinguimos para compreender o próprio dinamismo da operação em no secundário, um falar-sobre que não tem desencadeado questão (o comportamento ou a fala). O corpo em geral, assim como a viver, mas que por já ser um tatear (quando na terapia), aponta par palavra (vocábulo), seria o adquirido; e a alma em geral, assim como o algo vivo. conceito (pensamento), seria o sentido novo que se instaura. Um não outro texto é bem posterior à "Fenomenologia da vive sem o outro, mas não são duas operações nem duas coisas, mas dois Percepção". Ele mostra que um discurso teórico, abstrato ou mesmo momentos de nossa consideração, necessários para compreender a pode ficar aquém do que pretende resolver se não for fruto daMauro Martins Humana 39 aboração de uma experiência concreta, de um vivido que inclui a fala secundária não cria significados novos mas apenas onhecimentos, experiências anteriores, valores. Ou seja, se não for executa (ou aplica) significados antigos. Por isso ela não exi- na autêntica operação expressiva. Não basta que articule ge esforço especial de expressão nem de compreensão; tanto conceitos ou fatos observados, diriamos. E preciso que uma como outra são imediatas (a fala "nova" exige esforço do isso seja feito como autêntica operação expressiva. Senão de expressão e também de compreensão); a relevância, a significância. Ora, isso é também uma forma a fala secundária é uma possibilidade decorrente da própria secundário: ficar aquém dos problemas que se desejava resolver, natureza da linguagem humana. Falas originais se sedimen- mais complexo que possa ser o discurso. Um discurso tam em significações disponíveis que são depois usadas se- mesmo filosófico, corretos do ponto de vista formal, podem ser cundariamente, e isso é necessário para a vida cotidiana; relevantes, não significantes, inoperantes diretamente, por causa dessa possibilidade da linguagem existe também cundários. Até mesmo a ciência pode não "dizer" nada. um uso secundário da capacidade de significar (a fala) que que queremos dizer não se mostra, fora de toda palavra, decorre de um distanciamento do silêncio originário: é pos- como pura significação. Não é senão o excesso do que vivemos sivel falar assim distanciado de si, mas esta fala não envolve sobre o que já foi dito. [...] (No campo do pensamento político, a pessoa como um todo e nem a compromete; por exemplo) toda ação e todo conhecimento que não passam uma fala será inautêntica quando se esperaria, pelo contexto da por essa elaboração (onde entram em jogo todos os nossos relação onde ela se encontra, que ela fosse plenamente expres- conhecimentos, todas as nossas experiências e todos os nossos siva, e no entanto, por um mecanismo imposto pelo próprio su- valores) e querem propor valores que não tenham tomado jeito (deliberadamente ou não), ela deixa de ser plenamente corpo em nossa história individual e coletiva, ou bem, o que dá expressiva, e, de fato, naquele momento, o sujeito fica cortado no mesmo, escolher meios por um cálculo e por um proceder de um contato com seu próprio silêncio; inteiramente técnico, acabam aquém dos problemas que no entanto, por ser apesar de tudo expressiva (embora não desejavam resolver (LIVS, p. 175). plenamente), a fala secundária, mesmo quando inautêntica, A possibilidade do secundário se instala até mesmo no interior contém em sua concretude pistas dinâmicas para o que pode- discurso filosófico, político ou E nesses casos rá vir a ser autêntico ou original. que determina isso, como sempre, é ele não ser uma operação Creio que podemos acrescentar que a fala de uma pessoa que etamente expressiva (ou seja, estar desconectado do silêncio que é procura psicoterapia é um tatear em torno de um significado, um xcesso do que vivemos sobre o que já foi dito). Mas nesse próprio esforço de expressão, que no entanto não chega a ser plenamente zio, creio, podemos ver, dissimulado, o sopro da vida. Esse tatear, contudo, aponta para uma direção que é o As possibilidades do secundário não se limitam pois às falas significado em gestação. Cabe ao terapeuta favorecer essa riqueiras necessárias em nosso cotidiano. Mas se esses gestação, ou ao menos não atrapalhá-la. Mas como? rgamentos são válidos, então podemos ver, até mesmo sob a guagem corriqueira, uma certa expressividade: a da manutenção vivo. E é por isso que embora "segunda", Merleau-Ponty ainda A compreensão o termo "expressão" quando fala de "expressão segunda". 5. Desses textos de Merleau-Ponty ficam pelo menos sugeridas Compreender significa ouvir o silêncio que procura se romper umas proposições de interesse para o psicólogo terapeuta: a fala. Compreender profundamente significa ouvir o silêncio escondido em qualquer fala.41 40 Mauro Martins Amatuzi Humana Quando ouvido é que ele é realmente dito, e isso é uma aparece aquela nota de rodapé em que Merleau-Ponty mobilização do ser. compreensão só se aplica à fala autêntica. Nas falas Ouvir não um ato de inteligência ou do pensamento, mas uma não há necessidade de um esforço de compreensão. participação existencial em um movimento de gestação ou parto no se é verdade que em expressões segundas podemos encontrar plano do sentido. pelo conjunto de minha resposta interativa que um núcleo de autenticidade, isso que ele diz da compreensão da mostro que ouvi. Ela será a elaboração de meu silêncio face ao outro se aplica pelo menos em parte à compreensão de qualquer que me dirige a palavra. Penso que o que muda, no caso da pessoa em terapia que tenta se Creio que os textos de Merleau-Ponty apontam para isso. expressar mas de fato não o consegue de forma satisfatória, é que os 1. A compreensão vai além dos significados já conhecidos dos apontam para um centro realmente, mas eles não são ainda instrumentos falantes, ou seja, dos termos usados. Ela atinge uma e por isso a expressão não é completa. fonte, o centro do discurso, um sentido novo. Com o exemplo da Um outro texto, também sugestivo, nos diz que a leitura ou a compreensão de um texto filosófico, ele escreve: de um discurso autêntico é como um "encantamento". Somos fato é que temos o poder de compreender para além possuidos pelo discurso, sentimos sua necessidade, embora não do que pensamos espontaneamente. Alguém só pode nos prever onde ele vai chegar. Nem o sujeito falante pensa falar numa linguagem que já compreendamos: cada palavra de fala, nem o ouvinte pensa no que está ouvindo. pensar do um texto difícil desperta em nós pensamentos que nos seu próprio falar, e o do ouvinte, seu compreender. Só depois, pertenciam antes, mas essas significações se enlaçam às vezes final do discurso, quando o ouvinte acorda, por assim dizer, é que num pensamento novo que as remaneja totalmente; somos surgir pensamentos sobre o discurso. então transportados ao centro do livro, reencontramos a fonte (FP, p. 189). orador não pensa antes de falar, nem mesmo enquanto fala; sua fala é seu pensamento. Da mesma forma o ouvinte Este ser transportado ao centro do discurso e descobrir o não concebe a propósito dos signos. "pensamento" do sentido para além dos significados parciais não é como a resolução de orador vazio enquanto ele fala, e, quando alguém um um problema. No problema a incógnita aparece pela sua relação com texto para se a expressão é bem-sucedida, não teremos os termos conhecidos do problema, quase Na um pensamento à margem do próprio texto, as palavras compreensão de uma pessoa não é assim. Aqui é só na medida em que ocupam todo nosso elas vêm preencher exatamente nossa espera e sentimos a necessidade do discurso, mas não me aproximo do sentido que as palavras vão se mostrando como capazes de prevê-lo e somos possuídos por ele. fim signos que realmente apontam para ele. Antes não. do discurso ou do texto será fim de um encantamento. então Não há nisso nada de comparável à resolução de um poderão surgir pensamentos sobre o discurso ou sobre o problema, em que se descobre o termo desconhecido por texto; antes discurso era improvisado e texto meio de sua relação com termos conhecidos. Porque o compreendido sem um único pensamento, o sentido estava problema só pode ser resolvido se for determinado, isto é, se presente em toda parte, mas em nenhum lugar posto por ele cotejo dos dados designar ao desconhecido um ou vários mesmo (FP, 190). valores definidos. Na compreensão do outro, o problema é Este trecho enfatiza o caráter direto da compreensão. Ela não sempre indeterminado, porque somente a solução do problema fará aparecer retrospectivamente os dados como reflexiva, somos transportados pelo discurso. O máximo que convergentes, somente motivo central de uma filosofia, fazer, creio, é não impedirmos isso. E uma forma de o uma vez compreendido, dá aos textos do filósofo o valor de seria determo-nos reflexivamente em cada palavra. Um texto signos adequados (FP, p. 189). posterior de Merleau-Ponty cabe bem aqui:42 Mauro Martins Amatuzzi Psicologia Humana 43 que com demasiada deliberação procuramos não o reciprocidade de atos que é essa compreensão de gestos, e o fato de essa obtemos, não faltando pelo contrário idéias, valores, a quem reciprocidade operativa confirmar o outro no seu significado, e a mim souber absorver, meditando na vida, o que de sua fonte mesmo em minha compreensão. espontânea se libera (LIVS, p. 175). A comunicação ou a compreensão dos gestos se obtém 3. Mais adiante entretanto ele fala do esforço de pela reciprocidade de minhas intenções com os gestos do As palavras banais não exigem de nós nenhum verdadeiro esforço de outro, de meus gestos com as intenções legíveis na conduta compreensão. Já vimos esse texto acima. Para todas essas falas banais do outro. Tudo ocorre como se a intenção do outro habitasse possuímos em nós significações já formadas, e essas falas banais não meu corpo, ou como se minhas intenções habitassem seu exigem de nós nenhum esforço verdadeiro de expressão, e não pedem de [...]. gesto está diante de mim como uma pergunta: ele me nossos ouvintes nenhum esforço de compreensão (FP, 194). Não há alguns pontos sensíveis do mundo e me convida a me oposição entre o caráter direto da compreensão e o fato de que às a eles. A comunicação se completa quando minha conduta encontra neste caminho seu próprio caminho. Há vezes ela exige esforço. que se acrescenta aqui como característica confirmação do outro por mim e de mim pelo outro. [...] Não do compreender, quando ele exige esforço, é que ele supõe uma compreendo os gestos do outro por um ato de interpretação abertura para o novo, que é coisa que não é necessária no simples intelectual (FP, pp. 195-6). caso da linguagem ordinária. Podemos então acrescentar essa abertura para o novo como uma outra característica da Com o gesto ocorre algo parecido. Acompanho a 4. preciso citar de novo aqui um texto que também já lemos, que se comunica em sua intencionalidade, e com isso confirmo-a seu dizer confirmando-me em meu compreender, numa espécie de onde essa abertura para o novo vai aparecer como um movimento do reciprocidade de pensamento em ato. Essa confirmação aqui não próprio ser, uma transformação mais global, portanto, do que a de um significa, é claro, uma concordância com o que o outro diz em termos de simples pensamento. também suas Isso seria um pensamento segundo. (Na compreensão da fala de outra pessoa) não é isso sim que quando compreendo posso pensar junto. primeiramente com representações ou com o pensamento que Compreender é participar do sentido. eu me comunico, mas com um sujeito falante, com um certo 6. Em resumo, são características da compreensão: estilo de ser e com o mundo que ele visa. Assim como a intenção ela vai além do entendimento dos significados literais e significativa que pôs em movimento a fala da outra pessoa não é transporta-nos para o sentido novo apontado por eles; um pensamento explícito, mas uma certa carência que procura ela tem um caráter direto; se preencher, assim também a retomada por mim dessa intenção não é uma operação do meu pensamento, mas uma mas implica abertura para o novo, e, portanto, saída da atitu- modulação sincrônica de minha própria existência, uma de cotidiana; transformação de meu ser (FP, p. 194). ela é uma transformação global do ser (junto com as transfor- mações do falante) e não apenas um ato do pensamento; e A retomada da intenção significativa do outro, na compreensão, implica uma reciprocidade operativa na qual os interlocuto- não é uma operação do pensamento, e sim uma transformação mais res se confirmam em suas intenções significativas. global do ser que acompanha a mutação daquele que está se comunicando. Podemos comentar esse último ponto dizendo que quando essa 5. A seguir Merleau-Ponty compara a fala com o gesto, dizendo confirmação ocorre, o silêncio se aquieta, a pessoa está como que ela é um gesto No contexto dessa comparação aparece transportada para um mundo novo, e novas intenções podem começar a como compreendemos o gesto. E o que de destacar é a Esse é movimento existencial que se procura desbloquear naCapítulo III Investigação do Humano ponto de partida deste capítulo é o interesse em conhecer melhor as formas de investigação do humano, e com isso avançar nessa prática. Com essa intenção permito-me retomar aqui, com modificações, o texto de uma palestra proferida na Universidade Federal do Ceará, no final de 1993, e publicado na revista Estudos de Psicologia (PUC-Campinas) com data de setembro de 1994, 11(3), pp. 73-77, com o título A investigação do humano: um debate. Vamos manter aqui o tom coloquial que tinha o texto da palestra. A S questões que no momento me habitam, e que aqui ofereço ao diálogo com os cole- gas, relacionam-se em grande parte com o lado de professor orientador de projetos de graduação em Psicologia. Que posturas episte- são num projeto de investiga- do humano, e quais os limites dessas posturas? possibilidades entrevejo? Mas antes disso é nos darmos conta dos limites do próprio projeto acadêmico. Quando estou dançando estou fazendo uma investigação do humano. Seria então o dançar um de ciência? Se o for não saboreio a dança, e o conhecimento resultante seja mais pobre aquele que eu poderia adquirir se dançasse sem em ato de conhecimento