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ASPECTOS FILOSÓFICOS E SÓCIO-ANTROPOLÓGICOS DA EDUCAÇÃO (Dimensões Filosóficos e Socioantropológicos da Educação) Carmem Silvia da Fonseca Kummer Liblik; Mauricio Tinori Piqueira; Lísia M. Macedo Soares. Aspectos Filosó icos Socioantropológicos da Educação (Dimensões Filosóficos e Socioantropológicos da Educação) © by Editora Telesapiens Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida ou transmitida de qualquer modo ou por qualquer outro meio, eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia, gravação ou qualquer outro tipo de sistema de armazenamento e transmissão de informação, sem prévia autorização, por escrito, da Editora Telesapiens. LIBLIK, Carmen Silvia da Fonseca Kummer / PIQUEIRA, Mauricio Tintori / SOARES, Lísia M. Macedo Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação. ISBN: 978-65-81507-18-3 I.Filosofia. II.Socioantropologia. III. Educação. Fundador e Presidente do Conselho de Administração: Janguê Diniz Diretor-Presidente: Jânyo Diniz Diretor de Inovação e Serviços: Joaldo Diniz Diretoria Executiva de Ensino: Adriano Azevedo Diretoria de Ensino a Distância: Enzo Moreira Créditos Institucionais Todos os direitos reservados ©2022 by Telesapiens Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação OS AUTORES CARMEM SILVIA DA FONSECA KUMMER LIBLIK Olá. Meu nome é Carmem Silvia da Fonseca Kummer Liblik. Sou formada em Bacharelado e Licenciatura em História, com Mestrado e Doutorado em História pela UFPR. Também sou formada em Química Ambiental pela UTFPR, com especialização em Tutoria em EAD pela UNINTER. Tenho experiência profissional na área de ensino e produção de material didático há 14 anos. Passei por empresas como a UNINTER, PUC-PR e UFPR. Sou apaixonada pelo que faço e adoro transmitir minha experiência de vida àqueles que estão iniciando em suas profissões. Por isso fui convidada pela Editora Telesapiens a integrar seu elenco de autores independentes. Estou muito feliz em poder ajudar você nesta fase de muito estudo e trabalho. Conte comigo! MAURICIO TINTORI PIQUEIRA Olá. Meu nome é Mauricio Tintori Piqueira. Sou doutor em Ciências Sociais e mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), com uma experiência de docência na área de Ciências Humanas de mais de 14 anos. Sou professor universitário e do Ensino Médio, com experiência como professor e coordenador do curso de História da Faculdade de Ribeirão Pires e, docente na Rede Pública do estado de São Paulo. Sou apaixonado pelo que faço e adoro transmitir minha experiência de vida àqueles que estão iniciando em suas profissões. Por isso fui convidado pela Editora Telesapiens a integrar seu elenco de autores independentes. Estou muito feliz em poder ajudar você nesta fase de muito estudo e trabalho. Conte comigo! LÍSIA M. MACEDO SOARES Olá. Meu nome é Lísia M. Macedo Soares. Sou formada em Psicologia, especialista em Gestão Saúde Mental e Mestra em Administração. Tenho experiência técnico-profissional como Docente nos cursos de Enfermagem, Ciências Contábeis, Engenharias e Administração. Nestes cursos de graduação, tive o prazer de lecionar a disciplina Estudos Socioantropológicos. Na minha última experiência, fundei um núcleo de Atendimento Educacional ao discente – NAED, onde atuei como Psicóloga oferecendo aos alunos apoio psicopedagógico. Sou apaixonada pelo que faço e adoro compartilhar minha experiência de vida àqueles que estão iniciando em suas profissões. Por isso fui convidada pela Editora Telesapiens a integrar seu elenco de autores independentes. Estou muito feliz em poder ajudar você nesta fase de muito estudo e trabalho. Conte comigo! ICONOGRÁFICOS Esses ícones que irão aparecer em sua trilha de aprendizagem significam: OBJETIVO Breve descrição do objetivo de aprendizagem; OBSERVAÇÃO Uma nota explicativa sobre o que acaba de ser dito; CITAÇÃO Parte retirada de um texto; RESUMINDO Uma síntese das últimas abordagens; TESTANDO Sugestão de práticas ou exercícios para fixação do conteúdo; DEFINIÇÃO Definição de um conceito; IMPORTANTE O conteúdo em destaque precisa ser priorizado; ACESSE Links úteis para fixação do conteúdo; DICA Um atalho para resolver algo que foi introduzido no conteúdo; SAIBA MAIS Informações adicionais sobre o conteúdo e temas afins; EXPLICANDO DIFERENTE Um jeito diferente e mais simples de explicar o que acaba de ser explicado; SOLUÇÃO Resolução passo a passo de um problema ou exercício; EXEMPLO Explicação do conteúdo ou conceito partindo de um caso prático; CURIOSIDADE Indicação de curiosidades e fatos para reflexão sobre o tema em estudo; PALAVRA DO AUTOR Uma opinião pessoal e particular do autor da obra; REFLITA O texto destacado deve ser alvo de reflexão. SUMÁRIO UNIDADE 1 Origens e Conceito da Filosofia..........................................14 Origens da Filosofia........................................................... 14 Crítica aos Sofistas............................................................. 18 Conceito de Filosofia......................................................... 19 Sócrates, Platão, Aristóteles e seus Lugares na História da Filosofia................................................................................23 Sócrates............................................................................. 23 Platão................................................................................. 28 Aristóteles......................................................................... 34 Conhecimento Mítico e Conhecimento Filosófico..............41 A Questão do Saber: o Conhecimento e sua Tipologia......45 Os Tipos de Conhecimento................................................ 47 Conhecimento Popular ou Senso Comum................ 47 Conhecimento Filosófico......................................... 48 Conhecimento Científico......................................... 49 Conhecimento Teológico ou Religioso.................... 51 UNIDADE 2 Filosofia e Pensamento Educacional na Modernidade .....56 Leitura e Recortes Acerca de Educação e Filósofos da Modernidade .......................................................................60 René Descartes .................................................................. 60 Jean Jacques Rousseau ...................................................... 64 Immanuel Kant ................................................................. 67 Georg Hegel ...................................................................... 70 Tendências e Correntes Filosóficas: Contexto Histórico e Pressupostos ........................................................................75 Correntes Filosóficas: Abordagens e Suposições ..............79 Positivismo ....................................................................... 79 Utilitarismo ....................................................................... 82 Pragmatismo ..................................................................... 88 Materialismo ..................................................................... 92 Fenomenologia.................................................................. 96 Existencialismo ............................................................... 100 UNIDADE 3 Compreendendo as diferenças entre o senso comum e o conhecimento científico.....................................................108 O senso comum e o conhecimento científico ....................108 O conhecimento como um atributo do ser humano...........109 O senso comum...............................................................112 O conhecimento científico...............................................114 É possível a convivência entre ciência e senso comum?....117 As ciências sociais..............................................................120 As áreas das ciências sociais............................................121 Os objetos dee semelhança, e meditar sobre o que dizem os textos sagrados. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 53 Popular Valorativo Reflexivo Assistemático Verificável Falível Inexato Filosófico Valorativo Racional Sistemático Não verificável Infalível (se coloca como) Exato (se coloca como) Científico Real (factual) Contingente Sistemático Verificável Falível Aproximadamente exato Religioso Valorativo Inspiracional Sistemático Não verificável Infalível (se coloca como) Exato (se coloca como) RESUMINDO Veja no quadro a seguir um resumo deste nosso estudo acerca do conhecimento, seus tipos e suas características principais. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação54 UNIDADE 02 Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação56 Filosofia e Pensamento Educacional na Modernidade OBJETIVO Ao final do estudo deste capítulo, você será capaz de interpretar as características e o contexto histórico, em que foi gestada a filosofia e o pensamento educacional na modernidade... No curso do século XVI a concepção medieval começou a declinar, e aos poucos surgiram forças que forjaram o atual mundo moderno. Grandes movimentos marcam o período de transição, que se estende do declínio da Idade Média até o grande surto de progresso do século XVII, a saber: 1) o Renascimento italiano; 2) a Reforma Luterana; 3) o avanço da investigação científica; 4) o projeto filosófico humanista; 5) o Absolutismo francês; 6) posteriormente o Iluminismo. É em meio a esse quadro que nasce e se desenvolve o pensamento moderno, marcado pela confiança na razão. Trata- se de conferir à razão a tarefa de significar o mundo, reproduzi- lo e representá-lo, afastando do pensamento o que é disperso, desconexo, mítico e sobrenatural. O período conhecido como Filosofia Moderna, portanto, estende-se por pouco mais de dois séculos e meio de história. Como todo período histórico da Filosofia, é bastante difícil fixarmos uma data para seu início. Embora alguns autores considerem a Filosofia do Renascimento, nos séculos XV e XVI, como parte da Filosofia Moderna, em geral, aceita-se que o filósofo que iniciou a Filosofia Moderna tenha sido René Descartes (1596-1650) no século XVII, uma vez que seus trabalhos definiram e deram corpo aos métodos filosóficos de Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 57 tal período. Entretanto, como afirma Franklin e Pinheiro (2014), alguns outros filósofos, anteriores a Descartes, como Montaigne (1533-1592) e Francis Bacon (1561-1626), aparecem também como membros da Filosofia Moderna. Da mesma forma, o trabalho de Ludwing Wittgenstein é considerado o término de tal período, iniciando o que é normalmente chamado de período pós-moderno. O período da Filosofia Moderna não é caracterizado por uma escola ou doutrina específica, mas por um estilo de trabalhar as questões filosóficas e por certas premissas ou hipóteses comuns. As áreas exploradas nessa época incluíam a filosofia da mente, especialmente o problema mente-corpo identificado por Descartes, epistemologia e metafísica. Por não possuir uma escola única, a Filosofia Moderna é normalmente dividida pelas correntes filosóficas, que exploraram os principais temas dessa época. Os principais nomes foram organizados posteriormente em dois grupos: os racionalistas e os empiristas. Os próprios autores não se identificavam dessa forma, mas posteriormente foram assim organizados em termos de história da Filosofia. Entre os racionalistas encontramos filósofos franceses e alemães, que defendiam que todo conhecimento deve originar- se de algum tipo de ideias inatas na mente (aquelas ideias que são nativas, já nascem com a pessoa). Contudo, alguns racionalistas afirmaram ainda que todo o conhecimento é inato ou provido por meio do raciocínio dedutivo, enquanto outros racionalistas aceitavam um maior papel da experiência. Entre os principais racionalistas encontramos René Descartes, o logicista e matemático Gottlob Frege e Baruch Spinoza. Tendo como principais figuras os filósofos britânicos John Locke, George Berkely e David Hume, o empirismo era o opositor natural do racionalismo. Essa posição defendia que a mente era uma tábula rasa, termo introduzido por Locke, significando que não possuímos ideias inatas e que o conhecimento é impresso em nossa mente, por meio dos dados dos sentidos. Com isso, Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação58 defendeu ainda que existiam duas formas para o surgimento das ideias, pela sensação e pela reflexão, com ideias podendo ser simples ou complexas. Tabela 1: Pontos em Comum e Discordâncias Pontos em comum Pontos de discordância Racionalismo Tentam resolver o problema da capacidade de nosso pensamento para captar a realidade externa; partem de convicções teóricas fundamentais que permitem a constituição do problema: a indubitabilidade das nossas representações e a existência da realidade exterior a elas. Caracteriza-se pela pressuposição de princípios inatos e conhecimentos a priori. O visível esconde aquilo que está para além dele. Empirismo Nega os princípios inatos e a possibilidade de conhecer a priori. O visível, nesse caso, é revelador por si só. A sensibilidade é tomada como a relação primeira com o real. Fonte: (FRANKLIN & PINHEIRO, 2014, p. 72.) Nessa direção, devemos entender que o Iluminismo europeu pretende debater a educação a partir de uma abordagem epistemológica empirista que ressalta o papel das experiências vividas pelos homens. No entanto, o mesmo empirismo, em Locke, por exemplo, aponta para a importância da educação em elucidar o vivido e/ou preparar para compreendê-lo mais Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 59 plenamente. Portanto, como aponta Novelli (2001) a educação adquire aqui um papel de superação em relação ao antigo regime caracterizado pela centralização do ensino e pela concentração de conhecimentos entre poucos escolhidos. Kant apresentou ainda um sistema filosófico sofisticado que causou uma verdadeira transformação na filosofia alemã. Embora seu objetivo de encerrar a disputa entre racionalistas e empiristas, pela unificação de ambas as posições, não tenha sido atingido, Kant promoveu grandes mudanças e novas correntes na filosofia de sua época, sendo particularmente responsável pelo surgimento da corrente filosófica conhecida como Idealismo Alemão. O idealismo veio a afirmar que o mundo e a mente devem ser entendidos segundo as mesmas categorias, estabelecendo quais categorias seriam estas, o principal trabalho neste sentido foi a Crítica da Razão Pura, de Kant, publicada em 1781. Este desenvolvido levou também ao trabalho do filósofo Georg Wilhelm Friedrich Hegel. RESUMINDO Neste capítulo, abordamos o nascimento e o desenvolvimento do pensamento moderno da filosofia e a importância deles para a educação na modernidade. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação60 Leitura e Recortes Acerca de Educação e Filósofos da Modernidade OBJETIVO A seguir, aprofundaremos as ideias filosóficas de Kant, Hegel e Jean Jacques Rousseau, bem com suas contribuições para a Filosofia da Educação. Além disso, também será melhor definida a diferença entre os filósofos racionalistas e empiristas no contexto da Filosofia Moderna.. René Descartes René Descartes (1596-1650) foi um filósofo, físico e matemático francês, uma das figuras mais importantes da Filosofia Moderna e da Revolução Científica. O filósofo defende a ideia de que a razão serve como guia para o conhecimento. Encontra- se aqui justificado o título de racionalismo ao pensamento de Descartes. Suas principais obras são: �Discurso (1637). �Meditações (1641). �Os princípios da Filosofia (1644). Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 61 Figura 1: René Descartes Fonte: @commons. Muitos especialistas afirmam que, a partir de Descartes, inaugurou-se o racionalismo da Idade Moderna. Décadasmais tarde, surgiria nas ilhas Britânicas um movimento filosófico que, de certa forma, seria o seu oposto – o empirismo, com John Locke e David Hume. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação62 A teoria do conhecimento de Descartes começa com a busca pela certeza, por um ponto de partida ou fundamento indubitável, sem cuja base o progresso não seria possível. Deste modo, o filósofo é conhecido por lançar a “dúvida metódica”, que se baseia numa reflexão, que deixa de lado qualquer crença cuja verdade possa ser contestada. A intenção de Descartes era mostrar que, mesmo partindo de uma posição cética, pode-se alcançar o conhecimento. A “dúvida”, portanto, pode ser usada como ferramenta filosófica. Em virtude desse posicionamento, já podemos perceber a importância que terá Descartes no desenvolvimento das ideias filosóficas, que se dirigem para as questões pertinentes à educação. Também consiste o método do conhecimento de quatro regras básicas: �Verificar se existem evidências reais e indubitáveis acerca do fenômeno ou da coisa estudada. �Analisar, ou seja, dividir ao máximo as coisas, em suas unidades mais simples e estudar essas coisas mais simples. � Sintetizar, ou seja, agrupar novamente as unidades estudadas em um todo verdadeiro. �Enumerar todas as conclusões e princípios utilizados, a fim de manter a ordem do pensamento. Descartes começou submetendo suas crenças a uma série de argumentos céticos cada vez mais rigorosos, questionando como podemos ter certeza da existência de qualquer coisa. O mundo que conhecemos pode ser apenas uma ilusão? Não podemos confiar em nossos sentidos com base segura para o conhecimento, porque todos já fomos “iludidos” por eles com alguma certa frequência. Ele dizia que talvez estivéssemos sonhando, e o mundo aparentemente real não fosse mais que um mundo de sonho. Com efeito, Descartes considerava que era preciso colocar todos os conhecimentos, que temos à prova da dúvida: podemos Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 63 duvidar de tudo, metodicamente, de maneira sistemática e hiperbólica (de modo exagerado). Para além das reflexões de um “mundo ilusório, Descartes compreendeu, que havia uma crença da qual ele não podia duvidar: a crença na própria existência. Cada um de nós pensa ou diz: “Sou, existo” – e enquanto pensamos ou dizemos isso, não podemos estar errados. Em sua obra Discurso sobre o método, ele apresentou o axioma “Penso, logo existo”. Apesar de muitas críticas, ao localizar a certeza na própria consciência de mim, Descartes introduz um tom de primeira pessoa, na teoria do conhecimento que dominou os séculos seguintes. É importante salientar que Descartes não esperava alcançar certezas absolutas e inquestionáveis. Ele argumentou: “Arquimedes exigia apenas um ponto de apoio a fim de mover a Terra inteira”. Para Descartes, a certeza sobre a própria existência era esse apoio, pois ela o salvava das dúvidas, fornecia-lhe uma base firme e permitia iniciar a jornada de volta, isto é, do ceticismo ao conhecimento. Foi crucial para seu projeto de investigação, mas não o alicerce de sua epistemologia. DEFINIÇÃO Conceito de epistemologia Teoria do conhecimento ou “conhecimento do conhecimento”. Algumas de suas questões centrais são: a origem do conhecimento, o lugar da experiência e da razão na gênese do conhecimento; a relação entre o conhecimento e a certeza, e entre o conhecimento e a impossibilidade de erro; a possibilidade de ceticismo universal; e as formas de conhecimento, que emergem das novas conceitualizações do mundo. (BLACKBURN, 1997, p. 118). Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação64 Na continuidade de seu raciocínio, o famoso dualismo cartesiano associado à separação da mente e da matéria (corpo) em duas substâncias diferentes, mas em interação. O filósofo percebe, que é necessário haver uma disposição divina para assegurar a existência de quaisquer relações entre os dois domínios divididos. Jean Jacques Rousseau Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) foi um importante filósofo, teórico político, escritor e compositor autodidata. É considerado um dos principais filósofos do Iluminismo, precursor do romantismo e, sobretudo, grande referência para a filosofia da educação. Figura 2: Jean Jacques Rousseau Fonte: @commons. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 65 Suas principais obras são: �Discurso sobre a desigualdade entre os homens. �Contrato social. �Confissões. �Emílio ou da Educação. Rousseau foi fortemente influenciado pelo Romantismo europeu. Além do Iluminismo, deve-se atentar ainda para a presença e atuação do Romantismo, que também insistia sobre o determinante papel da educação. Segundo Novelli (2001), o Romantismo constitui-se numa reação contra a frieza racionalista do Iluminismo, chamando a atenção sobre a natureza, a vida, o instinto, enfim, a sensibilidade. Desse modo pretendia-se um homem completamente realizado em todas as suas potencialidades. Sem sombra de dúvidas, Emílio, ou, da Educação, escrito em 1762, é a obra mais enriquecedora, que Rousseau nos deixou a fim de pensarmos sobre os processos de educação nesse contexto do Iluminismo e do Romantismo, bem como as etapas da infância e as formas como os sujeitos se inserem na sociedade. Hoje se considera o primeiro tratado sobre filosofia da educação no mundo ocidental. Explica, por conseguinte, como o indivíduo pode conservar sua bondade natural (Rousseau sustenta que o homem é bom por natureza), enquanto participa de uma sociedade inevitavelmente corrupta. O texto se divide em cinco “livros”, os três primeiros dedicados à infância de Emílio, o quarto à sua adolescência, e o quinto à educação de Sofia, a “mulher ideal” e futura esposa de Emílio, e à vida doméstica e civil deste, incluindo a formação política. Rousseau intenciona mostrar a natureza da arte de educar, que consiste em superar os obstáculos e em criar melhores condições que possibilitem o desenvolvimento dos indivíduos. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação66 A infância é compreendida, como uma etapa, que tem uma finalidade importante para o desenvolvimento de qualquer sujeito, e a ela não se deve impor uma “cultura adulta” por meio da autoridade. Vejamos o que Rousseau diz acerca deste assunto: A natureza quer que as crianças sejam crianças antes de serem homens. Se quisermos perverter essa ordem, produziremos frutos temporões, que não estarão maduros e nem terão o sabor, e não tardarão em se corromper; teremos jovens doutores e velhas crianças. A infância tem maneiras de ver, de pensar e de sentir que lhes são próprias; nada é menos sensato do que querer substituir essas maneiras pelas nossas, e para mim seria a mesma coisa exigir que uma criança tivesse cinco pés de altura e que tivesse juízo aos 10 anos. Com efeito, de que lhe serviria a razão nessa idade? Ela é o freio da força, e a criança não precisa desse freio. (ROUSSEAU, 1999, p. 86.) Para ele, as instituições educativas corrompem o homem e tiram-lhe a liberdade. Para a criação de um novo homem e de uma nova sociedade, seria preciso educar a criança de acordo com a Natureza, desenvolvendo progressivamente seus sentidos e a razão com vistas à liberdade e à capacidade de julgar por si mesma. Logo, é possível afirmar, que a ideia central da educação, para Rousseau, é a “conformidade com a natureza”. Trata-se da busca rousseauniana da verdade na própria natureza e no homem, como ponto de convergência da universalidade. No entanto, o objetivo que permeia a tarefa educacional, mesmo trabalhada de forma individual e particular, é o da formação do homem para o convívio com seus semelhantes. O objetivo maior do projeto pedagógico rousseauniano sintetiza seus dois ideais, fundindo-os numa só máxima: a de recriar o homem natural dentro da sociedade. E a educação é o instrumento mais propício para essa recriação e transformação AspectosFilosóficos Socioantropológicos da Educação 67 pessoal que invariavelmente poderá propiciar mudanças na sociedade. (PAIVA, 2011, p. 9). Podemos afirmar, dessa forma, que educação para Rousseau não é uma tarefa, que se limita ao ambiente escolar, a programas ou a instituições específicas. Mas sim uma ação global de desenvolvimento do homem em todas as suas necessidades. Isso é claro logo no início de sua obra: Nascemos fracos, precisamos de força; nascemos desprovidos de tudo, temos necessidade de assistência; nascemos estúpidos, precisamos de juízo. Tudo o que não temos ao nascer, e de que precisamos adultos, é nos dado pela educação. (ROUSSEAU, 1999, p. 8). Essa educação, conforme ressaltam Franklin e Pinheiro (2014), nos ensina a importância de respeitar a criança em seu próprio mundo repleto de necessidades próprias. Ela não dá virtudes, mas previne vícios: enfim, ela dispõe a criança, tudo o que pode levar ao verdadeiro, quando ela já detém a condição de entender, e de amar. Para Rousseau, a civilização é um grau de desenvolvimento superior da própria natureza. Immanuel Kant Immanuel Kant (1724-1804) nasceu na Prússia Oriental e, durante toda a sua vida, jamais se afastou de sua cidade natal, Königsberg. Não seria exagero afirmar, que ele foi um dos filósofos mais importantes da modernidade, uma vez que refletiu temas, que são debatidos até nos dias de hoje, como a objetividade, o saber, a vontade e o juízo. Ele estabeleceu o que chamamos de Filosofia Crítica, “mantendo o equilíbrio entre a posição extrema do empirismo britânico, por um lado, e os princípios inatos do racionalismo cartesiano, por outro”. (RUSSEL, 2013, p. 368). Na filosofia kantiana, há um ponto de inflexão importante acerca da análise e do conhecimento da relação entre ser e Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação68 pensar, entre verdade e certeza, entre objetividade e subjetividade. Deriva-se desses temas um conjunto de trabalhos desenvolvidos pelo filósofo: Crítica da razão pura, Crítica da razão prática Crítica do juízo. Resumidamente, é possível afirmar que sua Crítica está baseada na possibilidade de uma fundamentação da articulação entre sujeito e objeto que não se situe no âmbito da fé ou da crença. Figura 3: Immanuel Kant Fonte: @commons. IMPORTANTE O sentido da Crítica efetuado por Kant não é aquele do senso comum da desaprovação, e sim da análise. Sua busca é pela compreensão da maneira pela qual podemos conhecer as coisas, e não apenas “qual o significado das coisas”. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 69 A educação, para Kant, é um objeto importante de reflexão. Ele defende a ideia de que o homem é a única criatura que precisa ser educada, sendo que a educação tem como objetivo encaminhar o homem em direção a uma finalidade, qual seja, a perfeição. Uma educação que consegue atingir sua finalidade, vai de encontro com a filosofia moral e política, sendo que o homem moral é o ideal a ser seguido no processo de educação. Tendo como intenção a formação do homem ideal, Kant estabelece a disciplina e a coação como pressupostos fundamentais no processo de educação. Por meio do rigor, da coação e da obediência, o filósofo visa a formação do caráter. Disciplina e coação são colocadas como fundamentos necessários para a liberdade e a moral. A autonomia, princípio básico do bom uso da razão, depende desse primeiro momento da educação (FRANKLIN; PINHEIRO, 2014, p. 96). Apenas em função de uma educação baseada na disciplina e na coação será possível postularmos um sujeito autônomo. Outro aspecto importante é a defesa da ideia de que a educação deveria conduzir o homem à liberdade. Dito de outra forma, a educação para a liberdade necessita de exercícios e ensinamentos de modo a permitir gradativamente o desenvolvimento da inteligência. O homem, por ser racional, ultrapassa a ordenação mecânica de todo o sentido de sua existência, proporcionando a si mesmo a libertação dos instintos por meio de sua própria razão (RIBEIRO, ZANCANARO, 2011). “O homem não deve ser guiado por instintos, pois foi dado a ele razão e liberdade da qual deve tirar tudo de si mesmo”. Assim, na era moderna, cresceu o clamor da liberdade geral e sustentou- se que uma ordem social apropriada só poderia acontecer a partir de indivíduos livres e emancipados, em que o sujeito só poderá ser racional e livre ao desenvolver todas as suas potencialidades de acordo com a vontade. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação70 IMPORTANTE Por meio da educação, o indivíduo se torna plenamente responsável por seu destino, consciente dos valores morais, do dever e de sua natureza enquanto fim em si. Esse fim é um fim racional, que supõe um valor pessoal, dado pelo próprio homem a si mesmo, em todas as circunstâncias, como condição necessária sob a qual somente ele mesmo e sua existência são metas finais. O progresso imposto pela educação, ao formular a disciplina, cultura e moralidade como metas a serem cumpridas, possibilita a postulação da formação do homem, com vistas à inteira humanidade (FRANKLIN; PINHEIRO, 2014, p. 97). Georg Hegel Georg Hegel (1770-1834) nasceu em Stuttgat, hoje cidade da Alemanha. Quando jovem, conheceu Schelling e Holderlin, iniciando uma amizade que duraria décadas. O esforço de Hegel concentra-se num objetivo muito claro: a compreensão do presente, a partir da explicação do sentido do desenvolvimento histórico. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 71 Figura 4: Georg Hegel Fonte: @commons. A filosofia hegeliana caracteriza-se, nessa medida, por um intenso compromisso com a realidade. E o que é a realidade? Ela se caracteriza justamente por seu aspecto mutável em todos os níveis, principalmente no histórico. Uma das questões iniciais do projeto hegeliano é avaliar até que ponto os conceitos formulados Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação72 por diferentes sistemas filosóficos dão conta desse dinamismo, ou, ao contrário, dividem-no em blocos estanques que se mantêm imóveis. A mudança – que a filosofia denomina devir – sempre foi considerada apenas sob o aspecto dos resultados, ou seja, aquilo que manifesta a relativa estabilidade do real em cada momento, que se apresenta para o nosso conhecimento. Esse, todavia, não é o ponto que mais interessa a Hegel. Interessa-lhe considerar o aspecto de processo, que a mobilidade do real envolve. Para ele, é preciso explicar as condições de modificação e o sentido que as mudanças apresentam em todos os aspectos da realidade, desde a percepção sensível até as revoluções políticas. Compreender a realidade significa entender o modo como esse processo transcorre e, se possível, as leis que o regem. A obra em que Hegel procura expor essa trajetória é a Fenomenologia do Espírito (1807), o primeiro livro em que seu sistema aparece plenamente delineado. SAIBA MAIS Hegel afirmava que a filosofia é filha de seu tempo apontando, assim, a importância da história. Nesse sentido Hegel situa-se dentro do debate sobre a educação de sua época, pois, além de encontrar-se nesse contexto, toda a sua vida ficou marcada pela atividade docente. Hegel foi preceptor, professor, diretor de ginásio, conselheiro escolar, professor e reitor universitário e consultor do governo para assuntos educacionais. Hegel viveu de perto as reformas educacionais na Alemanha tanto no período do ginásio como na universidade. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 73 Segundo Novelli (2001), Hegel não ficou indiferente à educação em sua época, mesmo porque os efeitos do Iluminismo na França e na Inglaterra se estenderam à Alemanha. A necessidade de libertar o homem retirando-o de sua minoridade, passava pela possibilidade de recepção do saber segundo o Iluminismo. Certamente seria válido investigar como a dialética hegeliana, proporciona contribuições para o que ocorre em sala de aula. Aliás, como nos informaNovelli é estranho dentro do hegelianismo, desvincular a sala de aula das concepções e políticas educacionais (NOVELLI, 2001). A pedagogia hegeliana remete muito mais à compreensão do que é e como vem a ser o homem. O homem, em Hegel, é contínua passagem, contínuo vir-a-ser, sempre filho de seu tempo, do que o precedeu e do que está por vir enquanto resultado de sua própria atividade no dia a dia. Certamente é dessa concepção de homem, que se deve erguer toda uma proposta pedagógica, que tão somente viabilize esse homem. Provavelmente por isso não se encontra em Hegel uma sistematização da questão pedagógica e talvez seja um exagero procurar remeter passagens da obra de Hegel à referida questão. No entanto, pode-se operar um esforço no sentido de pensar, como a filosofia hegeliana apresenta contribuições à temática educacional. A seguir, escolhemos alguns pontos importantes dessa proposta: �A educação proporciona o segundo nascimento do indivíduo, porque o torna autônomo, senhor de si no convívio de seu povo. A autonomia é uma conquista do indivíduo, porque ele precisa aderir à proposta de seu povo e renunciar suas particularidades e exclusivismos. �O aprender ocorre por intermédio de alguém, isto é, por um processo necessariamente mediado. �O indivíduo precisa passar por diversos estágios em sua formação. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação74 �A tarefa do indivíduo é adquirir o que lhe é apresentado e apropriar-se da cultura de sua época. Essa apropriação é o acesso à cultura universal da qual participam todos os povos. Finalmente, Hegel assume uma preocupação marcante com o conteúdo da prática docente (sem considerar muito a questão metodológica). Há em Hegel uma certa desconfiança em relação aos formalismos, métodos e técnicas. Dessa maneira, o conteúdo torna-se determinante, pois deve ser a apresentação das verdadeiras riquezas criadas pelos homens ao longo de sua existência. O que se pode inferir, apesar de tudo, sobre a postura hegeliana, é que ele insiste na contribuição, que o acesso ao conhecimento acumulado pode proporcionar ao aluno. Nesse sentido, a preocupação com o conteúdo é crucial, pois aí se encontra algo a ser sabido e ao qual se tem direito. A metodologia, a técnica adotada, o processo de comunicação desse conteúdo acabam sendo secundários (NOVELLI, 2001). Contudo, Hegel entende que não basta comunicar, mas é necessário garantir que ocorra a comunicação RESUMINDO Neste capítulo, abordamos as ideias filosóficas de René Descartes, Jean Jacques Rousseau, Immanuel Kant, Georg Hegel, bem com suas contribuições para a Filosofia da Educação. Você aprendeu a definição e a diferença entre os filósofos racionalistas e empiristas no contexto da Filosofia Moderna. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 75 Tendências e Correntes Filosóficas: Contexto Histórico e Pressupostos OBJETIVO Ao final do estudo deste capítulo, você será capaz de explicar as características e o contexto histórico das tendências e correntes filosóficas do século XIX e início do XX. A Filosofia Contemporânea situa-se cronologicamente entre o século XIX até os dias atuais. No entanto, alguns especialistas em filosofia preferem classificar os pressupostos teóricos e os pensamentos filosóficos produzidos a partir do século XIX como parte da Filosofia Moderna. Permitindo-se fazer uma análise mais conceitual e historiográfica, ao invés de uma análise estritamente cronológica, preferimos compreender que as produções filosóficas do século XIX e início do XX aproximam-se muito mais daquilo que foi produzido nos séculos posteriores do que nos períodos anteriores. Dessa forma escolhemos o termo “filosofia contemporânea”.. Além disso, o pensamento predominante no século XX, as escolas filosóficas, as interpretações, a pós-modernidade, enfim, tudo o que há de diferente na Filosofia Ocidental nos dias de hoje, foi gestado a partir de obras de filósofos do século XIX, como Auguste Comte, Friedrich Nietzsche, Søren Kierkegaard, Arthur Schopenhauer, Karl Marx, entre outros. Como vimos na seção 3, durante o Iluminismo, no fim da modernidade, havia uma crença comum de que o avanço das ciências, das técnicas e do conhecimento, articulados à Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação76 popularização desse conhecimento por meio da educação, trariam a realização moral e a liberdade das sociedades ditas modernas. No século XIX, o positivismo de Auguste Comte permanece, de certo modo, numa linha iluminista, porém traz a necessidade de um conhecimento científico (técnico), bem como da ordem social para que ocorra o almejado avanço social. Já o materialismo dialético, de Karl Marx, afirma a necessidade de se entender a história humana como história de sua produção material. Considerando os fatos históricos inerentes do final do século XVIII e que permearam todo século XIX, os que mais influenciaram o pensamento contemporâneo foram as revoluções Francesa e Americana, e especialmente a Revolução Industrial. Em termos práticos, as revoluções políticas e sociais trouxeram um novo modo de governar, afastando o absolutismo monárquico do Antigo Regime, enquanto a Revolução Industrial desencadeou um importante e amplo avanço técnico e científico nos países europeus. O filósofo alemão Arthur Schopenhauer, opondo-se à visão romântica e idealista e aos pensamentos totalizantes da razão moderna, que pretendiam enquadrar os sujeitos em um modelo inteiramente racional, lança o conceito de Vontade como uma força motriz da natureza que tudo causa, ao acaso, independentemente de qualquer vontade divina. Kierkegaard, por sua vez, lança a ideia de que a Filosofia deve prestar atenção à vida do sujeito, para que o próprio ser humano entenda e se conforme com a sua condição, que muitas vezes é permeada pela angústia. Mas de todos os pensadores que marcaram o início da contemporaneidade, talvez seja Friedrich Nietzsche o responsável pela maior ruptura com a filosofia moderna, além de ser enunciador do que viria no século XX. Este filósofo foi Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 77 um grande crítico do que se tornou a filosofia produzida entre Sócrates e Kant (com exceção de Spinoza), ou seja, quase toda a Filosofia ocidental. Nietzsche criticou a pretensão do ser humano de querer alcançar uma verdade objetiva, única e puramente racional, fundamentando o conhecimento, que ele chamou de perspectivismo. Além da crítica à teoria do conhecimento e a elaboração de um método filosófico para compreender o mundo, Nietzsche tece uma crítica aos sistemas morais, que pretendem estabelecer uma valoração unilateral e desprezam a origem histórica e cultural dos mesmos. O início do século XX, por conseguinte, traz a suspeita de que as teorias iluministas e modernas talvez não fossem tão certas. A Primeira Guerra Mundial foi um desses fatores e o Holocausto engendrou o começo do pessimismo contemporâneo em relação à ciência e à técnica. Theodor Adorno e Max Horkheimer, no livro Dialética do Esclarecimento, classificam o holocausto como o ápice da barbárie, que a humanidade chegou devido ao que eles chamaram de “razão instrumental”. A razão instrumental é a utilização não reflexiva da ciência e das técnicas visando a uma finalidade. Desde o século XVIII o capitalismo já vinha se utilizando da racionalidade como instrumento de poder, e o nazismo, por meio da câmara de gás e dos experimentos científico cruéis, que utilizavam prisioneiros de campos de concentração como cobaias, marcaram a contemporaneidade como uma época em que o avanço científico não garantiu o avanço moral humano. Nesse contexto, uma dificuldade que aparece a partir de agora no estudo da Filosofia é o surgimento de correntes filosóficas. No período contemporâneo, as correntes passam a ser mais exatas e claras, isto é, há uma classificação mais detalhada de cada posição e abordagem filosófica.Busca-se, Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação78 nesse sentido, aproximar ou distanciar os filósofos conforme as principais ideias contidas nelas. RESUMINDO Neste capítulo, abordamos a situação cronológica da filosofia, para compreender o surgimento das tendências e correntes filosóficas, por meio de análise mais conceitual e historiográfica das principais ideias dos filósofos desse período. