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Licenciatura em Pedagogia Evolução histórica do conceito e concepções de Infantil nfância Patrícia Maria Fragelli Licenciatura em Pedagogia Fragelli, Patricia Maria. Currículo(s) e Educação Infantil: retrospectiva e perspectivas de trabalho / Patricia Maria Fragelli, Luciana Cristina Cardoso. -- São Carlos: EdUFSCar, 2011. 81 p. – (Coleção UAB-UFSCar). Currículo(s) e Educação Infantil 35 2.1 Primeiras palavras Nesta unidade, veremos como o currículo tem se configurado nas práticas escolares. Discorreremos também sobre os conceitos de currículo formal, cur- rículo-em-ação e currículo oculto. Mais uma vez nos reportaremos aos estudos e experiências apresentados em países como Inglaterra e EUA por reconhecer- mos a influência que os mesmos têm na realidade brasileira. 2.2 Problematizando o tema Estudiosos e pesquisadores que denominam nossa época como a era da pós-modernidade afirmam não existir verdade absoluta, pois a sociedade e o conhecimento vivem em constante transformação. Conceitos, conhecimentos e verdades são redescobertos diariamente, portanto, seguindo essa linha de pen- samento, faz-se necessário sempre estabelecer um ponto de referência ao que está sendo dito ou pensado. Por exemplo: essa casa é pequena se comparada àquele prédio, essa criança é muito esperta em relação ao grupo em que está inserida, essas pessoas são miseráveis em comparação às que vivem naquele outro contexto, hoje há mais vacinas em comparação a anos atrás, etc. Há ainda a possibilidade de analisar uma mesma situação de várias manei- ras, dependendo da posição ocupada. Por exemplo: um aluno tira zero na prova. Para o professor, pode ser que ele não conseguiu nota melhor porque não se es- forçou. Para o aluno, pode ser que ele não tenha entendido o conteúdo da prova. Para a família, pode ser que o professor não tenha ensinado. Para o coordenador pedagógico, pode ser que o acúmulo de avaliações num mesmo dia tenha afe- tado a concentração do aluno. Essas múltiplas interpretações podem ter suas fundamentações e se mostrarem pertinentes para discussão e reflexão. O mesmo ocorre no caso do currículo: ele sempre precisa ser pensado dentro de um contexto, de um tempo, e analisado em relação aos mesmos. Além disso, dependendo da concepção que for seguida, poderá assumir um caráter de transformação ou de manutenção. Vamos pensar no seguinte caso: O professor recém formado assume aulas em uma escola de periferia. Antes de iniciar seu exercício docente, estuda o plano escolar e sua unidade de ensino, analisa o programa de sua disciplina, faz um levantamento dos conteúdos neces- sários para aquela série, elabora seu plano de trabalho respeitando a proposta curricular e pedagógica da escola e verifica que a mesma se aproxima do seu pensamento, ou seja, acredita que o seu papel como professor seja o de pro- mover condições para que o aluno se aproprie dos conhecimentos básicos de sua disciplina. 36 Esse professor prepara seu plano de ensino com todo rigor metodológico exigido, cumprindo os conteúdos estabelecidos previamente, mas, ao entrar em sala de aula, verifica que os alunos ainda não dominam conhecimentos prévios e necessários para que ele avance com o conteúdo. Além disso, constata uma diversidade no perfil dos alunos: alguns interessados, outros alheios, outros ainda com postura provocativa. De forma geral, o professor percebe que esses alunos não demonstram perceber significado no ensino que recebem. Diante desse contexto, o professor procura dinamizar suas aulas modifi- cando – inesperadamente – seu plano, introduzindo conversas com os alunos sobre o que já conhecem, o que consideram necessário, por que estudam, o que esperam da escola... Por ser jovem, sincero e assumir uma postura muito aberta, porém firme diante do grupo, conseguiu abrir um espaço para que uma relação harmoniosa entre professor e aluno se estabelecesse. No caso citado, vemos que o professor procurou seguir o currículo formal, mas o transformou em ação quando foi para a sala de aula. Essa será uma ex- clusividade do professor desse caso? Será possível transpor literalmente o que está previsto para a prática pe- dagógica? O que faz com que alguns professores ensinem até o que não é fala- do? O exemplo e a postura do professor também são fontes de aprendizagem? O que vale mais: o conteúdo ou a forma? 