Creio que há aqui algumas coisas a se Uma é que há vários caminhos para a46 Mauro Martins Amatuzzi uma Psicologia Humana 47 investigação do humano. A ciência, com certeza não é o único, e forma indiscutível. Bastava que se fizesse uma observação talvez nem mesmo o mais rico. A poesia é uma forma de investigar o sistemática, e com regras de precisão. Os fatos podem ser olhados de humano; a literatura, o teatro também. A amizade é uma forma de forma neutra. A natureza está aí, ela funciona de acordo com leis que investigar o humano; a luta política, o lazer, o esporte. A psicoterapia homem pode descobrir objetivamente, e, ao contrário da filosofia, também. Há muitos caminhos. esses procedimentos objetivos não são passíveis de intermináveis O resultado dessas investigações, porém, não é sempre do discussões. Podemos ter normas confiáveis para dirigir nossas ações. mesmo tipo. E essa é a segunda coisa que queria Quem Assim, a ciência nasceu gerada no útero da filosofia, e opondo-se a dança, conversa com amigos, pratica esporte, faz política com certeza Tudo isso para garantir uma nova forma de vida social ou as aprende muito sobre o Mas esse saber se encontra nele às formas novas que tomava a inquietação humana. vezes de forma somente tácita. o saber do homem de experiência, Em seu berço a ciência já se anuncia como una: os fatos que o habilita a reagir de formas mais adequadas quando diante de humanos e sociais não são diferentes dos fatos naturais, e portanto algum desafio novo. Mas não necessariamente esse saber se sabe de devem ser investigados da mesma forma. É claro que não foi assim forma refletida. simples desde o começo. A filosofia quis guardar o humano para Há uma diferença entre o saber tácito, experiencial, e o saber e entregar apenas o não humano para a ciência. Mas acabou representado para o próprio sujeito. Este último também perdendo essa disputa, pois a ciência pretendeu abarcar tudo, e seu pode mostrar diferenças quanto ao grau em que é assegurado de foi muito grande. A filosofia acabou ficando desacreditada forma objetiva e pública. Ele pode, de fato, ser obtido por meios que por muitos. "ser" (objeto da filosofia) não ajudava muito na não dependam da experiência subjetiva, de modo que qualquer condução da vida social, como os "fatos" (objeto da ciência). E pessoa possa verificar que é assim, ou melhor, possa ser convencida Maquiavel foi preferido pelos principes. de que os fatos demonstram tal É uma questão de lógica Pouco a pouco, entretanto, e não sem a influência dos poetas e aplicada aos fatos. A sofisticação desse último tipo de saber é a dos literatos (Gusdorf, 1990), começou um movimento que ciência. A humanidade construiu uma ciência, um saber objetivo e a originalidade do humano. O que é próprio do humano público, e que pode ser apropriado por quem o estuda. E Na não se deixa captar pelos métodos da ciência. Mas então não pode complexidade de nossa vida atual, esse tipo de saber se tornou haver ciência do humano? Sim, mas é outro tipo de ciência, pois tem necessário, indispensável, insubstituível. A nossa sociedade não que lidar com a autodeterminação, com a liberdade, com a poderia funcionar sem ele. A nossa sociedade tal como ela é não subjetividade etc. E as ciências humanas foram nascendo do seio da poderia subsistir e manter-se em movimento sem o saber produzido ciência, que então foi rebatizada pelos humanistas como ciência pela ciência (e por sua filha dileta, a tecnologia). natural. E os cientistas humanos, ao contrário dos cientistas naturais, Mas estamos correndo demais. Antes mesmo da ciência havia criticavam o discurso simples de uma ciência una. Digamos que a uma forma de saber, mais baseada no pensamento e na experiência de relação pressuposta pela investigação nas ciências naturais é do tipo vida, mas que se pretendia geral, universal. Uma reflexão rigorosa objeto é uma parte do mundo; o mundo existe em si; o sobre as Era a filosofia. Só que, de repente, a filosofia pode captar suas leis objetivamente, sem que haja nenhum começou a parecer algo não certo, não seguro, e não prático para envolvimento, mas apenas, digamos, um olhar. Já a relação atender às necessidades dos homens (fossem elas pragmáticas ou de pressuposta pelas ciências humanas é do tipo sujeito-sujeito, pois o conhecimento). O pensamento não tinha um juiz que decidisse sobre objeto aqui é um outro sujeito. O tipo de objetividade que se pode ter é, seu acerto ou erro. Foi assim que apareceram os fatos. Os fatos então, outro: é uma objetividade que nasce de um entendimento entre decidiriam. E esses fatos poderiam ser medidos objetivamente e de sujeitos, é uma objetividade que brota de uma inter-subjetividade.Mauro Martins Amatuzzi uma Psicologia Humana 49 do das ciências humanas não é o mundo em si, mas o mundo tal Penso eu que pode haver duas tendências em pesquisas desse experienciado pelo homem e, portanto, carregado de segundo tipo, o uma tendência mais ificados. Não é natureza mas é mundo (mundo é natureza mais quando as conclusões são principalmente baseadas na ificado humano). Em vez de fatos, temos os fenômenos. Os fatos análise de dados dos depoimentos registrados dos sujeitos, e uma erdade são derivados. O que é primeiro são os fenômenos. Os fatos mais dialética, quando as conclusões são estabelecidas a ão obtidos por abstração. A experiência primeira é de fenômenos, partir de uma interação com os sujeitos, isto é, eles são convidados a é, a coisa tal como vista, tal como experienciada. E confirmar as conclusões e de alguma forma participam delas. trabalhando em cima disso que chegaremos aos fatos. Pretende-se interessante notar que esses desdobramentos isso transcender a relação sujeito-objeto e se chegar a uma outra não eliminam o ponto a partir do qual é mais primitiva que esta, e que por ser mais primitiva nos dá deu o desdobramento. surgimento da ciência não eliminou a a uma verdade mais radical. No fundo as ciências humanas (por mais que a ciência tivesse nascido por oposição a ela), mas dam não o mundo como natureza, mas a relação redefinir-se ou pelo menos repensar sua identidade. O surgimento é possível abstrair o homem que estuda, e considerar somente o de uma abordagem do seio da ciência eto puro. Se nas ciências naturais se pretende evitar ao máximo o não eliminou a abordagem nem mesmo impediu que olvimento do pesquisador, nas humanas o que se tem a fazer é tirar abordagem pesquisadores continuassem se ocupando de assuntos veito desse envolvimento. É uma outra concepção de ciência, outro humanos (só que dentro de seu enfoque próprio). Parece que as coisas delo epistemológico, outro paradigma (Chizzotti, 1991). não ficam nunca perfeitamente resolvidas... As pesquisas em ciências naturais foram, então, chamadas de Esse desdobramento no interior da pesquisa cientifica não estava E quando aplicadas ao ser humano podem ser de 2 com firmeza estabelecido, quando novas necessidades surgiram. estatísticas ou de análise de comportamento. As pesquisas em se começou a questionar foi que esse conhecimento todo (seja ele cias humanas foram chamadas de seja ele é muito que no fundo lidam com significados de experiências e fazem com a ação concreta. Quer isso dizer que ele ainda fica fora rpretações (isto é, explicitação de significados ou desdobramento de prática. Há ainda uma separação entre o ato de pesquisar (o tidos). Foram também chamadas de existenciais ou mesmo de produzir o conhecimento) e a atuação concreta histórica (o ato de (ver por exemplo Polkinghorne, 1982), porque buscam o o conhecimento). Isso torna a atuação, e conseqüentemente toda ificado dos fenômenos para os humanos com eles profissional concreta, mera execução externa do que foi nbém foram chamadas de "qualitativas" (Alves, 1991), por oposição pelos sábios. E faz dos "sábios" os detentores do poder do "quantitativas". Os que se colocam nesta abordagem empírico Ou, pior ainda, dá o poder do conhecimento que lítica consideram que o termo "quantitativo" aplicado a eles e financiam as pesquisas. Mas os profissionais da área de to o que fazem, pois eles podem trabalhar também com análise não conseguem aquietar suas questões nascidas da lida com o Mas a isso os praticantes da abordagem hermenêutica dizem e aceitar tranqüilamente serem como autômatos dos sábios dos não se pode confundir análise qualitativa com pesquisa qualitativa e laboratórios, meros aplicadores de conhecimentos. Algo está nálise qualitativa pode se dar no interior da maneira convencional de nisso tudo. Essa ciência toda ainda está longe da ação ciência, já a pesquisa qualitativa é um outro modo de se fazer concreta. E isso foi sem dúvida influenciado por um ncia, inteiramente diferente, e não só diferente quanto desenvolvido no interior de movimentos políticos cedimentos técnicos. Foi ficando mais clara a oposição entre conhecimento e ação concreta, entre uma relação meramente cognitiva entreMauro Martins Amatuzzi Psicologia Humana 51 mem e mundo, e uma relação mais englobante, compreender o humano, e o humano concreto que somos e que temos nhecimento é, enquanto sozinho, constituinte da relação meramente de nós, não teremos que tomar as asas do símbolo, cujos gnitiva, mas por outro lado ele é apenas um componente, da relação significados nunca se esgotam (pois não são meros signos), is englobante e transformadora. Mas, e isso é fundamental, é compreender o que da poesia não coube na ciência, o que da arte, da quanto inserido numa ação transformadora que o conhecimento é da religiosidade também não? Não será que existe uma certa ncreto e vai mais longe. verdadeiro conhecimento é o que faz parte inserida essencialmente no modelo até hoje vigente de uma relação mais que meramente cognitiva com o real. Isso tudo foi (seja ele ou reando uma nova concepção de ciência, de pesquisa e de Não será que ao invés de pensarmos em possuir e também de prática. E essa nova concepção foi chamada sabedoria não pensar em sermos por uma dialética ou pragmática. Foi dentro dessa concepção que surgiram a da qual, no entanto, podemos nos aproximar com respeito? squisa-participante, e a (Astolfi, 1993; Gamboa, abordagem seria essa? os estudos teóricos dentro dessa nova concepção tomaram outra As 3 formas de escuta desenvolvidas por René Barbier nos ionomia também: foram denominados estudos críticos e visam pensar. Ele é um sociólogo, especialista em e nbém uma transformação mais global. Dentro dessa nova perspectiva que gosta de se considerar um psicossociólogo. Segundo ele essas 3 ação concreta (a psicoterapia, por exemplo) pôde ser vista como de escuta são necessárias para que nos aproximemos do squisa ou investigação. ato de pesquisar e o próprio processo que queremos estudar. Ele denomina a primeira de escuta apêutico, por exemplo, não são coisas Está em jogo um Não basta buscar a coerência, ou compreender modelo epistemológico. Não há uma separação entre a pesquisa relações que existem entre os fenômenos que observamos no io; pelo contrário a ação desenvolvida como pesquisa passa a ser mais ou na sociedade (e eu acrescentaria: também no indivíduo). No tica, qualitativamente superior, e mais eficaz. E por outro lado face e no envolvimento com a ação é preciso desenvolver uma hecimento assim gerado, mais verdadeiro. ao que acontece com as pessoas em sua prática. Essa Isso muda muita coisa, inclusive o modelo de relatório vai além do que chamar de o modelo de registro de dados, o próprio modelo da raciocinante (principalmente se esse só lança mão eração concreta na coleta de dados, e a própria atuação do que já está estabelecido). O outro tipo mencionado por ele é a Existem modelos diferentes disso tudo para os 3 É uma escuta dos valores últimos das pessoas e ou seja, aquilo para que, a partir do que, a pessoa faz questão de Será que termina aqui essa andança dos modos de pesquisar e em favor do que aceita correr risco de perder algo importante mano? que podemos prever como novos passos que virão? E aqui 1992, p. 209). Aqui também lançamo-nos num plano que podemos ousar, pois estamos nos arvorando em profetas, tentando transcende o do puro cognitivo. É preciso ouvir o que move as ectar pequenos sinais dos tempos. Falo do que imagino e de como a partir de dentro. E o terceiro tipo de escuta é a erpreto pequenos sinais. Todas essas formas de saber não esgotam Consiste em ficar atento ao novo na vida do grupo, às conhecimento de vida, saber tácito que decorre da experiência dissonantes, minoritárias, que questionam o já estruturado. de que falávamos no começo. Há ainda muita coisa que dai não A escuta mito-poética é aquela que está atenta à vida sou para o plano do saber representacional Não será que relacional e simbólica de um grupo, de uma população, e à forma las essas formas de saber explícito (filosofia, ciência natural, ciência como as pessoas são solidárias, como trocam mitos, símbolos, mana, dialética) não teriam em comum que todas elas ficam ainda de imagens, a fim de criar condições diferentes daquelas que lhes um modo submersas no fluxo histórico? Não será que para são impostas (p. 209).52 Mauro Martins Amatuzzi Às vezes são os mitos e simbolos os únicos meios de termos Capítulo IV acesso a algo que não está dominado ou plenamente conhecido e que, no entanto, é fundamental para se entender o que acontece, ou o que está por acontecer. Creio que a integração dessas 3 formas de escuta só é possível se Pesquisa do Vivido estivermos envolvidos numa pesquisa conjunta, que não ninguém, e que é ao mesmo tempo uma prática em busca de significados mais abrangentes, dentro de uma postura de quem quer, com humildade, participar de um movimento e de uma sabedoria que já estão Uma psicologia humana passa muitas vezes por uma abordagem fenomenológica, seja no sentido mais puro de um olhar para a consciência e os significados do suje- ito entrevistado, seja no sentido em que esse olhar é determinado pelas indagações que habitam o pesqui- sador. Na verdade uma coisa necessita da outra. Esse capítulo tenta mostrar isso numa linguagem que, mesmo sendo teórica, pretende clarear os rumos da pesquisa e da prática. E quer fazer isso como numa primeira expressão apenas reflexiva. U