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DA PEDIATRIA À PSICANÁLISE OBRAS ESCOLHIDAS por D. W. Winnicott 5 Com uma Introdução de M. Masud R. Khan Tradução Davy Bogomoletz Imago398 D. W. WINNICOTT ocorreram, provocaram rupturas. É esta parte do trabalho que liberta o pa- Capítulo XXIV ciente de sua dependência ao analista. Desta maneira, a transferência negativa da análise 'neurótica' é substi- tuída por uma raiva objetiva contra as falhas do analista, e aqui temos outra vez uma importante diferença entre os fenômenos transferenciais nos dois tipos de trabalho. A Preocupação Materna Primária Não devemos esperar que os nossos êxitos na adaptação sejam reconhe- (1956) cidos, pois estes não são percebidos como tais num nível mais profundo. Embora não tenhamos como trabalhar sem as teorias que construímos em nossas discussões, esse tipo de trabalho inevitavelmente nos colocará na condição de farsantes, caso tentemos entender as necessidades do paciente como uma questão mais do intelecto que do psicossoma. Em meu trabalho clínico comprovei, ao menos para mim mesmo, que um tipo de análise não exclui outro. Encontro-me sempre escorregando de A PRESENTE CONTRIBUIÇÃO encontrou o seu estímulo na discussão publicada um para o outro e vice-versa, segundo a tendência do processo inconsciente em The Psychoanalytic Study of the Child, vol. IX, sob título: 'Problems of do paciente. Quando o trabalho de natureza especial ao qual me referi chega Infantile Neurosis'. As diversas contribuições da Srta. Freud nessa discus- a um fim, tem início naturalmente o trabalho analítico normal, a análise da são perfazem uma importante declaração sobre estado atual da teoria psi- posição depressiva e das defesas neuróticas de um paciente dotado de um canalítica no que tange aos estágios muito iniciais da vida da criança e à ego, um ego intacto, um ego capaz de ter experiências proporcionadas por construção da personalidade. impulsos do id e responsabilizar-se por elas. O que precisamos fazer agora é Gostaria de discutir a questão do relacionamento mãe-bebê em sua eta- estudar detalhadamente critérios pelos quais o analista tenha como saber pa inicial, questão esta de importância máxima nessa fase, e que só gradual- quando mudar a ênfase do trabalho, e como perceber que está surgindo uma mente passa a segundo plano em relação à questão do bebê enquanto um ser necessidade do tipo que a meu ver deve encontrar resposta (ao menos de independente. modo simbólico) através de uma adaptação ativa, enquanto o analista man- Sinto necessidade de em primeiro lugar apoiar o que diz a Srta. Freud no tém sempre em mente o conceito de identificação primária. item Atuais': Os desapontamentos e as frustrações são in- separáveis da relação mãe-criança. (...) Lançar a culpa pela neurose infantil sobre as falhas da mãe na fase oral constitui não mais que uma generalização enganosa e superficial. A análise deveria ir mais longe e mais fundo em sua busca pelas causas da neurose.' Com estas palavras, a Srta. Freud expressa um ponto de vista geralmente aceito pelos psicanalistas. Apesar disto, seria muito proveitoso levarmos em conta o lugar da mãe. Existe algo que chamamos de ambiente não suficientemente bom, que dis- torce o desenvolvimento do bebê, assim como existe o ambiente suficiente- mente bom, que possibilita ao bebê alcançar, a cada etapa, as satisfações, ansiedades e conflitos inatos e pertinentes. A Srta. Freud nos faz lembrar que é lícito pensar sobre os padrões pré- genitais em termos de duas pessoas que, juntas, tentam alcançar o que pode- ria ser chamado, resumidamente, de 'equilíbrio homeostático' (ver Mahler, 1954). O mesmo fenômeno recebe o nome de Diz-se freqüentemente que a mãe de um bebê é biologicamente condiciona-400 D. W. WINNICOTT DA PEDIATRIA À PSICANÁLISE 401 da para a sua tarefa de lidar de modo todo especial com as necessidades do Seja como for, um estudo aprofundado da função materna nas fases mais bebê. Em linguagem mais comum, existe uma identificação consciente primitivas parece-me extremamente necessário, e eu gostaria de reunir aqui as mas também profundamente inconsciente que a mãe tem com o seu bebê. diversas pistas existentes a fim de formular uma proposta para debate. Acredito que esses vários conceitos e noções deveriam ser reunidos num conjunto, e que estudo da mãe deveria ser trazido para fora do campo puramente biológico. O termo simbiose não nos leva mais longe que à com- A