2.3 texto básico para estudo 2 .3 .1 Concepções sobre o currículo Segundo os estudos de Saviani (1998), análises feitas por historiadores demonstram que, de forma geral: a) a noção de currículo vincula-se às ques- tões de controle e poder; b) as disciplinas escolares, apresentadas no chama- do currículo formal, são estipuladas a partir de negociações tensas e conflituo- sas e nem sempre consensuais; c) o currículo apresenta relação direta com a cultura e, em essência, deveria abordar e transmitir os “saberes culturalmente acumulados”. No entanto, quando os mesmos são postos em prática, por meio da transposição didática, sofrem modificações e transformam-se em saberes escolares; e d) currículos ditados por Estados-Nações dominantes têm servido de modelos para outros países, o que tem ocasionado a estandardização curricu- lar. Ou seja, em termos mundiais, os currículos têm se aproximado de modelos estabelecidos por países dominantes, o que, mais uma vez, coloca em evidên- cia o “poder” presente no currículo. 37 A concepção crítica dos estudos relacionados ao currículo, que tem como base a educação popular, busca evidenciar as limitações dessa postura dependen- te e padronizada, defendendo ideais vinculados à emancipação do saber e con- sequentemente dos indivíduos. Essa corrente tem princípios que se enraízam no pensamento de Paulo Freire no que se refere à necessidade de conscientização sobre o que ocorre no ambiente escolar. Dentro dessa perspectiva, questões como o que, como e por que sempre se fazem presentes, derrubando a ideia de que o saber é algo pronto, inquestionável e passível de transmissão neutra. A teoria crítica defende a ideia de que, por serem construídos e recons- truídos constantemente, os saberes curriculares sofrem mutações constantes, dependendo da época e do local onde são abordados. Defende ainda a escola como um espaço que deve lutar contra a alienação e passividade perante a so- ciedade, constituindo-se como um espaço emancipatório, no qual o cotidiano e a realidade presentes devem servir de base para reflexões e questionamentos. O saber significativo, aquele que se relaciona com o cotidiano das pessoas, não pode ser algo distante dos alunos, sem sentido ou aplicação teórico-prática. Esse tipo de conhecimento pode e deve ser contemplado por fazer parte do saber erudito, mas não deve ser o único reconhecido como verdadeiro. Afinal, a escola como um local que atende pessoas – alunos, professores, família, funcionários, etc. – apresenta uma diversidade enorme de situações, tensões, conflitos, interes- ses, resistências, parcerias, etc. que pode ser traduzida em saberes ou ao menos alicerçar a discussão, reflexão e assimilação dos conhecimentos transmitidos. Ainda na perspectiva da teoria crítica do currículo, há a busca da não frag- mentação dos conteúdos, divididos em disciplinas estanques e isoladas. Busca-se um trabalho mais abrangente e participativo por meio da interdisciplinaridade. Nesse sentido, para a Educação Infantil, há a proposta – e tendência – de se trabalhar por meio da Pedagogia de Projetos, uma vez que a mesma pode possibilitar o uso de um currículo em espiral. Ou seja, um mesmo conteúdo pode ser visto várias vezes ao longo dos anos – ou de uma mesma série –, mas o enfoque recebido se altera conforme a situação. Não há amarras fragmen- tando as disciplinas, mas sim a interdisciplinaridade. Esse assunto será melhor discutido na Unidadeno início do processo: uma sociedade mais har- moniosa e justa. E quanto à nova classe de pessoas em nossa sociedade que recentemente adquiriu seus direitos de forma oficial e universal: as crianças? Esse processo certamente será penoso nos países em que as crianças são exploradas como mão de obra. Porém, o que acontece com a parcela mais abastada de nosso mundo? Estamos preparados para essas mudanças? Na verdade, apenas começamos a perceber as consequências de respeitar os direitos das crianças. O que está em jogo é a imagem que temos das crianças e como elas se veem a si próprias. A emancipação das crianças implica as vermos como iguais e competentes o suficiente para fazerem par- te do processo de tomada de decisões. Elas têm uma visão bastante sofisticada, e são promotoras ativas de seu próprio desenvolvimento. Uma pesquisa qualitativa com bebês e crianças pequenas (TREVARTHEN, 2011) nos alerta do que essas pessoas tão jovens são capazes e de como as subestima- mos. Levar as crianças a sério significa que temos de abordá- -las como parceiras. Respeitar as crianças genuinamente terá um impacto nas relações que construímos com elas em ter- mos de cuidado e educação. Significa que há um limite até o qual podemos forçá-las a agir. A observação de um ambiente de pré-escola demonstra esse ponto de vista: 166 Est. Aval. Educ., São Paulo, v. 25, n. 58, p. 152-185, maio/ago. 2014 Jennifer: “Não consigo desenhar isso!” Professor: “Sim, qualquer um consegue.” Jennifer: “Não, eu só consigo fazer o cachecol!” Professor: “Não, as luvas também são fáceis.” Jennifer: “Não, só o cachecol.” Professor: “Vamos lá, faça um esforço. As outras crianças conseguem, por que você não consegue?” Acredito que algumas pessoas acharão as intervenções e a persistência do adulto justificáveis: a professora não sabe exatamente do que a criança precisa para seu desenvol- vimento? Porém, até que ponto podemos seguir com isso? Jennifer tem quatro anos de idade. Ela não é uma empregada ou prestadora de serviços. Ela apenas deixa claro que as luvas são muito difíceis para desenhar e se oferece para desenhar o cachecol. Ela sequer protesta contra a atividade, e não pede para ir brincar no pátio ou fazer outra coisa. Em que tipo de relação estamos inserindo essa criança e com que propósito? É plausível pensar que não desenhar as luvas será nocivo ao desenvolvimento dessa criança? Em vez de uma conversa li- mitada desse tipo, o adulto poderia começar aceitando a per- cepção da criança: “Sim, imagino que o cachecol seja mais fácil de desenhar”. “Continue fazendo o cachecol, se achar que a luva é muito difícil”. “Porém, se você quiser desenhar a luva, estarei aqui para lhe ajudar. Conheço um jeito fácil de fazer as luvas”. Qual é diferença dessa reação em termos de respeito? Qual é a diferença em termos de desenvolvimento de um relacionamento recíproco e vinculador? Para concluir: respeitar os direitos das crianças não é uma mera formalidade. Provavelmente, estamos apenas começando a perceber as consequências, não apenas para nós mesmos, mas também para as crianças. Isso porque a construção de uma “nova” imagem da criança passa por um processo cíclico. Será nossa função ajudá-las a desenvolver o autoconceito e a autoestima compatíveis com os direitos que lhes foram concedidos. 2. Uma abordagem de “estrutura aberta” Durante a década de 1970 e o movimento emancipatório, Est. Aval. Educ., São Paulo, v. 25, n. 58, p. 152-185, maio/ago. 2014 167 a abordagem não diretiva incentivou uma série de experi- mentos e debates. É óbvio que esse princípio não sobrevive- ria em sua forma mais radical. Porém, há um consenso cada vez maior sobre a importância da “liberdade” ou do espaço para a livre iniciativa na educação. Uma das primeiras abor- dagens do tema foi descrita no modelo High Scope, já na década de 1960. No livro Young Children in Action (HOHMAN; BANET; WEIKART, 1979), o projeto se posicionou entre as abordagens “abertas”, caracterizadas pelo alto nível de ini- ciativa tanto de adultos quanto de crianças. FIGURA 2 – Iniciativas de professores e de crianças no currículo da educação infantil Fonte: Hohmann, Banet e Weikart (1979). Trata-se de um princípio