ma das coisas que caracteriza uma psicolo- gia de inspiração fenomenológica é a im- portância dada ao vivido. Acredita-se que vezes ele seja melhor guia para nossas ações e para nossos pensamentos do que con- ou idéias construídas mais ou menos artifi- (Amatuzzi, 1996). Dai a importância da que tenha por objetivo uma aproximação do vivido, e a expressão do que nele contido como significado potencial face a problemática trazida pelo pesquisador. É de uma indagação que o vivido se manifesta. Mas o que é o vivido? É nossa reação interior que nos acontece, antes mesmo que54 Mauro Martins Amatuzzi Psicologia Humana 55 tenhamos refletido ou elaborado conceitos. Hesitei ao escrever Mas essa palavra sentimento, embora possa ser usada aqui, é "nossa reação" ao invés de "a reação da Sai do impessoal e sentimento se distingue claramente do pensamento. Uma escrevi Nossa reação. Sai da postura objetiva e neutra, e estou é sentir, outra coisa é pensar. Pois bem, o vivido está num plano evocando a experiência minha e do leitor, a experiência comum, de consciência onde o sentir e o pensar não se distinguiram ainda. E nossa. Todos podemos saber de que estou falando, mesmo que isso sentido ele é tanto sentimento como pensamento, sem ser seja de dificil definição. Reagimos por dentro que nos nenhum dos dois. É sentimento e pensamento potenciais. É a raiz acontece. Isso é o vivido, a experiência imediata. É como nos do sentimento como do pensamento. Sim, porque o sentimento sentimos. pode ser elaborado, recebendo a influência dos pensamentos Essa reação interior já é alguma coisa da ordem da consciência. decisões. E, como tal, ele estará distante da experiência imediata, Não estamos nos referindo a reações externas, ou fisiológicas, Se denominamos o vivido de sentimento é, então, para mas a reações internas. Algo que podemos sentir. Poderíamos talvez distingui-lo do pensamento elaborado, ou da elaboração posterior falar da face interior, ou psicológica, de nossa reação. Mas aqui quase que ocorre. Apenas por isso. que já existe uma tomada de posição em relação à questão do Vivido, experiência imediata, sentimento primeiro: a paralelismo psico-fisico (Dutra, 2000). E não é essa a importância de se retornar a isso fica mais clara, então. como se Relativizemos, pois, nossas maneiras de falar. O que importa é aquilo a deixando de lado tudo aquilo que colocamos em cima que estamos nos referindo, como uma experiência de cada um. do que é primeiro, para voltarmos à pureza original, digamos assim, Um outro aspecto é que se trata da reação Não a reação para permitir que essa pureza original dê vida a tudo que se segue a construída, nem a reação pensada. o que eu sinto, diretamente, a forma corrigindo possíveis distorções, clareando a relatividade das como avalio, diretamente. Para além das mediações pensadas, para além elaborações. A pesquisa fenomenológica pretende voltar ao vivido, das minhas escalas de valor. E não se trata também daquilo que eu possa não negando as elaborações que se fazem a partir dele, mas pensar depois para "domesticar" a experiência, ou reduzi-la ao familiar. provisoriamente entre parênteses, para revê-las depois, Finalmente, dissemos que é nossa reação interior que luz daquela fonte primeira. Dai as coisas podem ficar mais claras. nos acontece, e não simplesmente que acontece. A diferença Mas como chegar ao vivido sobre algum tema de investigação? justamente a conexão com nosso centro pessoal. Buber dizia que ficará mais claro se examinarmos primeiro o que acontece com ele aquilo que me acontece é palavra que me é dirigida (Buber, 1982, p. 44). Há plano das significações. O seu percurso psicológico. coisas que nos tocam e das quais não temos a menor consciência. Ele sozinho não existe, uma vez que é sempre acompanhado de um tocar meramente Para que possamos falar de vivido como alguma significação. A função da pesquisa consiste em substituir sua reação interior, é necessário um outro nível de comunicação significação contextual imediata, pela significação do contexto envolvendo a subjetividade, é necessário que tenha acontecido algo pelo pesquisador, dialogicamente. Vamos construir isso que seja portador de um sentido potencial para mim (ainda que seja passo a passo. apenas o sentido de um espanto). Com o vivido estamos no plano do Dizer que o vivido é sempre acompanhado de alguma significado, e não simplesmente no plano dos eventos mecânicos, significação significa dizer que não temos acesso direto a ele. digamos assim, ou objetivos. vivido não é a reação muscular, mas a Qualquer acesso já é uma forma de significá-lo, tanto por parte do reação psicológica, mental, espiritual, antes de qualquer elaboração sujeito que o vive, como por parte do pesquisador (ou do posterior com A reação psicológica imediata. Por isso que reflete sobre ele). Por isso devemos dizer que o vivido "se falamos também de experiência imediata, e de sentimento (ver por dentro de nós, ele se expressa, e assim assume um significado. E exemplo Rogers & Kinget, 1975, pp. 61-3). nesse ato de se dizer que ele se constitui como vivido pleno, pois é a56 Mauro Martins Amatuzzi uma Psicologia Humana 57 partir de sua inscrição mínima na consciência que ele se torna vivido nosso triângulo. ângulo superior direito (que está também acima da propriamente, e não apenas um evento linha da simbolização que corta o triângulo horizontalmente no meio) é Mas essa inscrição mínima é duplamente determinada, a partir da ação como também expressão primeira do vivido. Trata-se de uma de fora. Ela já recebe a influência dos modelos de pensamento e ação significativa, de um fazer algo, ou de um dizer, interferindo no linguagem que existem no contexto sociocultural onde o sujeito toma meio como uma resposta ao que nos acontece, mas ao mesmo tempo consistência, e recebe também a influência da história individual do manifestação do que se passa Reparemos, no entanto, sujeito tal como foi se construindo e deixando suas marcas na que a área abrangida por qualquer um dos 3 ângulos do triângulo é a memória total dele. Essa dupla influência se apresenta, no entanto, ângulo seria apenas o ponto de vista a partir do qual olhamos o como os ossos desse corpo, sendo que a carne é o próprio vivido Tudo isso é o vivido pleno em seu momento primeiro de original. Ou seja, ele é estruturado a partir dessa dupla influência. manifestação. É preciso, então, distinguirmos (para compreender), mas resultado é esse corpo com o qual podemos entrar em contato. um separar (como fatos ou entidades independentes), o puro vivido ou corpo unificado, mas composto de uma reação original, por um renção imediata, que não existe por si mas é apenas um dos ângulos do e de uma estrutura que lhe possibilita a expressão e a forma como é e o vivido pleno em sua manifestação primeira, que é o conscientizado, por outro. inteiro. Essa complexa realidade psicológica costuma ser Esse corpo (o vivido constituído) se expressa, então, como expressa por tríades de palavras: sentimento-pensamento-ação, uma forma de consciência (e é como forma de consciência que recebe vivido-simbolizado-manifesto a influência dos padrões culturais e da história individual). Mas ele preciso, no entanto, tornar nossa imagem mais complexa pode se expressar também como uma forma de ação no meio, Como realidade dinâmica, esse triângulo (ou esse vivido constituindo-se como uma resposta (sujeita também dupla nasce de um núcleo, o "centro" ou "coração" da pessoa, o qual influência). A pessoa manifesta sua reação imediata pela ação através verdade, uma relação. "coração" humano é abertura. É por da qual responde a ela. A ação é uma forma de consciência também, que dizemos que algo nos acontece. Existe um outro. O passo de manifestação do vivido. Principalmente quando ela está assim tão primeiro, onde se constitui a subjetividade, é um acolhimento. Pois próxima da fonte que é a reação imediata. nosso triângulo, vindo desse centro, se expande para fora, A dificuldade de falar disso é grande porque o vivido pleno uma pirâmide de 3 lados. O pensamento (percepção, supõe sua manifestação na consciência (através de uma inscrição se desdobra em reflexão ou elaboração posterior, ainda que seja mínima), e essa manifestação pode se dar diretamente constituindo como que um pensamento segundo. A ação primeira através de uma ação (que seria então como uma forma de manifestação) vai também se sofisticando e se pensamento). em ações planejadas e complexas. E cada uma dessas Uma representação pode nos ajudar a compreender essa primeira gera também novas vivências, desdobrando o puro vivido expressão do vivido, ou essa primeira aparição dele no percurso de primeiro, a começar pela vivência de pensar e a vivência de agir ou manifestar. Podemos imaginar um triângulo de lados iguais, de cabeça no meio. Isso é necessário e biologicamente adaptativo para para No ângulo inferior desse triângulo temos o sentimento espécie humana. Mas tem um risco: distanciar-nos do centro a primeiro, a reação interior imediata, o vivido puro, digamos assim. Mas de perder o contato com ele, e conseqüentemente perder a isso tem uma inscrição na consciência. Essa inscrição pode se dar como relação básica. então a expansão do triângulo (a pirâmide) se a linguagem interior, ainda primitiva, de um dar-se conta, de uma transforma em desvario, e joga a pessoa no isolamento por mais que interpretação fundadora (como diz Ladrière, 1975), de um dizer original interfira no meio. Uma pirâmide "furada" em seu topo, sem o ou de um pensamento primeiro. Este seria o ângulo superior esquerdo de e portanto sem eixo. Então, uma pessoa inteligente planeja58 Mauro Martins Psicologia Humana 59 mil ações e faz sutis análises, mas não se satisfaz em seu coração. Ela qual lemos essa expressão. Deve ser justamente uma luz que perdeu o contato com seu centro, com sua relação básica. a materialidade do depoimento, e embarcando em sua Mas voltemos ao nosso propósito. Agora que descrevemos algo vai em direção ao vivido puro (ou ao sentimento do percurso do vivido ou experiência imediata, o que podemos dizer primeiro que se faz presente) buscando expressá-lo em um outro sobre o acesso a ele no intento de uma pesquisa fenomenológica? pensamento que faça sentido no contexto da problemática trazida Em primeiro lugar é preciso dizer que uma pesquisa é uma pelo pesquisador. atividade que se situa também em nossa consciência (em nossa pirâmide) Antes de comentarmos essa luz (e aquilo que se torna claro com É um momento de consciência que pode ser comparado a um corte no entanto, é preciso que olhemos um pouco mais para o perpendicular ao eixo da pirâmide, formando, em seu plano, um triângulo, depoimento. Ele pode ser qualquer expressão humana: uma dança, um Esse triângulo é uma abstração, pois ele existe na verdade dentro do desenho, uma obra arte etc. Mas ele é um relato verbal, dinamismo da pirâmide que se expande a partir de uma relação De especificamente colhido para aquela pesquisa, e portanto focalizado na qualquer forma essa imagem nos ajuda a ver que a pesquisa tem um pólo imediata que é o objeto da investigação. Por exemplo, se de raciocínio, reflexão, pensamento; tem também, num outro pólo, um quero pesquisar o autoperdão (como tema), solicito às pessoas que sentimento primeiro que decorre do contato com o dado; e, num terceiro, sua experiência sobre isso, e me falem Se quero uma ação que é todo seu procedimento. E isso sem falar nas ações pesquisar o vivido pelas pessoas em um grupo intensivo, peço a elas decorrentes, mudanças na forma de estar no mundo que são que me contem isso, estando o mais próximo possível do evento. Ou do conhecimento gerado, e os sentimentos e pensamentos depoimento não é sempre a manifestação direta e imediata do que acompanham e se seguem a No pólo pensamento, uma pesquisa em questão. Às vezes o sujeito precisa recorrer à sua memória. é uma reflexão, um pensamento segundo. bem verdade que esse que significa isso? Significa que na leitura que fizermos desse pensamento segundo primeiro no âmbito interno da pesquisa (e depoimento devemos levar em conta toda a elaboração que pode ter será uma boa pesquisa quando estiver organicamente interligado com os acrescentada pela memória. Mas a base para dizermos que um outros pólos: o sentimento primeiro diante do dado, e o fazer-dizer depoimento desses é ainda expressão do vivido, embora indireta, é que primeiro que manifesta o Mas o que importa lembrar aqui, agora, fluxo da consciência no tempo não se dá de forma entrecortada e que ela é um pensamento segundo, que se desdobrou como uma reflexão, justaposta. Há uma continuidade. Essa é justamente a função da pondo-se deliberadamente e sistematicamente a olhar para os (mesmo se precisarmos levar em conta suas elaborações). Os pensamentos primeiros, ou ações, que expressam o vivido significados vividos dão continuidade à experiência imediata (e se originariamente. A pesquisa está mais distante do centro gerador, embora constituem, eles também, em desdobramentos do vivido). Justifica-se só tenha sentido enquanto estiver sob o influxo de sua energia. que se colham depoimentos baseados na memória. Podemos dizer, então, que o acesso ao vivido, na pesquisa Podemos voltar agora para aquela luz. A pesquisa é uma fenomenológica, se dá através dos pensamentos e ações que atividade de pensamento segundo, de reflexão, que se volta para uma manifestam da forma mais direta "Lemos o vivido" expressão do vivido, o depoimento. Como vimos, essa expressão é entrando em contato com suas manifestações. Depoimento é o nome determinada, como de fora, pelos padrões e culturais, por que se convencionou dar para essas manifestações quando são lado, e pela história pessoal do sujeito, por outro. Quando o tomadas exatamente como apoio empirico para pesquisas, busca no depoimento aqueles padrões culturais que lhe dão Obviamente existem formas mais adequadas de depoimento para estrutura (querendo encontrar o coletivo manifestando-se no cada pesquisa. Mas em princípio qualquer forma de expressão particular), ou quando busca os elementos (vividos) de história humana pode se constituir em depoimento. Pois o que importa