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 79 Correntes Filosóficas: Abordagens e Suposições OBJETIVO Ao final do estudo deste capítulo, você será capaz de identificar e as correntes filosóficas do século XIX e do XX. Positivismo Impulsionado pelo otimismo decorrente da crença no progresso tecnológico, o positivismo empenhou-se em tornar o homem consciente de seu destino histórico, e especialmente comprometido com a vocação tecnocientífica do século XIX. Seu maior representante é o francês Auguste Comte (1798-1857), aluno da Escola Politécnica de Paris, professor de Filosofia e fundador da corrente em questão. De sua obra destacam-se Curso de Filosofia Positiva (1830-1842), Sistema de Política Positiva (1851-1854), Catecismo Positivista (1852) e Síntese Subjetiva (1856). O pensamento positivista influenciou grande parte da cultura europeia em diversos âmbitos, como na Filosofia, na Pedagogia, na Política e na Historiografia. As grandes transformações decorrentes do processo de industrialização no século XIX, o avanço da Ciência e da tecnologia, o surgimento de grandes cidades, o aumento da produção de bens materiais e de riqueza permeiam o contexto em que o positivismo foi pensado por Comte. Comte dividiu o progresso humano em três estágios: 1) o primeiro diz respeito ao período teológico, representado Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação80 pela Idade Média e caracterizado pela crença no sobrenatural, nas explicações fantásticas e míticas; 2) o segundo estágio, denominado de metafísico, Comte defende a ideia de que a especulação sobre a natureza da realidade passou por uma grande evolução e que as noções abstratas substituíram o papel das divindades e, finalmente 3) a era positivista (científica) que ajudaria a criar uma nova ordem social, baseada nas regularidades observáveis e escritas pelas Ciências. Tendo em vista sua teoria, estaríamos no estágio científico da história da humanidade, apesar de que seria necessário, ainda, aplicar seu método aos fenômenos sociais. Ou seja, a finalidade disso seria findar as crises pelas quais a sociedade estava passando para alcançar uma “ordem social”. A sociologia científica seria capaz de interromper o estado de crise, em que as sociedades mais civilizadas se encontravam a fim de conquistarem a ordem social, que Comte defendia com entusiasmo. Comte não defendia a Filosofia como um corpo teórico que tem seu próprio saber pois, o mais importante, segundo sua perspectiva, eram os objetivos de classificação e ordenação do conhecimento. Em outras palavras, a filosofia positiva possui um teor enciclopédico – não no sentido dos conteúdos e saberes apresentados – mas de sua organização, classificação e hierarquização. A filosofia se submete ao quadro do saber já consolidado pela observação e aplicação dos métodos considerados científicos. Nesse sentido, não seria incorreto afirmar que o positivismo creditava uma especial confiança no progresso, na capacidade da ciência em resolver os problemas das sociedades e, por extensão, no vínculo entre conhecimento e ciências naturais. Ademais, o vínculo estabelecido pelo positivismo entre lógica, ciência, política e moral, mostra que o cientista deve ter um papel social importante. Para Comte, é impossível considerar a lógica sem considerar um programa ético e político. Nesse sentido, Ciência e Filosofia são “como espécie de sacerdócio, de Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 81 apostolado da razão, cujo objetivo é a redenção da humanidade” (ABRÃO, 1999, p. 398). Esse pensamento conduziu o filósofo a instituir a “Religião da Humanidade”, caracterizada pelo culto à razão, presença de rituais e calendários próprios, e adoração aos grandes personagens do progresso humano (em sua maioria, homens ilustres). De forma resumida, apresentamos um quadro com as principais características do Positivismo: �As Ciências promovem, exclusivamente, o método de conhecimento e o próprio conhecimento. �Esse método é válido para o estudo da sociedade, ou seja, para a sociologia e historiografia. �A Ciência soluciona todos os problemas humanos. �O progresso das sociedades e também da humanidade é visto de uma perspectiva otimista. �A História é vista a partir da perspectiva messiânica. �Os fatos do conhecimento popular ou senso comum são compreendidos como o verdadeiro conhecimento. �Crença na racionalidade científica. �Combate às concepções idealistas e espiritualistas da realidade. (FRANKLIN; PINHEIRO, 2014, p. 109) Comte enfrentou duras críticas ao seu pensamento, especialmente à Religião da Humanidade que, nos dias de hoje, é pouco reconhecida e valorizada no corpo teórico do pensamento positivo. Porém, ainda na contemporaneidade percebemos sinais do positivismo nas sociedades ocidentais, tais como: a ciência para o progresso da humanidade; crítica ao pensamento metafísico não provado; ideia da sociologia como ciência autônoma; a importância da tradição; o reconhecimento da historicidade dos fatos humanos e da própria ciência; a unicidade do método científico e seu valor cognoscitivo. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação82 SAIBA MAIS O positivismo exerceu grande influência sobre os principais líderes republicanos brasileiros, quase todos ex-alunos da Escola Politécnica de Paris. Entre eles destacam-se Luís Pereira Barreto, Raimundo Teixeira Mendes, Miguel Lemos (fundador da Igreja Positivista do Brasil) e Benjamin Constant, responsável pela divisa “Ordem e Progresso” (ideal comtiano) inscrita na bandeira do Brasil. Utilitarismo O advento da Revolução industrial, o crescimento das cidades, a divisão do trabalho, a circulação de capital e o aumento de produtos de bens materiais trouxeram consigo uma certa ênfase a tudo que dizia respeito à “utilidade”. O movimento denominado utilitarismo, portanto, recebeu esse nome devido a uma doutrina ética, que remonta ao teólogo e filósofo Francis Hutcheson (1694-1746) que a defendeu em 1725. Essa teoria afirma que o bem é prazer e o mal, a dor. O melhor estado que podemos alcançar é aquele em que o prazer supera a dor. Esse ponto de vista foi adotado por Jeremiah Bentham (1748-1832), passando a ser conhecido como utilitarismo, que nada mais é que um conjunto de teorias éticas. Seu princípio fundamental é: a máxima felicidade possível para o maior número de pessoas. Trata-se então de uma moral eudemonista, mas que, ao contrário do egoísmo, insiste no fato de que devemos considerar o bem-estar de todos e não o de uma única pessoa. Além de Bentham, o utilitarismo contou com os filósofos James Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 83 Mill (1773-1836), John Stuart Mill (1806-1873), Henry Sidgwick (1838-1900) e muitos outros que responderam a todas as questões acerca do que fazer, o que admirar ou como viver bem. Bentham se interessou sobretudo pela jurisprudência, campo em que se inspirou em Helvétius e Beccaria. Para Bentham, a ética era uma base para estudar os meios legais de promover o melhor estado de coisas possíveis. Ele ainda foi o líder de um grupo de homens conhecidos como “radicais filosóficos”, que se preocupavam muito com as reformas sociais e com a educação, e em geral se opunham à autoridade da Igreja e aos privilégios restritivos da classe social dominante. Porém, como nos informa Bertrand Russel, Betham era um homem de temperamento reservado e partia de pontos de vista não especialmente radicais (RUSSEL, 2013, p. 409). Bentham preocupava-se muitocom a educação e compartilhava com seu grupo de uma suprema confiança nos ilimitados poderes da mesma. O fornecimento de uma educação adequada, foi vista como um dos grandes remédios para todos os males sociais. De certa forma, os utilitaristas estão certos quando afirmam que determinados problemas não podem ser devidamente enfrentados, a menos que exista um entendimento bastante difundido do que está em jogo, e isto requer, em verdade, um certo grau de educação. É importante lembrar que, naquela época, a Inglaterra contava apenas com duas universidades, e de acesso restrito aos que professavam o anglicanismo. Logo, a intenção de Bentham era proporcionar oportunidades de educação universitária, aos que não preenchiam as estritas qualificações exigidas pelas instituições existentes. Consequentemente, participou do grupo, que ajudou a fundar o University College, de Londres, em 1825, instituição na qual não se impunham testes religiosos aos estudantes. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação84 De modo geral, a filosofia de Bentham se baseia em duas ideias predominantes que remontam o início do século XVIII: (1) a associação, (2) a máxima felicidade. A primeira diz respeito à noção de dependência causal em função da associação de ideias, tornando-se o mecanismo central da psicologia. O segundo princípio, da maior felicidade, já mencionamos. Esta teoria vincula-se também à psicologia, uma vez que, para Bentham, o que os homens tendem a fazer é conseguir para si mesmos a maior felicidade possível. Felicidade significa, aqui, o mesmo que prazer. A função da lei é garantir que, ao buscar o seu próprio prazer máximo, ninguém prejudique idêntico propósito dos demais. Ao mesmo tempo, o princípio da maior felicidade possibilita outra interpretação: na concepção dos economistas liberais, tornou-se uma justificativa para o laisser-faire e para o livre-comércio, pois assumia-se que a busca livre e sem controle, por parte de cada indivíduo, do seu maior prazer, produziria a maior felicidade à sociedade (RUSSEL, p. 411). IMPORTANTE Para além de uma teoria ética, o utilitarismo foi, de fato, a concepção de vida implícita na maior parte do planejamento político e econômico moderno, na medida em que supõe que a felicidade também pode ser medida em termos de econômicos. Em Economia, o utilitarismo pode ser entendido como um princípio ético no qual o que determina se uma decisão ou ação é correta, é o benefício intrínseco exercido à coletividade, ou seja, quanto maior o benefício, tanto melhor a decisão ou ação será. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 85 John Stuart Mill foi um homem de “grande talento, mas desperdiçado pela falta de densidade filosófica do utilitarismo” (FRANKLIN; PINHEIRO, 2014, p. 112). Foi fortemente influenciado pelo seu pai, James Mill, homem muito atuante politicamente na Inglaterra e defensor do liberalismo como pensamento político mais apropriado àquele contexto. Na formulação da doutrina de Stuart Mill, as ações são corretas proporcionalmente à sua tendência para promover a felicidade, e erradas se tendem a promover o que é contrário à felicidade. Esta perspectiva constitui uma forma, como diz Simon Blackburn (1997) de consequencialismo, em que as consequências relevantes são identificadas em termos de graus de felicidade. Diferentes concepções de felicidade separaram a versão de Mill, que reconhecia diferenças qualitativas entre os diferentes tipos de prazer, da tentativa assumida de Bentham, para reduzir todas as questões de felicidade à presença de prazer ou dor. Para Mill, todos os nossos conhecimentos são de conhecimento popular ou do senso comum, inclusive as proposições das ciências dedutivas como a geometria. Com efeito, as proposições da geometria também são verdades experimentais e resultantes da observação. A importância de Stuart Mill para a educação se estabelece nessa problemática dos processos indutivos e dedutivos do conhecimento, uma vez que muitas das pesquisas utilizam esse método lógico para referendar teorias que são retiradas da experiência, tornando-as gerais (FRANKLIN; PINHEIRO, 2014, p. 113). Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação86 SAIBA MAIS Não foi somente à teoria utilitarista que Stuart Mill se dedicou, pois foi um dos primeiros filósofos homens a se preocupar com a causa das mulheres. O filósofo publicou em 1869 a famosa obra Sujeição das mulheres, em meio a um importante movimento histórico no qual as mulheres reivindicavam direitos de cidadania. No primeiro capítulo de sua obra, Stuart Mill apresenta muitas indagações relacionadas à subjugação das mulheres. O filósofo atentava para o fato de que, apesar de o mundo ter avançado muito até aquele momento para a libertação de povos escravizados, as mulheres continuavam sendo subjugadas e oprimidas pelo sexo oposto. Consequentemente, as mulheres continuavam sendo vistas como seres inferiores e sem autonomia, não só no âmbito público, mas também no âmbito privado (OLIVEIRA, 2013). A obra nos dá a possibilidade de pensar o questionamento do filósofo, quanto à causa da sujeição das mulheres pelos homens e a aceitação desta condição. Mill assumia a tarefa de entender o porquê de a sociedade aceitar como “natural” a situação de inferioridade da mulher diante do homem, isto é, a sujeição e o conformismo da maioria: a sociedade não questionava as razões pela qual as mulheres se mantinham sob o jugo masculino. A seguir, apresentamos as características fundamentais do utilitarismo: �Princípio do bem-estar: O “bem” é definido como sendo o bem-estar. Diz-se que o objetivo pesquisado em toda ação moral se constitui pelo bem-estar, que pode ser físico, moral e intelectual. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 87 �Consequencialismo: As consequências de uma ação são a única base permanente para julgar a moralidade desta ação. O utilitarismo não se interessa desta forma pelos agentes morais, mas pelas ações – as qualidades morais do agente não interferem no “cálculo” da moralidade de uma ação, sendo então indiferente se o agente é generoso, interessado ou sádico, pois são as consequências do ato que são morais. Há uma dissociação entre a causa (o agente) e as consequências do ato. Assim, para o utilitarismo, dentro de circunstâncias diferentes um mesmo ato pode ser moral ou imoral, dependendo se suas consequências são boas ou más. �Princípio da agregação: O que é levado em conta no cálculo é o saldo líquido (de bem-estar, numa ocorrência) de todos os indivíduos afetados pela ação, independentemente da distribuição deste saldo. O que conta é a quantidade global de bem-estar produzida, qualquer que seja a repartição desta quantidade. Sendo assim, é considerado válido «sacrificar uma minoria”, cujo bem-estar será diminuído, a fim de aumentar o bem-estar geral. Esta possibilidade de sacrifício se baseia na ideia de compensação: a desgraça de uns é compensada pelo bem-estar dos outros. Se o saldo de compensação for positivo, a ação é julgada moralmente boa. O aspecto dito sacrificial é um dos mais criticados pelos adversários do utilitarismo. �Princípio de otimização: O utilitarismo exige a maximização do bem-estar geral, o que não se apresenta como algo facultativo, mas sim como um dever. � Imparcialidade e universalismo: Os prazeres e sofrimentos são considerados da mesma importância, quaisquer que sejam os indivíduos afetados. O bem-estar de cada um tem o mesmo peso dentro do cálculo do bem-estar geral. Este princípio é compatível com a possibilidade de sacrifício. A princípio, todos têm o mesmo peso, e não se privilegia ou se prejudica ninguém – a felicidade de um rei ou de um cidadão comum é levada Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação88 em conta da mesma maneira. O aspecto universalista consiste numa atribuição de valores do bem-estar que é independente das culturas ou das particularidades regionais.Como o universalismo de Immanuel Kant, o utilitarismo pretende definir uma moral que valha universalmente. Pragmatismo Primeira corrente filosófica que se originou nos Estados Unidos no final do século XIX, o pragmatismo viveu seu auge nas primeiras décadas do século XX. Apesar de ter sido pensado sob diversas formulações, o pragmatismo parte da crença de que o significado de uma doutrina é idêntico aos efeitos práticos que resultam de sua adoção. Em outras palavras, “o significado de um conceito é o efeito sensorial de seu objeto”, é conhecida como máxima pragmática. Ou então: a “verdade” é a descrição da realidade que melhor funciona para nós. Um dos seus principais representantes é Charles Sanders Peirce (1839-1914). Uma das coisas fundamentais que Peirce tentava mostrar é que muitos debates na ciência, filosofia e teologia não têm sentido. Ele afirmava que muitas vezes são debates sobre palavras, e não sobre a realidade, uma vez que neles nenhum efeito sobre os sentidos pode ser especificado. O pragmatismo peirceano era a teoria de que não adquirimos conhecimento apenas observando, mas fazendo, e que contamos com esse conhecimento somente enquanto ele nos é útil, no sentido de que explica adequadamente as coisas para nós. Quando esse conhecimento não cumpre mais essa função ou explicações melhores tornam-no obsoleto, o substituímos. As antigas suposições funcionaram de forma adequada em sua época, ainda que não fossem verdadeiras. Isso demonstra como o conhecimento, como ferramenta explicativa, é diferente dos fatos. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 89 Exemplo: Podemos ver, ao olhar para a história, como nossas ideias sobre o mundo mudaram constantemente, do pensamento de que a Terra é plana até saber que ela é redonda, da suposição da Terra como centro do universo até a compreensão de que se trata apenas de um planeta no vasto cosmos. O ideário de Peirce torna-se importante para as concepções educativas, porque articula-se à apreensão de como podemos conhecer as coisas. Para ele, nosso conhecimento nasce de uma fixação de crenças, que podem ser reduzidas a quatro métodos, quais sejam: Tabela 2: Charles Peirce - Como tornar claras nossas ideias (1878) Método da Tenacidade O método da tenacidade é uma forma de comportamento do “avestruz”, que esconde a cabeça quando o perigo se aproxima. Esse é o caminho de quem está seguro, apenas na aparência e em seu interior está extremamente inseguro. Essa insegurança emerge quando é confrontado com outras crenças, tomadas igualmente como boas. Método da Autoridade O método da autoridade consiste na utilização da ignorância, do terror e da inquisição para alcançar a concordância de quem pensa de forma diversa e quem não pensa da mesma forma que o grupo ao qual pertence. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação90 Método a priori É aquele que concebe que suas próprias proposições fundamentais estão de acordo com a razão. Mas Peirce alerta que a razão de um filósofo não é a razão de outro. O método apriorístico leva ao insucesso, pois se baseia também como autoridade. Método científico É superior aos três primeiros, que inevitavelmente levam ao insucesso e não se sustentam. Para estabelecermos a validade de nossas crenças, ele é o único correto. Fonte: Franklin; Pinheiro, 2014, p. 116. Todavia, as crenças científicas podem ser falíveis, uma vez que as experiências podem desmentir os significados das conjeturas levantadas. Por isso, as hipóteses estarão sempre colocadas à prova nas experiências e nas tessituras das conclusões. Tal método científico é muito significativo, para a realização de pesquisas acadêmicas, e para comprovar as respectivas teorias. O pragmatismo teve outro filósofo como grande referência, o norte-americano, filósofo e psicólogo William James (1842- 1910), que foi amigo de Peirce e teve mais notabilidade que este. Para James, a verdade de uma ideia depende do quanto ela é útil, isto é, se ela responde o que dela se exige. Por isso, se uma ideia não contradiz os fatos (as leis da ciência, por exemplo) não pode haver razão para não considerá-la verdadeira. A verdade de uma ideia não é uma propriedade estagnada inerente a ela: a verdade acontece a uma ideia, tornando-se verdadeira pelos acontecimentos. Sua veracidade é um acontecimento, um processo. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 91 IMPORTANTE Qualquer ideia, se trabalhada, é considerada como verdadeira pela ação que tomamos: colocar a ideia em prática é o processo pelo qual ela se torna verdadeira. A realidade é um processo dinâmico e ativo, da mesma forma que a verdade é um processo. James também julga que a crença numa ideia é um fator importante na escolha para agir sobre ela, e dessa forma a crença é parte do processo que torna uma ideia verdadeira. Na perspectiva de James, quase todas as crenças poderão ser respeitáveis, e até mesmo verdadeiras, desde que funcionem (mesmo que este funcionar não seja uma questão tão simples para James). SAIBA MAIS O pragmatismo proposto por James e Peirce estabeleceu os Estados Unidos como um centro significativo para o pensamento filosófico no século XX, considerando que toda tradição filosófica do ocidente tinha sido gestada nos países europeus. A interpretação de James sobre a pragmática da verdade influenciou o psicólogo e pedagogista John Dewey, que será apresentado na Unidade 3. Outros filósofos influenciados pela corrente pragmática foram: Richard Rorty, Bertrand Russel e Ludwig Wittgenstein; enquanto os escritores foram: Virginia Woolf e James Joyce. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação92 Materialismo A influência de Hegel no pensamento filosófico do século XIX foi fundamental na produção de ideias, que tinham em comum, entre outras coisas, a desconstrução religiosa, especialmente por meio de críticas ao cristianismo. Temos Bruno Bauer (1809-1882) e Edgar Bauer (1821-1866), que apresentaram um ateísmo idealista. Max Stirner (1806-1856) por sua vez, dizia que não podia ser mais cristão, tampouco ateísta. Mas foi Ludwig Feuerbach (1804-1872) que influenciou radicalmente todos os filósofos chamados materialistas. Sua tese principal é a de que, por trás de toda teologia, não há nada além de antropologia. A partir desse grupo formado e influenciado por Hegel, temos Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820- 1859) que inspiram até os dias de hoje o pensamento filosófico, político, econômico e social. Ambos romperam com Feuerbach ao questionarem a sua concepção especulativa, sobre a natureza do homem apartada da política e da história, bem como do desenvolvimento de si próprio desvinculado das condições reais de sua existência. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 93 IMPORTANTE Ressalta-se a importância de compreender Marx e seu pensamento conforme o contexto histórico e social do século XIX, em que suas ideias foram concebidas. Marx viveu numa época em que a Europa se envolvia em conflitos, tanto no campo das ideias, como no das instituições. Já na universidade, as doutrinas socialistas e anarquistas se encontravam no centro das discussões dos grupos que Marx frequentava. Alguns dos pensadores que então alimentavam as esperanças transformadoras dos estudantes hoje são chamados de socialistas utópicos, como o britânico Robert Owen (1771-1858) e os franceses Charles Fourier (1772-1837) e Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865). Dois momentos da história europeia foram vividos por Marx intensamente e tiveram importantes reflexos em sua obra: as revoltas antimonárquicas de 1848 – na Itália, na França, na Alemanha e na Áustria – e a Comuna de Paris, que, durante pouco mais de três meses em 1871, levou os operários ao poder, influenciados pelas ideias do próprio Marx. A insurreição acabou reprimida, com um saldo de 20 mil mortes, 38 mil prisões e 7 mil deportações. Como informado por Franklin e Pinheiro(2014), Marx aceita o método dialético de Hegel (o poder da contradição), porém aplica a única realidade que admite: a matéria. Com isso, Marx elabora definições de materialismo histórico. Nas Teses sobre Feurbach (1845) e Ideologia Alemã (1846) inicia-se o interesse de Marx pelas diversas formas da sociedade humana e pela sua sucessão evolutiva que, na sociedade, surge em resposta às contradições (ou tensões insolúveis que se dão entre as diferentes forças produtivas ou classes). Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação94 DEFINIÇÃO Materialismo Histórico É uma concepção marxista da História. É descrito como procura da grande força, que faz mover todos os acontecimentos históricos importantes no que se refere à economia de uma sociedade, às mudanças dos modos de produção, à divisão da sociedade em classes distintas e, finalmente, à luta das classes que se opõem. Segundo o materialismo histórico, as mudanças nas forças produtivas de uma sociedade conduzem a conflitos sociais, e as formas específicas de organização social refletem a estrutura subjacente dos meios de produção (BLACKBURN, 2004, p. 240). Sabe-se que a educação não aparece nos textos de Marx como objeto central de interpretação, análise ou o como fundamento de alguma proposição. O tratamento do tema se dá mais como uma das consequências da realização de uma teoria crítica da economia e sociedade capitalista daquela época. Marx elaborou alguns princípios importantes que devem ser levados em consideração se quisermos estabelecer uma prática educacional transformadora do contexto social. Em Teses sobre Feuerbach, publicado em 1845, Marx defende a ideia de que algumas vertentes da doutrina materialista equivocadamente entendem, que os homens são produtos das circunstâncias externas, dito de outro modo, do meio ambiente. Dessa forma, segundo essa concepção, é necessário transformar as circunstâncias para só depois transformar os homens. Marx Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 95 discorda dessa ideia, afirmando justamente o contrário, para ele são os homens que transformam as circunstâncias e, por isso, é necessário primeiro mudar os homens e sua consciência para só depois mudar as circunstâncias. Na décima primeira tese a Feuerbach, Marx argumenta que “Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diferentes maneiras; mas o que importa é transformá-lo”. Desta forma ele critica uma postura contemplativa da filosofia, que apenas observava e nunca fazia intervenção na realidade. Para Marx, é necessário que se estabeleça uma prática revolucionária, uma teoria viva, que passa a existir a partir da prática concreta, da luta, da revolução. Na terceira unidade, veremos correntes pedagógicas que apostavam na transformação social, como importante fundamento da prática educativa. Em suma, “o indivíduo exerce o principal papel na construção da nova sociedade e, consequentemente, numa dimensão dialética, de um novo homem”. Por essa forma, podemos afirmar, com base nesses princípios, que Marx propõe uma prática educacional transformadora, onde a escola teria basicamente um duplo papel: 1. Esclarecer e identificar todas as relações sociais (relações de dominação e exploração) estabelecidas no âmbito da sociedade, tornando cada indivíduo consciente da realidade social na qual ele está inserido. 2. Agir pela erradicação das grandes desigualdades sociais, pelo fim da dominação e exploração de uma classe sobre outra. Finalmente, combater a alienação e a desumanização era, para Marx, a função social da Educação. Para isso seria necessário aprender competências que são indispensáveis para a compreensão do mundo físico e social. O filósofo alertava para Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação96 o risco de a escola ensinar conteúdos sujeitos a interpretações de partido ou de classe. Ele valorizava a gratuidade da Educação, mas não o atrelamento a políticas de Estado – o que equivaleria a subordinar o ensino à religião. Marx via na instrução das fábricas, criada pelo capitalismo, qualidades a ser aproveitadas para um ensino transformador – principalmente o rigor com que encarava o aprendizado para o trabalho. O mais importante, no entanto, seria ir contra a tendência profissionalizante, que levava as escolas industriais a ensinar apenas o estritamente necessário para o exercício de determinada função. Marx entendia que a Educação deveria ser ao mesmo tempo intelectual, física e técnica. Essa concepção, chamada de onilateral (múltipla), difere da visão de Educação integral, porque esta tem uma conotação moral e afetiva que, para Marx, não deveria ser trabalhada pela escola, mas por outros adultos. O filósofo não chegou a fazer uma análise profunda da Educação, com base na teoria que ajudou a criar. Isso ficou para seguidores como o italiano Antonio Gramsci (1891-1937), o ucraniano Anton Makarenko (1888-1939) e a russa Nadia Krupskaia (1869-1939). Fenomenologia A Fenomenologia é um termo que surgiu no século XVIII, nas obras de Johann Heinrich Lambert (1728-1777) e de Immanuel Kant, para denotar a descrição da consciência e da experiência, abstraindo de considerações sobre seu conteúdo intencional. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 97 DEFINIÇÃO Conceito de intencionalidade Qualidade de estar dirigido para algo, possuída por muitos, se não todos, os estados conscientes. Nossos pensamentos, nossos anseios, nossas crenças nossos sonhos e desejos relacionam-se ao termo intencionalidade. O problema da intencionalidade é compreender em que consiste a relação, que se verifica entre um estado mental, ou sua expressão, e as coisas acerca das quais esse estado mental se constitui como tal. Mais difundida é a opinião de que, uma vez que o conceito de intencionalidade é indispensável, temos de declarar que a ciência é incapaz de lidar com a característica da mente, ou alternativamente, temos de explicar como a ciência poderá abranger a intencionalidade. Fonte: BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1997, p. 206. Para Hegel, a fenomenologia é, em vez disso, a investigação histórica da evolução da autoconsciência que se desenvolve a partir da experiência sensorial elementar, até alcançar processos de pensamento completamente racionais e livres capazes de engendrar conhecimento. Mas no século XX, o termo está associado à obra e à escola de Edmund Husserl (1859-1938), que foi um dos poucos filósofos contemporâneos sem formação filosófica, pois havia estudado Matemática. Somente ingressou o terreno da Filosofia por influência de seu mestre, Franz Bretano. Envolveu-se com a Filosofia construindo sua carreira em universidades e lecionando esta disciplina. Husserl percebeu que a intencionalidade era a marca característica da consciência, e viu nela um conceito suscetível Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação98 de ultrapassar o dualismo da mente-corpo. Defendeu o ponto de vista de que o principal problema ao tentar compreender o pensamento, é explicar o modo como um conteúdo intencional pode pertencer ao fenômeno mental que o exibe. Assim, os fenômenos mentais são alicerçados nos dados dos sentidos. A intencionalidade é, assim, a recusa da noção clássica de representação. Mas, então, se nossa consciência é intencional, se ela é sempre em direção a um objeto, a tarefa primeira da fenomenologia será verificar quais as sínteses que se encontram na origem desse efeito: temos consciência de um mundo a despeito da veracidade das perspectivas que possamos ter sobre ele (ABRÃO, 1999, p. 439). Enquanto em nossa experiência efetiva existe um fluxo permanente de manifestações ou fenômenos de objetos, a capacidade sintética de nossa consciência faz com que, por meio dessa multiplicidade de fenômenos, tenhamos consciência de um objeto uno e idêntico. E Husserl vai perseguir incansavelmente os mecanismos da “estruturasintética” da consciência para desvelar seu funcionamento e, assim, descobrir como existe, para nós, algo como consciência de objeto. O problema de reconciliar a natureza subjetiva ou psicológica da vida mental com seu conteúdo objetivo e lógico ocupou Husserl a partir de então. Por exemplo, para Husserl, nossos atos psíquicos são acontecimentos de senso comum, individuais, enquanto os conceitos aritméticos são universalmente válidos e aceitos. Assim, reconduzir “conceitos universalmente válidos a fatos individuais significava demolir a objetividade das matemáticas” (ABRÃO, 1999, p. 438). Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 99 A ciência aspira à certeza em relação ao mundo Mas a ciência é de senso comum: depende da experiência A experiência é sujeita a suposições e predisposições ENTÃO, A EXPERIÊNCIA, POR SI, NÃO É CIÊNCIA As teorias científicas baseiam-se na experiência. Mas Husserl acreditava que a experiência, sozinha, não constituía ciência, porque a experiência está repleta de toda espécie de suposições, predisposições e equívocos. O filósofo queria expulsar essas incertezas para conferir à ciência bases absolutamente incontestáveis. Para solucionar esse embate, Husserl sugeriu que, se adotarmos uma atitude científica em relação à experiência, deixando de lado toda suposição particular (incluindo a suposição de que um mundo externo exista fora de nós), então poderemos começar a filosofar, ato livre de inferências. Husserl chamou essa abordagem de fenomenologia: uma investigação filosófica sobre os fenômenos da experiência. Precisamos olhar para a experiência com uma atitude científica, Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação100 deixando de lado (ou colocando entre parênteses, como dizia Husserl) cada uma de nossas suposições. A fenomenologia de Husserl é geralmente conhecida como um método de investigação. Porém, diferentes filósofos que seguiram o método de Husserl chegaram a resultados diferentes, ou seja, houve pouca concordância sobre o que era realmente este método e como se colocaria em prática. No final da carreira, Husserl escreveu que o sonho de conferir bases sólidas para as ciências, tinha acabado. Embora a fenomenologia de Husserl tenha fracassado em fornecer aos filósofos uma abordagem científica à experiência, ela deu origem a uma das mais ricas tradições do pensamento do século XX: o existencialismo. Existencialismo O existencialismo é a corrente filosófica que surge no centro da reflexão sobre a existência individual, a liberdade e as escolhas pessoais. Portanto, é uma corrente que se diferencia dos grandes sistemas filosóficos, pois abarca uma múltipla diversidade de pensamento que se preocupa com temas como a existência individual, a subjetividade, a liberdade e as escolhas dos sujeitos. O pensamento do século XX reencontra os problemas tradicionais da filosofia, não mais dispostos no rigor da ordem clássica, ou mesmo na hierarquia rígida do positivismo. A compreensão da experiência singular e própria de cada indivíduo, atrelada ao contexto histórico, fortaleceu o sentido dado aos fatos e enfraqueceu a pretensão dada às verdades eternas e imutáveis. Com efeito, o campo da Filosofia voltou-se à complexidade do mundo e da vida dos sujeitos, atravessados por determinadas contingências e singularidades de causas diversas. Com isso, é nesse contexto que nascem as filosofias da existência. Ao tratarmos delas, é necessário lembrar que não podemos nos Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 101 referir a elas no singular, afirmando, por exemplo, que existe um existencialismo. Pelo contrário, pois o que caracteriza as filosofias da existência é “a multiplicidades de direções, a diversidade de influências e as maneiras como se situam frente à tradição (ABRÃO, 1999, p. 441). Mesmo assim, é possível verificar alguns traços comuns na maneira como formulam o problema geral do homem frente à adversidade, o que faz dessas filosofias verdadeiros testemunhos da complexidade histórica do século XX. Nota-se que a preocupação sobre a existência humana é o ponto de partida e o objeto privilegiado de análise. Desde Platão, grande parte dos filósofos defendem que o bem moral funciona da mesma maneira para toda humanidade. Porém, no século XIX, o filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard (1813-1855) pode ser considerado o primeiro filósofo existencialista que se opõe a essa tradição. Kierkegaard afirma que o homem não pode encontrar o sentido da sua vida de outro modo, a não ser por meio da descoberta de sua única vocação. Isto é, o homem deve escolher sua própria vida sem se referir aos critérios ditos universais. Se opondo à concepção tradicional da escolha moral, que implica o julgamento do bem e do mal, os existencialistas não admitem a existência de uma base, de um fundamento objetivo, universal e racional nas decisões morais (FRANKLIN; PINHEIRO, 2014, p, 131). A filosofia de Kierkegaard desenvolveu-se em reação ao pensamento idealista alemão que dominou a Europa continental em meados do século XIX, particularmente o de Georg Hegel. Kierkegaard refutou a ideia de sistema filosófico de Hegel – que definia a humanidade como parte de um desenvolvimento histórico inevitável – defendendo a ideia de uma abordagem mais subjetiva e singular. Ele desejava investigar o que “significa ser um ser humano”, não como parte de um grande corpo filosófico, mas como indivíduo autônomo. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação102 Kierkegaard acreditava que as vidas dos homens são determinadas por suas ações, e elas próprias determinadas por escolhas, de modo que a maneira como se faz essas escolhas é tema crucial para ele. Assim como Hegel, ele considerava as decisões morais como uma escolha entre o hedonismo (que gratifica a si mesmo) e o ético. Mas enquanto Hegel julgou que essa escolha era condicionada em grande parte pelas condições históricas, Kierkegaard acredita que as escolhas morais são livres e, acima de tudo, subjetivas. É exclusivamente a nossa vontade que determina nosso julgamento, dizia o filósofo. Longe de ser uma razão para a felicidade, a liberdade total de escolha nos provoca um sentimento de angústia ou apreensão. O sentimento de angústia foi debatido por Kierkegaard na obra O conceito de angústia. Como exemplo, ele citou um homem no alto de um penhasco. Se esse homem olha para baixo, sente dois tipos de medo: o medo de cair e o medo causado pelo impulso de lançar-se ao vazio. Esse segundo tipo de medo, ou angústia, surge a partir da compreensão de que ele tem liberdade absoluta para escolher se pula ou não. Nesse sentido, o filósofo defendeu a ideia de que sentimos a mesma angústia em todas as nossas escolhas morais, quando compreendemos que temos a liberdade de tomar até as mais difíceis e terríveis decisões. Ele descreveu essa angústia como “a vertigem da liberdade”, e foi além ao explicar que, embora ela cause desespero, pode também nos livrar de respostas impensadas, pois nos torna mais conscientes das escolhas disponíveis. Na filosofia de Kierkeggard é importante percebermos a existência de uma reflexão voltada para temas existenciais e subjetivos, em que o filósofo chama atenção, com muita frequência, para o estado de autoconsciência, que se opõe ao estar “alheio de si”. Estar consciente é saber se orientar no caminho da própria interioridade, voltando-se sobre si mesmo. Na obra O desespero humano, Kierkegaard elabora o sentimento Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 103 do desespero sob o viés da consciência ou da ausência dela no processo reflexivo. Ou seja: Que importa então que o desesperado desconheça seu estado, se nem por isso deixa de desesperar? Se é desvario esse desespero, a ignorância ainda o torna maior. Isto é estar ao mesmo tempo desesperado e em erro. Essa ignorância está para o desespero, como está para a angústia, a angústia do nada espiritual reconhece-seprecisamente pela segurança vazia de espírito. No âmago, todavia, a angústia está presente, assim como o desespero. E quando suspende o encantamento das ilusões dos sentidos, já que a existência vacila, o desespero que se ocultava, surge (KIERKEGAARD, 2003, p. 45). Muitas das ideias de Kierkegaard foram rejeitadas por seus contemporâneos, mas se mostraram muito influentes nas gerações posteriores, que veremos adiante. O alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) foi, sem dúvida, um dos filósofos mais importantes da filosofia existencialista que teve continuidade depois de Kierkegaard. No limiar do pensamento contemporâneo, a filosofia enfrenta um desafio crucial: o questionamento do valor absoluto que se atribuía aos critérios que serviam como base à civilização ocidental. Com Nietzsche, tem início a exposição da fragilidade das certezas universais e seculares. A maior parte de suas obras foi escrita na forma de aforismas, marcada por sobreposição de observações acerca de diversos temas. Suas principais obras são: �Humano, demasiado humano. �O viandante e sua sombra. �Aurora. �A gaia da ciência. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação104 �Assim falou Zaratustra. � Para além do bem e do mal. �O caso Wagner. �Crepúsculo dos ídolos. �Genealogia da moral. �Ecce homo. �O anticristo. Temas como a moral, as ciências, a religião e as artes povoam suas reflexões. A simples enumeração desses temas indica que o objeto privilegiado da análise desse filósofo é, no conjunto, a nossa “civilização”. O objetivo de se compreender a “civilização”, no interior do campo filosófico, seria alcançar a “educação superior da humanidade”, tarefa que não se restringiria à mera pedagogia. Em Assim falou Zaratustra, Nietzsche mostra o percurso do Ocidente, que se resume em três períodos, indicados pela metamorfose do espírito. EXPLICANDO DIFERENTE+++ A civilização ocidental passou, primeiramente, pelo estágio “tu deves”, isto é, pelo primado da moral e da religião; a segunda etapa refere-se ao domínio do “eu quero”, que designa o fim do mundo do dever e o reconhecimento da vontade; e, finalmente, o “eu sou”, domínio que explica uma nova relação do indivíduo com sua existência. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 105 Nietzsche declara que é tarefa do indivíduo decidir o valor moral de seus atos e das ações dos outros. Ao questionarmos o valor dos valores aos quais estamos submetidos, devemos estar preparados para o desafio de viver por nossa conta e risco, sem mais tutela e o comando de algo superior. Logo, somos responsáveis pelo o que escolhemos. A filosofia nietzschiana para alguns estudiosos, está dividida em três fases. Na fase denominada “metafísica de artista”, Nietzsche assumiu um posicionamento veementemente contrário a uma educação controladora, disfarçada como propulsora da cultura, mas que na realidade, mantinha os jovens, tanto do ensino nos ginásios como na universidade, à mercê dos interesses estatais, científicos e comerciais. Entre outras análises, o filósofo criticou a tendência à ampliação máxima da cultura e a tendência ao enfraquecimento desta. Quanto à ampliação, o objetivo da educação seria conduzir o máximo de pessoas à cultura, mas com a intenção de estarem a serviço das ambições estatais. O máximo de conhecimento e cultura geraria uma grande produção de necessidades, assim, a utilidade seria o objetivo e fim da educação (NIETZSCHE, 2003). Quanto à redução da cultura, Nietzsche aponta, por exemplo, para a cultura da especialização impulsionada pela Ciência, como o trabalho do homem erudito, o especialista que se ocupa de tal modo com uma determinada área a ponto de se despreocupar com todas as outras (NIETZSCHE, 2003). O filósofo contesta a educação do seu tempo, que visava imprimir nos indivíduos as virtudes do rebanho: “quem aspira e quer promover a cultura de um povo deve aspirar a promover esta unidade suprema e trabalhar conjuntamente na aniquilação deste modelo moderno de formação.” (NIETZSCHE, 2003, p. 43). A crítica se dirige contra um tipo de vida igualitário, que por Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação106 força das ideias coletivistas, enfraquece o que é próprio tanto de uma nação, como dos homens particularmente. “O filósofo questiona a compreensão distorcida de cultura que domina na modernidade que, com a sua tendência à generalização, à abstração, à dependência do mercado onipotente, aniquila a singularidade de cada grupo, de cada nação, de cada povo.” (VIEIRA, 2011, p. 38) RESUMINDO Neste capítulo, abordamos as correntes: Positivismo, Utilitarismo, Pragmatismo, Materialismo, Fenomenologia e Existencialismo. Você aprendeu que a consciência está na origem do fato de ela ser sempre consciência de algo e que o sentimento de angústia aumenta nossa consciência e senso de responsabilidade social. UNIDADE 03 Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação108 Compreendendo as diferenças entre o senso comum e o conhecimento científico Ao término desta unidade você será capaz de entender a diferença entre o senso comum e o conhecimento científico. Isto será fundamental para o exercício de sua profissão docente. As pessoas que tentaram atuar na área sem a devida instrução tiveram problemas ao longo de sua carreira. E então? Motivado para desenvolver esta competência? Então vamos lá. Avante! OBJETIVO O senso comum e o conhecimento científico A busca pela compreensão do mundo e de seus fenômenos está presente a milhares de anos nas sociedades humanas. A cada problema enfrentado por essas sociedades, desde a necessidade de alimentar os integrantes de um grupo social até satisfazer as suas necessidades espirituais, suscitavam a busca por um conhecimento que atendesse as expectativas de superar esses problemas. Entretanto, no decorrer da maior parte da História humana, a busca pelo conhecimento estava delimitada pela crença de que todos os fenômenos existentes eram “naturais”, ou decorrentes da ação dos deuses, sem interferência dos seres humanos. Ainda na atualidade, muito dessa percepção está presente no que denominamos de senso comum. Apenas a partir do período do Renascimento (século XVI) e, principalmente, da emergência do Iluminismo (século XVIII) no continente europeu, é que os fenômenos da natureza e sociais começaram a ser problematizados, vistos como resultado de leis comprovadas empiricamente ou como inerentes da própria ação humana. Nesse contexto, emergiu o que denominamos de conhecimento científico, que procura explicar e analisar tanto Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 109 os fenômenos naturais como a vida de homens e mulheres em sociedade. O conhecimento como um atributo do ser humano Os seres humanos têm diversos comportamentos similares aos dos animais. Como qualquer espécie animal, são capazes de se reunir, conviver, competir, se acasalar e reproduzir, etc., sempre de acordo com o meio-ambiente em que vivem. Dessa forma, todas as espécies animais, incluindo o ser humano, desenvolvem estilos próprios de comportamento, permitindo que sobrevivam e se reproduzam, garantindo a existência de sua espécie no planeta. Dessa forma, homens e mulheres adquirem hábitos instintivos, ou seja, ações e reações que se desenvolvem de forma espontânea, como é o caso de andar, respirar e se alimentar. Além disso, homens e mulheres desenvolveram também genes hereditários presentes em seu corpo que os tornam capazes de sentir medo, prazer, frio e de expressar seus próprios sentimentos. Entretanto, os seres humanos desenvolveram habilidades que não estão presentes nas demais espécies animais, despertadas devido a diferentes fatores, como as dificuldades impostas pela própria natureza e as próprias particularidades da espécie humana. Assim, os grupos humanos foram capazes de adquirirem habilidades e comportamentos culturais, ou seja, um conjunto de crenças, valores,estudo das ciências sociais e suas metodologias de pesquisa......................................................................128 A História da Sociologia..................................................134 Os antecedentes intelectuais da Sociologia.....................135 As transformações sociais decorrentes da Revolução Industrial .......................................................................138 Os primórdios da Sociologia...........................................142 O Surgimento da Sociologia Educacional......................148 Émile Durkheim: o ideólogo da Educação.......................149 Karl Marx: a educação como meio de conformação e transformação social........................................................152 Max Weber e a educação como instrumento de “status social”.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .155 Antropologia e seu campo de estudo...................................157 O nascimento da Antropologia.........................................157 O que é Antropologia ............................................161 Campo de atuação da Antropologia.......................161 Antropologia e ciências afins................................163 Etnocentrismo.....................................................166 O que é etnocentrismo ?...................................................167 Relativismo cultural.........................................................170 Relativismo cultural: conceito e aplicabilidade.................170 Antropologia educacional.................................................174 Conexão entre Antropologia e Educação........................175 Antropologia educacional: suas origens...........................177 UNIDADE 4 Concepções e Contribuições da Filosofia da Educação...182 Filosofia da Educação e Formação Docente..................187 Filosofia da Educação e Educação Brasileira..................192 Filosofia da Educação, Contemporaneidade e Subjetividade.....................................................................202 Produção de Subjetividades.............................................210 Filosofia da Educação e Pós-Modernidade.....................217 REFERÊNCIAS...............................................................225 UNIDADE 01 Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação14 OBJETIVO Origens e Conceito da Filosofia Ao final do estudo deste capítulo, você será capaz de explicar o conceito da Filosofia e estabelecer relação com as suas origens. Origens da Filosofia Toda civilização que atinge certo grau de desenvolvimento sente-se naturalmente inclinada à prática da educação, da Filosofia, da ciência e das artes. No mundo ocidental, as bases que contribuíram para a origem e o desenvolvimento dessas grandes áreas de produção de conhecimento vieram da Grécia Antiga, especialmente a partir do século VI a.C. A Filosofia, a ciência e as artes, como as conhecemos, são invenções gregas. Para o filósofo Bertrand Russel: [...] o advento da civilização grega que produziu tal explosão de atividade intelectual é um dos acontecimentos mais importantes da história do mundo ocidental. No curto espaço de dois séculos os gregos produziram na arte, na literatura, na ciência e na Filosofia uma assombrosa torrente de obras-primas, que estabeleceram os padrões gerais da civilização ocidental. (2013, p. 14) O início da Filosofia se caracteriza pela compreensão de explicações racionais para a realidade humana. Os primeiros filósofos, chamados então de pré-socráticos, buscavam Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 15 explicações relacionadas ao mundo físico ou da natureza. Esses filósofos tinham pensado no dinamismo universal, como o nascer, crescer, morrer, como característica essencial do princípio (arché), que gera, sustenta e absorve todas as coisas. A Filosofia da natureza (physis) se caracteriza pela busca pela unidade e harmonia, inserindo na cultura grega a ideia do uno, do qual todas as coisas derivam. A civilização ocidental, que brotou das fontes gregas, se baseia numa tradição filosófica científica que começou com Tales de Mileto há 2.500 anos e nisso difere de outras grandes civilizações ocidentais. Conforme Russel, a noção predominante que percorre toda a Filosofia grega é o logos, termo que tem a conotação, entre outras, de “palavra” e “medida”. Portanto, o discurso filosófico e a investigação científica estão intimamente vinculados. “A doutrina ética surgida desse vínculo vê o bem no conhecimento, objeto de investigação desinteressada” (RUSSEL, 2013, p. 19). Tales de Mileto (624-546), considerado o primeiro filósofo pré-socrático, afirma que o princípio originário único de todas as coisas é a água. Esse filósofo estabeleceu um princípio a partir do qual trabalharia, formulando, para tanto, a seguinte pergunta: “Qual é a matéria-prima básica do cosmos”? A noção de que tudo no universo pode ser reduzido a uma única substância é a teoria do monismo, e Tales e seus seguidores foram os primeiros a propor isso dentro da Filosofia ocidental. Tales concluiu, portanto, que toda matéria, independentemente de suas aparentes propriedades, deve ser água em algum estágio de transformação. Essa intenção pode ser considerada a primeira tentativa de explicação para a origem da vida. Para Anaximandro (611-546), discípulo de Tales de Mileto e o primeiro cartógrafo grego, o infinito e o indeterminado seriam a origem de todas as coisas. Em outras Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação16 palavras, o ilimitado seria uma reserva infinita de material, que se estende em todas as direções. Dele surge o mundo e a ele retornará no final. Anaxímenes (586-525) admite que o ar, em função de sua grande mobilidade na natureza, seria o princípio de todas as coisas. As diferentes formas de matéria que encontramos à nossa volta surgem do ar, por meio de processos de condensação e rarefação. Para ele, o ar é a substância de que é feita a alma e, assim, mantém os seres vivos e o mundo. Contudo, Heráclito (535-470) problematiza essa questão ao afirmar que “tudo se move, nada permanece imóvel e fixo, tudo muda”. Esse elemento expressa de modo exemplar as características de mudança contínua, que ocorre no mundo físico. Enquanto outros filósofos procuravam explicações científicas para a natureza física do cosmos, Heráclito o entendia como governado por um logos divino, às vezes interpretado como “razão” ou “argumento”. O filósofo em questão considerava o logos uma lei universal, cósmica, que de acordo com a qual todas as coisas começam a existir e todos os elementos materiais do universo são mantidos em equilíbrio. Heráclito ainda sugeriu que o equilíbrio dos opostos – dia e noite, quente e frio, por exemplo – levava à unidade do universo. Tudo seria parte de um único e fundamental processo ou substância – o princípio central do monismo. Por outro lado, ele afirmou que uma tensão é constantemente gerada entre esses pares de opostos, de forma que tudo está em permanente estado de fluxo e mudança. E finalmente temos Demócrito (460-370) e Leucipo (início do século V a.C.), que desenvolveram a teoria dos átomos para explicar a composição de todas as coisas, ou seja, que tudo era composto de partículas minúsculas, indivisíveis e imutáveis. Eles afirmaram que um espaço vazio separa os Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 17 átomos, permitindolhes que se movam livremente. Ao se movimentarem, os átomos podem colidir uns com os outros, formando assim novas composições de átomos. Conhecida como atomismo, a teoria concebida por Demócrito e Leucipo ofereceu a primeira visão mecanicista completa do universo, sem qualquer recurso à noção de um ou mais deuses. Ela também identificou propriedades fundamentais da matéria, que se provaram importantes para o desenvolvimento das ciências físicas – particularmente a partirpadrões de comportamento, hábitos cotidianos e formas de organização do trabalho que se desenvolvem coletivamente, são transmitidos de geração em geração e se transformam conforme a passagem do tempo. Como um indivíduo que vive e pensa de acordo com a sua cultura, os seres humanos desenvolveram a capacidade de elaborar sistemas simbólicos necessários para se comunicarem entre si e transmitirem toda a sua bagagem de conhecimento por meio da socialização, que nada mais é do que o convívio entre os indivíduos em um grupo social. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação110 Mas, como podemos definir o conhecimento? O conhecimento pode ser definido como o conjunto de toda a prática adquirida, cuja memória e transmissão capacita o indivíduo a realizar as tarefas exigidas no seu cotidiano. Quando um indivíduo age de acordo com a sua experiência de vida, ele expressa a sua forma de conhecimento do mundo, aprendida em um contexto social, mas que é assimilada de forma diferente por cada ser humano. Nas mais variadas situações, os seres humanos aprendem conhecimentos uns com os outros. Figura 1 - Pai ensinando o filho a andar de bicicleta Fonte: Freepik Ao longo de sua história, os seres humanos desenvolveram diferentes formas de conhecimento. Entre elas, podemos citar o conhecimento religioso, relacionado à busca da compreensão do sentido da vida, das formas de encarar a inevitabilidade da morte e o que poderia ocorrer após ela, a crença em divindades superiores aos seres humanos que comandariam os fenômenos da natureza e da vida humana e da necessidade de seguir determinados procedimentos morais para conquistar a “salvação” após a morte, etc.; e o conhecimento filosófico, que assim como o conhecimento religioso, também busca uma compreensão do sentido da vida, mas de forma racional e lógica, apesar de não prescindir de uma verificação empírica, como ocorre com o conhecimento científico, cujas características veremos adiante. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 111 Além destes, também temos outras duas formas de conhecimento que norteiam a nossa visão de mundo, no caso o senso comum e o conhecimento científico, ambos presentes no dia a dia da maior parte das pessoas e que, muitas vezes, entram em conflito, embora estes também possam algumas vezes complementarem-se. Podemos definir religião (palavra originada do latim religio, cujo significado era “respeito pelo sagrado”, como um conjunto de crenças e práticas relacionadas à fé na existência de uma ou mais divindades, que determina os preceitos morais a serem seguidos por uma comunidade de seguidores, influenciando na visão de mundo. Diversas formas de práticas religiosas estão presentes em praticamente todas as civilizações humanas desde o início de sua História. Já filosofia (palavra originada do grego philossophia, que significa “amor ou amizade pela sabedoria) trabalha de forma racional e lógica questões importantes para o ser humano, como valores morais, estéticos, e do conhecimento em suas mais variadas vertentes, mas sem ter a pretensão de construir uma “verdade absoluta” sobre esses temas. A origem da filosofia remonta ao século VI a.C., na Grécia Antiga, quando alguns homens aspiraram construir um conhecimento que se distinguisse tanto da religião (mais precisamente, da mitologia) quanto do senso comum. Na realidade, no pensamento grego, ciência e filosofia eram duas instâncias que não se separavam. Apenas a partir do Renascimento, entre os séculos XVI e XVII, que a ciência passou a ter métodos e objetos de estudo específicos, diferenciando-se assim da filosofia. CURIOSIDADE Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação112 O senso comum O senso comum corresponde ao conhecimento espontâneo, aquele que é adquirido por meio das experiências cotidianas nas quais procura, autonomamente, resolver os dilemas de sua existência. Não é um processo que realiza individualmente, mas sim por meio da troca de informações com os indivíduos e instituições com quem convive. Tais conhecimentos também são adquiridos de forma hereditária por meio da família, que passa de geração para geração. Podemos delimitar as características principais do senso comum da seguinte forma: Ametódico e Assistemático: surge da tentativa dos seres humanos resolverem seus problemas da vida cotidiana, não se apresentando de forma sistemática, ou seja, organizada. O camponês aprende a cultivar a terra a partir das práticas de sua família, esse conhecimento é transmitido de pai para filho. Empírico: é baseado na experiência do dia a dia das pessoas, de sua própria vivência. Ingênuo: é um conhecimento acrítico, pois não se coloca como problema, mas sim como algo “natural”, espontâneo e desprovido de qualquer reflexão mais aprofundada.É construído a partir de uma observação que se prende apenas à aparência do fenômeno, sem aprofundar uma reflexão sobre as suas causas. Uma cozinheira sabe que, ao bater uma clara de ovo, ela ficará esbranquiçada e crescerá, mas desconhece o porquê e como ela fica dessa forma . Aparente: está preso ao que é observável a primeira vista, o que pode levar uma pessoa às conclusões equivocadas. Para quem observa o céu sem telescópio, o Sol parece que gira em torno da Terra, que aparentemente está estática, posicionada no centro do Universo. Até o século XVI, a Igreja Católica referenciava tal teoria a partir do senso comum das pessoas. Entretanto, o uso do telescópio e os estudos realizados por Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 113 Nicolau Copérnico (1473-1543) e Galileu Galilei (1564-1642) desmentiram tal tese de forma científica, sendo a primeira mostra da oposição entre senso comum e ciência. Fragmentário: não estabelece conexões entre conhecimentos que poderiam ser complementares, impedindo que o indivíduo tenha uma visão global de determinados fenômenos. O homem comum é incapaz de estabelecer uma relação entre a queda de um objeto com a lei da gravidade que rege o movimento dos corpos no planeta. Particular: parte do entendimento de um fenômeno específico para fazer generalizações com pretensões de universalidade. Ou seja, o que acontece com um indivíduo também acontece da mesma forma, para todos. Se uma pessoa passou mal após comer manga, logo todas as pessoas podem passar mal se comerem da mesma fruta. Subjetivo: depende de juízos individuais a respeito das coisas, muitas vezes baseado em emoções e valores morais de uma determinada coletividade e que geralmente não aceita opiniões contrárias, impedindo a consolidação de uma visão baseada no princípio da alteridade. O homem comum, geralmente, ao observar o comportamento de outros indivíduos originários de outras culturas tende a considerá-los estranhos, perigosos, atrasados, etc., pois só é capaz de julgar o outro a partir dos valores de sua própria cultura. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação114 Figura 2 - Para muitos, a crueldade cometida contra os escravos no Brasil do século XIX seria algo natural devido a suposta superioridade do europeu frente ao africano e seus descendentes. Fonte: Wikimedia Commons Devido a tais características, muitos consideram que o senso comum seria um conhecimento limitado, precário, distorcido e, algumas vezes, perverso. Por isso, muitos defendem que esse deve ser superado através das formas consideradas mais sofisticadas de conhecimento, como a filosofia e a ciência. Entretanto, outros acham que, ao desprezar o senso comum, boa parte da população estaria sujeita a tutela dos “indivíduos esclarecidos”, o que poderia estabelecer uma forma de dominação. O conhecimento científico Historicamente, o conhecimento científico é uma recente conquista da humanidade. Sua origem remonta ao século XVII, inicialmente a partir das descobertas e inovações do astrônomo italiano Galileu Galilei, tido como o criador do método científico moderno. Também foram importantesnesse Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 115 Fonte: Wikimedia Commons Figura 3 – Galileu Galilei O conhecimento científico caracteriza-se pela utilização de métodos rigorosos visando atingir um tipo sistemático de conhecimento, objetivo e universal, capaz de analisar o objeto de estudo, identificar a regularidade de um fenômeno permitindo prever acontecimentos e planejar a ação humana sobre a natureza. Entre as principais características do conhecimento científico, podemos citar as seguintes: processo as contribuições do filósofo e matemático francês René Descartes (1596-1650), criador do racionalismo cartesiano que pode ser sintetizado pela famosa frase: “penso, logo existo”, e pelo Iluminismo do século XVIII. Galileu Galilei foi o criador do moderno método científico, em meados do século XVII. Entretanto, o cientista italiano enfrentou perseguições promovidas pela Igreja Católica, que via em suas descobertas uma ameaça aos seus dogmas Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação116 Particular: há diversos campos delimitados de pesquisa, com seus próprios métodos que permitem um determinado campo tornar-se uma disciplina específica. No campo das ciências, nós temos diversas disciplinas, como a física, que estuda o movimento dos corpos; a química, cujo objeto é análise da transformação dos elementos presentes nos corpos, etc. Geral: as conclusões de uma pesquisa não são válidas apenas para os fenômenos observados nela, mas também para todos os outros com os quais se assemelham. Quando uma pesquisa afirma que “a água é uma substância composta de hidrogênio e oxigênio”, essa conclusão é válida para qualquer porção de água encontrada pelos seres humanos. Regular: os cientistas ocupam-se em tentar identificar a regularidade com que determinados fatos acontecem. Um astrônomo calcula a periodicidade em que ocorrem os eclipses solares e como esses interferem no planeta. Abstrato: O objeto de pesquisa geralmente é isolado para a realização do estudo, e as conclusões são utilizadas para a elaboração de leis gerais que analisam fenômenos similares. A partir da observação da queda de uma maçã, o físico inglês Isaac Newton (1643-1727) elaborou a teoria geral da gravidade. Objetivo: qualquer cientista pode chegar às mesmas conclusões, pois estas são construídas de forma racional e metódica, de forma distanciada que evita a subjetividade. Independente da opinião subjetiva do cientista, os movimentos dos astros podem ser explicados por meio de leis gerais e imutáveis, consolidada na comunidade científica. Linguagem Rigorosa: os diversos campos e áreas da ciência utilizam conceitos precisos com o intuito de evitar dúvidas e ambiguidades. Entretanto, é importante enfatizar que tais características correspondem às Ciências Exatas (matemática, física) e Naturais (biologia). Já as Ciências Humanas (história, geografia, Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 117 sociologia e filosofia) são mais permeáveis a algum grau de subjetividade do pesquisador que relativizam conclusões mais deterministas. É possível a convivência entre ciência e senso comum? A relação entre o conhecimento científico e o senso comum é objeto de vários debates. Podemos considerar que, ao longo da história, formaram-se dois grupos distintos. De um lado, aqueles que defendem que a Ciência é um conhecimento superior ao senso comum. Do outro, aqueles que acreditam na possibilidade de estabelecer uma relação entre cientificidade e senso comum, com um complementando o outro. A defesa da superioridade da Ciência sobre o senso comum surgiu com o Iluminismo europeu do século XVIII. Os intelectuais iluministas consideravam o senso comum um com um conhecimento irracional da realidade, geralmente manipulado pelos detentores do poder, na época a Monarquia Absolutista e a Igreja Católica. Já a Ciência, um conhecimento neutro, racional e lógico, desmascararia o caráter supersticioso do senso comum, possibilitando o progresso da humanidade. Tal entendimento ganhou força no século XIX, principalmente com a emergência do Positivismo, que defendia não apenas a superioridade da Ciência com relação aos demais tipos de conhecimento, mas também a considerava o único tipo de conhecimento válido e útil para a humanidade, sendo a única forma de investigar e conhecer a realidade e resolver todos os empecilhos que impediam a humanidade de conquistar o tão desejado progresso. O Positivismo foi uma corrente do pensamento filosófico criada pelo francês Augusto Comte (1798-1857), que defende a ideia de que apenas com a ciência a humanidade poderia Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação118 conquistar o progresso. Além disso, o positivismo defendia que os métodos de pesquisa científica presentes nas Ciências Exatas e Naturais deveriam ser usados para o estudo e análise dos fenômenos sociais. Entretanto, essa crença na infalibilidade da ciência começou a ser questionada no século XX. As duas guerras mundiais demonstraram que a ciência poderia, ao mesmo tempo, permitir à humanidade alcançar o progresso tecnológico, mas a um preço bem alto: a mortandade de milhões de pessoas, vítimas da utilização das inovações científica para a fabricação de armas com capacidade destrutiva cada vez maior. Além disso, muitos intelectuais passaram a valorizar a cultura popular, sendo boa parte dela embasada no senso comum, identificando no “culto à ciência” uma forma de impor o poder de um determinado grupo social sobre os demais. Segundo o sociólogo português Boaventura de Souza Santos, se a oposição entre ciência e senso comum era justificável nos séculos XVIII e XIX, na atualidade não fazem mais sentido, pois, ao contrário dos séculos precedentes, é possível popularizar o conhecimento científico, o que poderia fazer o senso comum tornar-se mais crítico e menos receptivo a crenças desprovidas de fundamentos racionais, lógicos e objetivos. Assim, ciência e senso comum se tornariam complementares, deixando de serem conhecimentos opostos. Boaventura de Souza Santos nasceu em Coimbra, Portugal, no ano de 1940. É especialista em Sociologia do Direito e grande defensor da relação complementar entre ciência e senso comum. Ativista, considera importante a atuação dos movimentos sociais para a superação das crises da atualidade. O sociólogo português Boaventura de Souza Santos defende que o conhecimento científico e o senso comum são complementares. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 119 Figura 4 – Boaventura de Souza Santos Fonte: Wikimedia Commons Quer se aprofundar neste tema? Recomendamos o acesso à seguinte fonte de consulta e aprofundamento: Livro: “Uma nova ciência para um novo senso comum” (LOPES, 2012), acessível pelo link http://books.scielo.org/id/qdy2w (Acesso em 18/05/2019). E então? Gostou do que lhe mostramos? Aprendeu mesmo tudinho? Agora, só para termos certeza de que você realmente entendeu o tema de estudo deste capítulo, vamos resumir tudo o que vimos. Você deve ter aprendido que o conhecimento é um atributo do ser humano, que o diferencia dos demais animais. Entre as diversas formas de conhecimento, podemos citar o religioso, o filosófico, o senso comum e o científico. Na SAIBA MAIS Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação120 atualidade, persiste o debate sobre a relação do senso comum com o pensamento científico. Para compreendermos tal debate, vimos inicialmente as características mais marcantes desses dois tipos de conhecimento, sendo que a Ciência costuma se sobrepor ao senso comum, pois o primeiro é um saber construído metodicamente, de forma rigorosa e crítica, enquanto o segundo é influenciado pela vivência do cotidiano, principalmente das classes populares. Nas últimas décadas, alguns intelectuais vão questionando esse tipo de hierarquização, defendendo a importância de estabelecer uma relação dialógica entre ciência e senso comumpara efetivar a popularização do conhecimento científico. As ciências sociais A sociedade tornou-se um objeto do conhecimento científico a partir do Renascimento (século XVI), com a emergência da Ciência Política, responsável pela desvinculação entre a política e a ética, comuns nas análises filosóficas sobre o tema. Em outras palavras, foi nesse contexto em que alguns intelectuais procuraram analisar um fenômeno social a partir da própria dinâmica das relações reais entre os homens, distanciando-se das especulações filosóficas ou das justificativas religiosas manipuladas pelo poder do alto clero e dos monarcas absolutistas. Entretanto, a solidificação das Ciências Sociais ocorreu apenas entre a virada do século XVIII e no decorrer do século XIX, quando as transformações sociais, políticas e econômicas decorrentes da crescente hegemonia do modo de produção capitalista no mundo, instigaram pesquisadores e intelectuais a analisarem cientificamente os aspectos que influenciavam tais mudanças. Influenciada pelas ciências já estabelecidas, como a física, a matemática e as Ciências Naturais, as Ciências Sociais adaptaram métodos dessas ciências para realizar as suas Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 121 pesquisas e análises. Entretanto, no decorrer do processo de desenvolvimento das Ciências Sociais, tal metodologia começou a ser questionada, abrindo o espaço para o desenvolvimento de métodos próprios para a análise da vida em sociedade. As áreas das ciências sociais As Ciências Sociais integram as Ciências Humanas, conjuntamente com disciplinas como História, Geografia e Filosofia. Assim como elas, as Ciências Sociais tem como objeto de estudo o ser humano, ou mais precisamente, a vida em sociedade, na qual podem ser observados os mais variados tipos de relações sociais. Tal estudo possibilitou que as Ciências Sociais fossem divididas em três áreas que, geralmente, realizam um intenso diálogo entre si, construindo uma forma de conhecimento interdisciplinar que tanto caracteriza essa ciência que estuda o homem em sociedade. As três áreas das Ciências Sociais são: Ciências Sociais, Sociologia e Antroplogia, conforme veremos em detalhes, a seguir: Ciência Política: tem como objeto de estudo e análise os sistemas políticos existentes nas diversas sociedades espalhadas pelo planeta. A origem da Ciência Política remonta o período do Renascimento Cultural na Europa Ocidental do século XVI, inicialmente com filósofos que, decepcionados com a opressão de regimes políticos tirânicos identificados com as monarquias absolutistas, escreveram livros de ficção que, partindo das instituições existentes, imaginavam uma sociedade alternativa na qual o autoritarismo monárquico dava lugar para um mundo sem tirania e desigualdades sociais. Entre as diversas obras fictícias da época, teve destaque o livro A Utopia, do filósofo inglês Thomas Morus. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação122 Thomas Morus (1478-1535) foi um filósofo e político inglês nascido em Londres. Foi autor de A Utopia, uma obra que usava a ficção para criticar o sistema político existente na época. Chegou a ser o principal conselheiro do rei Henrique VIII. Entretanto, opôs-se ao divórcio do casamento entre o monarca inglês e a rainha Catarina de Aragão e continuou fiel à Igreja Católica, recusando-se a jurar fidelidade à Igreja Anglicana, fundada por Henrique para desafiar o poder do papa na Inglaterra. Acabou preso a mando do rei, sendo condenado à morte e executado. Figura 5 –Thomas Morus Fonte: Wikimedia Commons Entretanto, coube ao filósofo e político italiano Nicolau Maquiavel a realizar as primeiras reflexões mais realistas sobre a política, contidas principalmente no livro O Príncipe, que tornou-se uma espécie de manual de ação política, colocando como principal objetivo dessa a conquista e a manutenção do Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 123 Fonte: Wikimedia Commons Figura 6 –Nicolau Maquiavel poder. Na obra, Maquiavel faz uma clara e precisa análise sobre as bases de sustentação do poder político, sendo ainda hoje considerada básica para o estudo e análise da política. Muitos estudiosos consideram O Príncipe como a obra que inaugurou a Ciência Política e uma das primeiras (senão a primeira) que analisa um fenômeno social através da própria realidade, afastando-se das questões relacionadas à ética (comuns nas reflexões sobre a política por parte dos filósofos greco-romanos) e à religião. Nicolau Maquiavel (1469-1527) foi um filósofo, político e diplomata nascido na cidade italiana de Florença. Suas principais obras, como O Príncipe, foram escritas na época em que estava exilado devido a divergências com Lourenço de Médici, o principal estadista e homem mais poderoso de Florença. É considerado o fundador da Ciência Política. Influenciada pelas ciências já estabelecidas, como a física, a matemática e as Ciências Naturais, as Ciências Sociais adaptaram métodos dessas ciências para realizar as suas pesquisas e análises. Entretanto, no decorrer do processo de desenvolvimento das Ciências Sociais, tal metodologia começou a ser questionada, abrindo o espaço para o desenvolvimento de métodos próprios para a análise da vida em sociedade. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação124 Sociologia: tem como objeto de estudo a sociabilidade (relações sociais) e as estruturas sociais. Etimologicamente, a palavra sociologia significa “estudo da sociedade” (socio – sociedade; logia – estudo). A sociologia emergiu como uma ciência voltada para o estudo da sociedade em meados do século XIX, inicialmente na França com o Positivismo. Na realidade, ela compunha uma das disciplinas do curso de filosofia positivista ministrados por Augusto Comte e tinha como objetivo analisar as transformações da sociedade naquele período visando auxiliar, de forma científica, as tomadas de decisão por parte do Estado que abrissem caminho para o progresso. Veremos a história da sociologia no próximo capítulo desta unidade. Augusto Comte (1798-1857) foi um filósofo francês fundador do Positivismo, cujo nome relaciona-se com o terceiro estágio no qual acreditava que a humanidade deveria chegar para alcançar o seu estágio de perfeição, o positivo. Considerava que a humanidade só poderia alcançar tal estágio se concentrasse esforços para conquistar o progresso tecnológico. Mas, como haveria grupos que fariam oposição a tal projeto, acreditava que apenas através da ordem, imposta pelos detentores “esclarecidos” do poder, seria possível alcançar o progresso desejado. Muitos estudiosos atribuem a Comte a condição de criador da Sociologia, inicialmente uma das disciplinas da filosofia positiva, cuja função era estudar cientificamente a sociedade com o objetivo de identificar as “leis” que a regeriam. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 125 Figura 7 –Augusto Comte Fonte: ©Jean-Pierre Dalbéra from Paris, France / Wikimedia Commons Antropologia: a partir da etimologia da palavra (antro – homem; logos – estudo), podemos definir a antropologia como o estudo do homem, ou tudo o que se refere ao humano. Como definiram Hoebel e Frost (1981), a antropologia é “a ciência da humanidade e da cultura”. A partir de tal conceituação, a antropologia é uma disciplina que tem como objetivo dar conta de todos os aspectos referentes às sociedades humanas que não são nem biológicos, nem naturais, sendo transmitidos por meio da linguagem que constitui o seu universo simbólico. Dessa forma, a antropologia considera que a diversidade das sociedades humanas podem ser explicadas por meio da cultura, entendida como o conjunto de valores e práticas aprendidos na convivência social, cuja configuração ocorre a partir das escolhas e experiências históricas vivenciadas pelas diversas comunidades, povos e civilizações. As origens da Antropologia moderna remontam à Inglaterrada segunda metade do século XIX. Em um contexto Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação126 marcado pelo neocolonialismo, no qual as potências imperialistas europeias disputaram o domínio de diversas regiões da África e da Ásia, a disciplina emergiu com o objetivo de estudar e analisar os hábitos culturais dos povos não-europeus por meio de uma visão etnocêntrica, na qual a cultura europeia era considerada “superior” as culturas “primitivas” e “selvagens” dos povos do continente africano e asiático. Tal perspectiva foi fundamentada a partir do conceito de cultura definido pelo antropólogo britânico Edward Tylor. Influenciado pelo positivismo e pelo evolucionismo darwinista, Tylor acreditava que o destino da humanidade era o progresso, mas esse só seria alcançado pelas civilizações que se mostrassem mais “aptas” para o desenvolvimento industrial, sendo elas as “vencedoras” dessa seleção natural. Mas, se tais ideias são questionáveis na atualidade, o antropólogo britânico teve o mérito de conceber a cultura como um conjunto de crenças, arte, moral, leis, costumes e qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem em sua convivência na sociedade. Edward Tylor (1832-1917) foi um antropólogo britânico cuja principal obra foi Cultura Primitiva, lançada em 1871, onde estabeleceu o conceito moderno de cultura, que influencia a antropologia até os dias atuais. Entretanto, ele concebia as diferenças culturais como resultante dos diferentes estágios evolutivos das civilizações, considerando a civilização europeia superior às demais, sendo um “espelho” de como as demais civilizações deveriam ser no futuro. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 127 Figura 4 –Edward Tylor Fonte: ©Wikimedia Commons O neocolonialismo foi uma nova fase do avanço colonial das grandes potências europeias (Grã-Bretanha, Alemanha e França), acrescidas de países industrializados emergentes como os Estados Unidos e o Japão, que estabeleceram colônias na África, Ásia e Oceania, com o objetivo de conquistar mercados de matéria-prima para abastecerem as suas indústrias e consumidores para os seus produtos industrializados. O auge desse movimento ocorreu entre os anos de 1870 e 1914, sendo uma das causas da I Guerra Mundial (1914-1918). Nessa época, alguns estudos antropológicos, de viés evolucionista, serviram como base ideológica para justificar o avanço imperialista sobre tais continentes. A antropologia evolucionista justificava a exploração e o domínio dos povos africanos e afrodescendentes pela civilização europeia. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação128 Figura 8 – Exploração e domínio dos povos africanos Fonte: ©Wikimedia Commons Os objetos de estudo das ciências sociais e suas metodologias de pesquisa Na área das Ciências Sociais existem inúmeros conceitos, interpretações, análises e referenciais teóricos instrumentalizados pelos pesquisadores para a análise de seus objetos de pesquisa. Os cientistas sociais propõem-se estudar realidades aparentes que, para uma compreensão mais aprofundada, devem ser inseridos em um contexto social mais amplo. Assim, o conhecimento construído pelo cientista social é resultado da relação dialética entre as mais variadas formas que os fenômenos sociais se apresentam na sociedade e a percepção individual do pesquisador, composta pelo seu capital cultural, visão de mundo, ideologia, entre outros aspectos. O cientista social delimita o seu objeto de pesquisa a partir dos seus próprios valores e concepções que delimitam as suas escolhas e problematizações. A metodologia, as hipóteses e os Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 129 objetivos da pesquisa são escolhas individuais do pesquisador, influenciadas pelo contexto social no qual está inserido, sendo essas compostas tanto por indagações presentes na sua própria vivência quanto por temas relevantes para a comunidade no qual está inserido. Em outras palavras, é o próprio tempo presente que se impõe tanto como critério como objeto da reflexão do cientista social, e a problemática, as hipóteses e possibilidades de interpretação estão diretamente relacionadas com o universo cultural no qual o cientista social está inserido. Assim, a escolha do pesquisador em estudar um aspecto da realidade social (e não outro) será feita a partir da perspectiva histórica do seu próprio tempo e do lugar no qual está inserido na sociedade. Atualmente, há diversos temas relevantes pesquisados pelas Ciências Sociais relacionados diretamente à sua vida cotidiana, como a criminalidade, as questões de gênero, a sociabilidade, a juventude, o envelhecimento, a violência doméstica, a religiosidade, a saúde e a afetividade. E as análises dessas diversas temáticas servem de subsídio para a elaboração e planejamento de políticas públicas por parte do Estado, além de instigarem debates na sociedade por meio dos diversos meios de comunicação utilizados para a divulgação das pesquisas acadêmicas, podendo influenciar o senso comum, tornando-o mais crítico. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação130 Podemos citar como exemplo de uma pesquisa que procura cumprir a sua função social, Juventude, juventudes: o que une e o que separa, publicada em 2006 pela UNESCO (órgão das Nações Unidas dedicado a questões relacionadas à educação e à cultura).Ela ocorreu por meio da participação de dez mil jovens brasileiros de 15 a 29 anos, cujas informações foram utilizadas para elaborar questões, hipóteses e análises relacionadas à gênero, escolaridade, região e moradia. A pesquisa tinha como objetivo elaborar políticas públicas relacionadas à juventude a partir de temas como inclusão digital, religiosidade, lazer, sexualidade e trabalho. Além disso, a pesquisa, disponibilizada para o público, foi importante para alguns jovens analisarem criticamente o seu próprio comportamento e experiência de vida. Para maiores informações, ver http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/about- this-office/unesco-resources-in-brazil/studies-and-evaluations/ violence/youth-in-brazil/ Quanto às metodologias de pesquisa em Ciências Sociais existem dois tipos de abordagens: A Pesquisa Quantitativa: tem como base a análise estatística, utilizando gráficos, levantamentos estatísticos, porcentagens, entre outros instrumentos matemáticos para analisar tendências de comportamento, intenções de voto, opiniões, etc., da sociedade. Na pesquisa quantitativa, é necessário selecionar uma amostra de um determinado grupo social (ou seja, um percentual de indivíduos a serem entrevistados, cujo recorte deve ser elaborado visando representar, em escala menor, as principais características da totalidade dos indivíduos do grupo). SAIBA MAIS Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 131 A opção pelo método quantitativo de pesquisa exige que seja utilizado um questionário como principal instrumento do pesquisador, que deve ser elaborado com questões e alternativas de respostas objetivas. [[Exemplo]]: Na Sociologia, é considerada uma obra pioneira e exemplar quanto a utilização do método quantitativo de pesquisa a obra do sociólogo francês Émile Durkheim, O Suicídio, publicado em 1897. O autor utilizou dados estatísticos sobre o número de suicídios em vários países europeus durante um ano, comparou-as com o número total de habitantes estabelecendo uma taxa anual de suicídio para cada 100 mil habitantes. Por meio desses dados, Durkheim chegou a conclusão de que o número de suicídios aumentam nos anos de crise econômica, comprovando a tese defendida por ele de que o suicídio é um fenômeno social decorrente da falta de normas sociais suficientes para evitar um mal-estar insuportável ao indivíduo em um contexto marcado pela falta de emprego e, consequentemente, dinheiro para a subsistência. A Pesquisa Qualitativa: a principal característica da pesquisa qualitativa é o contato direto e pessoal do pesquisadorcom a comunidade estudada, um método utilizado inicialmente pela antropologia que acabou sendo assimilado pelas demais Ciências Sociais. Dentre as diversas técnicas, destacamos a observação participante, na qual o pesquisador procura o maior e mais próximo contato possível com o grupo social a ser pesquisado. Por meio da inserção do pesquisador ao contexto social objeto da pesquisa, torna-se possível para o pesquisador identificar as diversas maneiras de agir, sentir e pensar daquele grupo social. Muitas vezes, chega-se ao ponto do pesquisador assimilar os hábitos socioculturais daquele grupo social, afastando-se de uma visão etnocêntrica preconcebida e, muitas vezes, preconceituosa e adotando uma perspectiva de alteridade diante do objeto pesquisado. Além disso, a convivência próxima do pesquisador geralmente proporciona que ele, com o tempo, seja recebido com naturalidade pela comunidade, facilitando Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação132 ainda mais o processo de pesquisa. Para utilizar tal método de pesquisa, o pesquisador deve se preparar e adotar alguns procedimentos, como se preparar teoricamente para ter a percepção do que realmente irá observar e elaborar hipóteses referentes a possível conclusões que ele pode chegar no final da pesquisa. Sem tal preparo, a probabilidade da pesquisa mostrar-se insuficiente e infrutífera é enorme. Outro procedimento básico para a realização de uma pesquisa qualitativa é a utilização de um diário de campo, onde o pesquisador irá anotar todas as experiências e impressões adquiridas no processo de convivência com o grupo social pesquisado. Tais anotações servem como autêntica matéria- prima para a realização da análise do pesquisador. Para a realização de uma pesquisa qualitativa sobre a relação dos jovens com a política, o pesquisador deve inicialmente fazer um recorte no qual define o campo a ser pesquisado (o local da pesquisa, que poderia ser um shopping center ou a saída de uma escola) e se haverá mais de um campo onde os dados serão levantados (importante se o pesquisador quiser analisar as diferenças de opinião a partir das perspectivas de classe social, faixa etária, etnia, etc.). Entretanto, não se deve iniciar a pesquisa sem antes estabelecer as hipóteses e os objetivos que o pesquisador deseja alcançar. É apenas no final da pesquisa, e não antes, que o pesquisador terá a certeza de que as hipóteses e os objetivos estabelecidos foram confirmados e alcançados. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 133 Figura 6 – Pesquisas em Ciências Sociais Fonte: Pixabay Quer se aprofundar neste tema? Leia o artigo: “Aprendendo a entrevistar: como fazer entrevistas em Ciências Sociais” (LOPES, 2012), acessível pelo link https://periodicos.ufsc.br/ index.php/emtese/article/view/18027/16976 E então? Gostou do que lhe mostramos? Aprendeu mesmo tudinho? Agora, só para termos certeza de que você realmente entendeu o tema de estudo deste capítulo, vamos resumir tudo o que vimos. Você viu que as Ciências Sociais originou- se no período do Renascimento Cultural e Artístico europeu (século XVI), mas que ganhou um impulso, principalmente, em um contexto marcado por intensas transformações sociais decorrentes do avanço do capitalismo industrial (século XIX). As Ciências Sociais são compostas por três áreas: a Ciência Política (cujo objeto de pesquisa são as relações, as estruturas e as instituições políticas), a Sociologia (que analisa a vida em sociedade) e a Antropologia (estuda os aspectos culturais dos mais variados grupos sociais). Na atualidade, as Ciências SAIBA MAIS Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação134 Sociais desenvolvem pesquisas nos mais variados temas considerados relevantes para a vida cotidiana, como questões evolvendo as relações entre as classes sociais, gênero, etnias, violência, etc., sendo que boa parte destas servem como subsídio para o planejamento de políticas públicas. Tais pesquisas são desenvolvidas por meio de dois tipos de métodos: o quantitativo (levantamento de dados estatísticos) e qualitativo (pesquisa de campo). Mas, independente da metodologia adotada, o que prevalece nas Ciências Sociais é o rigor com o qual as pesquisas devem ser desenvolvidas, visando atender as suas expectativas. A História da Sociologia Nesse item você verá o contexto histórico no qual o desenvolvimento do conhecimento sociológico está inserido. Isto será fundamental para o exercício de sua profissão docente. As pessoas que tentaram atuar na área sem a devida instrução tiveram problemas ao longo de sua carreira. E então? Motivado para desenvolver esta competência? Então vamos lá. Avante! Reflexões sobre a vida social são tão antigas quanto a própria humanidade. Entretanto, a Sociologia, como uma área delimitada do conhecimento científico, só emergiu na Europa de meados do século XIX. Para compreender esse processo, é necessário entender o amplo quadro de mudanças econômicas, políticas e sociais que ocorreram no continente europeu, com implicações em todo planeta, a partir do século XVI, e as correntes de pensamento filosófico que se tornaram a base ideológica da modernidade – o racionalismo, o empirismo e o Iluminismo. Nesse período, a Europa passou por um contexto marcado pela instabilidade, representada nas diversas formas de crises (econômica, social, cultural, religiosa e moral). Foi em meio a essa turbulência que surgiu a Sociologia, um modo de interpretar o “caos” vivenciado por uma sociedade em constante processo de transformação. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 135 Os antecedentes intelectuais da Sociologia Até o século XVIII, a maioria dos campos de conhecimento eram considerados integrantes dos grandes sistemas filosóficos, uma tradição que vinha desde a Antiguidade greco-romana. A constituição do atual conceito de ciência e da constituição de disciplinas específicas do conhecimento ocorreram em um contexto marcado por intensas transformações vivenciadas na Europa que contribuíram para mudar essa concepção de longa duração. Um dos momentos importantes de tal processo foi a Reforma protestante, iniciada no século XVI, pois tal movimento contestou a autoridade da Igreja Católica que monopolizava a interpretação dos textos sagrados e a absolvição dos pecados dos fiéis. Na realidade, o movimento iniciado pelo monge agostiniano alemão Martinho Lutero deslocou para o indivíduo a responsabilidade pelos seus próprios atos e por sua consciência diante deles, sendo um aspecto importante para a disseminação do individualismo e da concepção de que o destino do homem depende de si mesmo, e não da “vontade divina” ou das “forças da natureza”. Martinho Lutero (1483-1546) foi um monge agostiniano alemão que se opôs às práticas e dogmas da Igreja Católica de sua época, condenando principalmente a venda de indulgências, ou seja, a compra do perdão dos pecados (que, segundo a Igreja, poderia ser concedido pelo clero católico) por parte de homens ricos arrependidos de seus atos. Lutero foi o precursor do princípio de que a fé em Deus é manifestada de forma individual, sendo o próprio indivíduo responsável tanto por suas atitudes como pelo verdadeiro arrependimento dos pecados cometidos. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação136 Figura 10 –Martinho Lutero Fonte: ©Lucas Cranach the Elder (1472-1553) / Wikimedia Commons Dessa forma, fortaleceu-se concepções que começaram a ter relevância entre os intelectuais do Renascimento cultural e artístico, cujo processo histórico ocorria quase concomitantemente com o início da Reforma protestante. Emergia assim o racionalismo, a crença de que a razão é capaz de captar as dinâmicas existentes no mundo material, abalando as velhas crenças que sustentavam o poder da Igreja Católica e das monarquias absolutistas europeias. Com essa base, tornou- se possível o surgimento do empirismo e do racionalismocartesiano, além do avanço das ciências experimentais. Com isso, alicerçavam-se os princípios da ciência moderna. Nesse processo, no século XVIII, tivemos o surgimento do movimento filosófico conhecido como Iluminismo, sendo um de seus princípios a confiança na razão e no conhecimento como impulsionadores do progresso da humanidade, possibilitando a conquista definitiva da natureza pelo homem, essencial para a conquista da felicidade universal e terrena. Tal perspectiva possibilitou um enorme impulso para a investigação e Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 137 interpretação da realidade social. É importante ressaltar que o Iluminismo tornou-se a base ideológica da burguesia europeia, que acreditava no racionalismo como instrumento para trazer ordem ao mundo, superando a desordem e o atraso resultantes da dominação do Antigo Regime, sustentado pelas elites decadentes compostas pelo alto clero católico e pela nobreza. Para os iluministas e burgueses que apoiavam o movimento, seria possível, com a vitória dos valores iluministas, educar as massas (cuja maioria era relegada pela antiga ordem ao analfabetismo) e tornar todos os seres humanos, independente da classe social, bons e iguais. A busca por explicações realistas, racionais e concretas sobre a origem, a natureza e os possíveis rumos de uma sociedade em constante processo de transformação fez com que temas como a liberdade, a moral, as leis, o direito, as obrigações, a autoridade e a desigualdade social fossem importantes objetos de pesquisa por parte de diversos filósofos iluministas que tornaram-se precursores do pensamento sociológico. Entre os filósofos iluministas, podemos citar dois que influenciaram o conhecimento sociológico: o Barão de Montesquieu (1689-1755), que utilizou dos seus próprios conhecimentos históricos e de dados empíricos para fundamentar a validade de suas teses sobre os sistemas políticos e a necessidade de dividir os poderes para aplacar o poder absoluto dos reis, o que resultou na teoria da divisão dos poderes em três instâncias (Executivo, Legislativo e Judiciário); Jeân-Jacques Rousseau (1712-1778), pioneiro na análise das causas da desigualdade social presentes na obra Discurso sobre a desigualdade, na qual atribui ao conceito de propriedade privada, a causa principal das diferenciações entre as classes sociais. Rousseau, ao abordar tal temática, influenciou posteriormente a Sociologia. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação138 Figura 2 – Jean-Jacques Rousseau Fonte: ©Wikimedia Commons As transformações sociais decorrentes da Revolução Industrial A emergência do conhecimento científico foi importante para a introdução de diversas inovações tecnológicas, inicialmente na Grã-Bretanha, que estimularam e impulsionaram importantes transformações sociais em um processo que ficou conhecido como Revolução Industrial, que instigaram o surgimento da Sociologia, cuja proposta inicial era, justamente, analisar e compreender cientificamente tais transformações. No decorrer do século XVIII, diversas invenções impulsionaram a produção da indústria manufatureira britânica, que desde meados do século XVII passava por um processo de Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 139 crescimento decorrente da conquista do monopólio do comércio internacional de tecidos por parte da Grã-Bretanha. Entre estas invenções, podemos citar a lançadeira, construída por John Kay em 1733, o tear mecânico, inventado por John Kay e Lewis Paul em 1738, a máquina a vapor, criado por James Watt entre os anos de 1761 e 1768. Inicialmente, tais inovações multiplicaram a capacidade de produção da indústria têxtil britânica, sendo que essas seriam adaptadas para outros ramos da produção industrial e, em meados do século XIX, para os meios de transporte e comunicação, possibilitando que o comércio se tornasse cada vez mais globalizado, importante para o avanço do modo de produção capitalista, sob a hegemonia do capital industrial, por todo o planeta. Esse avanço do modo de produção capitalista desestruturou a ordem social tradicional da Europa Ocidental de forma rápida, profunda e intensa, influenciando transformações nas bases da vida cotidiana, material de todos os indivíduos em todos os seus aspectos, abalando crenças e princípios morais, religiosos, jurídicos e filosóficos que sustentavam o Antigo Regime. O feudalismo e sua ordem social baseada no princípio da ordem “natural e divina” presente nos estamentos (a forma como a sociedade francesa era dividida hierarquicamente desde a Idade Média), nos quais estavam garantidos os privilégios da nobreza e do alto clero que mantinham sua posição por meio do seu monopólio do exercício do poder político (no qual a emergente burguesia estava excluída) e na servidão dos camponeses, vigente desde o período medieval, desabou rapidamente com as revoluções inglesas de meados do século XVII e, principalmente, com a Revolução Francesa, ideologicamente influenciada pelo Iluminismo, no final do século XVIII, sendo tal movimento propagado por toda a Europa através das guerras napoleônicas (1799-1815). Uma nova ordem social emergiu a partir das ruínas do feudalismo. Nas primeiras décadas do século XIX, já eram perceptíveis as mudanças na paisagem das cidades europeias. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação140 Surgiram grandes fábricas cujas chaminés começaram a despejar fumaça pelos céus e que empregava uma mão de obra relegada ao desalento com o desaparecimento das antigas propriedades comunais, obrigadas a abandonar o campo e migrar para as cidades para garantir a sua sobrevivência, além de serem obrigados a trabalhar nas fábricas para evitar punições severas previstas por leis redigidas pela nova classe dominante: a burguesia. Assim, nas grandes cidades europeias, enquanto as famílias burguesas começavam a ostentar o seu poder e riqueza em mansões e palacetes construídos nas partes centrais de Londres e Paris, uma nova classe, o proletariado (também conhecido como classe operária ou classe trabalhadora) começava a morar em bairros periféricos, desprovidos de higiene e saneamento básico, tornando-os vulneráveis a todo tipo de doenças. Além disso, a classe operária estava sujeita a fome devido aos baixos salários pagos pelos proprietários das fábricas, além de serem obrigados a exercerem longas jornadas de trabalho em um ambiente insalubre, que chegava a 12 e até 16 horas diárias. A tais precárias condições de trabalho estavam sujeitos não apenas os homens, mas também mulheres e crianças, que recebiam salários menores do que os já baixos salários dos homens. Muitas vezes, todos os membros de uma família proletária empregavam-se nas fábricas para obterem rendimentos que garantissem o mínimo para a sua sobrevivência. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 141 Os efeitos contraditórios das transformações sociais vivenciadas na Europa no decorrer do século XIX podem ser percebidas a partir de alguns dados referentes à expectativa média de vida na França. Enquanto apenas 7% da população tinha a expectativa de chegar aos 60 anos, nas primeiras décadas do século XIX, 44% da população tinha a expectativa de chegar, apenas, aos 20 anos. Figura 3 – A casa de uma família proletária Fonte: ©David Henry Friston, fl. 1850s to late 1880s / Wikimedia Commons Houve também mudanças profundas nos aspectos culturais da emergente sociedade burguesa europeia do século XIX. O antigo patriarcalismo começou a ser questionado pelas mulheres (inicialmente nas famílias burguesas), que começaram SAIBA MAIS Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação142 a reivindicar por direitos sociais mais igualitários e justos com relação aos homens. Além disso, as crianças foram reconhecidas como seres humanos em formação, e não mais como adultos em miniaturas que deveriam auxiliar os de fato adultos nas tarefas cotidianas,algo que impulsionou mudanças profundas na área da educação. Há que se destacar também que, com relação aos casamentos, os indivíduos das elites foram conquistando autonomia para tentarem concretizar o seu imaginário de “amor romântico”, ou seja, de contraírem matrimônio com as pessoas que elas escolhessem e pelas quais teriam afeto, não aceitando mais passivamente a velha tradição dos casamentos combinados pelos pais visando à manutenção das riquezas e do status social. Foi nesse contexto de intensas transformações sociais nas mais variadas áreas da vida cotidiana que impulsionaram estudos e análises que permitiram o surgimento da ciência cujo objeto é, justamente, as relações sociais e as transformações decorrentes destas, no caso a Sociologia. Os primórdios da Sociologia As origens da Sociologia teve ligação direta com o ativismo político de Claude Henri de Rouvroy, o conde de Saint- Simon. Ele foi um dos primeiros a fundamentar uma análise da sociedade a partir dos conflitos entre as classes sociais. Uma de suas principais obras, Parábola, publicada em 1819, apontava que a nova sociedade moderna (capitalista) na França era marcada pelos conflitos entre o que denominava de “classe industrial”, que segundo o autor era formada pela junção entre a burguesia industrial e a classe operária, que seriam o conjunto de produtores; e a elite ociosa, formada pela nobreza, alto clero e a alta burocracia estatal. Para Saint Simon, a “classe industrial” representava o ”progresso”, enquanto a elite ociosa era o atraso e o retrocesso, uma forte barreira para o desenvolvimento de seu país. Para ele, o destino já havia reservado a vitória para Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 143 a “classe industrial”, que voltaria toda a produção industrial e agrária para a satisfação das necessidades de todos os membros da sociedade. Assim, todos deveriam cooperar para a felicidade social, enquanto os ociosos deveriam ser excluídos da sociedade. Mais tarde, Saint Simon reviu algumas de suas posições, sendo uma delas a fé na burguesia industrial, rebaixada para a classe ociosa, enquanto apenas os trabalhadores teriam condições de assegurar o progresso social. Tal concepção era a base, segundo Saint Simon, de uma nova ciência: a Fisiologia Social. O objeto de estudo deveria ser a ação humana que incessantemente transforma o meio social, enquanto a metodologia de pesquisa deveria ser o método positivo, trazido das Ciências Físicas e Naturais. A base da sociedade seria a produção material, a divisão do trabalho e a propriedade privada, enquanto as vidas individuais corresponderiam a meras engrenagens cuja função era contribuir para o progresso da humanidade, A Fisiologia Social de Saint-Simon, portanto, era uma ciência social “positiva”, cuja principal tarefa seria revelar as leis do desenvolvimento da história da sociedade, algo de suma importância para organizar racionalmente a vida social. Claude Henri de Rouvroy, mais conhecido como conde de Saint-Simon (1760-1825), foi um filósofo e economista francês socialista que teve grande atuação na cena política francesa por um longo período que vai da Revolução Francesa até a restauração Bourbon. Sua obra influenciou duas correntes antagônicas do conhecimento social: o positivismo e o materialismo histórico. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação144 Figura 4 – O conde de Saint-Simon Fonte: Wikimedia Commons A Fisiologia Social de Saint-Simon foi a base do que seria a Sociologia, termo utilizado pela primeira vez por Augusto Comte para designar a disciplina do positivismo dedicada ao estudo da sociedade. Na realidade, Comte havia sido secretário de Saint-Simon e, posteriormente, acabou usando muitas de suas ideias para elaborar os fundamentos da filosofia positivista. Entretanto, Comte deu um viés mais conservador aos conceitos elaborados inicialmente por Saint-Simon. Isso foi decorrente do fato de que o criador do positivismo considerava que a sociedade de sua época vivia um tempo turbulento de caos e desordem que, fatalmente, impediriam o progresso da sociedade francesa. Assim, fazia-se necessária uma autoridade que defendesse o coletivo, que colocasse seus interesses acima do indivíduo e de seus desejos considerados mesquinhos. Em outras palavras, que uma autoridade disposta a impor a “ordem” em prol do “progresso”. A sociologia de cunho positivista considerava que as diferentes e diversas sociedades poderiam ser classificadas em estágios diferentes de progresso, com algumas delas sobressaindo- se às outras. Tais aspectos se alargaram e reforçaram por meio Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 145 Fonte: Wikimedia Commons Figura 5 – Herbert Spencer da influência do evolucionismo, baseado nas descobertas do britânico Charles Darwin e sua Teoria das Espécies, que defende a existência de estágios diferentes de desenvolvimento dos animais, com os mais “aptos” sobrevivendo às dificuldades impostas pela natureza, enquanto os demais encontravam maiores barreiras para sobreviverem em um ambiente hostil. Um dos sociólogos que ficaram marcados pela miscigenação entre positivismo e evolucionismo foi o britânico Herbert Spencer, considerado um dos principais difusores do chamado darwinismo social que tornou-se base para justificar injustiças e barbaridades sobre os povos da Ásia e da África cometidas descaradamente pelas grandes potências industriais. Herbert Spencer (1820-1903), sociólogo britânico influenciado pelo positivismo conteano e pela teoria evolucionista darwinista, mesclando as duas escolas em uma teoria social que teve relevância no século XIX, denominada “darwinismo social”, usado muitas vezes para justificar a política imperialista das nações industrializadas. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação146 A partir do final da década de 1840, em um contexto marcado pelas revoluções sociais que ocorreram em boa parte da Europa em 1848, uma nova abordagem de análise da sociedade, mais crítica quanto a realidade social do capitalismo industrial e reivindicando o status de ciência, emergiu dos trabalhos conjunto dos filósofos alemães Karl Marx e Friedrich Engels, conhecido como materialismo histórico dialético. Tal teoria é considerada pelos sociólogos como uma das abordagens clássicas da disciplina, ao lado do funcionalismo e do método compreensivo. Veremos mais detalhadamente o materialismo histórico e as demais teorias clássicas da Sociologia mais adiante. Entre o final do século XIX e as primeiras décadas do XX, a Sociologia tornou-se uma disciplina acadêmica, conquistando oficialmente a condição de conhecimento científico. Nesse processo, foram importantes as contribuições do sociólogo francês Émile Durkheim, seguidor do positivismo e fundador da Escola Funcionalista, e do alemão Max Weber, criador do Método Compreensivo, que conjuntamente com o Marxismo (como também é conhecido o materialismo histórico) constituem as teorias clássicas da Sociologia. No decorrer do século XX e início do XXI, a Sociologia vem contribuindo para a compreensão e análise de diversas questões complexas que estão presentes na sociedade moderna. Mas, tais contribuições não se restringem a teoria, pois as hipóteses e considerações produzidas em inúmeros trabalhos auxiliam diversos agentes sociais no planejamento de suas ações e na busca de resoluções e compromissos visando a construção de uma sociedade mais justa e solidária. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 147 Quer se aprofundar neste tema? Leia o artigo: “O futuro das Ciências Sociais – A sociologia em questão” (LOPES, 2012), acessível pelo link http:// http://www.scielo.mec.pt/pdf/spp/n48/ n48a03.pdf E então? Gostou do que lhe mostramos? Aprendeu mesmo tudinho? Agora, só para termos certeza de que você realmente entendeu o tema de estudo deste capítulo, vamos resumir tudo o que vimos. Você viu alguns aspectos dahistória da Sociologia. Vimos que o conhecimento científico sobre a sociedade passa a ser buscado em um contexto de intensas transformações econômicas, sociais e culturas na Europa e, posteriormente, no mundo, decorrente da expansão do modo de produção capitalista. A partir do século XVIII, com o Iluminismo, alguns pensadores como Montesquieu e Jeân-Jacques Rousseau fizeram reflexões sobre a sociedade europeia relacionadas à concentração do poder nas mãos da monarquia e as causas da desigualdade social. Já no início do século XIX, com a Revolução Industrial, a constituição da ordem social burguesa sob as ruínas do mundo feudal estimularam intelectuais como Saint-Simon a refletirem sobre o contexto social visando encontrar caminhos para construir uma sociedade mais condizente com a modernidade que emergia no horizonte. As ideias de Saint-Simon influenciaram diversas teorias sociológicas, como o positivismo e o materialismo histórico dialético. Outras teorias sociológicas de impacto da época foram o darwinismo social e o já citado materialismo histórico, que conjuntamente com o funcionalismo e o método compreensivo, constituem as teorias clássicas da Sociologia. SAIBA MAIS Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação148 O Surgimento da Sociologia Educacional Chegamos ao quarto item desta unidade. Nela você será capaz de refletir sobre a contribuição do conhecimento sociológico para a análise do papel da educação na sociedade contemporânea. Isso será fundamental para o exercício de sua profissão docente. As pessoas que tentaram atuar na área sem a devida instrução tiveram problemas ao longo de sua carreira, pois tiveram dificuldade de compreender a influência da realidade social em sua prática pedagógica. E então? Motivado para desenvolver esta competência? Então vamos lá. Avante! OBJETIVO A Educação é um dos principais objetos de pesquisa da Sociologia desde o seu surgimento como conhecimento científico. Os teóricos clássicos da disciplina (Émile Durkheim, Max Weber e Karl Marx) abordaram o tema, apesar de apenas Durkheim tenha realizado estudos específicos que resultaram em obras consideradas as pioneiras do que seria denominada Sociologia Educacional. Na realidade, como o ser humano se capacita a exercer inúmeras atividades, além de formar a sua consciência e de tornar- se um ser social, por meio da educação, essa se tornou um objeto prioritário tanto de pesquisas quanto de projetos com o objetivo de reproduzir ou transformar hábitos culturais da sociedade. Entretanto, enquanto na sociedade capitalista, a educação ser direcionada para a formação de mão de obra para o mundo do trabalho, boa parte dos sociólogos concebem uma educação que vá além dos interesses do capital, tendo como objetivo a formação plena do cidadão, observando principalmente os aspectos relacionados à capacidade do indivíduo conviver em uma sociedade cada vez mais diversificada e complexa. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 149 Figura 10 - Educação e Sociedade Fonte: Pixabay Émile Durkheim: o ideólogo da Educação Émile Durkheim deu uma atenção especial à Educação em sua obra. Foi o primeiro autor a afirmar que a educação é um processo social, e, como tal, deve ser objeto de estudo e análise da Sociologia. Não por acaso, Durkheim é considerado o fundador da Sociologia da Educação. Para o sociólogo francês, o sistema educacional tem a função de perpetuar os valores da coletividade. Em outras palavras, a educação deve integrar os indivíduos à sociedade, convencendo-os de que devem seguir as normas determinadas por ela. Dessa forma, a educação teria como função social a perpetuação da ordem social, reproduzindo a organização social para as novas gerações. Assim, a escola teria um papel tanto de formar as crianças como de impedir o caos social (denominada por ele de anomia) que ameaça a coesão social. Nas palavras de Durkheim (apud LOPES, 2012,p.6): “a educação tem por objetivo suscitar e desenvolver na criança um certo número de estados físicos, intelectuais e morais que lhe exigem a sociedade no seu conjunto e o meio ao qual se destina Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação150 particularmente”. Percebe-se aqui uma forte influência do positivismo, do qual Durkheim era um seguidor e continuador das teorias de Augusto Comte. Durkheim defende que a escola deve ser pública e laica, embora não seja contrário às iniciativas privadas na área, mas desde que estejam submetidas aos interesses da sociedade, representados pela ação do Estado. Max Weber e Karl Marx abordaram o tema, apesar de que apenas Durkheim tenha realizado estudos específicos que resultaram em obras consideradas as pioneiras do que seria denominada Sociologia Educacional. A educação, segundo Durkheim, deve atuar para a consolidação da coesão social, enfatizando na mediação de conhecimentos relacionados à formação moral, à qualificação profissional e à aprendizagem da estrutura social e o papel que o indivíduo deve exercer nessa engrenagem social, ou seja, o indivíduo deve se submeter aos interesses da sociedade. Para Durkheim (apud LOPES, 2012, p.6), a educação é uma ação exercida pelos pais e professores sobre a criança, que deve ocorrer de forma ininterrupta, formando-a tanto como indivíduo quanto como um ser social, embora o principal foco seja “perpetuar e reforçar a homogeneidade entre os membros de uma sociedade, fixando com antecedência na alma da criança as similitudes que a vida coletiva exige”. Assim, a educação é um processo ininterrupto de socialização do indivíduo, com a finalidade de fazer do aluno um ser realmente humano, pois para o sociólogo francês, um homem só é plenamente humano se for um ser social. Entretanto, isso não o deve afetar a sua formação como um indivíduo com interesses particulares, pois indivíduo e sociedade se complementam, na visão do fundador da sociologia funcionalista. O sistema educacional proposto por Durkheim deve ser meritocrático, no qual as individualidades mais capacitadas são premiadas. Além disso, a educação, a partir de certa idade, não Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 151 deve ser a mesma para todos, sendo direcionada a partir daí para a especialização, visando a formação do aluno para uma sociedade marcada pela divisão social do trabalho, onde esse irá ser formado nas profissões que a sociedade mais necessita. Segundo Durkheim (apud LOPES, 2012, p.7): “é a sociedade que, para poder subsistir, precisa que o trabalho se divida entre os seus membros (...). É por isso que prepara com suas próprias mãos, pela via da educação, os trabalhadores especializados de que precisa”. O papel do professor, segundo Durkheim (apud LOPES, 2012, p.7), é representar os interesses da sociedade, interpretando e transmitindo “as grandes ideias morais do seu tempo e de seu país”. Entretanto, tais ideias variam conforme o contexto histórico, sofrendo mudanças conforme a passagem do tempo. Para ele, educação e pedagogia são coisas distintas. A primeira é a relação entre os educadores (pais e professores) e as crianças, que deve ser voltada para a formação das novas gerações dentro das normas sociais, visando a sua integração e a consequente reprodução dos valores hegemônicos de uma determinada sociedade. Já a segunda seria a reflexão sobre os fatos que envolvem a educação, como uma ciência que deve contribuir para o próprio desenvolvimento do processo educativo. A Sociologia Educacional de Émile Durkhein influenciou as práticas pedagógicas consideradas tradicionais e que ainda estão presentes em várias salas de aulas em diversas partes do mundo. A disposição das carteiras em fileiras e a postura do docente como “mestre do saber”, hierarquicamente superior aos alunos, são exemplos de uma organização do espaço escolar influenciada pelas perspectivas durkheimianas. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação152 Figura 2 –A sala de aula tradicional Fonte: Wikimedia Commons Karl Marx: a educação como meio de conformação e transformação social Karl Marx, diferentemente de Émile Durkheim, não escreveu nenhuma obra especificamente sobre educação, mas abordou o tema ao longo de suas obras críticas em relação à sociedade capitalista. Segundo o materialismo histórico dialético, a educação faria parte da superestrutura da sociedade (assim como a política, a cultura e a legislação), sendo um instrumento de legitimação do modo de produção capitalista, de sua divisão social do trabalho e de formação de mão de obra. Além disso, ela teria também a função ideológica de legitimar e transmitir a ordem social capitalista, com a escola exercendo um papel central nesse processo. Na sociedade burguesa, o professor assumiria o papel de transmitir a ideologia das classes dominantes para os alunos, principalmente os da classe operária, que acabariam formando Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 153 uma “falsa consciência de classe” ao assumir para si os valores burgueses e considerando a sua própria exploração algo “natural”. Para romper com tal quadro de coisas (algo que só seria possível, segundo o materialismo histórico, apenas por meio da revolução socialista que colocaria um fim na história do capitalismo) e transformar o sistema educacional de instrumento de dominação de classe para um mecanismo de emancipação social, Marx sugere algumas medidas importantes que deveriam ser tomadas São elas: Educação pública e gratuita para todos: a educação se tornaria um direito dos cidadãos, ou seja, qualquer homem ou mulher poderiam ter acesso a ela nas escolas mantidas pelo Estado, sem nenhum custo para as famílias. Curiosamente, essa reivindicação marxista acabou assimilada (e adaptada, de acordo com o espírito conservador do positivismo) por Émile Durkheim, sendo comum em quase todos os países a existência de um sistema educacional no qual a escola tem gratuidade e universalidade; Educação voltada para a formação do indivíduo como um trabalhador: para Marx, é a partir do trabalho que o homem construiu a sociedade e, dessa forma, tal atividade tem uma centralidade na história humana. Pensando na superação do capitalismo e a constituição de uma sociedade socialista, o pensador alemão concebeu uma formação integral do aluno que abrangeria três aspectos: 1- a Educação intelectual (historicamente restrita às elites, até então); 2- a Educação corporal (a Educação Física, composta por exercícios de ginástica e até exercícios militares); 3- a Educação tecnológica, o ensino da ciência, da produção industrial e iniciação ao manuseio de máquinas utilizadas na produção industrial. Nesse modelo de educação, tanto homens quanto mulheres seriam capacitados para exercer mais de uma profissão, rompendo-se a barreira que existia entre o trabalho intelectual e o manual, um dos fatores Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação154 Figura 3 – O ensino integral profissionalizante Fonte: Pixabau A abordagem do materialismo histórico assume que a educação tem uma função social política, que revertida para a construção de uma sociedade sem dominação e exploração de uma classe social sobre a outra, pode ser um instrumento de emancipação de homens e mulheres, algo essencial para a construção de uma nova sociedade, segundo Karl Marx. que estabeleciam a divisão social do trabalho e a sociedade de classes. Paradoxalmente, esse foi outra proposta de origem marxista que acabou sendo assimilada pelo sistema educacional da sociedade capitalista e utilizada para os seus fins de gerar lucro e formar mão de obra. As escolas de ensino profissionalizante e de tempo integral são exemplos da influência das propostas de Karl Marx para a educação, apesar da finalidade atual dessas estarem distantes das perspectivas do fundador do materialismo histórico, mais voltada para a formação de uma sociedade sem classes sociais. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 155 Em países socialistas, como China e Cuba, parte das perspectivas dos fundadores do materialismo histórico estão presentes em seus respectivos sistemas educacionais. Max Weber e a educação como instrumento de “status social” Assim como Karl Marx, Max Weber também considera a educação como um instrumento de dominação na sociedade capitalista. Entretanto, Weber analisa outros aspectos dessa dominação, pois essa não se restringiria à exploração de uma classe social sobre a outra ou à formação de mão de obra para o mundo do trabalho, mas seria um instrumento que legitimaria o monopólio dos empregos e cargos mais valorizados para os portadores de diplomas universitários. Ou seja, na perspectiva weberiana, a universidade exerceria não apenas o papel de formar, mas de realizar provas visando selecionar os indivíduos mais aptos para exercerem ocupações privilegiadas na sociedade e, dessa forma, conquistarem “status social”. Através disso, a educação se torna um meio para o indivíduo conquistar ascensão social, prestígio e maiores salários na sociedade capitalista. Inserida na estrutura burocrática do Estado, a escola, segundo Weber, seria um local também marcado, como outras instituições, pelas relações de poder. Como tais relações resultam em três tipos de dominação (a carismática, a humanística e a racional-burocrática), cada uma delas resultam em três tipos diferentes de educação: 1 - Educação carismática: estaria relacionada a despertar o “talento natural” do indivíduo, associada simbolicamente com as “qualidades heroicas” ou com “dons mágicos”; Nesse tipo de educação emergem as pessoas que aparentemente tem um “talento nato” para exercerem tal atividade, destacando-se das demais. Seriam os casos de um Mozart ou um Beethoven na música clássica. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação156 2- Educação humanística: direcionada para a formação intelectual do indivíduo. Aqueles que demonstram maiores aptidões na assimilação do conhecimento destacam-se sobre os demais; é na educação humanística que se revelam os intelectuais de todas as áreas, que se destacam pelo seu conhecimento em uma ou várias áreas do conhecimento filosófico e científico. Nessa área, podemos citar a capacidade intelectual de um Freud ou de um Einstein. 