que coincide com a visão da educação como expressa pelo “construtivismo social” (DE CORTE, 1996). O modelo educacional do futuro levará as crianças a sério e as enxergará como parceiras, cocons- trutoras ativas e promotoras da própria aprendizagem. Isso requer uma forma de organização em que haja espaço para a iniciativa. No modelo High/Scope, esse princípio se con- cretiza de forma genial: um conjunto de experiências-chave fornece ao adulto a estrutura para identificar oportunida- des para apoiar o desenvolvimento das crianças; o conjunto expressa os tipos de experiências que as crianças precisam desenvolver, desde que sejam criadas as condições ideais para que elas sejam atraídas por essas experiências e possam escolhê-las livremente. As crianças são convidadas a dizerem 168 Est. Aval. Educ., São Paulo, v. 25, n. 58, p. 152-185, maio/ago. 2014 In ic ia ti v a d o a d u lt o quais são suas intenções e a refletir sobre suas experiên- cias. Podemos destacar o mesmo princípio basicamente em outros modelos de educação infantil. Na verdade, podemos notar que em nenhum dos modelos, as crianças são “pro- gramadas por” adultos, porém crianças e adultos planejam juntos. O que a criança insere no contexto é a base do pla- nejamento do adulto. Esse planejamento dará subsídio para as próximas ações das crianças. Não podemos dizer quem está no controle em relação ao outro. É aqui que podemos fa- lar de “currículo emergente”: o currículo se desenvolve por meio de um processo cíclico. É claro que, nessa abordagem, estamos longe de uma situação de laisser faire. O papel do adulto ainda é imenso, e de qualquer modo mais complexo do em um modelo auto- ritário. O processo começa pela aproximação das crianças, sensibilizando-se com elas, escutando-as ativamente, obser- vando para compreender como o ambiente é percebido por elas e como as influencia. Isso significa perguntar-se constan- temente sobre a organização do dia, dos materiais e das ati- vidades oferecidas, dos estímulos e de respostas acolhedoras. Todo esse processo pode melhorar a qualidade de vidas das crianças e apoiar seu desenvolvimento. Ao mesmo tempo, o adulto se engaja em uma experiência compartilhada de aprendizagem compartilhada e exploração e investigação do mundo. 3. Um ambiente rico Uma abordagem de estrutura aberta não faz sentido se não houver um ambiente em que iniciativas possam ser toma- das, um contexto que desafie a criança e ofereça uma gama de oportunidades para ela ser ativa, explorando e criando. A riqueza dos ambientes pode ser testada de duas maneiras. A diversidade é um primeiro exemplo disso. Quão amplas são as possibilidades das experiências? Todas as possibilidades são consideradas? Nas atividades da criança é possível garan- tir que todas as áreas de desenvolvimento são estimuladas? O segundo exemplo nos traz o conceito de “profundidade”. O que há para ser descoberto? As atividades oferecidas são ricas o suficiente para estimular todos os níveis de desenvolvimento Est. Aval. Educ., São Paulo, v. 25, n. 58, p. 152-185, maio/ago. 2014 169 do grupo de crianças? O contexto de sala de atividades é com- plexo o suficiente ou o adulto conduz exageradamente, não permitindo que as crianças se engajem em descobertas e aventuras no seu cotidiano na escola? 4. Processo de representação A capacidade de representar mentalmente a realidade é a chave para nossa compreensão do desenvolvimento cog- nitivo. Aprendemos isso com Piaget. Ascrianças no estágio anterior àquele que inclui a permanência do objeto não têm essa capacidade. Um objeto que acabaram de pegar em suas mãos e com o qual brincaram um pouco deixa de existir as- sim que sai de seu campo de visão. A bola que tinha sua to- tal atenção há pouco, não é mais procurada depois que cair atrás da criança. Parece que, para essas crianças, a realidade existe apenas na percepção real imediata. FIGURA 3 – Conceito de representação Fonte: Elaboração do autor. O objetivo da educação recai, em essência, sobre o de- senvolvimento