é a luz individual que se escondem por trás da dinâmica do depoimento, ele não60 Mauro Martins Amatuzzi Psicologia Humana está ainda fazendo uma pesquisa propriamente fenomenológica. Esta recorte da existência foi bem selecionado), deve possibili ocorre quando ele pesquisador ou pessoa que reflete, guiado pela uma visão mais clara do assunto, e indagação que o mobiliza, atravessa o depoimento, por assim dizer, e mais efetivo na ação. parte em busca do vivido ali contido, sem se desviar para a busca dos Essa visão mais clara do assunto é o que o pesquisador busca padrões coletivos, ou elementos da história escondida. Mas como esse partir de uma questão que está tendo significado para ele. A partir dai vivido não tem consistência sem uma estrutura ou contexto de erocura interlocutores vivos (ou memórias documentadas) com que significados, o pesquisador procura dizer inicialmente este significado dialogar em torno da experiência vivida, e assim produzir su para o sujeito, tal como ele se mostra no depoimento; e depois, por uma respostas. E quando o interlocutor assume a mesma intenção espécie de trabalho de abstração conceitual, vai se desprendendo do ele sai também beneficiado por ela. Ele sai compreendendo contexto concreto do sujeito, para expressar seu significado mais geral, (e capaz de ações mais efetivas). Por isso, dentro da Esse significado mais geral é o que aparece no contexto mais amplo da não há diferenças essenciais entre pesquisa existência humana, naquele aspecto que está sendo problematizado pelo psicológico ou psicoterapia. A aproximação do vivi pesquisador, a partir de seu contexto. A luz sob a qual se o depoimento desencadeia mudanças. É como uma volta à fonte, "às coisas mesmas é, então, uma luz que permite atravessar a materialidade empírica do próprio depoimento, chegar ao vivido que ele expressa, e depois, abstraindo-se do contexto concreto deste sujeito, buscar os significados gerais em relação à existência humana problematizada pelo pesquisador. Mas esses significados gerais, assim construídos pelo pesquisador, devem dar conta do vivido concreto dos sujeitos, ou seja, devem ser suficientes para dizer e clarear esse vivido de um ponto de vista mais abrangente (e capaz de incluir outros sujeitos nessa compreensão). Nada impede que esse ponto de vista mais abrangente incluir uma consideração do coletivo (em pesquisas temáticas) ou da história individual (em estudos de caso). Mas na pesquisa propriamente fenomenológica essas considerações, quando for o caso de elas ocorrerem (devido ao tipo de delimitação do objeto e de alcance da pesquisa), serão apenas instrumentais ou intermediárias, e não Onde termina, então, a pesquisa do vivido? Com que tipo de afirmação ela se encerra? Não é com a afirmação de um fato, mas com a afirmação de uma possibilidade de compreensão (ou um conceito) que se estende para além dos sujeitos estudados naquela amostra. assim que entendo o que Husserl chamava de essência. A fenomenológica, em psicologia descreve uma essência, a partir de depoimentos concretos de pessoas falando de suas experiências (ou escrevendo ou manifestando de qualquer forma que seja). O que ocorre é que tal descrição, se o objeto foi bem escolhidoCapítulo V Atendimento Psicoterápico Este capítulo retoma anotações feitas para um curso sobre esse tema na Universidade Estadual de Maringá, em abril de 1999, logo depois publicado na revista Psicologia em Estudo, da mesma Universidade, em edição especial, 4(1), pp. 67-81, com o título Abordagem fenomenológica no atendimento psicoterápico. A reflexão aqui apresentada baseia-se numa compreensão da fala e da escuta. Toda fala efetiva e plena dá vida social a um sentimento ou a uma intenção anteriormente vivida de forma ainda vaga. Fazendo isso permite a manifestação de um aspecto novo da realidade vivida pela pessoa e mobiliza sua pensamento que ela transporta inclui emoção. atendimento psicoterápico caminha em direção a falas que cumpram essa função. Isso se faz pela escuta aberta de um terapeuta comprometido como pessoa nessa relação. Dai resulta um verdadeiro diálogo e é ele que será, na verdade, Foram feitas pequenas modificações no texto no sentido de complementar referências A palavra foi feita para calar A base dessas considerações é uma concepção do processo de significar, na fenomenologia. atendimento psicoterápico é uma ajuda ao processo de significar que de alguma forma ficou bloqueado, e não está mais conseguindo seguir sozinho. Quando a pessoa vê diferente, ela se transforma e passa a estar no mundo de forma diferente.64 Mauro Martins Amatuzzi Psicologia Humana 65 Duas frases de Clarice Lispector ilustram bem essa concepção e também por que não? faço uma pesquisa ou me dedico à do processo de significar: Se não o fizer o sentimento permaneceria vago, sufocador. Então escrever é modo de quem tem a palavra como não expressar de algum modo, o impacto da realidade fica parado isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa dentro de mim, me sufocando e me impedindo de continuar a viver. não-palavra morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez Enquanto não for dito ou atualizado na plenitude de um dizer que se pescou a entrelinha, podia-se com alívio jogar a palavra de uma presentificação, um sentimento permanece vago e fora. Mas cessa a analogia: a não palavra, ao morder a isca, A partir do momento em que ele é dito, algo se transforma, incorporou-a. que salva então é ler distraidamente libera. O próprio sentimento deixa de ser vago e sufocador. E dá (Lispector, 1985, p. 41). a outros sentimentos. que é que a palavra pesca? A não-palavra. que é uma coisa Cecilia Meirelles também, em um de seus poemas, faz uma que é outra? A do texto nos faz aprofundar na lamentar que outra, a amada, não tivesse percebido o que suas quando essa não-palavra morde a isca... Às vezes a não-palavra não escondiam, e que, no entanto, segundo a amante, é forte e morde a isca. Não é sempre que a palavra realmente diz alguma coisa. intenso, talvez não capturável pelas palavras, mas certamente visivel vezes ela é vazia, oca de realidade. Existem palavras e palavras. Nem para além delas. sempre a palavra pesca a não-palavra. Quando consegue, algo se disse, Nunca eu tivera querido dizer palavra tão louca: bateu-me ou algo se escreveu. Quando consegue, a palavra está sendo o vento na boca, / e depois no teu ouvido. Levou somente a palavra, cheia de sentido, cheia de vida, cheia de realidade. Um escritor palavra, / deixou ficar o sentido. // sentido está guardado no sabe bem quando ele realmente escreveu alguma coisa, e quando ele rosto com que te miro, / neste perdido suspiro / que te segue simplesmente colocou sinais gráficos sobre o papel. E a diferença entre a alucinado, / no meu sorriso suspenso / como um beijo palavra efetivamente expressiva e a palavra malograda. A psicoterapia malogrado. // Nunca ninguém viu ninguém que o amor pusesse a busca de se passar dos discursos vazios aos discursos tão triste. / Essa tristeza não viste, / e eu sei que ela se vê Não tanto transformadores dos outros, mas transformadores daquele Só se aquele vento / fechou teus olhos também. (Meireles, mesmo que os pronuncia. Todo esforço do terapeuta é um esforço de ser Poesia Completa, 1994, um interlocutor que favoreça a essa passagem. A psicoterapia é uma A palavra e o sentido. O dito e o vivido. O corpo e a alma, diria pescaria das não-palavras que importam para a pessoa. E uma pescaria Merleau-Ponty. A não-palavra de Clarice seria o sentido de A com as palavras de que no momento dispomos. processo segue com palavra conduz o sentido, vive pelo sentido. Mas este não está preso na palavras-iscas, de uma não-palavra a outra não-palavra, até que se como num cárcere. Ele voa solto no olhar, no rosto, no suspiro, chegue a um centro a partir do qual tudo fica diferente. tristeza bem Mas... só se aquele vento fechou teus olhos Numa outra frase Clarice diz mais: A palavra conduz o sentido, mas pode nos fechar os olhos Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o ir- para o sentido. Como o vento. reproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que perma- A palavra foi feita para calar. neceria apenas vago e sufocador (Lispector, 1984, p. 191). Um outro poeta, este argentino, Alberto Juarroz, diz que a Escrever é tentar entender. Procurar entender é procurar da palavra é maior do que simplesmente designar as coisas. reproduzir o que não pode ser plenamente reproduzido. colocar cria uma presença. num quadro o pôr-do-sol até que possamos entender o que é o próprio El oficio de la palabra, / más allá de la pequeño / y la pôr-do-sol. Escrever é sentir até o fim aquilo mesmo que já ternura de designar esto o aquello, / es un acto de amor: É para poder sentir tudo que eu digo, falo, pinto um quadro, faço uma crear presencia 1980, p. 27).66 Mauro Martins Psicologia Humana 67 E ele comenta isso dizendo: desvendar o ser da coisa, seu sentido. A palavra (logos, razão) é La palabra es el hombre. Si esto es así, la poesia seria el modo o sentido desvendado. Mas para Platão e Aristóteles essa más amplio, el modo más comprensible y creo que abarcador.. foi feita, e a palavra passou a ser vista como mero rótulo Abarcador de qué? La respuesta cómoda de lo Pero do conceito. A linguagem deixou de ser um modo de se lidar aquí hay otra cosa que a veces descuidamos y es que la palabra as coisas, para ser apenas o sistema convencional de sinais crea realidad. Entonces: no sólo abarcador sino también para designar, conteúdos já pensados, sinais esses que têm enriquecedor, ampliador de lo real (Juarroz, 1980, p. 30). finalidade de facilitar a comunicação na sociedade. A palavra foi E eu comentaria Juarroz dizendo que a palavra captura entendida como se referindo ao conceito e não mais à coisa. E o realidade, nos em contato com ela, mas ao mesmo tempo, fazendo foi entendido como uma maneira de se apropriar da essência. isso, ela amplia o real, ela o torna e o modifica. Ai então eu esta era eterna, para Platão, por exemplo. O modelo perfeito das compreendo, eu vejo. Mas o que vejo? imperfeitas. Passou a haver então, no entendimento das pessoas, Muitas vezes dizemos: "descobri um mundo novo", mesmo oposição entre o pensamento puro e a linguagem. O pensamento que nada tenha mudado objetivamente. A realidade pensar) visa essências eternas e imutáveis. A posse delas por transfigurada. É a palavra, ou entendimento expresso por ela, que cria conceito (= nous, mesma raiz que pensar). Pensar passou a ser esses mundos. Uma experiência nova, a partir de um novo ângulo de como um abrir-se para as essências eternas. E a linguagem visão: uma nova realidade. falar) ficou sendo algo que pertence ao mundo passageiro e A palavra foi feita para calar. da comunicação. O falar não desvenda o sentido; é o Retomemos isso. A palavra cria. Cria presença. Enriquece que faz isso, mas separando-se da coisa concreta. Essa real. Isso nos remete para a história das concepções sobre a (segundo Coreth 1969-1973, pp. 26-34) irá prevalecer até o Resumidamente, houve 3 fases. Primeira fase. Na Grécia antiga, assim como na se inicia uma mudança. Terceira fase. Humboldt, em 1835 palavra era vista como uma Uma coisa que eu posso possuir, por Coreth), irá afirmar: as línguas não são propriamente meios de que interfere com aquela outra coisa que está lá fora. Por isso o que a verdade já conhecida, mas antes instrumentos para descobrir o digo afeta a realidade. É como se eu possuisse a alma das coisas Para Heidegger, já em nosso séc. 20, o entendimento tivesse domínio sobre elas. Isso foi visto depois como pensamento ser compreendido como uma abertura para o Ser que se revela. Ora, mágico. A crença infantil e ingênua de que meu pensamento tem linguagem: a capacidade básica do ser humano de se abrir para o poder sobre a realidade. Mas isso é na verdade uma caricatura das Por isso ele dirá: "o homem habita na linguagem"; e não: posterior do pensamento antigo. Vimos com os poetas como linguagem no homem. Para Merleau-Ponty o que existe atrás da pensamento que se expressa tem o poder de transformar a realidade não é o pensamento. Este está na palavra. O que existe por trás é Foi apenas o modo de conceber isso que estava talvez intenção de significar, ou seja, a mobilização para falar, o desejo. E o explicado. Mas por causa disso começou uma idéia diferente. Wittgenstein dirá que o jogo de linguagem próprio às ciências Segunda fase. Na Grécia mesmo começou-se a fazer uma naturais (com a verificabilidade externa pelos fatos) não é o único separação entre a natureza (fysis, a coisa em si) e a palavra (logos existem outros jogos de linguagem (o da arte, o da ética, o da aquilo que expressa a coisa natural). Mundo é diferente de Palavra Se o jogo das ciências exclui como verdade tudo que não Heráclito foi uma espécie de transição. Para ele, falar (legein, mesma for verificado, isso não ocorre nos outros jogos, pois eles representam raiz que logos, a razão da coisa) não era ainda uma designação diferentes. Nessa fase, então, retomam-se as verdades da posterior e externa do objeto já sabido, mas era justamente o ato de primeira fase.68 Mauro Martins Amatuzzi Psicologia Humana 69 Juarroz, o nosso poeta argentino, escreve: e terror. A tarefa do terapeuta é favorecer à palavra que seja Utilizo el término para significar la capacidad del aquilo que nasceu para ser: um momento fugaz que nos abre os olhos hombre de de traducir en palabras la realidad para a realidade, e muda tudo. no como sistema lógico o racional, sino como persecución, como posibilidad de infinito desvelo en pos de encontrar un sentido a la Y entiendo por sentido no una fórmula, ni una explicación, sino simplemente el que las cosas Escutar é abrir-se para o mundo, son así porque deben ser así. o que el pensar es para mi la responder humana, creadora, que consiste en el reconocimiento de la realidad que no puede darse sin que al mismo tiempo yo la Rogers, em uma palestra originalmente proferida em 1964, diz esté creando (Juarroz, 1980, 40). em um trecho muito bonito e que comentei em um artigo meu (Amatuzzi, 1990): E ele diz primeiro sentimento básico que