3 - Educação racional-burocrática: é aquela voltada à especialização do indivíduo, ao qual aquele que formar- se especialista em uma determinada função irá ter maiores possibilidades de ascensão na estrutura burocratizada das instituições da sociedade capitalista. Esse é o caso daqueles que conseguem os diplomas universitários e, ao exercerem cargos hierarquicamente superiores na estrutura burocrática do Estado ou das empresas privadas, sobressai-se sobre os demais, conquistando status e ascensão social. Quer se aprofundar neste tema? Leia o artigo: “Educação, Sociologia da Educação e Teorias Clássicas” (LOPES, 2012), acessível pelo link http://www.bocc.uff.br/pag/lopes-paula- ducacao-sociologia-da-educacao-e-teorias.pdf (Acesso em 23/05/2019). SAIBA MAIS Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 157 Antropologia e seu campo de estudo A antropologia pode ser definida com uma ciência que estuda a humanidade, suas convicções, seu comportamento e sua cultura. De acordo com Marconi e Presotto (2010), visa compreender a existência do homem na sua totalidade dividido como membro de grupos organizados, com a sua história, crença, linguagem e também na evolução da sua espécie. Ao término capítulo você será capaz de entender as semelhanças e diversidade existente nas inúmeras culturas humanas. será fundamental para o exercício de sua profissão. As pessoas que não aceitam a heterogeneidade do homem têm problemas ao se depararem com o oposto. E então? Motivado para desenvolver competência? Então vamos lá. Avante! OBJETIVO O nascimento da Antropologia Desde a antiguidade o homem sempre questionoue observou a si mesmo e seus semelhantes. A descoberta da América pelos europeus - o Novo Mundo marca a origem da reflexão antropológica sobre os habitantes que viviam naquelas terras ainda desconhecidas. Pode-se afirmar que o contato com os povos distintos provocou uns dos primeiros questionamentos antropológicos: E povos pertencem à humanidade? Possuem alma? Naquela época, utilizava-se a religião para regulamentar o indivíduo como humano. As primeiras observações sobre os povos “distantes” eram trazidas pelos viajantes e missionários jesuítas. Além do critério religioso, os europeus utilizaram Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação158 a partir do século XIV, alguns julgamentos para definir se os índios encontrados eram humanos, são eles: andavam nus ou vestidos com “peles de animais”; se alimentavam com “carne crua” e utilizavam uma linguagem que não era compreendida, denominada como “uma língua ininteligíve”. Percebe-se, portanto que, o encontro dos europeus com as índios marcam a grande dificuldade humana de aceitar e entender a disparidade entre os seus semelhantes. Na carta titulada como “História das Índias”, Cornelius de Pauw (1955) escreve que os índios por sua natureza são ociosos, sujos, de má condição, mentirosos, pecadores e que por isso, Senhor permitiria que fossem banidos da . Por outro lado havia também curiosidade por parte dos índios sobre os comportamentos, vestimentas e crenças dos desbravadores. O autor Lévi- Strauss (1961), citado por Laplantine, François (2003) destaca que, porquanto os espanhóis pesquisavam se os índios possuíam ou não uma alma, e afundavam os corpos dos europeus na água por um longo período e observavam se os seus cadáveres também iriam passar pelo processo de putrefação, como aconteciam com os corpos dos seus semelhantes. Percebe-se, portanto que, a curiosidade de classificar os sujeitos europeu e o índio como humanos ou não pertenciam aos dois grupos simultaneamente . , a excentricidade, ou seja, aquilo que é diferente, sempre instigou o homem a encontrar respostas. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 159 Figura 1 - Pai ensinando o filho a andar de bicicleta Fonte: Pixabay Em meados do século XVIII, a versão de que os selvagens eram de “natureza má” é lentamente transformada em possível “bom selvagem”. Os primeiros viajantes começaram a destacar características positivas sobre os indígenas, classificando-os como pessoas bonitas, mansas, de corpo elegante, ingênuos, afáveis, liberais e felizes. Desse modo, a imagem que os europeus tinham com as diferenças entre os indígenas começaram a oscilar entre dois pêndulos: uma vertente positiva – representada pelo encantamento pelo exótico e outra, negativa – como uma rejeição à disparidade (característica do que é díspar;. Dianteparadoxo, iniciaram-se vários questionamentos, dentre os quais, um merece destaque que é levar em consideração que a civilização indígena não é inferior ou superior, e sim, diferente. Os viajantes do século XVI e XVII coletavam “curiosidades”, já no século XVIII a preocupação voltou-se para de que forma poder-se-ia coletar e interpretar e, o que foi coletado sobre essas curiosidades. Com a revolução industrial inglesa e revolução política francesa, houve mudanças significativas na sociedade francesa. século XIX em um contexto geopolítico novo, período colonial, emigração em massa é que a antropologia os primeiros passos para uma disciplina científica. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação160 Com os progressos da civilização, o indígena, antes denominado como “selvagem”, tornou-se o “primitivo”, ou seja, o antecessor do civilizado. Dessa forma, a antropologia destina- se inicialmente os seus estudos ao conhecimento do primitivo, da origem humana – considerando o progresso técnico e econômico das cidades coloniais como prova da evolução histórica dos europeus. Dessa forma, os pioneiros pesquisadores definiram como objeto de pesquisa as sociedades primitivas e não ocidentalizadas. 003). Vale ressaltar que na segunda metade do século XIX ainda não existiam antropólogos. Os pesquisadores não eram especialistas se julgavam como observadores consciente guiados por cientistas preocupados em criticar fontes. EXPLICANDO DIFERENTE+++ Deduz-se que os estudos rudimentares da antropologia consistiam em analisar grupos “diferentes” e distantes da sua cultura. O primeiro objeto de estudo da corrente antropológica foram às sociedades primitivas e método de pesquisa, inicialmente utilizados eram os dados coletados pelos observadores e, posteriormente, instaurou-se a técnica do trabalho de campo que consiste no contato intenso e prolongado entre o pesquisador e as pessoas e/ou grupos escolhidos para serem estudadas (novo conceito será detalhado nos próximos capítulos). forma, o trabalho do antropólogo consiste em estar em contato com a pessoa que é diferente e transformar essa diferença em um fazer científico. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 161 O que é Antropologia Pode-se definir o significado de Antropologia em uma abordagem mais ampla da seguinte maneira: “(...) ciência que estuda o homem, suas produções e seu comportamento. O seu interesse está no homem como um todo (...). Tenta compreender a existência humana em todos os seus aspectos, no espaço e no tempo, partindo do princípio de uma estrutura biopíquica.” (MARCONI e PRESOTTO, 2010, p. 2). Como visto no capítulo anterior, a Antropologia iniciou os seus estudos visando os grupos primitivos “diferentes”, aqueles que não pertenciam à sociedade ocidental. Acreditava-se que ao entender a sua linguagem, comportamento modo de viver, estariam identificando a origem humana, como o ser humano vivia antes da civilização. Campo de atuação da Antropologia Portanto, o objetivo da Antropologia no estudo do homem em sua plenitude avalia o ser como biopsicocultural – como ser biológico pensante e como produtor de cultura e elemento integrante da sociedade. Como a esfera de investigação é extensa, a Antropologia é dividida em dois campos de atuação: Antropologia Física ou Biológica e Antropologia Cultural. Na antropologia física ou biológica são investigadas as características físicas do homem, no qual consiste compreender a estrutura anatômica, sua origem e evolução, a estrutura, os processos fisiológicos e características raciais do ser humano ancestral e civilizado. Como uma ciência interdisciplinar, a Antropologia se apoia na Medicina, Fisiologia, Zoologia, entre outras. (MARCONI E PRESOTTO, 2010). Para facilitar o entendimento do campo de atuação da Antropologia, um explicativo das áreas e subáreas ciência. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação162 Figura 2 – Campos de atuação da Antropologia Física ou Biológica Fonte: Autora com base em MARCONI PRESOTTO, 2010 / Editorial Verifica-se, portanto que, a Antropologia Física ou Biológica é decomposta em cinco subáreas: paleontologia humana – estuda a origem e evolução humana através dos fosseis; Somatologia – avalia as diferenças individuais físicas e sexuais; Raciologia – classificação da espécie humana em raça; Antropometria – utiliza-se de técnicas quantitativas para medir o corpo humano e Estudos comparativos do crescimento – ampliação da somatologia com o intuito de conhecer as diferenças grupais relativas ao crescimento convergentes com atividade física, alimentação, etc. A antropologia cultural consiste na análise do homem como ser cultural, promotor de sua própria cultura. A sua essência abarca em conhecer e analisar o conhecimento cultural humano adquirido por aprendizado em todas as suas proporções. É considerado o campo mais extenso dentro da ciência antropológica. Observe o esquema a seguir representando as subáreas do campo de atuação da Antropologia Cultural. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 163 Figura 3 – Campos de atuação da Antropologiado século XVIII – até as teorias atômicas que revolucionaram a ciência no século XX. A vitória de Atenas sobre os persas, em 479 a.C., marca também a consolidação da democracia na cidade. Dentre os novos valores que surgem está o da educação. Trata-se de formar cidadãos aptos à vida pública. Para tanto, exige-se deles que sejam excelentes oradores e que saibam argumentar em público. Dessa educação encarregam-se os sofistas (sábios), cuja característica era a reflexão sobre o homem e sua vida em sociedade. Os principais temas que emergiram dessa relação foram: a ética, a política, a arte, a religião, a retórica, a educação, ou seja, tudo aquilo que compõe o que chamamos de cultura. Por outro lado, os sofistas não se preocupavam com o que uma argumentação, pode ter de justo ou injusto, moral ou imoral. Basta-lhes que seus discípulos aprendam a falar – não importa o quê, mas bem, de modo convincente – e que os remunerem pelo ensino. Se os sofistas não se preocupam com o conteúdo de um argumento, é porque compartilham com os atenienses a experiência da democracia, em que o mundo humano aparece como uma criação do próprio homem. Nesse mundo não há um único princípio que a tudo comande, mas apenas convenções em que os homens estabelecem para depois abandonar. Os valores e as verdades são instáveis e relativos. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação18 A própria linguagem, essa capacidade essencialmente humana, também não passa de convenção, sem poderes para expressar a verdade, a não ser verdades relativas de cada um. O estabelecimento da democracia grega coincide com o aparecimento dos sofistas, que ensinavam tudo a qualquer um que desejasse, especialmente no que se refere ao homem que quisesse obter ensinamentos a fim de obter êxito nas assembleias. A demanda intelectual desse contexto histórico não admitia mais a superioridade intelectual restrita aos aristocratas. A concepção de virtude (areté) não poderia ser mais considerada algo transmitido de pai para filho. “A construção de uma concepção de virtude como aprendizado se fortalecia e necessitava de professores que acreditassem nessa possibilidade. os sofistas eram esses homens” (FRANKLIN & PINHEIRO, 2014, p. 22). Porém, os sofistas foram muito criticados, é o que veremos a seguir. Crítica aos Sofistas De acordo com Franklin e Pinheiro (2014), há 4 questões principais que resumem as críticas aos sofistas. A primeira questão referia-se à concepção do saber como tal. Tornou-se consenso, para os sofistas, que tudo poderia ser ensinado, desde a virtude até a arte da política. Devido a isso, suas maiores preocupações debruçavam-se na arte pedagógica, ou seja, como levar o outro ao saber. São claros seus impactos pedagógicos, pois todo professor necessita de alunos e para a satisfação de seus alunos era necessário delegar-lhes o que mais desejavam, ou seja, a sabedoria prática. A segunda questão choca-se com os princípios morais aristocráticos. Os sofistas geralmente eram estrangeiros Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 19 e exigiam remuneração por seus ensinamentos. Eles preenchiam uma lacuna deixada pela forma aristocrática de ver o ensino. Os sofistas não tinham posses e, por isso, cobravam pelos ensinamentos, tornando a venda do saber uma profissão: a profissão do mestre e do professor. A terceira questão se relacionava ao apego à sociedade. Sendo os sofistas professores itinerantes, nômades, não poderiam respeitar os limites da cidade-estado (polis), o paradigma do Estado-Ideal, segundo Platão e Aristóteles. Aos olhos modernos, os sofistas superaram seus opositores, pois alargaram as dimensões das cidades, transportando ideias e costumes para além de seus limites, tornando-se assim homens do mundo (panhelênicos). A quarta questão para discussão dizia respeito à liberdade de espírito em relação à tradição e às normas estabelecidas pela cidade. Os sofistas tinham uma inabalável confiança na capacidade e habilidade do homem em compreender todos os tipos de inovações e situações. Conceito de Filosofia “Amigo da sabedoria”: eis a definição da palavra Filosofia, constituída do termo filon, que equivale a amigo, e do termo sofia, que equivale à sabedoria. A Filosofia não é apenas atividade de pensadores brilhantes e excêntricos como popularmente se pensa. Filosofia é o que todos fazemos, quando estamos livres de nossas atividades cotidianas e temos uma chance de nos perguntar o que é a vida, o universo, a morte, o amor, a tristeza e todos os infindáveis temas que intrigam a humanidade. Nós, humanos, somos criaturas naturalmente curiosas e não conseguimos deixar de fazer perguntas sobre o mundo à nossa volta e o nosso lugar nele. Também somos dotados de uma capacidade intelectual, que nos permite tanto Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação20 raciocinar quanto divagar, atributos importantes para a prática do pensamento filosófico. Chegar às respostas para as questões fundamentais é menos determinante para a Filosofia do que o próprio processo de busca dessas respostas pelo uso da razão, em vez de aceitar sem questionamentos as visões convencionais ou a autoridade tradicional. A Filosofia, como aponta Thomas Nagel, é diferente da ciência e da matemática. Ao contrário da ciência, ela não se apoia em experimentos ou na observação, mas apenas na reflexão. E, ao contrário da matemática, não dispõe de nenhum método formal de verificação. “Ela se faz pela simples indagação e arguição, ensaiando ideias e imaginando possíveis argumentos contra elas, perguntando-nos até que ponto nossos conceitos de fato funcionam” (NAGEL, 2001, p. 2). A principal ocupação da Filosofia da Filosofia é questionar e entender ideias muito comuns, que todos nós usamos no dia a dia sem nem sequer refletir sobre elas. O historiador perguntará o que aconteceu em determinado tempo do passado, enquanto o filósofo indagará: “o que é o tempo”? O matemático investigará as relações entre os números, ao passo que o filósofo perguntará: “o que é um número”? O psicólogo talvez pesquise como a criança aprende a linguagem, mas a indagação do filósofo será: “o que dá sentido a uma palavra?” (NAGEL, 2001, p. 3). Compreender filosoficamente a realidade é compreender, como as pessoas se constituem em grupos, em comunidades, em sociedades e como organizam suas ideias. Na história do pensamento que a humanidade vem construindo ao longo do tempo, muitos foram os pensadores e pesquisadores que deram uma definição ou um Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 21 conceito para a Filosofia. Por vezes, esses conceitos foram complexos, por vezes simples; por vezes rebuscados e quase incompreensíveis. Mas de maneira geral, como argumenta Cipriano Luckesi, “a Filosofia é um corpo de conhecimento, constituído a partir de um esforço, que o ser humano vem fazendo de compreender o seu mundo e dar-lhe um sentido, um significado compreensível” (1993, p.22). Corpo de conhecimentos, em Filosofia, significa um conjunto coerente e organizado de entendimentos sobre a realidade. A leitura de um texto de Filosofia nos proporciona o entendimento dos valores e sentidos, que seu autor desenvolve a partir do contexto que o cerca. O ato de filosofar permite, assim, a sistematização dos desejos e aspirações dos seres humanos, bem como o sentido para a relação com as pessoas, o amor, a amizade, o mundo do trabalho, a ciência, a educação, a política, a cultura, entre outros. Dito de outro modo, a Filosofia pode ser compreendida como um campo de construção de ideias/concepções, que permite a reflexão de assuntos do cotidiano (como as relações entre as pessoas) até as questões políticas de uma nação. Para além de uma mera atividade abstracionista ou idealista, a Filosofia oferece um direcionamento para as ações dos sujeitos, ou seja, um rumo para ser seguido. Ela estabelece, como afirma Luckesi, um quadro organizado e coerenteCultural Fonte: Elaborado pela Autora com base em MARCONI e PRESOTT / Editorial O campo da Antropologia cultural é subdividido em sete subáreas, a Arqueologia – análise das culturas do passado de reestruturação de amostras duráveis ao longo do tempo; Etnografia – descrição/conhecimento material e imaterial das sociedades que apresentam culturas simples e “diferentes”; Etnologia – consiste na análise, interpretação e comparação entre múltiplas culturas ressaltando suas semelhanças e diferenças; Linguística – pesquisa a linguagem (meio de comunicação) em culturas diversas; Folclore – avalia a cultura autêntica de grupos humanos urbanizados ou rurais; Antropologia social – explora os processos culturais e da estrutura social das instituições e sociedades; Cultura e personalidade – examina as inter-relações entre cultura e personalidade do individuo. É possível perceber a variedade dos campos de atuação da Antropologia que está correlacionada com diversos outros campos do saber, o que fundamenta a sua eficiência como ciência ao estudar o homem em sua totalidade. Antropologia e ciências afins Como detalhado no item anterior, a Antropologia para realizar um estudo do ser humano integrado busca fundamentação teórica e prática em outras ciências. Vale ressaltar que existem outras disciplinas que também tem o ser humano como objeto de estudo. A Sociologia, Psicologia, Economia, Política, Geografia e Biologia estão entre Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação164 Tabela 1 – Antropologia e sua relação com ciências afins Sociologia Enfatiza o conceito de sociedade e compreensão dos fatos práticos e presentes. Psicologia Interpretação das diferenças individuais que, determinam os inúmeros tipos de personalidade básicos da cultura. Economia Avaliar a organização econômica de grupos, baseado no seu trabalho e recursos disponíveis. Política Compreender a organização política de um grupo (poder, ordem e integridade). História Investiga a reconstrução de culturas passadas, revelando fenômenos que estão ligados a origem humana. Geografia Adaptação e modificação do homem em seu meio ambiente físico. Fonte: Elaborado pela autora com base em MARCONI e PRESOTTO, 2010 as ciências que perpetuam uma relação multidisciplinar com a Antropologia. Todas emprestam e trocam dados de pesquisa mutuamente respeitando a fundamentação teórica de cada uma delas. A tabela a seguir irá detalhar a contribuição, importância e correlação de cada área para o campo do saber da Antropologia. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 165 Apesar de a Antropologia ser reconhecida como ciência do homem, a cooperação de outras ciências nas suas análises é de extrema importância, já que estudos de problemas específicos relacionado ao ser humana requisita a utilização de técnicas ao diálogo entre as ciências, pois contribui para agregar valor de dados mensuráveis e embasamento teórico reflexivo acerca do estudo mais detalhado e profundo sobre o ser humano. IMPORTANTE E então? Gostou do que lhe mostramos? Aprendeu mesmo tudinho? Agora, só para termos certeza de que você realmente entendeu o tema de estudo deste capítulo, vamos resumir tudo o que vimos. Você deve ter aprendido que a antropologia é uma ciência que estuda o ser humano em sua totalidade, ou seja, visa examina-lo em todas as suas dimensões bio-psíquico-social. Foi relatado também no capítulo, um breve histórico do surgimento da Antropologia no qual explicamos a definição do seu objeto de estudo que foram os povos indígenas. A antropologia surgiu para explicar o “outro” distante, aquilo que era “diferente” da civilização europeia, ou seja, entender como existiam pessoas que se alimentavam, vestiam, reproduziam, tinham rituais religiosos excêntricos e se comunicavam de outra forma. Em seguida, foram demonstrados os diversos campos de atuação da Antropologia como ciência e por fim, foi explicitada a inter- relação da mesma com outras ciências no qual contribuem para uma compreensão técnico-científica mais precisa do homem e seu meio. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação166 Etnocentrismo No decorrer do capítulo 1 foi abordada a dificuldade que o ser humano apresenta desde a época da colonização em aceitar a diferença. A intolerância em admitir o “outro” com suas particularidades se enquadra no conceito de etnocentrismo, definido por Rocha (1988) como uma visão de mundo no qual um grupo considera os seus valores, modelos e definições no centro de tudo. Figura 4: Olhar etnocêntrico Fonte: Freepik Ao término deste capítulo você será capaz de compreender o conceito de etnocentrismo, de relativismo cultural e por fim, correlacionar os dois temas com exemplos práticos da sociedade contemporânea. OBJETIVO Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 167 O que é etnocentrismo ? O etnocentrismo pode ser definido como um choque cultural entre grupos diferentes. A dificuldade em encarar e aceitar o excêntrico acompanha o homem desde a sua origem. O autor Rocha (1988) elucida o etnocentrismo da seguinte forma: De um lado, conhecemos um grupo do “eu”, o “nosso” grupo, que come igual, veste igual, gosta de coisas parecidas, conhece problemas do mesmo tipo, acredita nos mesmos deuses, (...). Aí, então, de repente nos deparamos com um “outro”, o grupo do “diferente” que, às vezes, nem sequer faz coisas como as nossas ou quando as faz é de forma tal que não reconhecemos como possíveis. E, mais grave ainda, este “outro” também sobrevive à sua maneira, gosta dela, também está no mundo e, ainda que diferente, também existe. (...) O grupo do “eu” faz, então, da sua visão a única possível ou, mais discretamente se for o caso, a melhor, a natural, a superior, a certa. O grupo do “outro” fica, nessa lógica, como sendo engraçado, absurdo, anormal ou ininteligível. (ROCHA, 1998, p.5.) Portanto, é possível perceber a falta de compreensão do ser humano com a disparidade entre os seus semelhantes. Essa visão de que a maneira como o “nosso” grupo se comporta, veste e se comunicam é a melhor e única. O que vem do “outro” é estranho, incompreensível e até mesmo, considerado errado e fora da normalidade. Lembra-se de como os europeus interpretaram o estilo de vida e hábitos dos índios americanos? O julgamento era como se os mesmos não fosse humanos apenas pelo fato de se vestirem, alimentarem e comunicarem de uma forma totalmente diferente da civilização europeia. O etnocentrismo defende a ideia de que as diferenças do grupo A em relação ao grupo B, torna-se padrões de julgamentos no qual o primeiro se considera superior ao segundo e que pode Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação168 Foi citado anteriormente exemplo de atitude etnocêntrica no passado. E, atualmente, qual atitude da nossa sociedade contemporânea pode ser classificada como etnocêntrica? REFLITA A atitude ou visão etnocêntrica ocorre quando há um bloqueio de aceitação da heterogeneidade do outro. Dessa forma, o preconceito está intimamente correlacionado ao etnocentrismo. Quando se julga que a cultura dos índios no Brasil é “atrasada” porque não sabem utilizar a tecnologia, ou quando consideramos que as pessoas do nordeste brasileiro são “intelectualmente menos favorecidas” que a região do sudeste, está praticando o etnocentrismo. FIGURA 4: Índios da floresta amazônica Fonte: Freepik ser intitulado como estranho, sem inteligência, inferiorizados, entre outras características. Portanto, o etnocentrismo analisa o outro conforme sua visão e de seu grupo de valores culturais e morais, o que é diferente do ponto de vista é taxado com o julgamento de inferioridade. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 169 Portanto, todas as vezes que não se respeita as características particularizadas do outro, a individualidade, o seu sotaque, a sua forma de vestir, o seu jeito de falar é considerada uma prática etnocêntrica.Atrelado a isso, temos exemplos atuais de bullying, machismo, racismo, entre outros. Outro exemplo bem contemporâneo sobre etnocentrismo são os discursos do atual presidente dos Estados Unidos – Donald Trump. Todas as opiniões, conceitos, ações e estilo de vida que se distanciam do sistema de valores do presidente são taxados de maneira preconceituosa. Trump, recentemente rotulou os mexicanos de “criminosos” e instaurou no seu governo uma batalha contra os imigrantes ilegais, chamando-os de “animais”. Figura 5 – Discurso etnocêntrico Fonte: Pixzabay Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação170 De acordo com Rocha (1988, p. 9) “nossas próprias atitudes frente a grupos sociais nas grandes cidades são, muitas vezes, repletas de atitudes etnocêntricas. Rotulamos e aplicamos estereótipos através dos quais nos guiamos para o confronto cotidiano com a diferença”. Portanto, há limite tênue entre a aceitação do outro com suas particularidades e o preconceito explicito com a disparidade entre grupos sociais. Para entender melhor o que é etnocentrismo, assista o vídeo Cultura: Etnocentrismo e Relativismo Cultural, disponível no link: https://www.youtube.com/watch?v=EZXKWdQ5eps ACESSE Relativismo cultural Relativismo cultural em uma linguagem simples ocorre quando há a compreensão do “outro” sem julgamento de valores. É uma ideia que se contrapõe a do Etnocentrismo. Os autores Marconi e Presotto (2010 p. 17 ) destacam que “este princípio permite ao observador ter uma visão objetiva das culturas cujos padrões e valores são tidos como próprios e convenientes nos seus integrantes”. Ou seja, é visualizar e respeitar o “outro” e sua cultura com suas particularidades, sem hierarquizar as diferenças encontradas como melhor ou pior, superior ou inferior, etc. Relativismo cultural: conceito e aplicabilidade O conceito de relativismo nos ensina que uma cultura deve ser compreendida dentro dos seus padrões de comportamentos e Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 171 Figura 6 – “Mulheres girafas” – Tribo Padaung Fonte: Pixabay regras morais únicos, mesmo que ao olhar dos “outros” grupos, tais esquemas de vida se pareçam “estranhas” ou “exóticas”. A significância do relativismo para a Antropologia consiste em respeitar outras culturas e sociedades – ao invés de taxar os costumes próprios como “incomuns” aprender algo novo sobre o ser e sociedade. A prudência com a objetividade – o pesquisador fica imerso na cultura a ser estudada com o objetivo de captar o sentido da sua organização e por último a não interferência entre tentativas de modificar seus costumes e tradições. (MENESES, 1999). O homem como produtor de sua própria cultura construiu de maneira única e particular as suas crenças, regras de convivência em grupo e rituais específicos de cada comunidade, ou seja, peculariedades da sua maneira de viver e de se relacionar com a natureza e com o “outro”. Tais propriedades tornam possível a existência de inúmeras culturas distintas. Os autores Hoebel e Frost (1981) destacam que, os padrões de valores (certo/errado) e os costumes são inerentes ao seu respectivo meio cultural. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação172 A figura ilustra uma das integrantes da Tribo Padaung, localizada no norte da Tailândia. Pelo fato de por muitos anos, evitarem contato com a sociedade, porque viviam escondidas, as mulheres foram consideradas por muito tempo, como figuras mitológicas. A tribo possui a tradição cultural milenar que são colocarem argolas de cobre no pescoço das mulheres. Afinal de contas, por que utilizam estas argolas? Não se sabe ao certo porque esse ritual começou, para muitos estudiosos seriam uma competição de beleza, quanto mais argolas, o pescoço mais longo e assim teriam mais admiradores, em contrapartida, outros pesquisadores ressaltam que as argolas seriam uma proteção no passado contra ataques de tigres. Na tribo, são as mulheres que sustentam a casa vendendo os artesanatos que produzem. Os homens ficam em casa, cuidam das crianças e vestem saias. A tradição é ainda preservada nos tempos atuais e as mulheres são visitadas como atração turística da região. Para saber mais detalhes sobre a cultura da Tribo Padaung, assista ao vídeo Mulheres-girafa são atração na Tailândia, exibido pelo programa Fantástico no ano de 2002, disponível no link: https:// www.youtube.com/watch?v=M2HQGIh1jgQ. ACESSE Sobre a tradição das argolas da Tribo Padaung. Qual a sua opinião, aluno, sobre a utilização das argolas nas mulheres da tribo? Entre as características do relativismo cultural, vale destacar que, os elementos de uma cultura só tem validade quando estão inseridos no seu meio, ou seja, imerso dentro de um contexto. As culturas também são relativas, cada um traz em si o seu padrão, não existe uma referencia universal a ser seguida Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 173 e por último, suspensão de juízo. (MENESES, 1999). Os valores culturais e normativos de cada sociedade tem sentido apenas para os integrantes que convivem em seu meio. A compreensão pelo viés da antropologia só é possível quando o pesquisador se coloca no lugar do “outro” e vivencia junto com os demais todos os rituais da sua cultura, sem critérios de julgamentos do que é certo ou errado. Marconi e Presotto (2010) destacam que o relativismo cultural proporciona ao antropólogo atitude mais neutras e leva em consideração princípios humanitário: Direito à autonomia tribal – Os grupos humanos têm direito de possuir e fazer desenvolver a própria cultura, sem interferências externas. (...) Valores culturais – As formas de pensar e agir de grupos diferentes deve merecer o maior respeito possível e, por isso, seria injusta a introdução deliberada de mudanças no interior dessas culturas. (...) Da mesma forma, os costumes que diferem muito dos da sociedade civilizada devem ser considerados e avaliados dentro da configuração cultural a que pertencem (MARCONI E PRESOTTO 2010, p.17- 18). Por mais excêntrico que possa parecer cada cultura desenvolvida pelo ser humano é única e deve ser respeitada em todas as suas singularidades. Nenhuma deve se sobrepor ás demais e todas devem conviver em harmonia e aceitação mútua. Assim sendo, não existem comunidades com culturas melhores ou piores que as outras, o que há são inúmeras e ricas culturas no Brasil e no mundo. E então? Gostou do que lhe mostramos? Aprendeu mesmo tudinho? Agora, só para termos certeza de que você realmente entendeu o tema de estudo neste capítulo, vamos resumir tudo o que vimos. Você deve ter aprendido que o relativismo cultural representa a oposição ao conceito de etnocentrismo. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação174 No relativismo não há julgamento de valor com outras culturas que não é semelhante a sua, que existem inúmeras culturas com diversidades únicas e que é característica central do homem criar estilos de vida para organizar a comunidade, conviver em harmonia com os seus semelhantes e com a natureza. Foi aprendido também que para o Antropólogo pesquisar e entender outras culturas, esse profissional deve vivenciar a cultura do “outro” dentro do seu próprio contexto cultural, já que apenas dessa forma serão interpretados os significados verdadeiros. Além disso, o antropólogo não deve colocar a sua cultura como centro de tudo, a sua visão deve ser neutra e livre de julgamentos. Sendo assim, o conceito antropológico de relativismo cultural nos ensina a entender e aceitar as diferenças para vivermos em harmonia com a nossa sociedade. Será que a escola atual está preparada para lidar e aceitar diferentes culturas? REFLITA Antropologia educacional A visão de que a Antropologia é a ciência que estuda o ser humano em sua totalidade e que o respeito primordial é alteridade entre as culturas, já foi amplamente discutido nos capítulos anteriores. Nestecapítulo será abordada a essênciada antropologia educacional e como esta, se relaciona com as teorias contemporâneas da educação. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 175 Ao término deste capítulo você será capaz de entender como a significância da antropologia educacional, o seu objeto de estudo e as considerações práticas desta disciplina. E então? Motivado para desenvolver esta competência? Então vamos lá. Avante! OBJETIVO Conexão entre Antropologia e Educação Torna-se válido iniciar este capítulo ressaltando a semelhança entre o conceito de antropologia e educação. Ambas lidam com a intenção de compreender um conhecimento que não é nosso, as duas devem visualizar o olhar do “outro” e, para que isso aconteça é primordial ser empático, ou seja, se colocar no lugardesse “outro” (GUSMÃO, 1997). Tais características são fundamentais tanto para o antropólogo como para o educador. Para compreender a comunicação entre Antropologia e educação torna-se necessário ressaltar alguns pontos históricos marcantes. Já estudamos no capítulo 1 o nascimento da Antropologia. Ela,surge como ciência em meados do século XIX, na Europa e tem como objeto de estudo a compreensão do “outro” que fica distante e é diferente do “nosso”. De acordo com Gusmão (1997, p. 4), a educação nesse período consistia em uma “modalidade de ajustamento psicossocial que resulta numa forma de controle social, com base na organização social e no horizonte cultural partilhado por um grupo.” Ou seja, por meio de regras de condutas e técnicas educativas, as sociedades elaboravam mecanismos com o objetivo de incentivar e punir o comportamento de seus integrantes desde o período da infância até a fase adulta. Dessa forma, historicamente, tanto a antropologia quanto a educação por meio do desenvolvimento colonial tentaram impor Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação176 a “sua” cultura tida como única e correta ao “outro”. Com o intuito de eliminar qualquer alteridade, visavam padronizar uma sociedade com o modelo de vida cultural unificado. Revise o que já foi estudado no capítulo 1 – “O nascimento da Antropologia”. O discurso entre a antropologia e a educação se instaura após a crítica ao etnocentrismo, e início do relativismo cultural no qual a antropologia busca compreender outras sociedades e culturas. Gusmão ressalta que: “(...) O diálogo revela como ponto comum a cultura, entendida como instrumento necessário para o homem viver a vida, distinguir os mundos da natureza e da cultura e, ainda, como lugar a partir do qual o homem constrói um saber que envolve processos de socialização e aprendizagem. No primeiro caso trata-se de diferentes formas de transmissão de conhecimento, de habilidades e aspirações sociais; no segundo, trata-se de das formas de transmissão de herança cultural, através de gerações implicando processos de apropriação de conhecimentos, técnicas, tradições e valores. Tudo em acordo com a criação dos homens em situações sociais, concretas e historicamente determinadas”. (GUSMÃO, 1997, p.5). Percebe-se, portanto que, a cultura representa a interseção entre a antropologia e a educação. Na vertente antropológica, está relacionada a uma ferramenta utilizada pelo homem para viver harmoniosamente entre os seus semelhantes do grupo ao qual pertencem. Já no âmbito da educação, a cultura está associada à aprendizagem de técnicas tradicionais de um povo e também ao processo de socialização – pertencimento de um grupo. Na unidade 4, o conceito de cultura será mais detalhado. No próximo subitem, serão abordadas as bases teóricas que sustentam a ciência antropológica e sua evolução no conceito de antropologia educacional. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 177 Antropologia educacional: suas origens Conforme detalhado nos capítulos anteriores, a Antropologia firmada como ciência instituiu a alteridade como questão norteadora de seus princípios. E, como uma disciplina, ela busca se basear em diferentes teorias que fornecem amparo técnico-científico. O evolucionismo foi uma das primeiras teorias antropológicas que considerava o modelo europeu como único no mundo. Baseava-se o etnocentrismo, no qual coloca a sua cultura no centro do universo, como “modelo” a ser seguido e as demais culturas são consideradas como “atrasadas” e inferiores”. Lewis Morgan e seu aluno Frans Boas eram importantes evolucionistas em meados do século XIX (GUSMÃO, 1977). E você? Está lembrado do conceito etnocêntrico? Caso tenha esquecido, não se preocupe e faça uma revisão do capítulo 2 – “Etnocentrismo”. No princípio do século XX, Frans Boas entra em oposição com o seu mestre L. Morgan ao considerar a teoria de que cada grupo tem sua história e cultura singular. Boas introduziu o conceito de culturalismo no qual defendia a ideia de que não existia somente uma cultura e sim, “culturas” diferentes com hábitos, costumes e valores individualizados. Ainda no mesmo século, a Antropologia afirmava que “(...) a condição humana só poderia ser pensada no interior da cultura (...). Cultura como realidade múltipla, plural e diversa”. (GUSMÃO, 2008, p.60). A cultura, portanto, se torna uma ferramenta essencial para compreensão das condutas humanas. Por meio da cultura, o ser humano se diferencia dos animais, define o seu papel na natureza e ainda, utiliza de costumes, padrões, hábitos desenvolvidos pelo próprio ser humanos como meios para dar sentido à vida. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação178 Para saber mais sobre o que é cultura, assista ao vídeo Cultura: O que é Cultura? Tylor, Malinowski, Franz Boas e Lévi Strauss, disponível no link: https://www.youtube.com/ watch?v=v8HaLIrJxV0. ACESSE Nesse mesmo período, apesar da evolução na vertente de conhecimento da Antropologia, na área educacional, os recursos pedagógicos ainda seguiam os regulamentos de uma educação marcada por um modelo único, na qual a escola estava inserida. Diante disso, Boas iniciou também críticas aos sistemas educativos e práticas pedagógicas das escolas americanas. O antropólogo alegava que o sistema de ensino americano não possibilitava independência e autonomia aos indivíduos inseridos no seu contexto. A escola desconsiderava a pluralidade da comunidade escolar, tinha como centro um aluno-modelo e utilizava do autoritarismo para contenção do mesmo. As instituições de ensino atuais reconhece a diversidade cultural dos seus alunos? REFLITA Também em oposição ao conceito evolucionista, entre os anos de 1920 e 1930 surge um novo conceito de origem inglesa, o funcionalismo e tem como fundador o antropólogo Bronislaw Malinowski. Centrado na concepção de função e de sistema, o funcionalismo compreende a sociedade de uma forma Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 179 Para saber mais sobre as aventuras do Antropólogo Bronislaw Malinowski e das suas descobertas com a pesquisa de campo leia no livro de Everardo Rocha - “O que é etnocentrismo” o capítulo “Voando Alto”. Sobre o incentivo do funcionalismo, a Antropologia da Educação ganha força ainda no interior dos sistemas coloniais vigentes, entre os anos de 1920 e 1930. Nesse período histórico, as culturas populares eram consideradas como obstáculos à modernização da sociedade. Visando o desenvolvimento da comunidade, a escola surge como tentativa de uma ordem em mudança. Seria necessário que se instalasse uma cultura significativa que tinha por objetivo impor “ordem” à civilização. integrada, em que o todo resulta de partes integradas, ao mesmo tempo em que as partes contem em si o todo. Os procedimentos de análise do social podem então, eleger a parte e, por dedução, explicar a totalidade da vida social. (GUSMÃO, 2008, p.62). Assim sendo, o funcionalismo tem como pilar o estudo de outras culturas. Malinowski por meio do trabalho de campo, que consiste na observação, coleta de dados e interpretação dos acontecimentos que acontecem dentro do contextode cada grupo pesquisado, identificou que as sociedades possuíam problemas básicos semelhantes (como por exemplo, na alimentação e na organização do grupo) e que cada sociedade encontrava soluções diferentes para os mesmos problemas de sobrevivência da humanidade. E que cada atitude que a sociedade faz em sua cultura tem uma função, daí o nome de funcionalismo. Portanto, as necessidades de um grupo ou sociedade e suas respostas encontradas estão intimamente relacionadas com a sua cultura. SAIBA MAIS Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação180 Geralmente o sentido da “mudança” era baseado nos objetivos do Estado que visava o progresso e a modernização na sociedade urbana. A escola, nesse contexto de mudanças, do mesmo modo que fundamentava a estrutura funcionalista, era organizada em um sistema de ensino integrado por suas partes que era constituída por: pais, alunos e funcionários. (GUSMÃO, 2008). Note, portanto que apesar de já aceita a ideia da existência de múltiplas culturas humanas, a escola, surge como uma instituição que visava instaurar a ordem e mudança preconizando a instauração de um modelo de cultura homogêneo, com vista a garantir a modernização da sociedade e desconsiderando a riqueza e pluralidade das culturas populares. Em vista dos aspectos abordados acima, vale destacar que a relação entre educação e antropologia é essencial para o desenvolvimento da civilização humanas. As duas lidam com o ensinar – conhecimento e aprender – novas culturas. No decorrer dos anos, tanto a antropologia como a educação passaram por muitas transformações. A antropologia ampliou a sua vertente e atualmente. Visa entender a pluralidade humana e estudar grupos sociais diferentes. A educação, inicialmente ainda atrelada á época colonial, visava homogeneizar as culturas com o objetivo de instaurar a ordem e modernização das comunidades. Atualmente, a educação tem como desafio pedagógico absorver e dialogar com as diferenças e diversidade social e cultural do nosso povo. E então, caro aluno, será que a Escola moderna conseguiu atingir este objetivo? UNIDADE 04 Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação182 Concepções e Contribuições da Filosofia da Educação OBJETIVO Já aprendemos que o filósofo alemão Immanuel Kant reflete que “O homem é a única criatura que precisa ser educada” (KANT, 1996, p. 11). Afirma ainda que, ao contrário dos animais, os humanos necessitam de cuidados para sobreviver, crescer e, devido à nossa natureza racional, precisamos não apenas de cuidados físicos, mas também emocionais e intelectuais. Esses apontamentos sugerem que todo ser humano necessita de educação para tornar-se humano, uma vez que nenhum sujeito nasce “pronto”. Essa necessidade confere à nossa espécie uma necessidade gregária, ou seja, dependemos definitivamente de outros para nos tornarmos o que somos. A Educação está vinculada a todos os registros humanos, como o dos sentidos, das emoções, do conhecimento e até mesmo do caráter. Ao mesmo tempo, temos as relações de uns para com os outros e a relação para consigo mesmo. A análise sobre as ideias que fundamentam teorias pedagógicas pode ser uma das perspectivas do trabalho em Filosofia da Educação, como também podemos elucidar as questões dos sujeitos como construção cultural, social e histórica. A Educação pode ser compreendida como uma atividade que intenciona cumprir uma finalidade, tanto no sentido de preservar/manter quanto de transformar/modificar a realidade Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 183 e a sociedade. Como toda área de conhecimento, à educação são articulados pressupostos e conceitos que fundamentam e orientam seus caminhos norteadores. Nesse sentido, como bem nos informa Cipriano Luckesi, “não pode ser a prática educacional que estabelece os seus fins. Quem o faz é a reflexão filosófica sobre a educação dentro de uma sociedade” (LUCKESI, 1990, p. 31). Enquanto a educação se envolve com o desenvolvimento de jovens e adultos, a filosofia da educação trata da reflexão sobre o quê e como devem ser ou desenvolver esses indivíduos. Como vimos nas unidades anteriores, muitos filósofos do Ocidente tiveram como tema de suas reflexões a educação. Os chamados filósofos pré-socráticos, os sofistas, Sócrates, Platão foram os intérpretes das aspirações de seus respectivos tempos, apresentando-se como educadores. Séculos depois, na Idade Moderna, Kant, Hegel, Descartes e Rousseau, por exemplo, também refletiram o processo de adquirir conhecimento, o desenvolvimento pessoal do sujeito e, cada um da sua forma, as noções que representariam a educação. De certo modo, é possível dizer que todos eles tiveram uma preocupação com a definição de uma cosmovisão que deveria ser divulgada por meio dos processos educacionais. Filosofia e Educação são, portanto, dois fenômenos que estão presentes em todas as sociedades: a primeira se dedica à interpretação teórica das aspirações, desejos e anseios de uma determinada sociedade, enquanto a segunda se responsabiliza pela veiculação dessa interpretação. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação184 Figura 1: Filosofia e Educação Fonte: @freepik IMPORTANTE A Filosofia fornece à educação uma reflexão sobre a sociedade na qual está situada, sobre o educando, o educador, a ação pedagógica e para onde esses elementos podem caminhar. Faz parte desse cenário a reflexão sobre o que se faz em sala de aula a fim de se realizar uma ação educativa consciente. Logo, não há como se processar uma ação pedagógica sem uma correspondente reflexão filosófica, no sentido de que esta estabeleça pressupostos para ela. Contudo, se a reflexão filosófica não for realizada intencional e conscientemente, ela o será sob a forma do “senso comum”, assimilada ao longo da convivência dentro de um Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 185 grupo. Se considerarmos que a ação pedagógica não se processa a partir de conceitos e valores explícitos e conscientes, ela se processará, queiramos ou não, baseada em conceitos e valores que a sociedade propõe a partir de sua postura cultural. Nessa mesma linha de pensamento, Luckesi adverte que: Quando não se reflete sobre a educação, ela se processa dentro de uma cultura cristalizada e perenizada. Isso significa que nada mais há para ser descoberto em termos de interpretação do mundo (LUCKESI, 1990, p.32). De forma inconsciente, muitos educadores - com ou sem experiência - adaptam-se a essa interpretação do mundo, a qual permanece como a única linha norteadora para eles. É essencial para e na ação pedagógica, o ato de filosofar sobre ela, questionando-a e buscando novos sentidos e interpretações de acordo com as transformações pelas quais a sociedade passa. REFLITA Filosofia e educação estão intimamente articuladas no tempo e no espaço, ou seja, no contexto histórico de cada sociedade e numa determinada época. Você sabe distinguir quais são as principais características do atual momento cultural, social, político e econômico do nosso país e que refletem diretamente na ação pedagógica? Para além destas quatro dimensões, ainda podemos perceber a grande importância dos registros psicológicos, antropológicos, religiosos e de saúde, que também interferem na dinâmica nos processos educativos. Filosofar, hoje, pode significar a análise questionadora dessa conjuntura, sem perder a dimensão da pluralidade de respostas e elaborações reflexivas. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação186 De certa forma, podemos afirmar que “Uma pedagogia” inclui na sua práxis uma quantidade considerável de elementos que ultrapassam os limites dos pressupostos de qualquer linha ou corrente filosófica. Temos que incluir, obviamente, os processos socioculturais e econômicos, a concepção psicológica do educando e do educador, a forma de organização do processo educacional em termos de políticas públicas, entre outros. Porém,esses elementos compõem uma Pedagogia à medida que estão aglutinados e articulados a partir de um pressuposto, de um direcionamento filosófico. A reflexão filosófica sobre a educação é que fornece uma orientação à pedagogia, garantindo-lhe a compreensão dos valores que hoje direcionam a prática educacional. Assim, não há como se ter uma proposta pedagógica sem de fundamentos e proposições filosóficas, uma vez que tudo depende desse direcionamento. Cabe, nesta análise, lembrar que a Pedagogia Montessori, a Pedagogia Piagetiana, a Pedagogia da Libertação, entre outras, sustentam-se em uma linha filosófica sobre a educação. Muitas vezes, as proposições filosóficas estão subjacentes, mas nem por isso são inexistentes. Frequentemente a Filosofia da Educação é confundida com as próprias noções e concepções pedagógicas. Esse fato, conforme elucida Franklin e Pinheiro (2014), contribuiu para que a própria Filosofia assumisse que essa tarefa estava mais próxima de pedagogos que de filósofos. Contudo, essa compreensão é errônea, pois desde a origem do pensamento filosófico sistematizado, Filosofia e Educação estão intrinsicamente ligadas. Tanto uma como outra forma de pensamento e ação fazem parte da reflexão sobre os humanos e seu mundo. Essa preocupação conjunta conduz a Filosofia para o centro da ação pedagógica, transformando-se em Filosofia da Educação. A educação precisa ser vista, enfim, como um exercício para construir a realidade educacional, e não simplesmente como um dos “fundamentos da educação” ou como uma reflexão acerca das questões educacionais. Ademais, ele fala sobre as chances de se recorrer a um exemplo que já representou transgressão no passado e que, atualmente, é um mero clichê, como o uso do termo caixa de ferramentas, por exemplo. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 187 Filosofia da Educação e Formação Docente OBJETIVO De que forma o educador compreende a filosofia? A partir de quais pressupostos teórico-filosóficos ele poderá nortear sua prática pedagógica? Qual é a importância desse campo de saber para a educação? Qual é o papel da Filosofia na formação do educador? Essas questões são centrais para a Filosofia da Educação e, a partir de suas respostas, podemos compreender como ocorre na ação educativa a aplicação dos pressupostos filosóficos. A atitude filosófica emerge no momento que o educador suscita a reflexão crítica sobre os problemas existentes. O ato de ensinar exige que o educador acredite na mudança, devendo escolher metodologias que proporcionem ao educando o interesse e a curiosidade pelo conhecimento, formando os educandos para atuar e intervir ativamente na realidade. O ponto de partida para refletir sobre o processo de ensino-aprendizagem no contexto educacional inclui a ideia de inacabamento do ser que toma consciência dos seus atos e assimila a capacidade de aprender, não apenas para se adaptar à realidade, mas com o anseio de reconstruí-la. Em relação à escola primária, o campo filosófico tornou- se importante no processo educativo a partir da década de 1970 em função dos trabalhos de Matthew Lipman e Gareth Matthew. Ambos atuavam no Institute of Philosophy for Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação188 Children de Montclair State College e estavam preocupados com as soluções para um sistema educacional que julgavam ineficiente. Não só eles, mas outros grupos de professores, argumentavam que era necessário uma reforma do ensino que pudesse atender, especialmente as camadas da população que se encontravam em desvantagem educacional. Nessa direção, os autores mencionados defendiam a ideia de que o grau de suscetibilidade dos estudantes está articulado diretamente com aos danos causados pela ineficiência dos processos educacionais. E o que isso pode significar? Podemos afirmar que, num primeiro momento, não são as dificuldades pontuais dos alunos que devem ser o foco da busca por remediações, mas sim uma nova forma do professor conceber e conduzir as ações educativas. REFLITA Se partimos do princípio que todos os indivíduos, sejam crianças, adolescentes ou adultos, buscam significados que possam conferir sentidos às suas experiências de vida, em que medida a escola fornece isso a eles? Muitas informações e poucos significados? A referência da qual parte Lipman é Dewey, que em 1916 já havia alertado para a íntima associação entre Filosofia e Educação. Lipman analisa as expectativas de pais e crianças com respeito à escola, e quase todas são frustradas. Uma das formas de se compreender essa situação é perceber que os adultos tem muita dificuldade de ouvir as demandas por significados das Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 189 crianças e adolescentes, uma vez que estes, por seu turno, tem dificuldades argumentativas de expressar-se diante dos adultos. Segundo Lipman, as crianças acreditam em nossas palavras e têm pouca autoconfiança para questionarmos. Quando elas protestam (mais através do que não conseguem fazer do que pelo que fazem ou dizem), alegam não serem capazes de perceber os significados do que ensinamos (LIPMAN; SHARP; OSCANYAN, 1997, p. 23). A fim de contornar essa situação, pais e educadores utilizam o argumento da autoridade para se esquivar da responsabilidade de educar com significados. Ora, educar com significados não está articulado com o método originário da Filosofia? “A ênfase ao termo descobrir não é por acaso. A informação pode ser transmitida, as doutrinas podem ser incutidas, os sentimentos podem ser compartilhados, mas os significados têm de ser descobertos (LIPMAN; SHARP; OSCANYAN, 1997, p. 23). É de extrema importância desenvolver uma metodologia de ensino que possa conduzir as crianças à descoberta dos significados, pois não é possível simplesmente “dar” significados para os outros. As crianças se frustram e não conseguem compreender a importância do que está sendo ensinado justamente porque a escola fundamenta-se em “dar” conhecimento compartimentado em disciplinas, cujas especificidades não são articuladas ao todo e, principalmente, às suas vivências. Vejamos o que Lipman diz a respeito: Assim como todo mundo, as crianças anseiam por uma vida repleta de experiências ricas e significativas. Elas não querem simplesmente ter e compartilhar, mas ter e compartilhar de modo significativo, não simplesmente gostar e amar, mas sim gostar e amar significativamente; as crianças querem aprender mais significativamente. (LIPMAN; SHARP; OSCANYAN, 1997, p. 25) Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação190 Aliado a isso, Lipman chama atenção para o papel de mediação do professor na prática educativa: Qualquer criatura viva passa por um processo de crescimento, mas a ampliação da capacidade de crescer é algo só pode ocorrer sob a influência de um professor cuidadoso, interessado e que sabe o que faz. (LIPMAN, 1998, p. 96) Uma das ações solicitadas aos professores é de reconhecer e lidar com as capacidades e os estilos de pensar de seus alunos, incentivando tanto a criatividade quanto o rigor intelectual. Ao ensinar, o professor deve estar preparado para alimentar uma profusão de estilos de pensar e ao mesmo tempo insistir em que o pensamento de cada um seja tão claro, coerente e compreensivo quanto possível, desde que o conteúdo do pensamento não fique comprometido. (LIPMAN, 1998, p. 127). A contribuição do professor é ajudar a expressar a individualidade de sua experiência e a originalidade de seu ponto de vista. É nesse intenso processo de conviver com formas de pensar e se comunicar diferentes que as crianças aprendem umas com as outras. Cada criança é um indivíduo e, ao mesmo tempo, faz parte da comunidade. Esses dois fatos são indissociáveis. Como indivíduo, a criança é única e pode desenvolver suas capacidades específicas de acordo com o papel que desempenha no grupo. Sua especialidade individual se revelará na diferença que faz no grupo,e cada diferença deve fazer uma diferença. (LIPMAN, 1998, p. 210) Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 191 Figura 2: A criança Fonte: @freepik A ação investigativa pode ser ampliada no âmbito escolar transformando-se numa prática para todas as áreas de conhecimento. Nesta prática pode ser desenvolvido o pensar matemático, pensar artístico, pensar histórico, pensar científico, pensar religioso, entre outros. Além disso, estas formas de pensar se entrecruzam proporcionando um intenso processo inter e multidisciplinar. Por que não tentar? A criança é única e pode desenvolver suas capacidades específicas de acordo com o papel que desempenha no grupo. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação192 Filosofia da Educação e Educação Brasileira OBJETIVO Em relação ao tema “Filosofia da Educação e educação brasileira”, pretendemos abordar o pensamento de alguns autores, e os temas mais trabalhados que influenciaram a formação de professores brasileiros nas últimas décadas do século XX. Neste momento, é importante estarmos informados, sobre quais foram as matrizes filosóficas, que mais influenciaram a formação de professores no Brasil, bem como a influência das metodologias e procedimentos de ensino que foram sendo implementados no país no final do século passado. A obra Filosofia da Educação, de Cônego Ângelo A. de Siqueira reflete a educação brasileira na primeira metade do Séc. XX. Publicada em 1948, a obra tem o intuito de debater seguintes temas: Educação física, a Constituição Brasileira de 1946 e a Pedagogia Comunista. E qual seria, fundamentalmente, a concepção filosófica de educação de Siqueira? Para ele, a educação está diretamente associada à filosofia cristã católica, em especial, às ideias de São Tomás de Aquino. Atribui à educação o papel de formar a mente humana de acordo com os valores religiosos e sua intelectualidade, pautada num raciocínio científico aristotélico. O autor explica também como seria a relação dos professores com seus alunos: o educando é um sujeito ativo, isto é, seguindo uma concepção filosófica tomista, o professor deve intervir pouco e nos momentos certos, e que o aluno é o responsável por construir seu pensamento. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 193 Dessa forma, a atuação dos professores era respaldada pelo princípio de ativismo do educando, Isso quer dizer que seu papel era de conduzir e orientar os estudos de seus educandos, não cabendo ao mestre transferir todo o seu conhecimento a ele. Porém, essa conduta não retira da figura do mestre sua autoridade perante o aluno. Intitulada Filosofia da educação, a obra dos americanos John Redden e Francis Ryan, foi aceita e publicada no Brasil em 1964. Tal como Siqueira, os autores tiveram como objetivo apresentar a filosofia da educação baseada na filosofia católica. O livro intenciona alcançar esse objetivo por meio da exposição dos princípios da educação segundo a filosofia escolástica, a qual serve de parâmetro para “apreciação crítica de falsas filosofias da educação”. (REDDEN e RIAN, 1964, p. 7). Além disso, por meio da obra, defendem uma educação católica afirmando que esta [...] leva em conta o ‘homem integral’, porque nela se compreende o desenvolvimento e a disciplina de todas [sic] as potencialidades do corpo e da alma e, por isso, é essencialmente religiosa, moral, liberal, cultural e universal. (REDDEN e RIAN, 1964, p. 7). Desviando-se da pretensão de articular a filosofia da educação com a religião católica, um marco importante para a Filosofia da Educação brasileira foi a presença de Dermeval Saviani, com a publicação do livro Educação: do Senso Comum à Consciência Filosófica, em 1996. O autor estabelece os sentidos e as intenções da Filosofia da Educação, sendo que o ponto de partida refere-se ao “problema” e à “reflexão”, ambos colocados no centro da atividade filosófica. Suas preocupações voltam-se à “noção de problema”, “os usos da palavra problema”, a “necessidade de se recuperar a problematicidade do “Problema”, a “noção de reflexão” e “as exigências da reflexão filosófica”. As principais conclusões que Saviani desenvolve a partir desses temas incide Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação194 no que ele denomina Esquematização da dialética “ação- problema-reflexão-ação” (1996). Na tentativa de definir ou de discutir o papel da filosofia da educação e da história da educação no Brasil, Saviani diz que a Filosofia da Educação só poderá prestar um serviço à formação dos educadores na medida em que contribuir para que estes adotem esta postura reflexiva para com a problemática educacional. Se, ao contrário, nós, enquanto educadores, nos limitarmos a tomar conhecimento de determinados resultados a que se chegou a partir de determinadas reflexões, então não estaremos desenvolvendo a reflexão filosófica propriamente dita. (SAVIANI, 1996, p. 29). Por conseguinte, Saviani publicou um importante artigo na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, qual seja: “A filosofia da educação no Brasil e sua veiculação pela revista brasileira de estudos pedagógicos” (1984). Neste artigo, o autor analisa a periodização das principais concepções de filosofia da educação no Brasil. Até 1944, a educação recebeu influência das seguintes correntes: primeiro foi fundada no espírito do Tomismo-Aristotélico, que trazia como modelo fundamental a Ratio Studiorum. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 195 DEFINIÇÃO Ratio Studiorum O Ratio atque Institutio Studiorum Societatis Iesu (Plano e Organização de Estudos da Companhia de Jesus), normalmente abreviada como Ratio Studiorum, é uma espécie de coletânea fundamentada em experiências vivenciadas no Colégio Romano, a que foram adicionadas observações pedagógicas de diversos outros colégios, cujo objetivo era instruir rapidamente todo o jesuíta docente sobre a natureza, a extensão e as obrigações do seu cargo. O Ratio surgiu com a necessidade de unificar o procedimento pedagógico dos jesuítas diante da explosão do número de colégios confiados à Companhia de Jesus como base de uma expansão em sua totalidade missionária. Constituiu-se numa sistematização da pedagogia jesuítica contendo 467 regras cobrindo todas as atividades dos agentes diretamente ligados ao ensino e recomendava que o professor nunca se afastasse do estilo filosófico de Aristóteles, e da teologia de Santo Tomás de Aquino. Fonte: https://bit.ly/3nzI27t Esta orientação pedagógica deteve o monopólio do ensino no Brasil durante aproximadamente dois séculos. É justamente o tomismo que se encontra nos fundamentos da Ratio Studiorum a que limitava, na regra no 35, os livros de estudo à summa theologica de Santo Tomás de Aquino e à obra de Aristóteles. (SAVIANI, 1984, p. 274) Ainda no início do século XX, houve também a influência da vertente liberal, que promoveu mudanças em relação à vertente religiosa. Na década de 1930, os ideais do escolanovismo, por Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação196 meio do Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova, fizeram oposição ao grupo dos católicos. Além disso, a aprovação da Constituição de 1934 revelou um equilíbrio de forças entre os católicos e os pioneiros no âmbito educacional. À resistência dos católicos correspondeu um progressivo avanço dos pioneiros que já no início da década de 1930 ocupavam os principais postos da burocracia educacional. (SAVIANI, 1984, p. 276). Quanto à concepção, ou às concepções de filosofia da educação brasileira, o autor demonstra que o momento da Ratio é o que foi classificado de “Concepção Humanista Tradicional na sua vertente religiosa”. Enquanto o momento da educação, no início da república, é classificado de “Concepção Humanista Tradicional na sua vertente leiga”. Saviani coloca, ainda, que a “Concepção Humanista Moderna” ganha impulso a partir de 1924, sendo que, após 1945, é que esta concepção se delineiapredominante. (SAVIANI, 1984, p. 275). Após o ano de 1944 houve o predomínio da Concepção Humanista Moderna, que tem uma visão de homem centrada na existência, na vida, na atividade. Se na visão tradicional a educação se centrava no adulto (no educador), no intelecto, no conhecimento, na visão moderna o eixo do processo educativo se desloca para a criança (o educando), a vida, a atividade (SAVIANI, 1984, p. 276). A tendência educacional Humanista Moderna entrou em crise entre 1960 e 1968, período em que se articulou a tendência tecnicista. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 197 RESUMINDO Dermeval Saviani (1984), ao analisar a Filosofia da Educação na RBEP, utiliza como critério a vinculação dos artigos por ela publicados com as correntes educacionais brasileiras. Ele baseia- se numa periodização provisória dessas correntes educacionais constante de artigo publicado no ano anterior, assim: de 1945 a 1960, concepção humanista moderna; de 1960 a 1969, articulação entre a concepção humanista moderna e a tecnicista; de 1969 em diante, em que domina a concepção tecnicista e as manifestações da filosofia analítica. Segundo a sua análise, até o ano de 1962 são publicados exclusivamente artigos com enfoque humanista moderno (Escola Nova) e, a partir dessa data, também artigos com a visão tecnicista. Outro importante autor que se debruçou sobre a Filosofia da Educação no Brasil é Moacir Gadotti. Seu livro publicado em 1987, Pensamento Pedagógico Brasileiro, faz apontamentos sobre a teoria da dependência, a teoria da Modernização e coloca a pedagogia progressista como fundamento de sua perspectiva. Para ele, a educação brasileira tem influência por duas concepções, e que vive numa encruzilhada entre a educação de cunho “liberal conservador e uma concepção democrática e popular que nasce do movimento de organização e de conscientização (...)”. (GADOTTI, 1987, p. 139) O artigo chamado Ideias diretrizes para uma Filosofia da Educação, publicado em 1979 na revista Reflexão, Gadotti discute a situação da educação e da pedagogia naquele período. Para ele, a educação deve apresentar um desafio para a filosofia, Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação198 o que denota de uma perspectiva de pensar a filosofia da educação pela práxis da ação educativa. Segundo suas palavras: [...] a Filosofia da Educação não poderá tornar-se uma especialidade qualquer com seus “mestres” e seus “peritos”: ao meu ver, ela deve ser uma preocupação que concerne finalmente a todos os parceiros, todos os atores da educação. Promover uma filosofia da educação não significa dar o poder aos filósofos (em nome de uma doutrina ou de uma sabedoria dos quais eles seriam os guardiães, e teriam o monopólio), de decidir, do alto e pelos outros, o que a educação deveria ser, separando os que pensam daqueles que executam, o pensar, do trabalho. A filosofia da educação dever contribuir para indicar possíveis caminhos, para esclarecer, para suscitar o espírito de responsabilidade, de lucidez, de participação na solução dos problemas educacionais que são os nossos, os problemas do nosso tempo. (GADOTTI, 1979, p. 10) Antônio Joaquim Severino, outro autor que se destaca devido às suas preocupações com a Filosofia da Educação, entre vária publicações, lançou em 1993 o livro Paradigmas filosóficos e conhecimento da Educação: limites do atual discurso filosófico no Brasil na abordagem da temática educacional. Seu objetivo é inserir a questão da presença das dimensões política e educacional no discurso filosófico que vem constituindo o tecido da reflexão sistemática da filosofia entre nós. (SEVERINO, 1993, p. 132) O trabalho de Severino procura evidenciar as concepções que marcaram nossa cultura filosófica: a tradição metafísica clássica, a tradição positivista, a tradição subjetivista e a tradição dialética. Diz, ainda, que a reflexão filosófica atual no Brasil vem ensaiando alguns voos de autonomia sem se desvincular das grandes tradições e tendências da filosofia ocidental. (SEVERINO, 1993, p. 133). Resultado de uma pesquisa que Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 199 o autor realizou entre os professores de filosofia e filosofia de educação, explicita as “inspirações que marcam o pensamento filosófico atual no Brasil”. Para Severino, É assim que se pode constatar que em nossa cultura filosófica atual se faz presente, ainda que numa condição de resistência, a tradição metafísica clássica, com sua perspectiva essencialista de compreender a realidade. Manifesta-se fundamentalmente nas expressões teóricas do neotomismo. Mas também tem forte presença entre nós, numa perspectiva de crescente consolidação, a tradição positivista, que se expressa nas correntes e vertentes neopositivistas e transpositivistas, mantendo, e até certo ponto ainda consolidado, as posturas cientificistas; por outro lado, a tradição subjetivista se faz presente através das tendências e correntes vinculadas aos neo-humanismos, à fenomenologia, à arqueogenealogia e ao culturalismo. Por fim, também vem adquirindo uma consistente expressão filosófica a tradição dialética, representada por correntes vinculadas às diversas vertentes do marxismo e, de modo especial, à dialética negativa fundada na teoria crítica frankfurtiana. (SEVERINO, 1993, p. 134). Severino deu continuidade em suas reflexões na obra A filosofia contemporânea no Brasil: conhecimento, política e educação (1999), propondo um levantamento sobre a prática da filosofia no atual momento cultural brasileiro, buscando perceber as tendências, os temas e as abordagens que esse discurso filosófico vem assumindo. Nesse texto Severino aponta dados sobre a formação do pensamento filosófico brasileiro, falando da ligação entre a filosofia, a educação e a política como pontos para a construção de um projeto civilizatório. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação200 Quando se busca entender as atitudes fundamentais que delineiam os estilos específicos do filosofar brasileiro, duas constatações chamam logo a atenção. A primeira constitui uma verdadeira tradição: a grande maioria dos nossos pensadores desenvolve seu esforço teórico deixando-se guiar por algum modelo filosófico já constituído. (SEVERINO, 1999, 24) A filosofia entre nós nem sempre revela uma preocupação em se posicionar explicitamente quanto ao sentido da tarefa do filosofar, aponta o autor. “(...) Esta ausência de conceituação expressa parece vincular-se à primeira constatação, decorrendo do fato de que ao se colocar na linha e ritmo de um modelo já constituído de filosofia, ele está assumindo simultaneamente três elementos: uma temática, uma teoria do filosofar e uma metodologia de reflexão. Filosofar parece, então, ser assumido como preceder de modo igual ao dos representantes mais significativos do modelo seguido” (SEVERINO, 1999, p. 25). No último capítulo, o autor trata da Filosofia da Educação como uma “dimensão política e educacional no discurso filosófico”. Este último capítulo trata do mesmo texto, com alguns ajustes, que anunciamos acima com data de 1993. O que é Filosofia da Educação, livro publicado em 1999, sob a coordenação de Paulo Guiraldelli Jr., é uma coletânea de vários artigos: sendo quatro de autores estrangeiros e seis de brasileiros. Os textos estão assim colocados: “O que é filosofia da educação” – uma discussão metafilosófica: Do advento dos tempos modernos à reconstrução da Filosofia da Educação pelo Neopragmatismo nos tempos contemporâneos, escrito por Paulo Guiraldelli Jr. Segundo o próprio autor, o texto tenta responder à pergunta “o que é Filosofia da Educação”; este texto divide-se em seis partes: �O chamado pensamento moderno e a filosofia moderna, de base iluminista e romântica, nos quadros do humanismo. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 201 �Crítica à filosofia da consciência ou filosofia do sujeito, o núcleo central,metafísico-epistemológico, do pensamento humanista e da filosofia da educação moderna. �Exposição sobre o que alguns pensadores e algumas correntes reservaram à filosofia da educação nos tempos contemporâneos. � Impasses da filosofia social e política da educação, ainda comprometida com o pensamento moderno e, portanto, sujeita às críticas desenvolvidas contra a filosofia da consciência e/ou filosofia do sujeito. �O projeto neopragmatista. �Avaliação das responsabilidades de uma filosofia da educação neopragmatista, incluindo uma definição a respeito da filosofia da educação. (GUIRALDELLI, 1999, p. 7). Outra produção, Filosofia da Educação, editado pela DP&A, em 2000, de Paulo GUIRALDELLI Jr, faz parte da coleção “o que você precisa saber sobre”. Segundo o autor, o livro trata dos debates internos à filosofia da educação moderna, destacando J. F. Herbart, Jonh Dewey, Émile Durkheim e Paulo Freire. Também disserta sobre o que acontece com a filosofia da educação em uma situação pós-moderna. Explica com detalhes e de forma didática as alterações nas teorias de verdade das filosofias, o nascimento de posturas minimalistas no campo das teorias de verdade e a ligação disso tudo com novas perspectivas na filosofia da educação. Destaca então a transição do moderno para o pós-moderno, enfatizando a colaboração dos filósofos atuais como Willard V. Quine, Donald Davidson e Richard Rorty. (GUIRALDELLI JÚNIOR, 2000). Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação202 Filosofia da Educação, Contemporaneidade e Subjetividade OBJETIVO O período que compreende a Filosofia Contemporânea é de meados do século XX até os dias atuais. Nos anos de 1990, com o enfraquecimento da teoria marxista, os pensamentos dos filósofos pós-estruturalistas como Michel Foucault, Jacques Derrida, Giles Deleuze, Felix Guattari, Jean Baudrillard, Judith Butler, Luce Irigaray, Julia Kristeva, Hèlene Cixous e Jean-François Lyotard são verdadeiramente importantes para a Filosofia da Educação, especialmente no que se refere ao tratamento que eles fornecem aos problemas contemporâneos. Além da corrente francesa pós-estruturalista, ainda temos outros filósofos que conquistaram grande visibilidade, tais como: Frantz Fanon, Thomas Kuhn, Jugen Habermas, Richard Rorty, Edward Said, Henry Odera Oruka, Peter Singer e Slavoj Zizek. Os temas tratados por grande parte desses filósofos correspondem às questões próprias do século XX e início do século XXI. Temas nunca antes tratados como o multiculturalismo, o feminismo, seres sencientes, a sexualidade e a homossexualidade, por exemplo, foram inseridas no pensamento filosófico ocidental, bem como os assuntos referentes às questões raciais e étnicas. Do pós-modernismo, adquiriram-se os diversos tipos de relativismo, como o psicológico, epistemológico, cultural, entre outros. Vale ressaltar, contudo, que essas duas correntes intelectuais – o pós-modernismo e o pós-estruturalismo – não são delimitadas por diferenciações rigorosas no que diz respeito Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 203 às teorias educacionais, por isso é comum que as duas sejam enquadradas como pós-modernistas (PORTO, 2006). Conforme nosso atual contexto sócio-histórico, o que compreendemos como educação na contemporaneidade revela os limites dos modelos ético-políticos das tradições racionalista e metafísica da modernidade. A educação começa a perpassar por um âmbito antropológico e psicológico, além naturalmente das dimensões éticas e políticas. Um dos temas problematizados pela filosofia contemporânea é a questão da “verdade”. “Como ocorre que o sujeito humano se torne ele próprio um objeto de saber possível; por meio de que formas de racionalidade, de que condições históricas e, finalmente, a que preço?”, questionou Michel Foucault (2013, p. 334) em uma entrevista concedida ao filósofo Gérard Raulet, publicada em 1983, na revista Telos. Iniciar essa seção por meio do questionamento de Foucault – por uma pergunta que é, antes de tudo, genealógica sobre os modos como as verdades determinam, em maior ou menor grau, o que somos e o que podemos ser em um determinado contexto – nos permite trazer uma questão cada vez mais urgente e necessária: a necessidade de assumirmos uma postura problematizadora diante dos modos como nos constituímos como sujeitos inscritos nas políticas da verdade, sobretudo em suas dimensões ontológicas e epistemológicas. No tocante ao campo epistemológico, Foucault (2010) evidenciou como, a partir da modernidade, a relação do sujeito com a verdade se efetiva, muito singularmente, intermediada pela razão e pelo conhecimento. Para o autor, é a partir deles e de sua complementaridade irrenunciável, que as condições de acesso do sujeito à verdade podem ser definidas. Foucault (2014, p. 185) destaca,com base em Nietzsche, que, de fato, somos até hoje herdeiros dessa inextricável relação a partir da qual o que entendemos como conhecimento (na qualidade de produção de um sujeito cognoscente) se torna sinônimo de verdade. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação204 Qual a importância disso para as questões aqui discutidas e para a Filosofia da Educação? É no jogo do verdadeiro e do falso, em que o conhecimento ocupa lugar ímpar para a consolidação de um dado saber como verdade, que a dimensão ontológica da política da verdade emerge e atua na produção de sujeitos. Afirmar sobre o modo como a verdade atua ontologicamente implica entender o quanto ela se faz próxima, nos mínimos gestos, daquilo que somos (ou devemos ser) enquanto sujeitos. Entendida como forma também de poder, a verdade “aplica- se à vida cotidiana imediata que categoriza o indivíduo, marca-o com sua própria individualidade, liga-o à sua própria identidade, impõe-lhe uma lei de verdade que devemos reconhecer e que os outros têm de reconhecer nele” (FOUCAULT, 2010a, p. 278). Logo, entendemos que a verdade pode, no sentido da sujeição, estabelecer relações de reconhecibilidade em que os marcos normativos de uma ontologia do sujeito, instituídos pelas redes de saber-poder, determinam o que é permitido ou proibido ao indivíduo: Em Foucault, parece, há um preço por se dizer a verdade sobre si mesmo, precisamente porque o que constitui a verdade será enquadrado por normas e modos específicos de racionalidade que emergem historicamente e são, nesse sentido, contingentes. Na medida em que dizemos a verdade, conformamo-nos a um critério de verdade e aceitamos esse critério como o que nos vincula a nós mesmos. [...] Portanto, dizer a verdade sobre si mesmo vem com um preço e o preço é a suspensão de uma relação crítica com o regime de verdade em que se vive. (BUTLER, 2005, p. 121-122) O que Butler nos indica, baseada em Foucault, é que não somos meros efeitos dos regimes de verdade; antes disso, os atos de verdade a que somos convocados em nossa cultura nos Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 205 constituem (e, de modo paralelo, são por nós constituídos) a certo preço como sujeitos, e isso de modo historicamente contingente. Quando a autora afirma que esse preço implica a suspensão de uma relação crítica com um regime de verdade, ela mostra o quanto a adesão a ele implica uma negação de sua historicidade. Ou seja, Butler destaca que a edificação de certo conhecimento tido como a verdade pressupõe, em algum sentido, exorcizá-lo de sua historicidade, pressupondo-o como ahistórico. Como, então, se efetiva a resistência a um tipo de poder que não exige somente a obediência, mas que nos convoca a atos de verdade que correspondem à manifestação constante daquilo que se é – a atos de verdades que dizem respeito aos nossos desejos? É, pois, no conceito de crítica foucaultiano, que se encontra uma possibilidade de pensar em formas de resistência aos modos de sujeição às verdades. A crítica, concebida como uma atitude diante do mundo, nos coloca diante de uma questãotão direta como complexa: como não ser governado pelas verdades hegemônicas de nosso tempo? Para Foucault, enquanto atividade questionadora dos modos como somos governados por certas verdades, a crítica diz respeito a uma atitude diante do mundo, um modo de transformação e mesmo de criação do pensamento: Fazer a crítica é tornar difícil os gestos mais simples. Nessas condições, a crítica (e a crítica radical) é absolutamente indispensável para a transformação, pois uma transformação que ficasse no mesmo modo de pensamento, uma transformação que só fosse uma certa maneira de melhor ajustar o mesmo pensamento à realidade das coisas, não passaria de uma transformação superficial. Em compensação, a partir do momento que começamos a não mais poder pensar nas coisas como nelas pensamos, a transformação torna-se, ao mesmo tempo, muito urgente, muito difícil e Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação206 absolutamente possível. (FOUCAULT, 2013b, p. 356-357). IMPORTANTE A crítica é uma forma de colocar em movimento uma transformação do pensamento, como um trabalho de constante questionamento do que somos e do que podemos ser. De algum modo, a crítica diz do ato de fraturar as verdades das quais somos sujeitos. Portanto, ela é um exercício que pode deslocar o pensamento da ordem da sujeição, inscrevendo-o, mesmo que de forma provisória, como possibilidade de resistência e de luta às formas instituídas pelas quais nos fazemos sujeitos em nossa cultura. Outro filósofo da corrente pós-estruturalista que escolhemos destacar nessa unidade dedicada à Filosofia Contemporânea é o francês Gilles Deleuze (1925-1995). Deleuze, na década de 1960 e início da década de 1970, realizou ensaios sobre o estruturalismo, tendo a intenção de fazer modificações e levá- lo a radicalidade. No texto chamado Diferença e Repetição, ele reflete sobre o quanto que o estruturalismo poderia se tornar radical, vindo a ser, portanto, o pós-estruturalismo. Ao mesmo tempo, ele tem uma visão do pensamento de que os conceitos podem se modificar, resistindo à ideia de fixidez ou, em outras palavras, aos conceitos identitários. Aliás, o rígido para ele é sempre sinal de repetição e que não favorece os signos da diferença (os simulacros). Por isso, uma das questões centrais para entendermos sua filosofia refere-se ao tratamento da diferença no interior das repetições a fim de se evitar a repetição e a rigidez. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 207 DEFINIÇÃO Simulacro O conceito de simulacro tenta dizer que um signo não é uma relação entre identidades, mas uma sensação individual ligada a um movimento dentro de várias identidades e com variações dentro das estruturas. O simulacro deve ser pensado em termos de todos os processos que ele une. Só que isso não significa que podemos sintetizar uma representação total do simulacro. Ainda em relação aos simulacros, para Deleuze, Derrida e Foucault, não há nenhuma origem, ou um pensamento fundante, apenas uma cadeia de simulacros interconectados. Nada existe fora dessas cadeias. Mas o que Deleuze entende por estruturalismo? Surpreen- dentemente, para ele a estrutura não se define como um simples modelo teórico de uma coisa estruturada. Não é simplesmen- te uma representação das coisas. Pelo contrário, ela é definida como uma condição necessária para a transformação e uma parte viva das coisas. Pós-estruturalismo, para ele, é a percepção de que a estrutura pode ser vista como o limite do conhecimento de qualquer coisa. E esse limite é a condição para possíveis trans- formações. Então, em relação ao estruturalismo e ao pós- estruturalismo, podemos chegar à seguinte conclusão: ambos não podem ser entendidos de maneira oposicional. Eles se relacionam. O pós-estruturalismo deve ser visto com a transformação do estruturalismo. Temos que ir para além dos conceitos de representação e identidades fixas e imutáveis. As respostas que ele dá são em termos de características formais, Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação208 e não de definições essenciais. Deleuze explica como as coisas funcionam, e não como elas são. Estruturalismo e pós-estruturalismo trabalham com relações e mudanças que acontecem no interior de diferentes sociedades. Ambos operam com as condições relacionais para entender o aparecimento de situações, que podem ser referidas na linguagem, como também sentidas. Deleuze traz o estruturalismo a um compromisso com a rede de conexões e podemos dizer que isso é uma característica de sua filosofia. Para ele, é incoerente uma verdade final ou o conhecimento completo e absoluto sobre um conteúdo particularmente. Há sempre mais combinações possíveis além daquelas referidas numa dada situação. E, talvez o mais importante aqui para os educadores, é perceber que os signos são múltiplos, são estruturas móveis de relações aos invés de pares binários, sempre em oposição e imutáveis. Enfim, Deleuze propõe a abertura para entendermos os fenômenos da vida desde que haja oposição a uma única determinação causal. RESUMINDO Em se tratando das relações estruturais, há uma determinação/ relação recíproca de uma estrutura pela outra. Uma relação numa estrutura não tem nenhum sentido independente. É uma via de mão dupla. Todas as coisas estão conectadas e não há nada transcendente ou que está num nível superior, causando a realidade. Deleuze, então, privilegia a multiplicidade de relações sobre seus elementos ou sobre suas relações individuais. A importância disso está no fato de que não compreendemos as situações e os fenômenos de uma maneira completa se não dermos conta das possíveis estruturas que são correlatas. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 209 Se o pós-estruturalismo se opõe a verdades fundantes, este posicionamento requer uma maneira diferente de formularmos perguntas e respostas. Aqui ele foca numa faceta muito importante do pós-estruturalismo, abordando a importância do conceito do problema, ao lado do conceito da questão. Na verdade, Deleuze privilegia os problemas mais que as questões. Os problemas são inacabados, contínuos e se inter-relacionam. Já as questões, são limitadas pelas respostas. Nesse sentido o autor dá exemplos de perguntas que devem ser evitadas em função de questões particularmente mais complexas. Enfim, para Deleuze, um problema é determinado pelo modo no qual diferentes estruturas se encontram e se chocam. Exemplo disso é o choque de culturas que, na perspectiva pós-estruturalista, tal choque acaba definindo elas mesmas. Por conseguinte, a pretensão do sujeito como um “ser fundamento da verdade” (no conhecimento) ou não ação (pelo livre arbítrio) é ilusória. O sujeito perde sua estabilidade em razão da sua relação com lugares vazios de indeterminação e com eventos que fogem à sua compreensão. Sempre há algo que não podemos dar conta ou compreender. Só que Deleuze não se opõe ao sujeito. Suas observações sobre ele não têm nada a ver com a ideia de sua eliminação (fim do sujeito) ou com a ideia de que podemos ultrapassá-lo. O seu sujeito, portanto, não é fixo e não tem uma identidade única, pois ele é, conforme suas palavras, “móvel, nômade e singular”. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação210 REFLITA O que é interessante pensar aqui é justamente sobre o lugar das diferenças entre os indivíduos. Essas diferenças exigem, então, uma nova política e ética, uma vez que nos levam a ir além das noções acerca de normas e valores intersubjetivos compartilhados. Ou seja, nos forçam a ir além das verdades significativas em comum e dos determinismos pré-estabelecidos. Por fim, para Deleuze não há propriamente uma forma verdadeira de pensamento externo, pois não há fundamento no qual ela pudesse se apoiar. Por isso o pós-estruturalismo é antifundacional e aberto a um modo construtivo do pensamento. As cadeias de pensamento começam com encontros ao acaso e por isso o pensamentoé uma relação com algo inesperado. Isso implica que ele deve ser uma prática criativa ao invés de um corpo fechado e definido de conhecimento. Produção de Subjetividades Com muita frequência vê-se a transformação do homem naquilo que ele precisa se tornar como uma responsabilidade da educação, ou da psicologia, no entanto, nem todos os teóricos concordam com essa visão. Contudo, a Filosofia da Educação na contemporaneidade precisa enfrentar justamente esse problema, quando se faz a relação entre a educação e o projeto antropológico. Pensar a constituição e a experiência da subjetividade na prática educativa é o maior desafio. O debate acerca do que se convencionou nomear amplamente de “subjetividade” vem de longe. Os esforços para enfrentar o desafio da compreensão da “vida subjetiva”, Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 211 estabeleceram-se desde sempre no contraponto com a “vida objetiva”, explicitando duas dimensões fundamentais da condição humana: a objetividade – externa, material, coletiva, prática - e a subjetividade - interna, afetiva, espiritual, individual, emocional. Esses esforços podem ser apreendidos em boa parte da discussão acerca da relação entre indivíduo e sociedade, que sempre ressoou a relação entre a subjetividade e a objetividade. Pode-se ponderar que não existem mais dúvidas a esse respeito no campo das ciências filosóficas, historiográficas e práticas sociais. Afinal, ninguém discordaria de um autor (filósofo, historiador, sociólogo, antropólogo, educador, entre outros) que postulasse as seguintes observações: Que a relação entre indivíduo e sociedade implica a consideração da subjetividade e da objetividade na perspectiva da constituição recíproca de um e de outro. Este seria o campo da intersubjetividade. 1. Que a determinação social da vida subjetiva e a determinação subjetiva na vida social não estão mais em questão porque esse é um pressuposto que restou suficientemente provado na história e no debate travado nas ciências humanas e sociais em geral. 2. Que não é mais suficiente entregar a subjetividade somente à responsabilidade e aos contornos da Psicologia. 3. Que não é possível continuar questionando socraticamente a psicologia para obrigá-la a confessar que não pode definir, por si, os fundamentos da subjetividade. 4. Que a psicologia não detém o “segredo” da subjetividade porque esse “segredo” não é de ordem exclusivamente psicológica. Pode-se, enfim, ponderar que a questão da relação entre objetividade e subjetividade, entre sociedade e indivíduo, não estaria mais em questão e, portanto, não haveria mais por que indagá-la. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação212 Se assim fosse, estariam superadas, no pensamento contemporâneo, as tendências de se considerar o indivíduo e a sociedade, a subjetividade e a objetividade, como realidades distintas especialmente num momento em que se afirma e valoriza a subjetividade. IMPORTANTE Contudo, a realidade não confirma essa afirmação. O suposto da unidade entre objetividade e subjetividade é apenas retórico e o dilema secular se atualiza e se complexifica no presente, seja quando alterna a ênfase sobre o indivíduo e a sociedade, sobre a subjetividade e a objetividade, quando dilui um no outro ou quando conserva a integridade ativa e absoluta de um frente a passividade de outro. Não seria exagero considerar que algo parece anunciar a emergência da subjetividade como uma, senão a grande novidade a ser enfrentada pelas ciências sociais e humanas na contemporaneidade. Estranhamente, é justo quando o processo de individualização do homem alcançou patamares nunca imaginados que se reportam à subjetividade como uma grande inovação contemporânea. Justo quando declinam, as possibilidades de autonomia e emancipação do sujeito, postula- se o aparecimento da subjetividade como questão a ser debatida. Para além da subjetividade, temos também outro importante conceito, a intersubjetividade. Ela refere-se à relação entre as várias dimensões que afetam o sujeito, à interação das várias particularidades e a tudo o que se refere à singularidade dos sujeitos. A própria comunidade dos indivíduos constitui uma rede de intersubjetividades na qual cada ponto afeta de Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 213 alguma maneira o outro, produzindo indeléveis ou explícitas pressões que impõem um certo horizonte de possibilidades às experiências vividas. Nessa direção, acreditamos na possibilidade de vislumbrar a positividade da subjetivação como resistência, singularidade e produção de diferença. Para o francês Félix Guattari, na obra escrita com a brasileira Suely Rolnik, Micropolítica: Cartografias do desejo, importa pensarmos em uma subjetividade descentrada, múltipla, nômade, que dialoga com a superfície e não com o fundamento, a substância em si. Busca-se pensar uma subjetividade construída na imanência (aqui e agora). Ela não é mais substância ou fundamento fixo, mas superfície, fluxos de vida e singularidades. Guattari explica que devemos nos afastar da ideia de que as representações, papéis identitários e ideologias são colocadas às pessoas no que diz respeito à produção subjetiva. IMPORTANTE Contra a existência de uma lógica da identidade, Guattari mostra que os conceitos de “totalidade”, “unidade”, “fundamento” e “substância” são traços predominantes da filosofia metafísica e representacional. Por isso que ele faz um elogio ao campo da micropolítica: ao devir, ao transitório, à multiplicidade, ao diverso, à diferença, como elementos capazes de mostrar outro sentido para a compreensão da vida. Para Guattari, conforme a filosofia metafísica, as subjetividades são cortadas de suas realidades políticas, de suas condições de produção, de sua polifonia constitutiva e de seu caráter processual, uma vez que elas se particularizam e se autonomizam na esfera individual. Isso é válido no sentido de Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação214 não pensarmos a representação do mundo na consciência de um sujeito autônomo, mas que nele se exprimem uma multiplicidade de objetos e de signos concatenados para formar um gosto, um jeito de vestir, um modo de viver e pensar. Devemos não mais falar em sujeito dado a priori, mas em agenciamentos coletivos de enunciação, “máquinas de produção subjetiva, concerto polifônico de vozes, devires imperceptíveis, mutações afetivas e outras sensibilidades” (GUATTARI; ROLNIK, 1999, p. 45). Devemos focar no descentramento da questão do sujeito para a da produção de subjetividade, pois esta, como nos diz Guattari (Ibid., p.28) “constitui matéria-prima de toda e qualquer produção”. E quais condições podem estar relacionadas à produção de subjetividade dos indivíduos? Estão implicadas nesta questão a manifestação linguagem, as instâncias etológicas (costumes e hábitos de uma cultura), as experiências transgeracionais e familiares, as interações institucionais de diferentes naturezas, as referência musicais, literárias, artísticas e estéticas, as formas comunicacionais (vide as redes sociais e outros dispositivos ligados a rede mundial de computadores), entre outros. Para o educador, portanto, seria interessante considerar um universo múltiplo que constitui a subjetividade de seus alunos, e não somente instâncias tradicionais, como igreja, estado e escola. Para Guattari e Rolnik, a subjetividade é uma trama que não está dada, mas que está em composição contínua com diferentes arranjos, sendo assim, ela não está na ordem do “identificado”, como uma espécie de moldura formatada e fixada que leva à padronização do indivíduo a ser conhecido e reconhecido, pois “a subjetividade não é passível de totalização ou centralidade no indivíduo” (por isso fala-se em sujeitos descentrados). Ela está sempre em processo e identificada no registro social e cultural. Já que ela não pode ser identificada, como que o educador poderá falarde “visão de mundo” sustentando, consequentemente, uma proposição organizada para o agir (LUCKESI, 1993, p. 23). As finalidades das ações tomadas por todos nós são aquelas que configuram um sentido para a existência, em suas mais variadas dimensões. É interessante notar que a Filosofia dos gregos revela, como aponta Russel, a influência de certo número de dualismos para compreender o mundo (verdade x falsidade, certo x errado, justo x injusto, bem x mal, bom x ruim, harmonia x discórdia Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação22 RESUMINDO etc.). O pensamento ocidental, portanto, tem em sua base o dualismo como maneira de perceber e interpretar o mundo e seus fenômenos. Sob uma ou outra forma, esses continuaram sendo tópicos sobre os quais os filósofos escrevem e discutem. “Por conseguinte, vem o dualismo da aparência e da realidade, muito vivo nos dias de hoje” (RUSSEL, 2013, p. 21). Junto com eles temos as questões da mente e da matéria, da liberdade e da necessidade, além de existirem as questões cosmológicas, que se referem a perguntas como: se as coisas são uma ou muitas; simples ou complexas e, finalmente, os dualismos do caos e da ordem, do ilimitado e do limite. Neste capítulo, abordamos o conceito da Filosofia e estabelecemos relação com as suas origens, além de estudarmos as principais críticas aos sofistas. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 23 Sócrates, Platão, Aristóteles e seus Lugares na História da Filosofia Ao final do estudo deste capítulo, você será capaz de reconhecer as bases teóricas que fundamentam a história da Filosofia da Educação a partir dos estudos de Sócrates, Platão e Aristóteles. Sócrates As três maiores figuras da Filosofia grega estão ligadas a Atenas. Sócrates e Platão eram atenienses de nascimento e Aristóteles ali estudou e mais tarde ensinou. Sócrates (469- 399 a.C.) nasceu em Atenas e foi condenado por “impiedade”, ou seja, sua condenação foi baseada em acusações de não crer nos deuses da polis e corromper os jovens. Esse filósofo viveu o apogeu e a crise da democracia ateniense. Atenas, após a vitória sobre os persas, havia se tornado uma grande potência, estendendo sua influência por quase toda a Grécia (ABRÃO, 1999, p. 41). A vida cultural é intensa, com grandes escultores e artistas, dramaturgos como Ésquilo, historiadores (Heródoto e Tucídides), o médico Hipócrates e os homens públicos como Péricles. Contudo, a hegemonia de Atenas fez crescer rivalidades com Esparta, as quais culminariam na Guerra do Peloponeso em 431 a.C. O conflito durou décadas, findando em 404 a.C. com a derrota de Atenas. O regime democrático ateniense se enfraqueceu em função de intrigas, conspiração e corrupção. OBJETIVO Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação24 DEFINIÇÃO A crise de valores políticos e morais é muito significativa nesse contexto histórico de forma que a condenação de Sócrates, em 399 a.C., é uma “triste metáfora da decadência da democracia e da própria Atenas” (ABRÃO, 1999, p. 42). Encontramos em Sócrates um precursor das escolas estoica e cínica do período posterior da Filosofia grega. Com os cínicos, compartilha a sua própria despreocupação para com os bens terrenos e com os estoicos, o seu interesse pela virtude como o maior dos bens. Sabe-se que realizou seu ensino em locais públicos e era considerado um orador leigo. Como ele não deixou nada escrito, precisamos confiar nos escritos de dois de seus discípulos: o general Xenofonte e o Platão. O principal interesse de Sócrates, como mostra os diálogos de Platão, incide na busca e definição de termos éticos, como sabedoria, beleza, moderação, amizade, justiça e coragem. É interessante perceber que não nos são dadas respostas definitivas a tais questões, mas nos é mostrada a importância de fazê-las (RUSSEL, 2013, p. 77). Terminologia ou expressões comumente ligadas ao filósofo: daimon (voz divina particular), maiêutica socrática, “conhece-te a ti mesmo”, alma (psyché), felicidade (eudaimonia). O método de ensino socrático ficou conhecido como maiêutica, que significa “parto do conhecimento”, em que o aprendiz desenvolvia raciocínios dedutivos até gerar o conhecimento. A ação de Sócrates era induzir ao desvelar o que o aluno já tinha em sua alma (psyché), por meio de um rigoroso questionamento. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 25 Isto ressalta a linha fundamental do pensamento socrático. Embora ele sempre diga que nada sabe (“só sei que nada sei”), não considera que o conhecimento esteja além do nosso alcance. O importante é o dever de tentar a busca do saber. Sócrates sustenta que o que faz o homem errar é a falta de conhecimento pois, se soubesse, não erraria. A causa dominante do mal seria a ignorância de modo que, para se alcançar o Bem e o conhecimento, precisamos possuir conhecimento. O vínculo entre o Bem e o conhecimento é um marco presente em todo pensamento grego. É interessante notar que a ética cristã se opõe a esse pensamento. Para ela, o importante é o sujeito possuir um coração puro, e isto provavelmente se encontra com mais facilidade entre os ignorantes (RUSSEL, 2013, p. 77). Sócrates tentou esclarecer os problemas éticos por meio da discussão. Esse modo de descobrir as coisas mediante perguntas e respostas é chamado de dialética, da qual Sócrates foi um mestre. Para Sócrates, conhecer a virtude tornou-se o principal objetivo do verdadeiro conhecimento, de tal forma que virtude e conhecimento tornam-se sinônimos. Com Sócrates, as questões morais deixam de ser tratadas como convenções baseadas nos costumes, as quais se modificam conforme as circunstâncias e os interesses, para se tornar problemas que exigem do pensamento uma elucidação racional. Nesse sentido, ele é fundador da Ética. Pensar racionalmente as questões morais implica denunciar tudo aquilo que aparece como virtude, desmascarando-o na sua falsidade. Com isso, SAIBA MAIS Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação26 SAIBA MAIS Ética Definição Origem Por que seguimos Flexibilidade Exceções Significado Exemplo Moral A ética é o estudo e a reflexão sobre a moral, das regras de conduta aplicadas a alguma organização ou sociedade. Individual Porque acreditamos que algo é certo ou errado. A ética é normalmente consistente, embora possa mudar caso as crenças de um indivíduo mudem ou dependendo de determinada situação. Uma pessoa poderá ir contra sua ética para se ajustar a um determinado princípio moral, como o código de conduta de sua profissão. Ética vem da palavra grega «ethos” que significa conduta, modo de ser. João teve uma atitude antiética ao furar a fila do banco. A moral se refere às regras de conduta que são aplicadas a determinado grupo e cultura. Sociedade Porque a sociedade nos diz o que é certo ou errado. A moral tende a ser consistente dentro de um determinado contexto, sendo aplicado da mesma forma a todos. Porém, pode variar de acordo com cada cultura ou grupo. Uma pessoa que segue rigorosamente os princípios morais de uma sociedade pode não ter nenhuma ética. Da mesma forma, para manter sua integridade ética, pode violar os princípios morais dentro de um determinado sistema de regras. Tem origem na palavra latina “moralis”, que significa “costume”. No Brasil é imoral ter mais de uma esposa, enquanto em alguns países, como a Nigéria, é moralmente aceito. Fonte: https://www.diferenca.com/etica-e-moral/ Sócrates põe o dedo na ferida da própria Atenas, que havia mergulhado em corrupções e fingia ser justa. Principal diferença entre moral e ética. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 27 Sócrates simplesmente questiona, não ensina nem quer aprender. Seu pensamento parece desprovido de conteúdo direto. Mesmo assim, ele propõe algo ao desestruturar as respostas fáceis de seus interlocutores, mostrando que o pensamento deve ser prudente. Se as respostas são formuladassobre a subjetividade? Percebendo-a como um processo em construção no registro social: ora, a Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 215 subjetividade não se situa no campo individual, “seu campo é o de todos os processos de produção material e social, de máquinas de produção e de agenciamentos de enunciação (GUATTARI, F. 1992, p. 11). A subjetividade está em circulação nos conjuntos sociais. Ela é essencialmente social, e assumida e vivida por indivíduos em suas existências particulares (os quais podem aceitar ou resistir por meio de processos singulares). A subjetividade é polifônica, é plural, “e que não há nenhuma uma única instância estruturante e dominante que a determine segundo uma causalidade unívoca” (GUATTARI, F. 1992, p. 11). A subjetividade interage, sofre variações, produz sentidos, contra-sentidos, opera modos coletivos e heterogêneos. Há uma subjetividade que dialoga com o outro. O subjetivo aqui não tem a ver com uma outra camada ligada à psique, aos sentimentos ou ao obscurecido. A subjetividade não é oposição binária ao material, mas ao contrário, “a produção de subjetividade constitui matéria-prima de toda e qualquer produção objetiva” (GUATTARI, 1992). Nesse sentido, para os autores, não existe uma contraposição entre relações econômicas e subjetivas, pois elas são ao mesmo tempo materiais e semióticas. A diferença está, portanto, no olhar que não deve estar atento para os fatores determinantes de uma produção ou outra, mas antes, perceber as linhas e conexões entre elas. Como o próprio autor mesmo declara: toda a questão está em elucidar como os agenciamentos de enunciação reais podem colocar em conexão essas diferentes instâncias. É sempre possível resistir ao presente, escapar das modelizações dominantes e dos clichês, apropriar-se diferentemente do que nos é oferecido cotidianamente pela televisão, pelo cinema, pelo patrão, pelo cônjuge, pela escola ou pelo outdoor, pois “esse desenvolvimento da subjetividade capitalística traz imensas possibilidades de desvio e singularização” (GUATTARI; ROLNIK, 1999). Em resumo, é sempre possível atrever-se a singularizar (DELEUZE, 1997; GUATTARI; ROLNIK, 1999): Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação216 A essa máquina de produção de subjetividade eu oporia a ideia de que é possível desenvolver modos de subjetivação singulares, aquilo que poderíamos chamar de ‘processos de singularização’, uma maneira de recusar esses modos de codificação preestabelecidos, todos esses modos de manipulação e tele comando, recusá-los para construir, de certa forma, modos de sensibilidade, modos de relação com o outro, modos de produção, modos de criatividade que produzam uma subjetividade singular. Uma singularização existencial que coincida com um desejo, com um gosto de viver, com uma vontade de construir o mundo no qual nos encontramos, com a instauração de dispositivos para mudar os tipos de sociedade, os tipos de valores que não são os nossos. (GUATTARI; ROLNIK, 1999, p.16-17) Quanto ao processo de singularização: ele é automodelador e tem o caráter de autonomia. Ele constrói seus próprios tipos de referências práticas e teóricas, sem ficar na posição de dependente em relação a um poder. Isso ocorre a partir do momento em que os grupos adquirem liberdade de viver seus processos, e assim eles passam a ter uma capacidade de ler suas próprias situações e aquilo se passa em torno deles. Essa capacidade é que vai lhe dar um mínimo de possibilidade de criação e permitir preservar esse caráter de autonomia que é tão importante. Por isso, o processo de singularização é algo que frustra os mecanismos de interiorização dos valores capitalísticos. Ele conduz a afirmações de valores num registro particular, independente das escalas de valor que nos cercam e espreitam. Guattari e Rolnik defendem, portanto, a ideia de um devir diferencial que recusa a subjetivação capitalística que teria como meta a padronização dos valores estéticos, artísticos, culturais, sentimentais, entre outros. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 217 Filosofia da Educação e Pós-Modernidade O relacionamento entre a pós-modernidade e a Teoria Crítica, a Sociologia e a Filosofia é ferozmente contestado, e os termos “pós-modernidade” e “pós-modernismo” são difíceis de distinguir, sendo o primeiro muitas vezes o resultado do posterior. O período tem tido diversas ramificações políticas: suas “ideias anti-ideológicas” parecem ter sido positivamente associadas com o movimento feminista, aos movimentos de igualdade racial e a favor dos direitos dos homossexuais, a maioria das formas do anarquismo do final do século XX, de movimentos pacifistas e vários híbridos destes com os atuais movimentos antiglobalização. Apesar de nenhuma dessas instituições abarcarem inteiramente todos aspectos do Movimento Pós-Moderno, todos eles refletiram ou emprestaram alguma de suas ideias mais centrais. Elegemos neste tópico tratar de alguns temas debatidos pela filósofa americana Judith Butler (1956-atual). No início do ensaio El no-pensamiento en nombre de lo normativo (2010), Butler diz que em um diálogo recente, o sociólogo britânico Chetan Bhatt, afirmou que na sociologia, assim como na teoria cultural ou nos estudos culturais, muitos de nós pressupomos um campo de verdades, um campo de conhecimento teórico ou e de inteligibilidade para descrever o “eu, o outro, o sujeito, a identidade e cultura”. E ele prossegue dizendo que não está seguro de que estas concepções tenham capacidade para abordar as transformações do mundo cotidiano, assim como a rápida transformação do que chamamos de identidade. Em seguida, a própria estrutura discursiva do multiculturalismo ou dos direitos humanos, está tomando por suposição um tipo específico de sujeito que pode ou não corresponder às formas de vida que existem no tempo presente. Os sujeitos pressupostos pelos quadros liberais e multiculturais caracterizam-se por pertencer a certos tipos de identidades Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação218 concebidas como únicas, diferentes – ou individuais, ou então multiplamente determinados por listas de categorias que incluem etnia, classe, raça, religião, sexualidade e gênero. Há questões muito importantes sobre se e como tais indivíduos podem ser representados no quadro desta normatividade. Dessa maneira, Judith Butler diz que é necessário fazermos perguntas para uma melhor compreensão de representar ou reconhecer os vários sujeitos. De fato, ela assume que nestas questões o problema é normativo, ou seja, devemos (1) interrogar qual é a melhor maneira, ao dispor do campo da política, para que possamos produzir o reconhecimento e a representação dos sujeitos. Não podemos responder a isso se, antes de tudo, não considerarmos a ontologia do sujeito cujo reconhecimento e representação está sendo avaliado. Mais ainda, qualquer indagação sobre a referida ontologia exige que consideremos outro nível em que opera o normativo, a saber, estamos situados mediante (2) normas que produzem a ideia de um humano merecedor de reconhecimento e representação. É necessário compreender a diferença de poder existente que distingue os sujeitos que seriam eleitos para o reconhecimento e os que não seriam. Neste ensaio, portanto, Butler tece suas críticas partindo do multiculturalismo e da política liberal. Já em artigo publicado originalmente em 1990, e depois em 1998 nos Cadernos Pagu, intitulado Fundamentos contingentes: o feminismo e a questão do pós-modernismo, ela defende a ideia de que o feminismo, também deve estabelecer críticas sobre os processos que produzem e desestabilizam as categorias de identidade. No momento em que se invoca a categoria “mulheres”, descrevendo a clientela pela qual o feminismo fala, começa invariavelmente um debate duvidoso sobre o conteúdo descritivo do termo. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 219Ela dá exemplos: há quem afirme haver uma especificidade ontológica das mulheres enquanto mães; há outras que entendem a maternidade como uma situação social específica da mulher; e há aquelas que recorrem a uma “especificidade feminina” que se manifesta nas comunidades e culturas. Logo, qualquer esforço para dar conteúdo universal ou específico à categoria mulheres, ou “A Mulher”, produzirá necessariamente facções, e que, a “identidade”, como ponto de partida, jamais se sustentaria como base sólida de um movimento político feminista. As categorias de identidade nunca são meramente descritivas, mas sempre normativas e como tal, exclusivistas. Mas isso não quer dizer que o termo “mulheres” não deva ser usado. Ao contrário, se o feminismo pressupõe que “mulheres” designa um campo de diferenças indesignável, que não pode ser totalizado ou resumido por uma categoria de identidade descritiva, então o próprio termo se torna um lugar de permanente abertura e ressignificação. Desconstruir o sujeito do feminismo não é, portanto, censurar sua utilização, mas, ao contrário, liberar o termo num futuro de múltiplas significações, emancipá-lo das ontologias maternais às quais esteve restrito e fazer dele um lugar onde significados não antecipados podem emergir. IMPORTANTE A partir desta perspectiva, o cidadão é propriamente uma troca coalizada. Em outras palavras, Butler sugere que não há um sujeito individual (fixo) ou multiplamente determinado (fixo) Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação220 sem pensarmos num processo social dinâmico, um sujeito que está sendo constituído e reconstituído no transcurso do intercâmbio social. Quando se trata, então, de pensarmos sobre identidades, sujeito, entre outros, é claro que o problema não é somente ontológico, posto que as formas que tomam o sujeito, assim como os mundos cotidianos que não se enquadram nas categorias disponíveis, surgem à luz dos contextos históricos e geopolíticos. Não é somente atribuir ao sujeito o status de cidadão, mas é pensar que este status se determina e é reformulado nos transcurso das interações sociais. Em relação aos modos possíveis que podemos descrever os sujeitos, Butler prossegue em seu ensaio dizendo que poderíamos então sentir a tentação de formular uma nova concepção do sujeito, uma concepção que poderia denominar-se coalicional. Mas o que constituiriam as partes da dita coalizão? Diremos que existem vários sujeitos dentro de um único sujeito ou que existem partes que entram em comunicação umas com as outras? Cremos que a historiadora Guacira Lopes Louro, no livro Gênero, sexualidade e educação, nos ajuda com a seguinte reflexão: de fato, os sujeitos são, ao mesmo tempo, homens ou mulheres, de determinada etnia, classe, sexualidade, nacionalidade; são participantes ou não de uma determinada confissão religiosa ou de um partido político. Essas múltiplas identidades não podem, no entanto, ser percebidas como se fossem “camadas” que se sobrepõem umas às outras, como se o sujeito fosse se fazendo “somando-se” ou agregando-as. Em vez disso, é preciso notar que elas se interferem mutuamente, se articulam; podem ser contraditórias; provocam, enfim, diferentes “posições”. Essas distintas posições podem se mostrar conflitantes até mesmo para os próprios sujeitos, fazendo-os oscilar, deslizar entre elas – perceber-se de distintos modos. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 221 Ainda a respeito do sujeito coalicional, devemos perguntar também “o que exatamente é isso que seria reconhecido”. Por exemplo: é a homossexualidade da pessoa gay? É a crença religiosa do muçulmano? Se nossos quadros normativos pressupõem que esses traços ostensivamente definidores de sujeitos singularmente determinados com seus “próprios objetos”, então, o reconhecimento se converte em parte dessa mesma prática de ordenar e regular os sujeitos que seguem normas preestabelecidas. Se o reconhecimento reconsolida o “sujeito sexual”, o “sujeito cultural” e o “sujeito religioso”, entre outros, fazemos certo reconhecer os sujeitos por meio de tais motivos ou objetos? O que ocorre se os traços, mesmos que reconhecidos, resultam basear-se no fracasso do reconhecimento? Nesse sentido, como afirma Butler, o fato de que não pode surgir nenhum sujeito sem estar diferenciado tem várias consequências. No primeiro caso, um sujeito somente se torna “discreto” excluindo outras possíveis formações de si, ou uma série de “não eus”. No segundo caso, surge um sujeito mediante um processo de abnegação, descartando aquelas dimensões do ser que não se conformam com as figuras apresentadas pela normatividade do sujeito humano. De todo o resto, se o sujeito está sempre diferenciado, devemos entender que significa exatamente isto? Há uma tendência para entender a diferenciação tanto como um recurso interno de um sujeito constituído (o sujeito é diferenciado internamente e composto de várias partes que são mutuamente determinantes) e como um recurso externo. Sobre isto, Butler diz: “Qualquer diferenciação interna que eu poderia fazer entre as minhas partes ou minhas identidades resulta, de certa maneira, de unificar estas diferenças e, assim, reinstalar o sujeito como fundamento da diferença”(BUTLER, 2010, p. 63). Por sua vez, este sujeito obtém sua especificidade definindo-se contra o que está fora dele, de maneira que a diferenciação externa ressalta ser fundamental para explicar a diferença interna. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação222 A pessoa homossexual pode ser muçulmana ou não, e a pessoa muçulmana poder ser homofóbica ou não. Mas se o quadro do conflito cultural (gay frente o muçulmano) determina a maneira como concebemos estas identidades, então o muçulmano acabará definindo-se por sua ostensiva homofobia e o homossexual acabará definindo-se, segundo o quadro, como antimuçulmano e receoso da homofobia muçulmana. Isto é, ambas as posturas se definem a partir de uma relação mútua conflituosa, em cujo caso nos foram ocultados os pontos de convergência entre muçulmanos e gays. De fato, o marco da tolerância ordena a identidade segundo suas exigências e borra as completas realidades culturais das vidas dos gays e dos religiosos. A consequência é que o quadro normativo opera sob certa ignorância sobre os “sujeitos” em questão, negando qualquer possibilidade de fazemos outras avaliações. Inclusive se necessita certo esforço para entender as realidades culturais designadas pelos “homossexuais” e “muçulmanos”, especialmente em seus mundos cotidianos e transnacionais. Afinal, entender esta relação implicaria considerar certo número de formações naquelas em que a sexualidade e a religião operam como veículos recíprocos ou, em algumas vezes, como antagonistas. Com efeito, deve-se refletir sobre a afirmação, inclusive, de que a religião e a sexualidade podem constituir as únicas formas impulsionadoras para um determinado modo de vida. Trata-se então de criticarmos o quadro binário que dá por suposto que a religião e a sexualidade estão determinando por separada e exaustivamente a identidade do sujeito (como se houvesse duas identidades, distintas e opostas). Semelhante quadro não considera que, inclusive onde há antagonismos, isso não implica uma contradição ou um impasse com conclusões necessárias. O antagonismo pode ser vivido dentro e entre os sujeitos como uma força política e dinâmica. Assim, evita-se a forma de não-pensamento, ratificada por um modelo restritivamente normativo. Na realidade, o não pensamento é uma forma de Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 223 avaliação que falsifica o mundo com o objetivo de apontar o juízo moral propriamente dito como signo de certo privilégio e de certa “perspicácia” cultural, uma maneira de manter tudo em ordem. É importante ressaltar que Judith Butler, não obstante, não pretende refutar ou prejudicar as exigências regulamentares (soterraras normas), mas insistir que devemos conceber novas constelações de pensar sobre elas, pensar numa forma intelectualmente aberta e abrangente, a fim de capturar e avaliar o nosso mundo. Na realidade, ela caminha na mesma direção de Teresa de Lauretis (Feminist Studies/Critical Studies, 1986), quando esta diz que “um quadro de referência feminista que sirva para tudo não existe. Ele tampouco deveria, jamais, ser um pacote pronto para usar. Nós precisamos continuar construindo esse quadro, um quadro absolutamente flexível e reajustável, a partir da própria experiência das mulheres com relação à diferença, a partir de nossa diferença em relação à noção “Mulher” e das diferenças entre as mulheres; diferenças que (...) são percebidas como tendo a ver tanto (ou mais) com a raça, a classe ou a etnia quanto o gênero ou a sexualidade. Na mesma direção, Judith Butler chama atenção para duas coisas: a. Expandir os atuais conceitos normativos de cidadania, reconhecimento e direitos, superando os impasses contemporâneos. b. Fazer um pedido a favor de vocábulos alternativos fundados na convicção de que os discursos normativos derivados do liberalismo e do multiculturalismo são igualmente inadequados para a tarefa de captar tanto a nova formação do sujeito como as novas formas de antagonismo social e político. Talvez o locus mais importante, em que aparece um impasse não seja entre o sujeito constituído pela minoria sexual e o sujeito constituído pela minoria religiosa, mas entre um quadro regulamentar que exige e produz aos ditos sujeitos em Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação224 mútuo conflito e uma perspectiva crítica que pergunte se e como existem tais sujeitos fora – ou em relações diversas – com esse presente antagonismo. Isso implica a consideração de como esse quadro depende de entender a complexidade do surgimento histórico das populações religiosas e sexuais das formações do sujeito, que não podem reduzir-se a nenhuma identidade. Por fim, Judith Butler, ao retomar Asad, sugere uma crítica de um certo tipo de sujeito liberal que converte a este mesmo sujeito em um problema político que deverá ser abordado explicitamente. Podemos tomar este sujeito como a base da política somente se aceitarmos pensar melhor nas condições de sua formação, de suas respostas morais e de suas reivindicações avaliativas. Recordamos o tipo de reivindicações fundamentais que se fazem no transcurso do debate “normativo” sobre estas questões; por exemplo, que existem “sujeitos”, muçulmanos ou homossexuais, que se encontram em uma posição política, que representam diferentes “culturas” ou diferentes “tempos de desenvolvimento histórico” ou que não se conformam às noções estabelecidas de cultura ou as concepções inteligíveis de “tempo”. Uma resposta a este quadro seria insistir que existem diferentes construções do sujeito, e que a maioria das versões do multiculturalismo erram ao pressupor que conhecem por adiantado qual deve ser sua forma. O multiculturalismo que necessita de certo tipo de sujeito, que institui de fato essa exigência conceitual como parte de suas descrições e de seus diagnósticos. Finalmente, gostaria de concluir que a coalizão exige um repensar sobre o sujeito no interior de uma série dinâmica de relações sociais. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 225 REFERÊNCIAS ABRÃO, B. S. História da filosofia. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1999. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Atlas, 2009. BACHELARD, G. O novo espírito científico. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1995. CARVALHO, A. M. P. Construção do conhecimento e ensino de ciências. Educação e cultura, Recife, v. 1, p. 8-14, 1997. CHARLOT, B. Da relação com o saber: elementos para uma teoria. Trad. B. Magne. Porto Alegre: Artmed, 2000. COMMELIN, P. Mitologia grega e romana. São Paulo: Martins Fontes, 2011. CYRINO, H. & PENHA, C. Filosofia hoje. 2. ed. Campinas: Papirus, 1992. FRANKLIN, K. & PINHEIRO, C. M. Filosofia da educação. Curitiba: Universidade Federal do Paraná. Pró-Reitoria de Graduação. Coordenação de Integração de Políticas de Educação à Distância. Setor de Educação. 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Portanto, o que Sócrates propõe é formular perguntas adequadas, isto é, um método de investigação que encaminhe o pensamento em direção à essência das coisas, sem desvios. Quando se indaga se o exercício militar torna um homem corajoso, as possíveis respostas sempre giram em torno das vantagens e das desvantagens que esse treinamento oferece, sem alcançar o verdadeiro problema: o que é a coragem. Discutem-se os meios (o exercício militar) para atingir os próprios fins (a coragem), em vez de examinar os próprios fins. Sócrates, porém, não apresenta diretamente à questão “o que é...” ao seu interlocutor. Primeiro ouve a resposta e apresenta objeções aos argumentos dos outros. É como se os pensamentos tivessem de experimentar outras possibilidades antes de adentrar ao campo certo do conhecimento. O diálogo, ou a dialética, cumpre essa função de “experimentação”. O pensamento sempre necessita de um interlocutor, com quem possa discutir e o verdadeiro conhecimento nasce desse diálogo; “não é transmissível do mestre ao aluno, mas arrancado do interior de uma discussão – um verdadeiro trabalho de parto (a maiêutica)” (ABRÃO, 1999, p. 44). EXEMPLO Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação28 Platão Figura 1: Busto de Platão Fonte: @pixabay Mais de dois mil anos já se passaram desde o dia em que Platão (428-347 a.C.) ocupava o centro do pensamento filosófico da Grécia e em que todos os olhares convergiam para a fundação de sua escola, conhecida como Academia. Nascido numa família nobre em Atenas, foi batizado como Arístocles, mas ganhou o codinome de Platão, que significa “amplo”. Quando jovem, Platão começou a estudar com Crátilo, Heráclito e, por fim, Sócrates, sendo que seu objetivo era se preparar para a vida política por meio da Filosofia. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 29 SAIBA MAIS A organização da Academia seguia o modelo das escolas pitagóricas do sul da Itália, com as quais Platão mantivera contato durante as suas viagens. A Academia é precursora das universidades que se desenvolveram a partir da Idade Média. Como escola, sobreviveu por mais de novecentos anos, período mais longo do que o de qualquer outra instituição antes ou depois. Em 529 d.C., foi definitivamente fechada pelo imperador Justiniano, cujos princípios cristãos se sentiam ofendidos por esta sobrevivência das tradições clássicas. Os estudos acadêmicos eram ministrados mais paralelamente às matérias tradicionais das escolas pitagóricas: aritmética, geometria plana e espacial, astronomia e som ou harmonia constituíam a base do currículo. Todas as matérias seguiam o método dialético. Num sentido bastante real, este continua sendo o objetivo genuíno da educação, até mesmo nos dias de hoje. Não é função de uma universidade mostrar aos estudantes o maior número possível de fatos. Sua verdadeira tarefa é ensinar hábitos de exame crítico, bem como a compreensão de cânones e critérios referentes às matérias. Com o ensino propiciado na Academia platônica, o movimento sofista declinou rapidamente (RUSSEL, 22013, p. 81-82). Ainda hoje, definem-se as propriedades e características de uma corrente filosófica, seja ela qual for, pela sua relação com o platonismo. Todos os séculos da Antiguidade que se seguiram a este filósofo, ostentam na sua epistemologia traços da Filosofia platônica, especialmente o mundo greco-romano que se unificou sob a universal Filosofia do neoplatonismo. Platão, o mais importante propagador e continuador da obra de Sócrates, é quem dá à Filosofia a sua primeira Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação30 sistematização. Todavia, Platão nunca escreveu um livro- texto (seus escritos estão na forma de diálogos) e sempre se recusou a estabelecer a sua Filosofia como sistema. Parece ter percebido que o mundo, no todo, é complexo demais para ser comprimido num molde literário ou filosófico preconcebido. Seus principais diálogos são: ■ 399-387 a.C. Apologia, Críton, Górgias, Hípias maior, Mênon, Protágoras (primeiros diálogos); ■ 380-360 a.C. Fédon, Fedro, A República, O banquete (diálogos intermediários); ■ 360-355 a.C. Parmênides, Sofista, Teeteto (diálogos finais). Desde as investigações dos filósofos pioneiros, sobre o princípio do mundo, ou as exigências lógicas de Parmênidas e Zenão, e os impasses a respeito da pluralidade das coisas, até as questões sobre os valores humanos (formuladas, por um lado, pelos sofistas e, de outro, por Sócrates), passando pelos rigorosos estudos matemáticos dos pitagóricos, todos esses aspectos, que constituíram os temas do pensamento ocidental, encontramse não apenas sintetizados, mas também colocados em novos termos por Platão. (ABRÃO, 1999, p. 46). A cultura antiga, que posteriormente a religião cristã assimilou na Idade Média, era uma cultura inteiramente baseada no pensamento platônico. É só a partir dela que se pode compreender uma figura como Santo Agostinho, que traçou a fronteira histórico- filosófica da concepção medieval do mundo, por meio da sua Cidade de Deus, tradução cristã da República de Platão. Em 399 a.C., o mentor de Platão, Sócrates, foi condenado à morte. Como Sócrates não havia deixado nada escrito, Platão assumiu a responsabilidade de preservar para a posterioridade o que tinha aprendido com o mestre. Primeiro na Apologia, relato Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 31 sobre a defesa de Sócrates em seu julgamento, e depois ao usá- lo como personagem de uma série de diálogos. Nesses diálogos, às vezes é difícil distinguir quais pensamentos são de Sócrates e quais ideias partiram do discípulo. No entanto, evidencia-se um retrato de Platão usando os métodos do mestre, especialmente a dialética, para explorar e explicar suas próprias concepções. A República é provavelmente o mais famoso dos diálogos de Platão. A construção de um Estado ideal deu nome ao diálogo. Num primeiro momento, Platão tinha como preocupação buscar definições de valores morais como “justiça” e “virtude”. A Filosofia platônica recusa a solução dos sofistas para os quais a justiça e a injustiça não passam de convenções. Sócrates já havia apontado um caminho diferente: uma e outra confundem-se porque os homens não sabem verdadeiramente o que é a justiça, isto é, não conhecem a sua essência. Ao contrário, permanecem no nível das aparências, constituindo o mundo dos sentidos, o mundo sensível, em que tudo é instável e variável, de acordo com as circunstâncias e os pontos de vista. Vejamos a seguir como Platão desenvolve a noção de justiça: Principiemos com o primeiro tópico indicado por mim, a saber, o que é a justiça e qual é a sua origem. Dizem que cometer injustiça é naturalmente bom e sofrê-la é naturalmente mau, mas que o mal de sofrer injustiça excede a tal ponto o bem de cometê-la que aqueles a cometeram e sofreram, tendo experimentado as duas posições, quando [afinal] lhes falta a capacidade de cometê-la e de se esquivarem de sofrê-la, decidem ser vantajoso estabelecer um acordo mútuo e comum de não a cometer nem a sofrer. O resultado é passarem a produzir leis e contratos e o que a lei determina classificam como justo e lícito. Isso, de acordo com eles, constitui a origem e a essência da justiça. É o meio-termo entre o melhor e o pior: o melhor Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação32 é perpetrar injustiça sem ser punido por isso, o pior é sofrê-la sem ser capaz de vingar-se. A justiça é um ponto mediano desses dois extremos. As pessoas a estimam não como um bem, mas porque são demasiado fracas para cometer injustiça com impunidade. Aquele, todavia, que possui o poder de cometê-la e é um homem autêntico, não faria acordo algum com ninguém para não fazer injustiça a fim de não a sofrer. Para ele isto seria loucura. Conforme tal teoria, Sócrates, eis aí a natureza da justiça e sua origem. (PLATÃO, 2006, p. 89) ParaPlatão, a justiça reina quando cada um cuida da própria vida. Cada indivíduo realiza o trabalho que lhe compete, sem se imiscuir nos assuntos alheios. Nesse sentido, o sistema político funciona tranquila e eficientemente. A justiça, nesse sentido grego, está vinculada à noção de harmonia, o sereno funcionamento do todo por meio da adequada função de cada parte (RUSSEL, 2013, p. 94). O raciocínio levou Platão a uma única conclusão: deve haver um mundo de ideias, ou formas, totalmente separado do mundo material. Ele concluiu que os sentidos humanos não conseguem perceber tal lugar, pois só nos é perceptível pela razão. Platão foi mais além ao afirmar, que o reino de ideias é de fato a “realidade”, e o mundo que nos cerca é moldado por essa outra realidade. Para ilustrar esse pensamento, que num primeiro momento pode ser confuso, Platão apresentou o que se tornaria conhecido como a “teoria da caverna”. Ele nos convidou a imaginar uma caverna escura, na qual as pessoas estão aprisionadas desde o nascimento, amarradas e observando fixamente a parede ao fundo. Elas só podem olhar para frente, nunca para os lados. Atrás dos prisioneiros há uma chama brilhante que lança sombras na parede para a qual eles olham. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 33 Há também uma plataforma entre o fogo e os prisioneiros, na qual pessoas andam e exibem vários objetos de tempos em tempos, de modo que as sombras desses objetos são lançadas na parede. Tais sombras são tudo o que os prisioneiros conhecem do mundo, e eles não têm noção alguma sobre os objetos reais. Se um prisioneiro conseguir se desamarrar e se virar, verá ele mesmo os objetos. Mas, depois de uma vida de confinamento, ele provavelmente ficará muito confuso e talvez fascinado pelo fogo, e muito provavelmente se voltará de novo para a parede, a única realidade apresentada a ele desde o nascimento. Platão discorre que tudo que nossos sentidos apreendem no mundo material não passa de imagens na parede da caverna, ou seja, são simples sombras da realidade. Essa crença é a base de sua teoria das formas: para cada coisa na terra que temos o poder de apreender com nossos sentidos, há uma correspondente “forma”(ou “ideia”) – uma eterna e perfeita realidade daquele objeto – no mundo das ideias. Como o que apreendemos pelos sentidos é baseado em uma experiência de “sombras” imperfeitas ou incompletas da realidade, não podemos ter um conhecimento real das coisas. No máximo, podemos ter opiniões, mas conhecimento genuíno só pode vir do estudo das ideias, e isso só pode ser alcançado pela razão. Essa separação em dois mundos distintos – um, da aparência, e outro, do que Platão considerou como realidade de fato – solucionou o problema da busca de constantes num mundo aparentemente em transformação. O mundo material pode estar sujeito à mudança, mas o mundo das ideias de Platão é eterno e imutável. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação34 Aristóteles Figura 2: Stanza della Segnatura, de Rafael Sanzio. Em relação às figuras centrais, Platão está à esquerda e Aristóteles à direita. Fonte: @pixabay Aristóteles nasceu em 384 a.C. na cidade de Estagira, na Calcídica, que se encontrava sob a dependência da Macedônia. Mas sua relação com este reino – que logo mais seria um grande império, subjugando a Grécia e, depois, a Pérsia – não se limita ao local de nascimento. Nicômaco, seu pai, era médico da corte de Filipe, rei da Macedônia. O filho deste, o célebre Alexandre Magno, teve o próprio Aristóteles como preceptor, entre 343 e 340 a.C. (ABRÃO, 1999, p. 53). Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 35 SAIBA MAIS Aristóteles tem na história da Filosofia uma influência decisiva. No período final da Idade Média, a versão cristã de seu pensamento torna-se praticamente a doutrina oficial da Igreja. A ciência moderna que nasce no Renascimento desenvolvese em meio ao acirrado combate contra o aristotelismo (ou às imagens que se criaram a seu respeito). Pensadores como Kant, Hegel, Marx fazem de Aristóteles uma fonte de inspiração, e até hoje se discutem as questões lógicas por ele propostas. Tamanha influência presta-se a equívocos: muitos, simplificadamente, opõem Aristóteles a seu mestre Platão, e outros ainda continuam a considerá-lo grande inimigo do desenvolvimento científico, ignorando as marcas que ele deixou na ciência. Aristóteles tinha apenas dezessete anos quando chegou a Atenas para estudar na Academia de Platão, que na época, com sessenta anos, já tinha desenvolvido suas teorias. Estudioso e comprometido com os ensinamentos da Academia, Aristóteles tinha um temperamento muito diferente se comparado com Platão. Se Platão era brilhante e intuitivo, Aristóteles era erudito e metódico. Contudo, havia um respeito mútuo e Aristóteles permaneceu na Academia, como aluno e posteriormente professor, até a morte de Platão, vinte anos depois. Aristóteles escreveu uma série de trabalhos definitivos, com grande preocupação literária e em forma de diálogos, da mesma forma que Platão. Essa informação só foi possível pelas citações feitas por autores posteriores, como Cícero, Plutarco, Diógenes, Laércio, entre outros. O que temos da vasta obra aristotélica limita-se praticamente a notas, que o Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação36 filósofo preparava para seus ensinamentos no Liceu. Como tais, tinham caráter resumido, apenas indicativo e muitas vezes só compreensíveis para o próprio autor. As principais obras de Aristóteles são: ■ Ética a Nicômano; ■ Política; ■ Órganon; ■ Retórica das paixões; ■ A poética clássica; ■ Metafísica; ■ De anima (da alma); ■ O homem de gênio e a melancolia; ■ Magna moralia (Grande Moral); ■ Ética a Eudemo; ■ Física; ■ Sobre o céu. Por se dedicar ao estudo dos seres vivos e de tudo o que a natureza contém, Aristóteles não desprezou a observação das coisas que se apresentam aos sentidos. Logo, procura integrar a percepção do mundo sensível ao conhecimento científico e filosófico. Mas isso não significa que ele tenha se submetido ao mundo sensível e às suas variações e incertezas. Os sentidos que captam as coisas individuais consistem o ponto de partida: a percepção dessas coisas produz, no intelecto, imagens a elas correspondentes. A atividade do intelecto consiste em separar dessas imagens os aspectos acidentais, como o tamanho e a cor, para ficar com o que lhes é comum e essencial. A percepção do mundo sensível mostra que tudo se transforma continuamente. Para dar conta disso, Aristóteles Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 37 elabora noções de ato (energeia) e de potência (dynamis). O ato refere-se ao estado atual do ser, como existe aqui e agora. A potência, por outro lado, indica aquilo em que este ser se transforma, sem, no entanto, deixar de sê-lo. Por exemplo: a semente de uma árvore, enquanto ato, é semente, mas como potência é a árvore que dela vai germinar. As mudanças e o movimento são o modo como as potencialidades do ser vão se atualizando, passando da potência ao ato (ABRÃO, 1999, p. 56). Como Platão, Aristóteles preocupou-se em encontrar algum fundamento imutável e eterno num mundo caracterizado pela mudança. Mas concluiu que não há necessidade de procurar por esse lastro num mundo de formas perceptíveis apenas à alma. A evidência principal estaria aqui, no mundo à nossa volta, perceptível pelos sentidos. Aristóteles acreditava que as coisas no mundo material não são cópias imperfeitas de alguma forma ideal de si mesmas, mas que a forma essencial de uma coisa é, na verdade, inerente a cada exemplo dessa coisa. Por exemplo, “o aspecto canino” não é apenas uma característica compartilhada pelos cães – é algo inerente a todo e qualquer cão. Ao estudar coisas particulares, portanto, conseguimos alcançar um pensamento sobre sua natureza universal e imutável (ATKINSON, 2012, p. 59-60). Da mesma forma que Platão, Aristótelestem um pensamento sistematizado em relação à cidade (a polis grega), mas analisa a articulação do homem com a cidade de maneira diferente. O centro do seu parecer está na felicidade (eudaimonia) como eixo central das relações virtuosas, permeando todo o agir humano. Isto significa dizer que Aristóteles considera que todas as ações humanas são motivadas pelo desejo de felicidade. Do corpus aristotelicum, a Ética a Nicômaco é o mais importante dos textos sobre o problema ético na produção de Aristóteles, conjuntamente com a Ética a Eudemo, os Magna moralia e um pequeno tratado chamado Sobre as virtudes e vícios. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação38 IMPORTANTE A análise do problema ético em Aristóteles depende de uma caracterização nos traços essenciais do seu horizonte específico: o horizonte prático. Se a Filosofia na sua dimensão teórica visa à constituição de uma situação que permita contemplar a verdade, na sua dimensão prática, contudo, a Filosofia tende a expressarse no agir. A virtude é um conceito fundamental na Ética de Aristóteles. A virtude é entendida pelo filósofo como meiotermo, ou ponto intermediário entre dois extremos ou dois vícios. Cultivar ações justas e controlar os apetites e impulsos é, ao mesmo tempo, treinar nosso modo da melhor forma possível. A razão vai impor o justo-meio entre qualquer dos dois extremos (excesso ou seu contrário). O justo-meio não aparece em Aristóteles como uma ação medíocre (média), mas sim como o ponto alto de uma ação deliberada e comandada apenas pela razão. A vitória da razão sobre os instintos é inevitável no mesmo modo deliberativo de viver. É ainda neste diálogo que Aristóteles disserta sobre a conduta humana e sua busca pela felicidade. Isto é, a conduta do homem está baseada nisso que entendemos por felicidade, mas a natureza da felicidade é o caminho para tentarmos compreender como Aristóteles poderia sugerir as regras do bem agir. Em se tratando da felicidade, a seguir apresentamos o trecho IV do Livro I do tratado Ética a Nicômaco: Retomando, procuremos compreender, agora – uma vez que todo o saber toda a intenção tem um bem Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 39 por que anseiam – o que dissemos sobre a perícia política e o que ela visa atingir sobre qual será o mais extremo dos bens susceptível de ser obtido pela ação humana. Quanto ao nome desse bem, parece haver acordo entre a maioria dos homens. Tanto a maioria quanto os mais sofisticados dizem ser a felicidade, porque supõem que ser feliz é o mesmo que viver bem e passar bem. Contudo, acerca do que possa ser a felicidade estão em desacordo e a maioria não compreende o seu sentido do mesmo modo que o compreendem os sábios. Para uns é alguma daquelas coisas óbvias e manifestamente boas, como o prazer, a riqueza ou a honra; para uns é uma coisa, para outros, outra - muitas vezes até para o mesmo podem ser coisas diferentes. Para quem está doente é a saúde, para quem é pobre, a riqueza. (ARISTÓTELES, 2009, p. 20) Por conseguinte, para Aristóteles, é possível viver feliz na medida em que a pessoa cultive a honra, o prazer e o intelecto. O filósofo entende que a razão é um dos elementos que constitui as capacidades do homem, mas ela não é a única. A alma humana pode sofrer alguma interferência da faculdade do desejo ou do apetite, por isso não podemos considerá-la absolutamente racional. Diante da possibilidade dessa interferência, a virtude ética surge como domínio dessa parte da alma que não é racional. Sua redução aos limites da razão, segundo as explicações de Karen Franklin e Celso Pinheiro, passa a ser o grande trabalho da formação do indivíduo. “Essa virtude ética se adquire com a repetição de certas ações até que se estabeleçam como hábito” (FRANKLIN & PINHEIRO, 2014, p. 39). Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação40 IMPORTANTE A dialética segundo Platão e Aristóteles No platonismo, a dialética é um processo de diálogo que se baseia no debate entre interlocutores comprometidos com a busca da verdade. Nesse debate, a alma (psyché) se eleva, gradativamente, das aparências sensíveis às realidades inteligíveis ou ideias. No aristotelismo, a dialética se constitui pelo raciocínio lógico que, apesar de coerente em seu encadeamento interno, está ancorado em ideias apenas prováveis, e por esta razão traz em seu cerne a possibilidade de ser refutado. RESUMINDO Apesar das grandes diferenças, Aristóteles e Platão se aproximam pela similaridade de suas preocupações com o ser e com o proceder do homem. É relevante assinalar como o pensamento de todos os filósofos gregos influencia o pensamento posterior. Sócrates, Platão e Aristóteles vivem em um período histórico de decadência do Estado Grego, apesar de serem os principais pensadores da polis como cidade-estado. “Suas considerações sobre educação, cidadania, virtude e conhecimento foram fundamentais para a construção da relação entre Filosofia e Educação desde sua origem” (FRANKLIN & PINHEIRO, 2014, p. 41). Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 41 Conhecimento Mítico e Conhecimento Filosófico OBJETIVO Ao final do estudo deste capítulo, você será capaz de identificar a diferença entre conhecimento mítico e conhecimento filosófico, destacando suas principais características. O que é o mito? “Sei bem o que é, desde que ninguém me pergunte; mas quando me pedem uma definição, fico perplexo”. Assim escreveu Santo Agostinho em suas Confissões, abraçando a difícil causa de apreender essa categoria esquiva chamada tempo e descrevendo a aflição a dar uma definição do mito (apud RUTHVEN, 1997, p. 13). Os mitos têm uma qualidade que Wallace Stevens atribui à poesia: conseguem resistir à inteligência. Por isso eles atraem os sistematizadores. Estes nos “tranquilizam, afirmando que o mito nada mais é que ciência primitiva, ou história, ou personificação de fantasias do inconsciente” (apud RUTHVEN, 1997, p. 13-14). Os mitos são, evidentemente, uma série de histórias criadas pelos seres humanos. Mas essas histórias foram, durante longos séculos, motivo de crença e fé. Elas tiveram, no espírito dos gregos e dos latinos, o valor de dogma, condicionadas ao status de realidade. Como tal, inspiraram os homens e as mulheres, deram esteio a instituições por vezes respeitabilíssimas, sugeriram aos artistas, aos poetas, aos literatos a ideia de criações de admiráveis obras-primas. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação42 A Antiguidade, cujos conhecimentos científicos e filosóficos eram praticamente inexistentes, elegeu as divindades para suprir a necessidade de compreender os mistérios do mundo. No caso da Grécia e Roma, bem como muitos países escandinavos, é isso que explica a existência do grande número de deuses. Para Pierre Commelin, estudioso da mitologia grega, tudo o que provocou a admiração, o espanto, o temor ou o horror nos primeiros homens e nas primeiras mulheres adquiriu, aos seus olhos, um caráter divino. As virtudes e as paixões mais abstratas dos seres humanos, também têm esse status de serem marcadas por um cunho sobrenatural, de trazerem a chancela divina e revestirem, com uma fisionomia particular, as insígnias e os atributos da divindade (COMMELIN, 2011, p. 9). Estudar a mitologia é iniciar-se na concepção de um mundo primitivo, percebido numa penumbra misteriosa. Não ver nela mais que a aberração de espíritos rústicos e supersticiosos é, sem dúvida, julgá-la apenas de acordo com as aparências; mas, por outro lado, ver nela apenas alegorias, procurar a explicação de todos esses mitos, de todas essas fábulas, de todas essas lendas na observação do mundo físico, é superar os limites da realidade. Seguimos na mesma linha de pensamento de Pierre Commelin (2011): a imaginação e a fantasia têm um importante papel nessa longa enumeração de crenças mitológicas aceitas pelos povos antigos. Cada século, cada geração compraz-se emaumentar o número de seus deuses, de seus heróis, de suas maravilhas e de seus milagres. Os mitos antigos, em especial a Teogonia de Hesíodo, narravam o modo pelo qual o mundo havia emergido do caos, como se diferenciaram as suas diversas partes, como se constituiu e estabeleceu o conjunto da sua arquitetura. Mas o processo de gênese, nessas narrativas, reveste-se da forma de um quadro genealógico. Ou seja, como bem argumenta o historiador e antropólogo Jean Pierre Vernant, “ele se desenrola seguindo Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 43 a ordem de filiação entre os deuses, no ritmo dos sucessivos nascimentos, dos casamentos, das intrigas, misturando e opondo os seres divinos de gerações diferentes” (VERNANT, 1990, p. 478). A deusa Gaia (Terra) engendra sozinha Ouranós (Céu) e Póntos (Onda salgada); acasalada a Ouranós, que ela acaba de criar, dá à luz os Titãs, primeiros mestres do céu, revoltados contra o seu pai e cujos filhos, os Olímpicos, vão, por sua vez, combater e derrubar, a fim de confiar ao mais jovem deles, Zeus, a incumbência de se impor no cosmo, como soberano novo, uma ordem enfim definitiva. (VERNANT, 1990, p. 478-479) No mundo grego, o pensamento racional surge no século VI a.C., especificamente nas cidades gregas da Ásia menor. O nascimento da Filosofia marcaria, assim, o começo do pensamento científico – poder-se-ia dizer simplesmente: do pensamento. Vernant sugere que na “escola de Mileto, o logos teria pela primeira vez libertado do mito, como as escaras caem dos olhos do cego” (VERNANT, 1990, p. 411). Mais que uma mudança de atitude intelectual, do que uma mutação mental, trata-se de uma revelação decisiva e definitiva relacionada ao pensamento. O aparecimento do logos, portanto, introduziria na história uma descontinuidade radical: “viajante sem bagagem, a Filosofia viria ao mundo sem passado, sem pais, sem família; seria um começo absoluto” (VERNANT, 1990, p. 442). Essa nova maneira de pensar, racional e filosófica, é considerada oposta ao pensamento mítico. É como se na Grécia do século VI a.C., o homem tivesse se libertado das fantasias da mitologia e da religião, para se afirmar e se desenvolver racionalmente. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação44 IMPORTANTE RESUMINDO As principais diferenças entre Mito e Filosofia Mito: narra os acontecimentos passados, buscando um entendimento sobre a origem, as causas sobretudo até o momento presente; Filosofia: ocupa-se em explicar não somente os acontecimentos passados, mas tudo como é no presente e como será no futuro; Mito: narra a origem do mundo baseando-se em genealogias e ação de forças sobrenaturais; Filosofia: explica a origem do mundo pela combinação de elementos naturais; Mito: não se preocupa com as contradições nem com as coisas incompreensíveis; Filosofia: exige um pensamento coerente, racional, lógico. A autoridade sobre o conhecimento não está no filósofo, mas fundada na razão que todas as pessoas possuem. Neste capítulo, estudamos a diferença entre conhecimento mítico e conhecimento filosófico, destacando suas principais características. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 45 A Questão do Saber: o Conhecimento e sua Tipologia OBJETIVO Ao final do estudo deste capítulo, você será capaz de classificar a tipologia do conhecimento e descrever cada um dos tipos. Na prática docente, muitas vezes se exercita o ensino sem se perguntar o que é o conhecimento, seu sentido e seu significado. Para um exercício satisfatório do ensino, entre outros elementos fundamentais (como Psicologia e Sociologia da Educação), é importante, como aponta Luckesi, possuir uma teoria do conhecimento. Teoria do conhecimento nada mais é do que “um entendimento do que vem a ser o conhecimento, seu processo, seu modo de ser” (LUCKESI, 1993, p. 121). O que significa “conhecer”? De modo geral, pode-se dizer que “conhecer é elaborar um modelo de realidade” e “projetar ordem onde havia caos” (CYRINO & PENHA, 1992, p. 13). Nesse sentido, três elementos são necessários para que haja conhecimento: ■ O sujeito, que é o ser que conhece; ■ O objeto, aquilo que o sujeito investiga para conhecer; ■ A imagem mental em forma de opinião, ideia ou conceito que resultam da relação sujeito-objeto e que passa a habitar a subjetividade daquele que conhece. Visto que o ser humano é um sujeito pensante, senciente (que percebe o mundo por meio dos sentidos e das impressões) Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação46 REFLITA O conhecimento pode ser entendido como aquilo que adquirimos nos livros, nas aulas e nas conversas, com o objetivo de alcançar o entendimento da realidade. O que está em primeiro lugar, o que está na raiz do conhecimento, é a elucidação da realidade e não a retenção de informações contidas nos livros. Essas informações deverão ser auxiliares no entendimento da realidade; contudo, elas por si mesmas não são o conhecimento que cada sujeito tem da realidade. É preciso utilizar-se das informações de maneira intelectualmente ativa para que se transformem em efetivo entendimento do mundo exterior. Muitas vezes o conhecimento e comunicante, o resultado é a transmissão dessa articulação mediante linguagem simbólica, a qual o diferencia dos demais seres existentes. Essa linguagem pode ser oral ou escrita, verbal ou não verbal. O saber é um conjunto de informações e conhecimentos que todo sujeito mobiliza para relacionar-se com o mundo, interagir com os semelhantes, com a sociedade, com o universo e com a vida (CHARLOT, 2000). Em função da relação sujeito-objeto, da qual resultam informações, conhecimentos e saberes, o sujeito busca compreender, representar e explicar os objetos com os quais convive em sua vida prática e até aqueles que ele imagina que possam existir como ideia formal apenas. A isso chamamos conhecimento, produto da inteligência simbólica humana por meio da qual o múltiplo ganha uma unicidade, a diversidade recebe certa harmonia e o vazio é preenchido por um sentido, sendo o principal deles o sentido existencial, a razão de ser da vida, o motivo pelo qual o homem e a mulher são, pensam, sentem, julgam, valoram, decidem e agem no aqui-agora de seu ser estar no mundo. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 47 Os Tipos de Conhecimento Ao tratar sobre a construção do conhecimento e o ensino das ciências, Ana Maria Carvalho (1997) define quatro tipos de conhecimento, quais sejam: (1) conhecimento popular ou senso comum, (2) conhecimento filosófico, (3) conhecimento teológico, (4) conhecimento científico. Conhecimento Popular ou Senso Comum O conhecimento popular é valorativo por excelência, pois se fundamenta numa seleção operada com base em estados de ânimo, conhecimentos prévios, experiência, impressões e emoções do sujeito. A característica de assistemático baseia-se na “organização” particular das próprias experiências do indivíduo cognoscente, e não em uma sistematização das ideias, isto é, na busca de uma formulação geral que explane os fenômenos observados. Além disso, é um tipo de conhecimento verificável, uma vez que está circunscrito à vida do cotidiano e se relaciona ao que se pode perceber na vida diária. Por fim, pode ser falível e inexato, pois se conforma com a aparência e com o que se ouviu dizer a respeito do objeto. O conhecimento do senso comum ou popular nada mais seria, também, que o resultado das necessidades de resolver os problemas do cotidiano. Nele, há uma tendência de manter o sujeito que o elabora como um espectador passivo da realidade, subjugado pelos fatos e acontecimentos do seu ambiente. é confundido com o processo de decorar informações dos livros, para a seguir, repeti-las em provas escolares. Isso não é conhecimento, pois essa atitude é memorização de informação, sem saber o que, de fato, essa informação significa. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação48 Porisso o conhecimento do senso comum caracteriza-se por ser elaborado de forma espontânea e, muitas vezes, intuitiva. Conhecimento Filosófico Corpo de conhecimento, em Filosofia, significa um conjunto coerente e organizado de entendimentos sobre a realidade. Conhecimentos estes que expressam a compreensão, que se tem do mundo, a partir de desejos, anseios e aspirações. Quando lemos um texto de Filosofia, nos apropriamos do entendimento, que o seu autor teve do mundo que o cerca, especialmente dos valores que dão sentido a esse mundo. Valores esses que, por vezes, são aspirações que deverão ser buscadas e realizadas, se possível. O filósofo, conforme assinala Luckesi, sistematiza as aspirações dos seres humanos, aspirações essas que dão sentido ao dia a dia, à luta, ao trabalho, à ação. (LUCKESI, 1993, p. 22). Ninguém vive o cotidiano sem um sentido direcionado ao seu trabalho, à sua relação com as pessoas, ao amor, à amizade, à ciência, à educação, à política etc. Segundo Trujillo Ferrari (1982), o conhecimento filosófico é valorativo, pois seu ponto de partida consiste em hipóteses, as quais não poderão ser submetidas à observação. “As hipóteses filosóficas baseiam-se na experi6encia e não da experimentação” (TRUJILLO, 1974, p. 12). Por conseguinte, o conhecimento filosófico não é verificável, visto que os enunciados das hipóteses filosóficas, ao contrário do que ocorre no âmbito da ciência, não podem ser confirmados nem refutados. É ainda um tipo de conhecimento racional, em virtude de abarcar um conjunto de enunciados logicamente correlacionados. Caracteriza-se por ser sistemático, pois seus enunciados visam a uma representação coerente da realidade estudada, numa tentativa de apreendê-la em sua totalidade. Por último, pode ser infalível, já que seus postulados não são submetidos ao teste de experimentos. Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 49 Conhecimento Científico O conhecimento científico é factual (real), porque se relaciona com ocorrências e fatos, isto é, com toda “forma de existência que se manifesta de algum modo” (TRUJILLO, 1982, p. 14). Constitui um tipo de conhecimento dito contingente, uma vez que suas proposições têm sua veracidade ou falsidade conhecida por meio da experimentação e não apenas da razão, como ocorre do pensamento filosófico. É sistemático, pois se trata da elaboração de um conjunto de saber ordenado logicamente, constituindo um sistema de ideias (teoria) e refutando todo e qualquer tipo de conhecimento disperso, desconexo e que não passou por experimentos verificáveis. É nesse sentido que possui a característica de verificabilidade; caso as hipóteses não possam ser comprovadas, não pertencem ao campo da ciência. Constitui um conhecimento falível, em virtude de não ser definitivo, absoluto ou final. Por isso, novas proposições são aceitas e o desenvolvimento de técnicas, procedimentos e metodologias podem reformular o corpo teórico existente. Um dos filósofos que se dedicou à Filosofia da ciência, entre outros assuntos, foi o francês Gaston Bachelard (1884- 1962). A intenção substancial de toda a estrutura dos escritos de Bachelard e seu método de reflexão é a análise da produção do conhecimento humano sob uma perspectiva histórica. Conforme o estudo dos procedimentos e das ideias desenvolvidas em períodos de tempo demarcados por ele mesmo, o autor afirma que o estudo crítico dessas produções pode ajudar a entender os caminhos trilhados para a construção dos conhecimentos. Durante a história de construção da ciência ocidental é possível identificar, mesmo que de forma geral, três momentos específicos. ■ O primeiro é chamado de Pré-Científico e corresponde à Antiguidade Clássica e ao Renascimento; Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação50 ■ O segundo é o Estado Científico propriamente dito, que seria o fim do século XVIII e início do XIX; ■ O terceiro corresponderia ao período do Novo Espírito Científico (depois do início do século XIX até os dias de hoje (BACHELARD, 2005, p. 9). As mudanças de objetivos e métodos que ocorreram nessas etapas históricas do pensamento científico são resultado de um movimento de estudo crítico do passado, da não repetição de ‘caminhos errados’ nos processos dessa construção. É necessário que se considere a cultura científica em termos de descontinuidade com o real, com a experiência imediata e, também, com o seu passado. Não seria possível a criação do novo, se essa produção fosse linear e previsível, dedutível por uma lógica interna de funcionamento, como se um fato novo fosse simplesmente o resultado/a soma de fatos anteriores. É contra esse modo de interpretação continuísta da cultura científica que Bachelard vai sustentar seus argumentos na proposta de uma epistemologia histórica do conhecimento que reconhece, no não continuísmo, seu funcionamento primordial. A história humana bem pode, em suas paixões, em seus preconceitos, em tudo que releva dos impulsos imediatos, ser um eterno recomeço; mas há pensamentos que não recomeçam; são os pensamentos que foram retificados, alargados, completados. Eles não voltam a sua área restrita ou cambaleante. Ora, o espírito científico é essencialmente uma retificação do saber, um alargamento dos quadros do conhecimento. Julga seu passado histórico, condenando-o. Sua estrutura é a consciência de suas faltas históricas. Cientificamente, pensa-se o verdadeiro como retificação histórica de um longo erro, pensa-se a experiência como retificação da ilusão comum e primeira. (BACHELARD, 1995, p. 147) Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação 51 Conhecimento Teológico ou Religioso O conhecimento religioso baseia-se em um conjunto de doutrinas que contém asserções sagradas (valorativas), justamente por terem sido reveladas pelo sobrenatural (inspiracional) e, assim sendo, tais verdades são consideradas infalíveis e indiscutíveis (exatas). É um conhecimento sistemático do mundo, pois contempla temas como origem, significado, finalidade e destino do humano. Suas evidências não são verificadas em função de que a atitude de fé perante um conhecimento revelado é a base mais importante. Nesse sentido, os questionamentos não são trazidos para o campo do conhecimento religioso. Parte-se do princípio de que as “verdades” tratadas são infalíveis e indiscutíveis, por consistirem em revelações da divindade. Nota-se que a adesão das pessoas passa a ser um ato de fé, pois a visão sistemática do mundo é interpretada como decorrente dos atos de um criador divino, cujas evidências não são postas em dúvidas nem sequer verificáveis. REFLITA A postura do teólogos e cientistas diante da Teoria da Evolução das Espécies, de Charles Darwin, particularmente do homem, indica as abordagens diversas. De um lado, as posições dos teólogos fundamentam-se nos ensinamentos de textos sagrados. De outro, os cientistas buscam, em suas pesquisas, fatos concretos capazes de comprovar (ou refutar) suas hipóteses. Se o fundamento do conhecimento científico consiste na evidência Aspectos Filosóficos Socioantropológicos da Educação52 dos fatos observados e experimentalmente controlados, no caso do conhecimento teológico o fiel não se detém nelas à procura de evidência, mas da causa primeira, ou seja, da revelação divina. Apesar da separação metodológica entre os tipos de conhecimento popular, filosófico, religioso e científico, no processo de compreensão da realidade, o sujeito pode transitar nas diversas áreas. Ao investigar sobre o “homem”, por exemplo, pode-se realizar uma série de conclusões sobre sua atuação na sociedade, baseada no senso comum ou na experiência cotidiana. Pode-se analisá-lo como um ser biológico, com base na investigação experimental, as relações existentes entre os órgãos e suas funções. Pode-se questionar a sua origem e o seu destino, assim como sua liberdade. Finalmente, pode-se observá-lo como ser criado pela divindade, a sua imagem