da capacidade de representar, de trazer de volta realidades/eventos, porém em nível mental. Isso quer dizer, por exemplo, ser capaz de sentir o gosto de uma man- ga sem ter uma nas mãos, lembrar-se do aroma da fruta de forma tão vívida que possa até exceder a experiência com a fruta de verdade. A representação mental é o que Aebli (1963) chamou de “die geistige Kraft”, o poder da mente, a faculdade de criar uma sensação, a percepção de significados que vão desde a experiência física até a representação das construções e dos conceitos mais abstratos, como a “criativi- dade”, a “inteligência”, a “sinergia”, o “construtivismo”. 170 Est. Aval. Educ., São Paulo, v. 25, n. 58, p. 152-185, maio/ago. 2014 Ao desenvolver essa capacidade, a experiência “original” não é o único fator essencial. Na verdade, é o ato da repre- sentação (externa) que compõe um meio poderoso de mol- dar a mente. O que acontece quando alguém pinta, desenha, interpreta, molda, evoca com sons e movimentos, descreve ou se expressa em palavras, é mais do que transferir o que está dentro para fora, mais do que apenas utilizar símbolos e sinais para compartilhar o que alguém tem em sua mente. Aprendemos com Gendlin (1964) que o ato de representação externa é, por natureza, uma “interação”: as sensações, os significados, assumem sua “forma” completa (na mente de uma pessoa) quando os símbolos e sinais são utilizados. “É óbvio, eu sabia o que queria escrever agora”. Porém, apenas no processo da redação eu posso obter a experiência comple- ta da mensagem que pretendo transmitir. A criança que se empenha em um papel de mãe ou pai, bombeiro ou lojista, graças aos gestos e sons, obtém a experiência completa da realidade que, de uma forma ou de outra, a impressionou. O ato da expressão é ao mesmo tempo um ato da impressão. Essa interpretação nos ajuda a entender por que a abor- dagem de Reggio Emilia é tão poderosa. Todas as possibilida- des de expressão são utilizadas para articular as experiências que poderão levar a novas aprendizagens. As “cem lingua- gens” oferecem as maravilhosas e indispensáveis ferramen- tas para “finalizar” ou potencializar aprendizagens que, de outra forma, permaneceriam inarticuladas e não compar- tilhadas. Esse processo de expressão, contudo, transcen- de o conteúdo específico que foi expresso. Nesse contexto, observa-se que as habilidades cognitivas se desenvolvem de maneira a refinar cada vez mais as suas percepções sobre o entorno. Nossa consciência, como “portadora”, se fortalece; o intervalo do que pode ser mentalmente “representado” se expande. Cabe a nós agora buscar meios de utilizar esse poderoso ciclo de impressão-expressão, esse fluxo orgânico de energia, dando às crianças oportunidades de agirem e passarem por experiências significativas, por um lado, e, por outro, de dar a elas as diversas ferramentas que a cultura nos oferece para articular essas impressões no ato da expressão. Est. Aval. Educ., São Paulo, v. 25, n. 58, p. 152-185, maio/ago. 2014 171 5. Comunicação, interação, diálogo A expressão também pode ser uma atividade solitária. Ao promovermos a comunicação, a interação e o diálogo, entramos na dimensão social da educação. O compartilha- mento de impressões por meio da arte ou da comunicação na roda de conversa e de diversas maneiras informais faz parte de todos os modelos que são mencionados neste arti- go, e será certamente endossado pelo ponto de vista cons- trutivista social: o significado é moldado pela comunicação. Aprender é, portanto, uma atividade conjunta, um ato de colaboração. Mesmo a pesquisa mais tradicional de “escolas efetivas” demonstrou o quanto são importantes um bom cli- ma no grupo e uma comunicação aberta para se obterem melhores resultados. Além de tudo isso, há um crescente consenso quanto ao fato de que trabalhar com grupos ho- mogêneos não é, de forma alguma, eficaz. A comunicação é mais frutífera quando há diversidade e as pessoas podem complementar, desafiar, questionar, surpreender, entusias- mar e dar poder umas às outras. Porém, há mais fatores envolvidos além dos aspectos cog- nitivos. O diálogo não é apenas uma maneira de formar ideias e aprofundar a compreensão. Ele conecta, vincula, cria um sentimento de união, de pertença. Nessa atmosfera, todas as pessoas são capazes de se articular, as diferenças se tornam mais visíveis, e a diversidade não é encarada como uma amea- ça, e sim como uma riqueza, uma condição de se aprender mais sobre si mesmo e desenvolver a própria identidade. 