gostaria de partilhar com Esa capacidad del hombre de crear la realidad en base a su vocês é a minha alegria quando consigo realmente ouvir interpretación por médio de símbolos es lo que llamo pensar. Acho que esta característica talvez seja algo que me é inerente e Pero todo eso al mismo tiempo está cargado de un infinito peso já existia desde os tempos da escola primária. Por exemplo, emotivo. Toda tiene una dimensión [...] El hecho lembro-me quando uma criança fazia uma pergunta e a de pensar y de expressarse es infinitamente emotivo: no hay professora dava uma ótima resposta, porém a uma pergunta pensamiento sin En ese sentido entiendo pensar inteiramente diferente. Nessas circunstâncias eu era dominado (Juarroz, 1980, p. 41). por um sentimento intenso de dor e angústia. Como reação, eu E resumir dizendo que não há palavra viva que tinha vontade de dizer: Mas você não a ouviu! Sentia uma seja sem emoção, pois ela interfere com a realidade, cria um mundo espécie de desespero infantil diante da falta de comunicação que era é) tão comum (Rogers, 1983, 4-5). novo, mais do que simplesmente retrata a realidade. Se ficarmos na mera palavra, então estaremos matando sua vida. Adélia Prado tem Ouvir realmente. Nós podemos ouvir, porque nosso aparelho um poema que se chama "Antes do nome": auditivo está em ordem, mas não escutar, ou não ouvir realmente, quando não atravessamos os sons e não vamos até a alma da pessoa que Não me importa a palavra esta corriqueira. / Quero é o nos fala, ou até seu coração. Ficamos nas palavras-vento, como aquele esplêndido caos de onde emerge a sintaxe, os sítios escuros onde nasce o o "o", o "porém" e esta homem do poema de Cecília Meireles. Ele não entendeu nada. vento incompreensível muleta que me apóia. / Quem entender a seus olhos. O que houve com a professora de Rogers? Um mero linguagem entende Deus cujo Filho é Morre quem equivoco de comunicação como se ela tivesse confundido as palavras? entender. / A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, Certamente não. Ela entendeu corretamente todas as palavras. Mas não surda-muda, foi inventada para ser Em momentos de a pessoa. Ouviu o significado, não ouviu o sentido. graça, se poderá apanhá-la: um peixe vivo Merleau-Ponty já havia dito algo Dizia ele que com a mão. Puro susto e terror (Prado, 1991, p. 22). para ouvir realmente (como diria Rogers) é necessário: A palavra foi inventada para ser calada, pois através dela eu reencontrar sob as linguagens empíricas, acompanhamento entendo e dou sentido ao esplêndido caos, aos escuros, à coisa exterior ou roupagem contingente de todo pensamento, a mais grave, surda-muda. Quando ela pode ser, com plenitude, aquilo palavra viva que é sua efetuação, onde o sentido se formula pela primeira vez, se funda assim, e se torna disponível para que tem a vocação de ser, será como um peixe vivo na mão, puro operações ulteriores (Merleau-Ponty, 1972, p. 227).70 Mauro Martins Psicologia Humana 71 A linguagem a fala como som mensurável, é apena nos alça à condição propriamente humana. Simbolizamos o o acompanhamento exterior do pensamento. A fala como real Podemos discutir o real, e assim transformar nossa relação com viva, esta é a própria efetuação do pensamento. E nela que o sentido Mas ao mesmo tempo que o falar faz isso, ele também nos se formula pela primeira vez, e se constitui tornando-se então do real. Para olharmos o que se passa, afastamo-nos um disponível para outros atos de viver. Quando aquilo que dizemos não que quer dizer tudo isso? Aproximação e afastamento são é realmente ouvido, é como se não tivesse sido plenamente dito. aspectos de uma relação diferente com o real, que a capacidade como se a fala tivesse ficado entalada no fundo de nossa garganta, de falar nos permite. É nessa relação diferente que aparece o viver não pode se desenrolar. significado, o sentido. E então o que era simplesmente real passa a ser Voltemos à professora de Rogers. O que será que Mundo organizado e com sentido. com a criança que não teve sua pergunta respondida? Ela que faz o psicoterapeuta? Ele nos ajuda a perceber como voltar a insistir algumas vezes, ou poderá desistir. E se desistir nosso mundo, e como nossos problemas se prendem à acabará por esquecer sua pergunta verdadeira, e, pion ainda, como fazemos isso. Se eu, como pessoa em processo por substitui-la pela pergunta que a professora diz ter ouvido, puder entender isso, então terei condições de ser diferente. pensará que esta sim foi a pergunta correta. Paulo Freire diria que Mas vamos ver, com Ricoeur (1977), como é que vai se mani- professora foi então a "opressora" que fez o menino se distanciar um mundo com sentido, para além do simples real da rela- sua verdadeira palavra. imediata, quando entramos no universo da linguagem. Separarmos o mero significado do significado pleno nos primeiro distanciamento que a linguagem opera em relação ajuda a compreender o ouvir. mero significado fica no nível real é o distanciamento da significação. Quando falo significo, palavras, enquanto o significado pleno se prende a toda presença signos, e assim me afasto, olho um pouco mais de longe, significante da pessoa. Receber o significado pleno, e não apenas analiso. Pela mediação dos signos me afasto da imediaticidade da mero significado, é ouvir realmente a pessoa. A resposta que brota relação, digamos, animal. Mas com o evento da fala, resintetizo a deste ouvir bem pode ser chamada de interpretação simbólica porque realidade: eu a re-encontro como designada por mim. Aqui temos o reúne o que eventualmente estava separado. discurso simplesmente como fala. Ouvir, aqui, é entrar em contato texto de Rogers continua assim: com que a pessoa diz. E se sou da mesma comunidade Creio que sei porque me é gratificante ouvir alguém. ocorre sem maiores problemas porque também uso os mesmos Quando consigo realmente alguém, isso me coloca lipos de signos com os quais analisamos a realidade. Falo a mesma em contato com ele, isso enriquece minha vida (Rogers, lingua e entendo o que a pessoa está dizendo. 1983, 5). Mas a fala opera um segundo distanciamento. É que quando Ouvir realmente é igual a entrar em contato, que é igual a falamos arrumamos o que dizemos de acordo com um estilo próprio. enriquecer minha vida ou deixar-se tocar. Voltaremos a isso mais Usamos expressões e construções que gostamos mais. Usamos um No prosseguimento dessa fenomenologia do ouvir e do estilo, um gênero. Isso nos um pouco mais distantes do real responder, peçamos agora ajuda a Paul Ele vai nos falar dos imediato. o distanciamento operado pela composição, a que níveis de distanciamento que o discurso opera em relação o corresponde discurso como obra. Como obra literária. Se levarmos Entendamos bem isso. Falar significa dar um sentido às nossas conta isso, então o ouvir verdadeiro tem que levar em conta o experiências e portanto nos aproxima delas, permitindo-nos lidar da relação e o estilo próprio da pessoa. Ouvir então não será construtivamente e criativamente com elas. Tira-nos da condição entrar em contato com o que a pessoa diz, mas entrar contato com o que ela quer dizer através de todo esse modo72 Mauro Martins Amatuzzi uma Psicologia Humana 73 próprio de dizer nesse momento e nessa situação. E isso pode não ser Isso exatamente é o quarto nível de distanciamento operado igual ao mero significado das palavras. Quantas vezes em brigas pela fala. A fala, deixando de ser só do outro, nos afeta e questiona. ouvimos o outro dizer: mas você disse isso! E não nos sentimos Obriga a que tomemos uma posição. Permitindo que a presença total compreendidos. que acontece? A pessoa joga na cara da gente as do outro me atinja como um projétil, ouço-me a mim mesmo recriado palavras e não o sentido. O verdadeiro ouvir vai além do significado por esse encontro. É o distanciamento operado pela comunicação ou imediato das palavras. pelo ato direcionado de fala, a que corresponde o discurso como Ricouer fala ainda de um terceiro de distanciamento que desafio. A fala do outro o distanciou de sua realidade imediata e, para ele é o que ocorre quando escrevemos. Ao escrevermos alguma do seu mundo comunicado, o colocou em contato comigo coisa ou gravarmos de qualquer forma o momento fugaz de uma fala, ouvinte, desafiando-me. Ouvir realmente agora significa ouvir-se a nós um texto que poderá ser usado por outras pessoas de mesmo recriado nesse encontro com o outro. E o paradoxo aqui é forma mais ou menos independente das intenções imediatas de seu que ouvir-se a si mesmo é ainda ouvir ao outro que se comunica autor. O significado de um texto não se prende mais ao que seu autor comigo. Se eu não me ouço no que ele diz, ele não foi ainda tinha consciência de ter pretendido. O texto escapa à individualidade plenamente ouvido. do autor. Este muitas vezes se surpreende com tudo que disse e não Estamos aqui no limiar da resposta e temos que recorrer a Esse é o distanciamento operado pela escrita, ou qualquer A fenomenologia do ouvir se expande em fenomenologia do forma de fixar o que foi dito. A ele corresponde o discurso como diálogo. que acontece então quando o ouvir chegou a esse nível Existe um "mundo do texto". E mesmo quando falamos, aquilo de profundidade? O passo seguinte pode ser expresso assim: que dizemos tem essa dimensão de texto que remete a um mundo permitindo a interpelação do outro, sinto a necessidade da talvez insuspeitado pelo autor. Quem sabe sejam essas as dimensões resposta. Seu discurso já não está nele. Está agora em mim. O coletivas do que Mas mesmo coletivas, são eminentemente encontro humano está eminentemente presente em nossa relação com pessoais, pois se enraizam em nós. Aqui o ouvir tem que ir mais mundo. que ocorre em mim que estou ouvindo é uma longe, então. Ouvir realmente, aqui, significa entrar em contato com mobilização. Tanto em minha vida pessoal, como aqui diante da o mundo da pessoa. Com aquele espaço mental ou campo semântico pessoa como interlocutor. onde ela habita mesmo sem conhecer tudo que há ali. E nós podemos Para Buber a palavra verdadeira é a palavra dirigida, e é por entrar em contato com esse mundo mesmo sem termos que dizê-lo de que recebê-la afeta a pessoa. Se como ouvinte não fui afetado, forma organizada. Ele se constitui de tudo que é recebido pela pessoa, então não ouvi realmente. Mas não apenas as pessoas nos falam, mas também de tudo que foi construído por sua história pessoal, pela também os eventos do mundo nos falam. história de suas emoções, sentimentos, reações, e pelo seu momento Aquilo que me acontece é palavra que me é dirigida. presente em que nos fala. Não "saberemos" de forma representada e Enquanto coisas que me acontecem, os eventos do mundo discriminada tudo isso, mas podemos entrar em contato. É como são palavras que me são dirigidas. Somente quando os entrarmos na casa de uma pessoa. Em sua moradia pessoal. Em seu esterilizo, eliminando neles o germe da palavra dirigida, é que modo de ver, organizar o mundo, estar nele, agir. Ela está neste posso compreender aquilo que me acontece como uma parte mundo, e podemos, ouvindo, entrar nele como um todo. O mundo do dos eventos do mundo que não me dizem respeito (Buber, outro tem coisas em comum com o nosso mundo, e tem coisas que lhe 1982, p. 44). são próprias. Mas justamente por isso, ouvir com essa profundidade A outra pessoa é uma presença que me fala, uma presença a mim nos obriga a questionarmos nosso próprio mundo pela aproximação dirigida. só quando elimino esse fator de presença dirigida, e portanto do mundo do outro. algo que me toca, que eu posso olhar um acontecimento de forma74 Mauro Martins Amatuzzi neutra, como algo que não me diz respeito. Essa objetividade só é Capitulo VI possível graças à supressão mais ou menos artificial da relação mobilizadora. Mas o preço que se paga é não tocarmos o centro dinâmico da Em psicoterapia, se quisermos tocar o centro dinâmico da pessoa, é portanto necessário que nos deixemos Versão de Sentido Tomar conhecimento íntimo de um homem significa então, principalmente, perceber sua totalidadade enquanto pessoa determinada pelo perceber o centro dinâmico que imprime o signo de unicidade a toda Este capítulo retoma um trabalho originalmente apresentado sua manifestação, ação e atitude. Mas um tal conhecimento em Aguascalientes, no México, no 8° Encontro íntimo é impossível se o outro, enquanto outro, é para mim o Latino-Americano da Abordagem Centrada na Pessoa, em objeto destacado de minha contemplação ou mesmo outubro de 1996, logo depois do encontro da Associação observação, pois a estas últimas esta totalidade e este centro Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia não se dão a conhecer: o conhecimento íntimo só se torna (ANPEPP) daquele ano, onde foi também discutido. Foi possível quando me coloco de uma forma elementar em publicado como um capitulo das Coletâneas da ANPEPP, relação com o outro, portanto quanto ele se torna presença 9, com o título uso da versão de sentido na para mim (Buber, p. 147). formação e pesquisa em psicologia (pp.11-24). Esse caderno foi organizado pela profa. Regina Carvalho, tem como título Só ouço plenamente quando o outro se torna presença atuante Repensando a formação do Psicólogo: da informação à para mim. Ai então, sinto a necessidade da resposta. descoberta, publicado em Campinas, SP, Editora Mas neste momento central do diálogo, uma bifurcação é 1996. texto parte de uma preocupação com a busca de possivel. caminhos para pesquisas de tipo qualitativo. Propõe-se a examinar teoricamente um tipo de relato que vem sendo Se precipito a resposta estrago Não dou tempo suficiente a usado como instrumento prático tanto na formação como na esta mobilização e atuo através de uma ligação Minha resposta pesquisa, denominado Versão de Sentido (VS). Aqui conto será apenas o efeito do discurso ou da presença do outro. um pouco de sua história, e busco uma justificativa para seu Mas se, ao contrário, ainda espero, então permito que surja uso. Fiz algumas pequenas modificações no sentido de novo, e o que surgir será verdadeiramente resposta e não efeito. E atualizá-lo e adaptá-lo a este livro. somente aqui que se fecha o elo dialógico. atendimento psicoterápico de orientação fenomenológica formado por elos dialógicos desse tipo. As outras falas que visam apenas conferir a compreensão, manter a comunicação ou clarear o sentimento são preparações para a resposta, ou já são implicitamente T enho trabalhado há algum tempo com Versões de Sentido (VS), como instrumento a resposta, ou então não têm sentido terapêutico algum. econômico e de uso fácil, no acompanha- mento reflexivo de atendimentos terapêuticos, de educativas e docentes, e de trabalhos grupos. A experiência se espalhou, e hoje mu- colegas a praticam em atividades de formação supervisão, e começa também a ser usada em Contudo também não faltam os oposi-76 Mauro Martins Amatuzzi uma Psicologia Humana 77 tores, argumentando que o termo é em si contraditório, ou que a terapeuta, tinha sido o essencial do encontro terapêutico. Houve não pode servir como forma de acesso ao processo vivido. A expe- basicamente dois motivos para isso. Um, bastante trivial. Estávamos riência de quem já lidou com esse tipo de relato do vivido, entretanto, todos cansados de fazer relatórios mecânicos de sessão, como era fala a favor de sua fecundidade para a formação e pesquisa, tanto no exigido nos estágios. E o outro motivo se referia à questão do sentido. campo clínico como no educativo ou de assessoria a grupos. que "fazia sentido" para estarmos conversando? E antes disso: o que me proponho aqui é: que "fazia realmente sentido" para nós estar escrevendo logo após 1. redizer o que é exatamente uma um atendimento? A resposta parecia ser: o que de primeiro nos vinha 2. contar um pouco de sua história, fundamentando-a em mente, agora, com o distanciamento da presença face-a-face do uma história anterior, e cliente, e antes que nos tivéssemos envolvido em uma nova atividade. 