preocupação materna paração entre o relacionamento da mãe e bebê com outros exemplos da vida animal e vegetal a interdependência física. As palavras equilíbrio Minha tese é a de que na primeira de todas as fases estaríamos lidando homeostático evitam certos aspectos mais sutis que surgem ao nosso olhar, com um estado muito especial da mãe, um estado psicológico que merece quando observamos esse relacionamento com a atenção que lhe é devida. um nome, tal como Preocupação Materna Primária. No meu entender, não O que nos interessa é a enorme diferença psicológica entre, por um foi dada ainda a devida atenção em nossa literatura, e talvez em parte algu- lado, a identificação da mãe com o bebê, e por outro, a dependência do bebê ma, para uma condição psiquiátrica muito especial da mãe sobre a qual eu poderia dizer o seguinte: em relação à mãe. A dependência não implica em identificação, pois esta última constitui um fenômeno complexo demais para que o localizemos nos Gradualmente, esse estado passa a ser o de uma sensibilidade exacerbada du- primeiros estágios da vida do bebê. rante e principalmente ao final da gravidez. Sua duração é de algumas semanas após o nascimento do bebê. A Srta. Freud deixa claro que já estamos bem longe daquela desajeitada Dificilmente as mães recordam depois que ultrapassaram. fase da teoria psicanalítica em que falávamos da vida do bebê como se esta Eu daria um passo a mais e diria que a memória das mães a esse respeito ten- tivesse início com as suas experiências instintivas orais. Atualmente encon- de a ser reprimida. tramo-nos engajados no estudo do desenvolvimento inicial e do eu primi- Essa condição organizada (que seria uma doença no caso de não existir tivo que, quando desenvolvimento alcança um grau suficientemente ele- uma gravidez) poderia ser comparada a um estado de retraimento ou de dis- vado, é fortalecido pelas experiências do id em vez de prejudicado por elas. sociação, ou a uma fuga, ou mesmo a um distúrbio num nível mais profundo, A Srta. Freud afirma, ao discutir o termo 'anáclise', de Freud: 'O rela- como por exemplo um episódio esquizóide, onde um determinado aspecto cionamento com a mãe, embora seja o primeiro com um outro ser humano, da personalidade toma o poder temporariamente. Gostaria muito de encon- não é o primeiro relacionamento do bebê com um ambiente. Precede-o uma trar um bom nome para essa condição, e propor que ele seja adotado como fase anterior, na qual não o mundo objetivo mas as necessidades corporais, algo a ser levado em consideração toda vez que fosse feita referência à fase sua satisfação e frustração desempenham o papel principal.' inicial da vida do bebê. Não acredito que seja possível compreender o fun- A meu ver, a introdução do termo 'necessidade' no lugar de 'desejo' foi cionamento da mãe no início mesmo da vida do bebê sem perceber que ela muito importante do ponto de vista teórico, mas eu preferiria que a Srta. deve alcançar esse estado de sensibilidade exacerbada, quase uma doença, e Freud não tivesse usado as palavras 'satisfação' e 'frustração' nesse ponto: a recuperar-se dele. (Introduzo aqui a palavra 'doença' porque a mulher deve necessidade ou é resolvida ou não, e a conseqüência não é a mesma que a sa- ter saúde suficiente tanto para desenvolver esse estado quanto para recupe- tisfação ou frustração de um impulso do id. rar-se dele à medida que bebê a libera. Caso o bebê morra, estado da mãe Caberia mencionar agora a afirmação de Greenacre (1954) sobre o que repentinamente revela-se uma doença. A mãe corre esse risco.) ela chama de 'aspecto acalentador' do prazer rítmico. Encontramos aqui um Deixei esta idéia implícita no termo 'devotada' na expressão mãe de- votada comum' (Winnicott, 1949). Muitas mulheres são com certeza boas exemplo de necessidade que é ou não resolvida, e seria errôneo dizer que o mães em todos os outros aspectos, e levam uma vida rica e produtiva, mas bebê não ninado reage como reagiria a uma frustração. Certamente não ha- não têm a capacidade de contrair essa normal' que lhes possibilita- verá raiva, e sim alguma forma de distorção do desenvolvimento numa fase ria a adaptação sensível e delicada às necessidades do bebê já nos primeiros primitiva. momentos. Ou conseguem fazê-lo com um filho e não com outro. Tais mu-402 D. W. WINNICOTT DA PEDIATRIA À PSICANÁLISE 403 não conseguem preocupar-se com o seu bebê a ponto de excluírem A mãe que desenvolve esse estado ao qual chamei