6. Observação O monitoramento e a avaliação são partes integrantes dos modelos aqui mencionados. São vistos como atividades indispensáveis na garantia da qualidade. Entretanto, a forma de se operar esses modelos para atender a essa função difere das abordagens mais tradicionais. Para a coleta de “dados”, investe-se muito na observação de crianças em situações reais de suas vidas e das condições que o ambiente oferece. Na verdade, um contexto em constante mudança é o foco. Como as crianças se relacionam com ele, o caminho que to- mam no decorrer do dia e as escolhas que fazem, o tipo de 172 Est. Aval. Educ., São Paulo, v. 25, n. 58, p. 152-185, maio/ago. 2014 pergunta que fazem, os interesses que demonstram, as ini- ciativas que tomam e as interações nas quais se envolvem, as evoluções que observamos em cada criança ao longo do tempo, tudo isso é valioso quando estamos buscando enten- der como podemos apoiar o desenvolvimento das crianças. Esses fatores nos dão indícios dos meios de enriquecermos o ambiente; dos sinais sobre as experiências que ameaçam a saúde emocional das crianças e de seu desenvolvimento cognitivo. Apesar de as abordagens mencionadas se diferencia- rem na forma em que estruturam as informações – em que o HighScope aplicaria categorias específicas e a abordagem de Reggio Emilia optaria por descrições extensas de observa- ções –, todas possuem uma abordagem holística em comum: procuram enxergar a coerência, como as coisas se relacio- nam entre si; não ficam rotulando as competências da crian- ça ou as fragmentando; não têm o intuito de reduzir os fatos, e sim de permitir que a realidade completa se manifeste. Mais uma vez, tudo isso coincide com os recentes de- senvolvimentos na área da pesquisa em que trabalhar com narrativas – contanto a estória completa e deixando que to- das as partes interessadas participem do processo de coleta, interpretação e documentação dos dados – é visto como um processo necessário para se aproximar o máximo possível da criança e descobrir seus talentos. O RESULTADO DA EDUCAÇÃO O CONCEITO DE APRENDIZAGEM SIGNIFICATIVA Na estrutura teórica da EXE, apesar de seu foco no processo, muita atenção é dada aos efeitos ou resultados da educação. Entretanto, há muitas formas diferentes de se abordar as competências. Do ponto de vista experiencial, consideramos como competência o resultado da “aprendizagem signifi- cativa”. Em outras palavras, não estamos tão interessados em combinar fatos e conhecimentos nem no treinamento de habilidades isoladas. Nossos esforços como educadores deveriam contribuir com mudanças no desenvolvimento, resultando em “esquemasmentais” mais complexos. Estes Est. Aval. Educ., São Paulo, v. 25, n. 58, p. 152-185, maio/ago. 2014 173 regulam a forma como a pessoa processa os estímulos que recebe e constrói sua interpretação da realidade. Por eles, in- terpretamos novas situações e agimos com competência – ou não. Eles determinam quantas e quais as dimensões da rea- lidade que podem ser articuladas por uma pessoa (LAEVERS, 1998). Essas mudanças nas habilidades da criança devem es- tar visíveis, nos diversos contextos em que as competências podem ser trabalhadas, e não apenas na maneira como as crianças lidam com novas situações. Quando a criança desenha uma figura humana com ape- nas cabeça e pernas, ou se debate com um quebra-cabeça, ou quando não consegue utilizar uma tesoura, sua ação reflete seu estágio de desenvolvimento. Mudanças nesse nível mais profundo não podem