3. buscar uma justificativa teórica para seu mais: algo que nos desse uma visão de conjunto do que acabara de Gostaria de ter como pano de fundo o conjunto de desafios acontecer ali. Escrever isso foi experimentado como significativo. encontrados em uma iniciação cientifica de abordagem qualitativa, seja à Fazendo isso, e discutindo nossos atendimentos a partir de tais pesquisa, seja à prática profissional. Não vejo porque uma iniciação, para relatos, algumas coisas foram ficando mais claras. que fazia ser deva começar pelo manuseio de tabelas, e testes sentido registrar era diferente daquilo que escreviamos quando, de estatísticos, quando o que se visa é um aprendizado de penetração de memória, tentávamos reproduzir a dos fatos de forma significados. Não vejo porque, também, esse aprendizado deva ser neutra. que fazia sentido registrar era o sentido vivo, presente no separado de uma iniciação à prática de atendimentos ou de uma próprio ato de escrever. E era esse sentido que expressava melhor o experiência de envolvimento com processos grupais. andamento do processo. Entendemos por Versão de Sentido (VS) um relato livre, que Foi isso que nos levou à formulação de que o "sentido que não tem a pretensão de ser um registro objetivo do que aconteceu, interessa" é sempre presente. Um registro mecânico não o pode mas sim de ser uma reação viva a isso, escrito ou falado captar, pois ele só contém o passado. É só através de nosso presente imediatamente após o ocorrido, e como uma palavra que podemos estabelecer contato vivo com o sentido de um encontro. Consiste numa fala expressiva da experiência imediata de seu autor, é o contato vivo que é útil na formação. face a um encontro recém-terminado. Mas isso equivale a dizer também que, se eu quiser ter um sentido vivo do sentido vivido numa sessão terapêutica, este só poderá ser uma versão atualizada no presente, do sentido vivido resto será tudo memória apenas, ou esquecimento. único acesso Compreendendo a possível ao sentido vivo de um encontro se dá através de versões a partir de sua história dele, no vivido de quem o reatualiza. Aquele grupo de colegas, naqueles anos de 1989/90 na USP, Tudo começou com o convite, feito a alguns colegas havia realizado uma exploração em ação da experiência do sentido. E recém-formados, para uma pesquisa-em-ação a respeito do foi publicado em 1991 em um artigo que teve por título: desenvolvimento pessoal. Isso se faria através de um grupo onde uma pesquisa fenomenológica no processo discutiríamos semanalmente nossas experiências em atendimento (Amatuzzi; Solymos; Ando; Bruscagin & Costabile, 1991). psicológico. Gostaria de prolongar hoje aquelas reflexões para fazer face a Combinamos que essas discussões seriam feitas não a partir do algumas objeções que surgiram depois, em encontros com outros relato da sessão, mas a partir de um relato condensado do que, para o colegas. E principalmente a duas delas:78 Mauro Martins Amatuzzi Por uma Psicologia Humana 79 o sentido não tem versão (e portanto a nos distancia do começo do curso. Quando um determinado aluno foi ler sua pela sentido vivo), e, primeira vez, ele hesitava muito, e, com muitas explicações, dizia que 2. a não nos dá acesso ao que de fato aconteceu (e portanto não via sentido em ler aquilo para outras pessoas. Por fim foi pedido não serve como instrumento de pesquisa). que ele a lesse assim mesmo, e, sem comentários, ouvisse o que os A é uma versão do sentido vivido de um encontro, através do colegas tinham a dizer acerca do que tinham ouvido. Ao final dessas sentido vivido logo depois (e por isso mais facilmente falas dos colegas, o primeiro declarou estarrecido que eles tinham Mas ela poderá ser também apenas memória, se não for atualizada em dito o essencial daquele encontro, mesmo sem saber nada de seu outro diálogo Isso também foi experimentado naquele grupo. Ao enredo. Pessoalmente comecei a pensar que uma bem feita é uma invés de a sessão ser trazida ao grupo como um objeto a ser analisado espécie de radiografia fenomenológica de um encontro. (através de um relatório), era lida a VS, e a ela com Até agora pretendo estar afirmando que: comentários livres, inclusive do próprio terapeuta. Esses comentários 1. Uma VS é uma forma de contato vivo com o sentido de um foram se revelando ser de dois tipos, quando mais No que diz respeito ao terapeuta (autor da VS) foi interessante constatar o poder de 2. sentido para o qual aponta uma VS se torna atual quando evocação que a tinha. Era como um registro condensado do vivido, e ela é colocada num contexto de interlocução presente. que permitia à pessoa não apenas lembrar-se do ocorrido, mas também 3. Ela tem o poder de transportar o vivido de forma falar disso de forma viva, atual, como pela primeira vez, explicitando condensada. Ela evoca lembranças e desdobramentos de detalhes do vivido. E por parte dos outros membros do grupo sentido em seu autor, e passa para os ouvintes um sentido constatamos que os ou interpretações causais não ajudavam essencial, mesmo quando não passa detalhes fatuais. muito, pelo menos no primeiro momento. Mais valia simplesmente Mas outras coisas também pudemos constatar naquele primeiro dizer, de forma simples e presente, o que se tinha ouvido a partir da grupo. Vejamo-las: leitura da VS, e a reação que ela havia provocado. A partir dai se iniciava 4. Uma VS pode ser re-escrita pelo seu autor sem que ela deixe de um diálogo que cumpria aquilo que, com Buber, poderíamos chamar de ser uma VS. Verificamos que o seu autor pode torná-la atual, e "presentificação" do sentido ou dos significados vividos (agora em novo nesse ato poderá haver novas explicitações ou desdobramentos contexto interlocucional). Só quando isso estivesse realizado, é que de sentido. Em suma, pode haver versões de versões de sentido. outras formas de consideração ou raciocínio se faziam úteis no Isso é importante do ponto de vista da No fundo o acompanhamento reflexivo da experiência. método qualitativo de pesquisa consiste em re-escrever Em um outro grupo posterior, tratando-se de uma experiência sucessivamente a mesma coisa (ou fazer sucessivas leituras) até didática (desta vez na PUCCAMP, em 1995), constatamos que que se chegue a uma depuração do significado que se procura. aquilo que para o autor da podia inicialmente parecer sem sentido E quando é o próprio sujeito que faz isso (sozinho ou em se lido para terceiros, para os outros que ouviam de fato transmitia interlocução), não seria de estranhar que se acrescentassem muito exatamente a qualidade do vivido, mesmo que não houvesse eventualmente significados novos ao mesmo vivido. ali informações sobre o empírico do que tinha Isso 5. Mas poderia ser uma re-escrita por outra pessoa? aconteceu mais ou menos assim. Numa sala de aula do curso de talvez dizer que a transcrição feita por um pós-graduação em psicologia clínica, alguns alunos estavam pesquisador seria tão mais apropriada quanto mais ele trabalhando com versões de sentido para acompanhar experiências tivesse participado da re-criação do sentido através de um semanais de atendimento educativo ou de assessoria a grupo de interlocução, na medida do possível com a presença grupos. feito um rápido "treino" para escrever VSs no do autor. Permanece válido, no entanto, que re-escrever (ou80 Mauro Martins Amatuzzi Por uma Psicologia Humana 81 transcrever) é fazer uma outra versão do mesmo sentido, a será aqui realmente apenas uma "versão" do sentido do partir do atual ponto de vista de quem o faz. encontro, e é enquanto tal que ela deve ser 6. trabalho com VSs em grupo (ou numa dupla) pode ser É claro que significado ou sentido do encontro é um equivalente a uma supervisão. Isso também foi constatado conceito de dificil apreensão. O que é isso na prática? No por membros do grupo de trabalho com VS, e que, por entanto é ele que mais interessa na avaliação de um outro lado, estavam em supervisão com outra pessoa. o processo: o que cada encontro possibilitou em relação a um que se dizia é que a discussão no grupo estava sendo mais movimento de conjunto, e como esses elos se articulam na significativa do que aquela que a pessoa tinha em sua cadeia. E no caso de um processo terapêutico, será supervisão. Foi por causa disso também que muitos colegas principalmente o significado que o encontro teve para o passaram a usar a como método de supervisão, e cliente que irá definir seu sentido. Ora, o terapeuta como tal alguns chegaram a levar trabalhos em congressos sobre é uma pessoa voltada para isso, e é nesse papel que ele faz essa experiência. suas versões de sentido. Elas podem ser, portanto, aqui de 7. Posteriormente a esse grupo, que durou aproximadamente um particular ano, o trabalho prosseguiu de outras formas. Uma das formas Mais pesquisa seria aqui necessária, envolvendo mais significativas foi o trabalho com inteiras. A comparativamente VSs de terapeutas e de clientes (ou de conclusão foi que, a partir da análise de séries de todos os participantes do grupo), sem dúvida. No entanto referentes a um mesmo processo, é possível descrever, de um eu ousaria dizer, teoricamente, que a natureza das coisas ponto de vista mais fenomenológico, esse mesmo aqui em jogo é tal que as VSs de um participante apenas As versões de sentido, sessão por sessão, olhadas em conjunto podem nos dar um razoável acesso ao sentido do processo depois de terminado o processo, possibilitam uma visão mais como um todo, desde que sejam lidas sob esse ponto de condensada do todo, e ao mesmo tempo rica em detalhes vista. Preciso acrescentar aqui que, atualmente, já existem experienciais (embora não em detalhes fatuais). Um trabalho pesquisas envolvendo VSs de clientes ou participantes de nesse sentido já foi publicado (ver cap. VII), e outros estão em grupo, por exemplo: Alves, 1996; Prebianchi & Amatuzzi, 2000; Macêdo, 2000. Uma questão importante que aqui se coloca é de se saber se é Mais pesquisa seria aqui necessária, envolvendo possível descrever um processo do qual participaram pelo comparativamente VSs de terapeutas e de clientes (ou de menos duas pessoas, a partir das VSs de apenas uma delas. todos os participantes do grupo), sem No entanto Se entendemos por processo a de fatos ocorridos, eu ousaria dizer, teoricamente, que a natureza das coisas objetivamente considerados, e envolvendo todas as pessoas aqui em jogo é tal que as VSs de um participante apenas em relação, então certamente que a descrição feita a partir de podem nos dar um razoável acesso ao sentido do processo VSs seria muito parcial. Mas se processo se referir não a fatos como um todo, desde que sejam lidas sob esse ponto de objetivos, e sim à de significados vividos de vista. Preciso acrescentar aqui que, atualmente, já existem encontro para encontro, e se esses significados forem pesquisas envolvendo VSs de clientes ou participantes de entendidos como sendo do encontro, e não de cada grupo, por exemplo: Alves, 1996; Prebianchi & Amatuzzi, participante em separado, então podemos hipotetizar que a 2000; Macêdo, 2000. série de VSs nos dê acesso ao desenho do processo. Cada 8. Há uma outra conclusão a que pudemos chegar, no entanto, que torna relativas todas as anteriores. É que a uma82 Mauro Martins Amatuzzi uma Psicologia Humana 83 coisa que se vai aprendendo a fazer, assim como se aprende Depois desta primeira entrevista, ela (a cliente) escreveu, de a chegar a uma fala autêntica a partir de um hábito anterior forma bastante completa, suas impressões, e mostrou o relato de falas inautênticas, mecanizadas, e só indiretamente ao conselheiro antes do segundo encontro. conselheiro a expressivas. Não basta uma simples instrução para que a incentivou a realizando esses informes pessoais depois pessoa esteja pronta para escrever uma É comum que de cada entrevista, para incrementar nosso conhecimento da terapia. Disse a ela que quanto mais sincero fosse o informe, ela comece fazendo relatos de observação neutra, ou implicando afirmações positivas ou negativas, mais valioso seria mesmo elaborações lógicas a respeito do ocorrido. E só o registro. Não se voltou a mencionar o informe nas entrevistas pouco a pouco que a vai se aproximando de uma fala seguintes, e o conselheiro só os recebeu ao final dos contatos expressiva da experiência imediata. terapêuticos. relato é extensamente auto-explicativo, mesmo