de preocupação ma- quaisquer outros interesses, de maneira normal e temporária. É possível in- fornece um contexto para que a constituição da criança come- clusive imaginar que com algumas dessas pessoas ocorre uma 'fuga para a ce a se manifestar, para que as tendências ao desenvolvimento comecem a Algumas delas têm certamente outras preocupações importantes, desdobrar-se, e para que o bebê comece a experimentar movimentos que não abandonam muito prontamente, ou talvez não consigam deixá-las neos e se torne dono das sensações correspondentes a essa etapa inicial da de lado até terem seu primeiro bebê. A mulher que se caracteriza por uma vida. A vida instintiva não precisa ser mencionada aqui porque o que estou forte identificação masculina sentirá essa parte das funções maternas a mais descrevendo tem início antes do estabelecimento de padrões instintivos. difícil de realizar, e uma inveja do pênis reprimida deixa muito pouco espaço Tentei descrever tais idéias em minha própria linguagem, dizendo que para a preocupação materna primária. se a mãe proporciona uma adaptação suficientemente boa à necessidade do Na prática acontece que mulheres desse tipo, tendo produzido uma bebê, a linha de vida da criança é perturbada muito pouco por reações à intru- criança, mas tendo perdido bonde no estágio mais inicial, defrontam-se são. (Naturalmente, são as reações às intrusões que contam, não as intrusões com a tarefa de compensar o que ficou perdido. À sua frente estende-se um em si mesmas.) A falha materna provoca fases de reação à intrusão e as rea- longo período durante o qual elas terão de adaptar-se às crescentes neces- ções interrompem o 'continuar a ser' do bebê. 0 excesso de reações não pro- sidades de seus filhos, e nada garante que elas conseguirão corrigir as dis- voca frustração, mas uma ameaça de aniquilação. A meu ver, esta é uma torções do início. Em vez de terem naturalmente bons resultados da ansiedade muitíssimo primitiva, muito anterior a qualquer ansiedade que in- preocupação temporária inicial, elas são apanhadas pela necessidade de te- clua a palavra 'morte' em sua descrição. rapia apresentada pela criança, ou seja, por um período prolongado dedica- Dito de outro modo, a base para o estabelecimento do ego é um suficien- do a adaptar-se à necessidade, ou seja, a mimar a criança. Em vez de serem te a ser' não interrompido por reações à intrusão. Esse 'continuar mães, fazem terapia. a ser' será suficiente apenas no caso de a mãe encontrar-se nesse estado que O mesmo fenômeno foi descrito por Kanner (1943), Loretta Bender (conforme sugeri) é muito real no período próximo ao fim da gravidez e du- rante as primeiras semanas após nascimento do bebê. (1947) e outros que tentaram descrever a mãe capaz de levar ao autismo in- fantil (Creak, 1951; Mahler, 1954). Somente no caso de a mãe estar sensível do modo com descrevi poderá É possível comparar aqui a tarefa da mãe que tenta compensar sua inca- ela sentir-se no lugar do bebê, e assim corresponder às suas necessidades. A pacidade no passado e a da sociedade que procura reconduzir uma criança princípio trata-se de necessidades corporais, que gradualmente transfor- de-privada do comportamento anti-social a um estado de identificação social. mam-se em necessidades do ego à medida que da elaboração imaginativa das experiências físicas emerge uma psicologia. Esse trabalho da mãe (ou da sociedade) revela-se muitíssimo pois Passa a existir então uma relacionabilidade do ego entre a mãe e o bebê, não é realizado de modo natural. A tarefa pertence na verdade a uma época da qual a mãe se recupera e a partir da qual bebê pode vir a construir em al- anterior, neste caso à época em que o bebê mal começava a existir enquanto indivíduo. gum momento a idéia de uma pessoa presente na mãe. Desde este ângulo, o reconhecimento da mãe como uma pessoa surge de modo positivo, normal- Se esta tese sobre estado especial da mãe normal e sua recuperação pa- mente, em vez de derivar da experiência de que a mãe simboliza a frustração. recer aceitável, poderemos passar a examinar mais detidamente estado A falha da mãe em adaptar-se na fasemais primitiva não leva a coisa alguma, correspondente do bebê. salvo à aniquilação do eu do bebê. O bebê apresenta: O que a mãe faz bem não será jamais apreendido pelo bebê nesse está- Uma constituição. gio. Trata-se de um fato concordante com a minha tese. Suas falhas não são Tendências inatas ao desenvolvimento ('áreas livres de conflito no ego'). sentidas como falhas da mãe, e sim como ameaças à existência pessoal do Motilidade e sensibilidade. eu. Instintos, eles próprios engajados na tendência ao desenvolvimento, com Na linguagem destas considerações, a constituição inicial do ego é, por- mudança das zonas dominantes. tanto, silenciosa. A primeira organização do ego deriva da experiência de404 D. W. WINNICOTT DA PEDIATRIA À PSICANÁLISE 405 ameaças de aniquilação que não chegam a se cumprir, e das quais, repetida- primeiro estágio, o bebê será apanhado por mecanismos de defesa primiti- mente, o bebê se recupera. A partir dessas experiências, a confiança na recu- vos (falso eu etc.), que pertencem à ameaça de aniquilação, e os elementos peração começa a transformar-se em algo que leva ao ego e à capacidade do constitucionais tenderão a ficar anulados (salvo quando se manifestam fisi- ego de suportar frustrações. camente). Espero ter ficado claro que a presente tese tem uma contribuição a fazer É preciso deixar de lado aqui o problema da introjeção, pelo bebê, de pa- para a questão do reconhecimento da mãe, pelo bebê, como uma mãe frus- drões de doença da mãe, ainda que se trate de algo muitíssimo importante ao trante. Num momento posterior isto realmente acontece, mas não neste está- considerarmos o fator ambiental nos estágios seguintes, após o primeiro es- gio tão primitivo. No início a mãe que falha não é percebida desta forma. De tágio de dependência absoluta. fato, o reconhecimento de uma dependência absoluta da mãe e de sua capa- Ao reconstruirmos desenvolvimento inicial de um bebê, não há razão cidade para a preocupação maternal primária, seja este ou não nome que se alguma para falarmos de instintos, exceto em termos de desenvolvimento do lhe dê, é algo pertencente a uma sofisticação extrema, e a um estágio nem ego. sempre alcançável mesmo por adultos. O fracasso generalizado em reconhe- Aí existe um divisor de águas: cer a dependência absoluta no início contribui para o temor à MULHER no qual tomam parte tanto homens quanto mulheres (Winnicott, 1950, 1957a). Maturidade egóica experiências instintivas fortalecem o ego. Imaturidade egóica experiências instintivas estraçalham ego. Podemos falar agora sobre motivo pelo qual acreditamos que a mãe do bebê é a pessoa mais adequada para cuidar desse mesmo bebê: é ela a pessoa Aqui, 'ego' equivale a um somatório de experiências. O eu individual capaz de atingir esse estágio especial de preocupação materna primária sem tem como início um somatório de experiências tranqüilas, motilidade es- ficar doente. Já a mãe adotiva, ou qualquer outra mulher capaz de ficar doen- pontânea e sensações, retornos da atividade à quietude, e o estabelecimento te no sentido da preocupação materna estará possivelmente em da capacidade de esperar que haja recuperação depois das aniquilações; ani- condições de adaptar-se suficientemente bem, na medida da sua capacidade quilações resultantes das reações contra as intrusões do ambiente. Por esta de identificar-se com o bebê. razão, é necessário que o indivíduo tenha seu início nesse ambiente espe- Conforme a tese ora apresentada, fornecimento de um ambiente sufi- cializado ao qual me referi com o título: "A Preocupação Materna Primária". cientemente bom na fase mais primitiva capacita o bebê a começar a existir, a ter experiências, a constituir um ego pessoal, a dominar os instintos e a de- frontar-se com todas as dificuldades inerentes à vida. Tudo isto é sentido como real pelo bebê que se torna capaz de ter um eu, qual, por sua vez, pode em algum momento vir até mesmo a sacrificar a espontaneidade, e até mes- mo morrer. Por outro lado, sem a propiciação de um ambiente inicial suficiente- mente bom, esse eu que pode dar-se ao luxo de morrer nunca se desenvolve. O sentimento de realidade encontra-se ausente, e se não houver caos em ex- cesso o sentimento final será de inutilidade. As dificuldades inerentes à vida não poderão ser alcançadas, e menos ainda o serão as satisfações. Quan- do não há caos surge um eu falso que esconde o eu verdadeiro, que se subme- te às exigências, que reage aos estímulos e que se livra das experiências instintivas tendo-as, mas que está apenas ganhando tempo. Ver-se-á que, de acordo com esta tese, os fatores constitucionais terão mais probabilidade de manifestar-se na normalidade, quando 0 ambiente da primeira fase for adaptativo. Por contraste, tendo ocorrido uma falha nesse