Nossa história com esse instrumento pode nos dizer que a autora o interrompa por momentos com comentários algumas coisas aqui. Uma primeira é que justamente (Rogers, 1972-1951, pp. 88-9). aprendendo a fazer VSs é ir aprendendo a lidar de forma A cliente fez algo que se aproxima um pouco de nossas VSs, e viva com o significado das coisas e, que foi utilizado depois num estudo de caráter eminentemente aprendendo a relação psicológica. Isso parece importante qualitativo. Algumas expressões chamam a atenção: informes no aspecto pedagógico da formação. pessoais, sinceros, para incrementar nosso Em segundo lugar, se deve dizer que a não é tão variável Infelizmente essas sessões não foram gravadas para que se em seu valor expressivo quanto o seria a fala direta na pudesse comparar os informes escritos com as gravações, e presença do cliente. recuo no qual ela é feita (sob o clima evidenciar assim não só o que a gravação tem a mais, mas também o do encontro, mas sem a presença do interlocutor) permite que os informes têm a mais, e que não poderia nunca ser gravado. mais facilmente seu caráter expressivo. Além disso ela é Bastante cedo também nos Estados Unidos o videotape foi passível de "correções" no grupo de acompanhamento utilizado como instrumento e técnica a serviço da terapia. Um dos reflexivo (supervisão). usos consistiu em recapitular a sessão, com sua ajuda, junto com o E finalmente, é importante dizer que uma boa análise de ou o cliente, permitindo novos insights sobre a relação. Isso qualquer documento deve levar em conta as uma técnica de supervisão, a Interpersonal Process Recall (IPR), de seu valor heurístico. surgida na década de 1970. Segundo um comentário de Bernard & Gooyear, em seu livro sobre a supervisão (1992, p. 26), embora o método pareça comportamental, ele tem também um aspecto Pré-história e outras abordagens pois assume que as próprias pessoas são os melhores intérpretes de suas experiências. Eles dizem também que Rogers, em 1951, em seu "Psicoterapia Centrada no paradoxalmente tal técnica permitia um acesso mais livre ao vivido utilizou-se também de relatos livres do próprio cliente para do que o da própria sessão, pois diante do video o terapeuta permitia o processo. Segundo ele, foi espontaneamente que uma determinada mais facilmente que os insights emergissem de dentro de si mesmo. cliente escreveu após cada sessão. No fim do processo de 8 sessões Ele fala de uma re-experienciação da sessão diante do video. E o terapeuta recebeu todos esses escritos que serviram, então, para resultado presumível, podemos deduzir, é que os comentários assim mostrar como as coisas se passaram "aos olhos do cliente". Eis como após a sessão, com o distanciamento do contato imediato, ele apresenta os manuscritos: mencionavam sentimentos ou lembranças vividas lá, mas não verbalizadas, e que, portanto, não apareciam na gravação.84 Mauro Martins Amatuzzi uma Psicologia Humana 85 mesmo pode ser constatado com o uso de questionários após a atividade em questão, escreva, o mais espontânea e aplicados a clientes e terapeutas logo após a sessão. As perguntas sinceramente possível, baseando-se em seus próprios sentimentos mencionadas em estudos como os de Heppner, Rosemberg e neste momento, o que lhe parece ter sido o essencial deste encontro Hedgespeth (1992) ou de Stiles, Reynolds, Hardy, Rees, Barkham e que acabou de acontecer". Ou: "escreva livremente acerca do acabou Shapiro (1994) e que já constituem instrumentos padronizados visam de acontecer"; ou ainda: "escreva como você está, face a esse colher dos clientes ou dos terapeutas, imediatamente após a sessão encontro que termina". É importante que o próprio autor experiencie já não na presença um do outro, seus sentimentos, pensamentos ou significância do que ele está escrevendo ou falando. Qualquer avaliações acerca do encontro É claro que as de "instrução" deve ser apenas o começo de um processo em respostas continham dados muitas vezes diferentes dos que direção a um texto ou depoimento cada vez mais expressivo da apareciam nas gravações. experiência imediata face ao encontro, e que seja ao mesmo tempo A segue esse mesmo espirito, só que ela é feita de forma significativo para quem escreve. mais livre, não padronizada, e a partir daquilo que a própria pessoa A um texto assim produzido, nós o denominamos uma "versão considera importante. de sentido" porque ele pode ser um indicador indireto (mas o mais direto que podemos dispor) do sentido do encontro. Ele é uma versão do sentido do encontro, tal como ele existe no presente da experiência dessa pessoa. E é quando utilizada dessa forma que uma pode ser Tentativa de definição um instrumento útil em pesquisa e formação. Como produção, uma é a fala, o mais autêntica Podemos então falar de versões de sentido como método. que toma como referência intencional um encontro Consiste essencialmente em versar e conversar sobre o sentido até pronunciada logo após sua ocorrência.Fala autêntica: é importante que se chegue a uma presentificação dele suficiente em relação ao que seja uma fala expressiva da experiência imediata, fala primeira, que é esperado daquela atividade. Versar e conversar: fazer versões original, espontânea, e não necessariamente um de sentido, e "con-versar" a partir delas fazendo novas versões. teorização, cumprimento de instruções ou relatório. Referência Presentificação: palavra de estilo buberiano, que quer dizer, aqui, intencional: esta fala é expressiva da experiência imediata, face a um explicitar experiencialmente os significados, isto é, não apenas encontro. A situação: uma relação interpessoal, uma aula assistida, conceitualmente, mas torná-los presentes vivencialmente. um grupo, ou mesmo qualquer encontro com um objeto significativo se trata do acompanhamento crítico de uma experiência Esta fala é pronunciada logo após a ocorrência do encontro, e tendo (supervisão, por exemplo), a presentificação esperada é aquela que como referência. A situação interlocucional que define o encontro o sujeito mais bem preparado e disponível para o próximo não é exatamente a mesma; o sujeito não está pressionado pela encontro. Se se trata de pesquisa, a presentificação esperada é aquela necessidade da resposta, e nesse sentido está mais livre para um que atende, em linguagem cientifica, a um objetivo ou intenção de acesso à sua experiência imediata. conhecimento (ainda que esse objetivo faça parte de uma ação). Como produto, a será um texto expressivo da experiência imediata, escrito ou gravado por iniciativa da própria pessoa, ou solicitado por um interlocutor. A rigor poderia ser qualquer tipo de Para uma fundamentação teórica produção Como poderiamos solicitar uma VS de um cliente, de um Podemos buscar uma justificativa teórica para a versão de sentido supervisionando, de um auxiliar de pesquisa, ou de um uma fenomenologia da linguagem inspirada em Martin Buber e de grupo? Uma maneira simples seria pedir a ele que "logo Maurice Merleau-Ponty. Em dois artigos reuni alguns elementos que86 Mauro Martins Psicologia Humana 87 preparam essa tarefa (Amatuzzi, 1991 e 1992). Mas agora quero em uma relação. Ao mesmo tempo, pois, que reúne em que direções podemos desenvolver essa fundamentação. no reconhecimento da identidade, revela essa própria Para além dos elementos simbólicos do discurso, a fala, como no âmbito da interlocução (às vezes até para o próprio ato, é um Quer isso dizer que não apenas ela sua fala tem essa função reveladora, isto é, reunidora de níveis elementos que, advertida ou inadvertidamente, remetem a diferentes de identidade). coisas (elementos simbólicos), mas que em si mesma ela No caso de uma VS, enquanto potencialmente ouvida por outras junto uma série de coisas que antes estavam separadas, e o (ou pelo menos pelo seu próprio autor), ela o dá a conhecer, em intencionalmente Quanto mais a fala se cumpre ou menor profundidade, tornando disponível seu existir em símbolo, menos importantes serão seus elementos simbólicos. Quanti ao projeto envolvido pelo encontro. No caso de um terapeuta, mais ela exerce sua função menos aparecem ajuda a torná-lo mais disponível para o próximo encontro na simbólicos inadvertidos. medida em que foi ouvida por alguém (e compreendida), ou ao menos A afirmação, como ato, reúne sujeito e predicado, permitindo conscientemente por seu autor. Em supervisão, pois, a conhecimento maior. A designação reúne sujeito e objeto num seu autor, traz seu projeto, dá-o a conhecer nesse novo contexto mundo de significados; sem ela o objeto permaneceria totalmente interlocução. E esta é justamente uma das finalidades da supervisão. estranho e não integrado ao mundo de significados do sujeito. anúncia interessante lembrar que o distanciamento calculado no qual é feita a reúne o ouvinte e o arauto com aquilo que é anunciado, e que se faz, facilita o aparecimento de aspectos até então mais ou menos então, intencionalmente presente aos dois. Um pedido reúne a pessoa do projeto. quem ele se dirige com uma carência solicitante do sujeito, Em segundo lugar a palavra também junto passado, presente ignorada. Mas há outras coisas que são postas juntas ao mesmo Ela torna atual o projeto a partir de suas raizes no passado, e nesses atos todos. No pedido, por exemplo, a carência do sujeito em direção ao futuro. Ela cumpre uma atualização, e tanto até não ser ignorada, mas a outra pessoa aguardava que a quanto mais compromete o falante. Dai porque uma precisa ser manifestasse para que elas duas se reunissem num vínculo como fala autêntica, que compromete o falante como numa provimento ou subordinação. próprio pronunciamento do pedido de posição. Quando fazemos uma trazemos para o presente quem o faz implica o reconhecimento de uma carência e de uma vivido, atribuímos-lhe significado transformando-o de certa forma, e necessidade do outro, ou seja, implica a decisão que assim seja. Isto isso disponibilizando nossa pessoa em relação ao futuro. Como texto um ato que reúne no sujeito uma série de coisas em seu mundo interior pelo autor, ela tem o poder de resgatar o todo do vivido, trazendo-o E assim por diante. Em vários níveis a fala reúne, e dizer que possibilidade de uma nova re-experienciação. E esse poder será ela junto esses É por isso, aliás, que ela leva maior quanto mais apropriado e facilitador for o contexto dialógico experiência, desdobrando significados. É isso também que re-atualização. estar em processo. Também em termos de espaço a fala autêntica reúne. Quanto Pensando em nosso problema que é a fundamentação da mais ela porá junto intencionalmente o lá e o aqui. E é versão de sentido, podemos dizer que a fala, como ato, notar que se não for autêntica, isto é, se não estiver reúne, coisas em 3 níveis. plenamente sua função simbólica como ato de fala, então Em primeiro lugar e basicamente, ela junto pessoas. A fará indiretamente pelos elementos simbólicos nela contidos permite o reconhecimento das pessoas em relação a um É o que acontece, por exemplo, quando, através de Quando falo e sou ouvido, minha fala me dá a conhecer fala, estou tomando posição em uma situação atual, mas sem intenções que constituem meu existir nesse momento: e isso que tudo que nisso está implicado se faça presente (se reúna).88 Mauro Martins Humana 89 Meus modelos de relacionamento aprendidos em outras relações, Se nos colocarmos na perspectiva de Buber (1982-1953), o exemplo, tendem a se fazer presentes nesta. Mas se não me dou conta "sentido" de uma relação não se encontra propriamente em nenhum disso (isto é, se isso não é significado de alguma forma por mim) participantes. Em cada um, segundo ele, existe apenas o minha tomada de posição perde em autonomia, e os secreto da própria conversação", que é seu anteriores tendem a se fazer presentes inadvertidamente através di subjetivo ou psicológico. sentido de uma relação elementos da fala (no mais das vezes somente somente neste encarnado jogo entre os dois, neste seu Entre por peritos). De nosso ponto de vista, isso aponta para o fato de que o Uma "traz" para o novo contexto de interlocução (o aqui) sentido deve ser buscado numa leitura do segundo tipo acima citado, vivido anterior (no lá). E não é raro vermos uma verdadeira reedição ela mesma inserida num contexto relacional. das mesmas relações vividas lá, entre essas pessoas aqui. Finalmente, quando se busca o sentido de processos, deve-se Em suma, o poder da se fundamenta no poder da fala com séries de VSs. Elas permitem um olhar de sintese muito Quanto mais autêntica ela for, tanto mais poder direto ela terá (isto mais imediato e rápido do que o que se poderia obter a partir de aquele que decorre de sua função como ato), e menos indireto (isto é, aquele que decorre de seus elementos E o que resulta disso tudo para o uso de VSs na formação e na inadvertidos). iniciação convicção minha que, apesar de as explicações serem aqui (porque se referem a algo não convencional em pesquisa), se se Princípios gerais para quer iniciar alguém a uma abordagem do sentido, é preciso começar exatamente isso, e não outra coisa. É preciso que a atividade de o uso da Versão de Sentido iniciação seja de mesma natureza que a pretendida, e não diferente. que resulta disso tudo para a análise de VSs para fins de que pode diferir aqui, para uma iniciação, seria o caráter de menor risco, pesquisa? digamos assim, da atividade pedagógica. Ora, é exatamente isso que as VSs como método possibilitam. Antes de se atender um cliente, por contexto ideal para sua "interpretação" (compreensão sentido que ela transporta) é o de uma interlocução onde ela e seu pode-se iniciar fazendo versões de sentido da própria situação se fazem presentes. É nessa nova interlocução que se reedita o sentido, grupal de formação: e já estaremos lidando com algo da mesma natureza mesmo quando implicando novas falas mais É isso que do que aquilo que irá acontecer no E a conversa que ocorre acontece em supervisão, e é isso que pode também acontecer em depois nas sessões de acompanhamento equivale a um "treinamento" de pesquisa. É preciso que se aceite entretanto a figura do "parceiro" de lida com significados. Coisa análoga se pode dizer a propósito da pesquisa. Nesse novo contexto se "versa e conversa", tendo a mesma iniciação quando se trata de pesquisa qualitativa ou referência intencional, até se chegar à explicitação Em nossa experiência pudemos perceber a do uso de VSs para uma abordagem do sentido, tanto na Um outro ponto importante é que a pode ser "lida" em dois niveis. Ela transmite primeiro a vivência de seu autor. Mas num segundo formação como na pesquisa. nível, transmite o sentido da relação vivenciada pela pessoa. É nesse segundo nível que ela merece, mais apropriadamente, o nome de "versão": ela será uma versão do sentido da relação, ou seja, a versão desta pessoa. A leitura que se faz depende do em que o pesquisador se coloca, o que por sua vez depende do objetivo da pesquisa.Capítulo VII Etapas do Processo Terapêutico Por quais etapas passa o que, estando plenamente envolvido numa relação terapêutica, se propõe a explorar sua experiência visando superar alguma situação pessoal vivida como problemática? É descrever essas etapas a partir de Versões de Sentido das sessões escritas pelo terapeuta? Para responder a essas questões examinaremos, neste capítulo 3, seqüências de Versões de Sentido. Para isso retomo um texto que foi originalmente publicado na Revista Psicologia: Teoria e Pesquisa, da Universidade de Brasilia, em 1993, 9(1), pp. 1-21, com o título Etapas do processo terapêutico: um estudo exploratório. Fiz apenas pequenas modificações nesse texto para adaptá-lo a esta publicação. A problemática Este estudo se desenvolveu no interior de um grupo de terapeutas que toda semana se reunia para refletir sobre seus atendimentos. A sistemática dessa reflexão era tomarmos como ponto de partida breves relatos sintéticos da experiência imediata do terapeuta, escritos imediatamente após o A esses relatos demos o nome de Versões de Sentido (VS). A expectativa era que o de fazer VSs nos colocaria, a cada um, mais prôximos do movimento que constituía o processo com aquele cliente em particular e, ao mesmo tempo, nos ajudaria a estarmos mais92 Mauro Martins Amatuzzi Por uma Psicologia Humana 93 disponíveis a ele no próximo encontro. Esta era a dimensão de Da mesma maneira que muitos psicólogos se interessaram "formação" que esse grupo tinha. Havia, no entanto, ainda uma outra pelos aspectos constantes da personalidade [...] também eu me interessei, desde muito tempo, pelas constantes que intervêm expectativa. que essas VSs poderiam revelar do processo se na modificação da personalidade. [...] qual é o processo em que analisássemos séries mais ou menos longas delas? Foi com uma essas modificações ocorrem? (Rogers, 1961, p.108). pergunta como essa que nos propusemos a trabalhar quando pudemos dispor de três de VSs praticamente completas, e que Em outras palavras: existe alguma regularidade na forma como abrangiam, cada uma, um processo de atendimento desde o começo ocorrem as mudanças terapêuticas? Para fazer isso Rogers deixa de lado até o fim. dois caminhos e opta por um terceiro. primeiro caminho corresponde As possibilidades de análise de um material como esse são, sem orientação em vigor nas pesquisas até então: saber alguma coisa sobre dúvida, maiores que as que desejamos aqui apresentar. Nossa análise esse processo pelo estudo dos resultados (idem, p. 109). Foram medidos não naquele momento, contudo, restringiu-se a um aspecto apenas: podiam apenas resultados finais, mas intermediários. No entanto, face aos as VSs nos mostrar um "desenho" do processo, do começo ao fim, em propósitos de Rogers, isso levava apenas a cortes fotográficos que não termos de etapas ou fases vividas pelo cliente na relação com o descreviam o movimento. terapeuta? A resposta a que chegamos foi positiva. E o que nos Mesmo esta última técnica (medidas intermediárias) propomos agora aqui é refazer esse caminho com a preocupação de forneceu-nos poucas indicações quanto ao processo em si determinar, o mais exatamente possível, o seu alcance. mesmo. Estudos sobre resultados segmentados são ainda Há já quase 40 anos Rogers (1958), num trabalho pioneiro, se medidas de resultados e, por conseguinte, fornecem poucas dedicou a descrever as etapas do processo terapêutico. cap.5 de seu indicações sobre a maneira como se opera a transformação Tornar-se Pessoa, publicado originalmente em 1961, traz o primeiro (Idem, p. 109). texto desse seu trabalho, que foi feito entre 1956 e 1957. Eis como ele É a maneira como se opera a transformação que também está apresenta: nos preocupando aqui. Se nos capítulos precedentes o processo terapêutico é O segundo caminho é o da formulação teórica, acompanhada, encarado de um ponto de vista quase exclusivamente quando possível, de observação clínica (idem, 109). E Rogers considera fenomenológico, a partir do quadro de referência do que certamente isso é possível, a partir mesmo de vários quadros de paciente, este capítulo procura captar aquelas qualidades de referência teóricos. No entanto não é isso que mais interessa quando expressão que podem ser observadas por outra pessoa e trata de um campo de investigação novo (idem, p. 110). situa-se, portanto, num quadro de referência externa Considera ele que, como abordagem primeira em um novo (Rogers, 107). o importante é que Trata-se portanto de analisar o processo terapêutico nos fixemos nos acontecimentos, que nos aproximemos dos pelo cliente na relação com o terapeuta, mas não tanto do ponto de fenômenos com o mínimo de preconceitos possível, que vista das percepções dele mesmo (o que Rogers chama aqui de assumamos a atitude observadora e descritiva do naturalista, perspectiva fenomenológica), mas sim a partir de uma análise que recorrendo a inferências pouco diferenciadas (low-level outra pessoa possa fazer. No entanto o que ele pretende estudar inferences) que parecem mais conaturais ao material processo em si mesmo, o processo através do qual a personalidade estudado (idem, p. 110). altera (Rogers, 1961, 108). Diz ele também: É interessante como isso se aproxima do que, numa linguagem diferente da de Rogers, vem a se chamar de pesquisa fenomenológica: dos fenômenos descritivamente, sem idéias94 Mauro Martins Amatuzzi Por uma Psicologia Humana 95 preconcebidas, com generalizações as mais próximas dos está gravando tudo, pode deixar de ser ativo na exploração da experiência dados. Interessante também o comentário com o qual Rogers caracteriza no fazer surgir os dados relevantes. o seu método: O outro comentário concerne ao fato de que Rogers polarizou empreguei o método que muitos de nós utilizamos para seu trabalho pela formulação de hipóteses verificáveis. Com isso o levantar hipóteses, um método que os psicólogos de nosso valor de sua descrição do processo terapêutico, em si mesma país parecem relutantes a ou a comentar. Usei-me considerada, ficou mais ou menos perdido, e a pesquisa se orientou como instrumento (idem, p. 110). para a construção de escalas que possibilitassem medir o estágio de Tanto Mucchielli (1991) como Chizzotti (1991), por exemplo, algum processo num determinado A preocupação deixou consideram que esse usar-se como instrumento pode ser característica de ser descritiva ou compreensiva, e passou a ser avaliativa. da pesquisa qualitativa. Mas Rogers considerava que isso só o levaria a próprio Rogers trabalhou logo depois em uma escala (Walker; Rablen & Rogers, 1960), e esta foi a matriz de muitas outras levantar hipóteses Rogers trabalhou a partir de gravações de sessões terapêuticas, (ver, por exemplo, nos apêndices do livro de Rogers, 1967). Marziali seguindo determinados passos. Em primeiro lugar ouviu, repetida Alexander (1991) fazem uma interessante revisão bibliográfica da pacientemente, as gravações, procurando ingenuamente (sem crivos última década a respeito dos estudos sobre os componentes da de análise) apreender o que fosse relevante para uma compreensão do relação terapêutica, sua definição e mensuração. Segundo essa seu assunto. Algumas categorias emergentes eram dos fatos revisão os estudos se centram em medidas da qualidade da relação mais simples. Em seguida ele formulava essas observações e essas em diversos momentos do processo, e sua relação abstrações elementares (low-level abstrations) de modo a poder-se com os resultados da terapia. Existe, sem dúvida, a preocupação da destacar imediatamente hipóteses verificáveis (idem, uma vez que se pretende prever, o mais precocemente Há dois comentários importantes a serem feitos aqui quanto à o resultado da terapia a partir da avaliação da relação metodologia e seu alcance. primeiro diz respeito ao uso do conseguida nas primeiras sessões, e com isso evitar gravador como forma de registro. Está fora de dúvida que as tratamentos que tenham poucas chances de sucesso. A idéia de se metodologias qualitativas tiveram um grande impulso a partir dessas uma descrição fenomenológica das etapas do processo, formas de registro, como comentam, por exemplo, Brioschi & contudo, um "desenho" de seu movimento para se saber como ocorre mudança, como era a intuição original daqueles primeiros estudos paradoxalmente, pode-se afirmar que o desenvolvimento de Rogers, foi praticamente abandonada. A intenção de se aproximar tecnológico favoreceu a efervescência dos métodos dos acontecimentos para entender o processo, e assim contribuir para qualitativos, na medida em que o uso do gravador substituiu formação e aperfeiçoamento de terapeutas acabou se perdendo. apontamentos manuscritos no campo ou mesmo memorizados, de forma, muitas vezes, imperfeita ou nosso estudo busca resgatar exatamente esta intenção. incompleta (Briochi & Trigo, 1987, p. 631). Por outro lado, entretanto, o gravador possibilita um distancia mento entre o pesquisador e o pesquisado que pode ameaçar algumas das material características da pesquisa qualitativa, particularmente o envolvimento pesquisador e a validação em situação (sobre esses conceitos que chamamos de "Versão de Sentido" (VS) é um relato Mucchielli, 1991, pp. 20-1). pesquisador, apoiando-se no fato de escrito pelo terapeuta, imediatamente após o término de cada A intenção não é substituir por um relato de memória o que96 Mauro Martins Amatuzzi Por uma Psicologia Humana 97 poderia ter sido gravado. Não se trata de um registro de fatos, mas da podem ser trabalhados como respostas a um questionário experiência presente do terapeuta, ainda no clima emocional da padronizado. É muito provável, entretanto, que eles tenham uma sessão: o que ele apreende como sendo o sentido daquele encontro. fecundidade muito grande em relação a nos mostrar o processo Heppner, Rosenberg e Hedgespeth (1992) trabalharam com terapêutico em seu movimento, e exatamente por ser o que são. Até questionários aplicados imediatamente após cada sessão, para captar aqui só podemos concluir que as VSs têm estatuto de "documento", pensamentos e interpretações de clientes e terapeutas a respeito da mas não sabemos o que pode ser tirado delas, nem sessão recém-terminada. Nossa é escrita somente pelo terapeuta Outras informações sobre essas VSs que foram aqui analisadas (se bem que já existam estudos baseados em VSs escritas pelos são as seguintes: terapeutas e pelos clientes), e não em resposta a algum questionário, 1. Trata-se de de VSs do atendimento de 3 pessoas De fato tentamos usar perguntas guias (cf. Amatuzzi e pelo mesmo terapeuta; mas elas não se revelaram muito úteis para o que queriamos captar: 2. Foram atendimentos semanais, em geral, e em alguns sentido da sessão, tal como vivido pelo terapeuta na relação com seu períodos mais duas vezes por semana; cliente. Naquele mesmo estudo anterior citado, o que se evidenciou, 3. tipo de atendimento oferecido foi verbal, face a face, e o como características desse sentido, foi o seguinte: trabalho do terapeuta consistiu em receber compreensiva 1. ele é tanto objetivo como subjetivo, uma vez que se trata da mente a pessoa com suas inquietações, oferecendo a ela um experiência do terapeuta enquanto intencional; espaço dialógico desencadeante de seu próprio processo 2. é ao mesmo tempo um sentido captado e um sentido interior. terapeuta tinha experiência de 15 anos em produzido: só o percebo quando o produzo como participante atendimentos desse tipo; da relação; 4. Duas das pessoas atendidas eram mulheres casadas, uma 3. ele é uno e múltiplo, isto é, pode se desdobrar em outros com um filho pequeno, e outra com dois filhos maiores que sentidos (em atos sucessivos de expressão), assim como já não moravam com os pais; e a outra pessoa era um pode não ser percebido no primeiro momento da VS, ou homem solteiro, de 25 anos aproximadamente, que morava numa primeira VS; e com os pais juntamente com outros irmãos; 4. ele só aparece quando o próprio ato de o expressar fizer, ele 5. que havia de comum entre eles, na intenção de também, sentido (cf. Amatuzzi e col., 1991, p.10-2). procurarem terapia, era um desejo de fazer uma revisão de dificil colocar tudo isso numa instrução normativa que vida em função de problemas de relacionamento, e de um produza sempre VSs homogêneas. A experiência mostrou que sentimento difuso de algo que se vai aprendendo a fazer assim como se vai aprendendo a 6. Os três atendimentos foram considerados bem-sucedidos ser terapeuta. E é dificil dizer que se é terapeuta sempre da mesma no sentido de que as três pessoas, no final, forma com qualquer cliente e em qualquer sessão. De qualquer forma conseguido o que procuravam. Isso não significava, o ponto de partida foi o de escrevermos um relato livre do sentido evidentemente, que todos os seus problemas estivessem encontro, tal como vivido por nós, imediatamente após o término da resolvidos, mas que algo se cumprira ali, e que agora eles sessão, e portanto ainda sob seu clima. podiam parar o atendimento; Qual o valor, então, de semelhantes relatos? São relatos 7. Esses três atendimentos foram escolhidos para esse estudo expressivos da experiência de um terapeuta, escritos o mais pela única razão de terem sido os três primeiros que proximamente possível do clima do São dados tipicamente terminaram depois que o terapeuta começou a fazer qualitativos, que não podem ser tratados por crivos ou Não Versões de Sentido de seus