ser obtidas com exercícios; exigem uma atividade com alto nível de envolvimento. Com essa abordagem, a visão experiencial se enquadra nas abordagens atuais sobre competência. Reconhecemos que o aprendizado refere-se ao desenvolvimento da forma como as pessoas “constroem” seu mundo, ou seja, faz com que elas “enxerguem” melhor, diferenciem mais e sejam mais capazes de lidar com as situações. Também ratificamos que a ideia de competência pode ser encarada como um grupo de entidades complexas em que o conhecimento, a visão, a intui- ção, as habilidades e as atitudes desempenham um papel de tal maneira que não podem ser consideradas separadamente. Consequentemente, os esforços para “aperfeiçoar” essas capa- cidades apenas terão êxito se dermos aos aprendizes a opor- tunidade de se envolverem inteiramente no questionamento das situações, em vez de desmembrarmos as competências e nos concentrarmos em cada fragmento dessas competências. Nossa abordagem é, portanto, genuinamente holística. A escolha de uma abordagem baseada em competên- cias é mais do que um posicionamento filosófico. Permeia cada movimento que fizermos na descrição dos resultados desejados da aprendizagem das crianças. Isso de forma al- guma causou qualquer impacto na maneira como definimos os domínios e os níveis do desenvolvimento. Um resumo da estrutura que cobre os nove domínios do desenvolvimento tem características específicas e será apresentado a seguir: 174 Est. Aval. Educ., São Paulo, v. 25, n. 58, p. 152-185, maio/ago. 2014 • cada domínio é definido de forma concisa, em poucas linhas, e procuramos capturar a essência de um campo específico de competência que podemos utilizar para identificar se e quando aquele domínio é abordado em uma atividade observada; • a descrição da escala se limita à definição do nível 1 e do nível 5 de forma holística; não seguimos uma lista de habilidades isoladas para serem marcadas; • as escalas posteriores não são ligadas a níveis etários específicos; na verdade, podem ser utilizadas para avaliar o desenvolvimento das crianças pequenas assim como de adultos; • o aspecto acima é possível pela referência “à idade dele ou dela”, e, consequentemente, como observadora, a pessoa terá de traduzir os níveis da escala a um grupo em particular de crianças. Para manter a fidelidade à abordagem holística, optamos por investir no treinamento dos profissionais para utilização do instrumento. O que proporcionamos é uma estrutura que acreditamos ser muito útil no apoio ao desenvolvimento de habilidades do profissional em observar. A outra alternativa seria voltarmos para as práticas tradicionais em que o desen- volvimento é abordado de forma fragmentada. As implicações desse posicionamento são visíveis na maneira como definimos e avaliamos os níveis de desenvolvimento. Dois trechos da edição revisada do Sistema de monitoramento voltado para o Processo (Process-Oriented Monitoring System – POMS) ilustram essa implicação (LAEVERS; MOONS; DECLERCQ, 2012): Habilidades motoras amplas/nível 5: Demonstra habilidades físicas excelentes – para sua idade, nas diversas situações que envolvem movimento. É um prazer observar seus movimentos no espaço: maleá- veis e graciosos, com grande eficácia, com ritmo, reagindo prontamente a mudanças e sinais. Apren- de facilmente novos padrões de movimento (como gestos, jogos com bolas, cambalhotas, danças etc.). Auto-organização e empreendedorismo/nível 5: Considerando sua idade, é capaz de lidar bem consigo Est. Aval. Educ., São Paulo, v. 25, n. 58, p. 152-185, maio/ago. 2014 175 mesmo: sabe o que quer, é capaz de estabelecer me- tas, de se engajar em atividade sem demora e obter bons resultados. Não desiste ao primeiro obstáculo e persiste para atingir sua meta. Adapta-se a diversas circunstâncias e trabalha estrategicamente. Percebe e encerra oportunidades, toma a iniciativa, exibindo imaginação e criatividade. Dessa forma, é capaz de inspirar e liderar outras crianças. Essa abordagem não se relaciona com o modelo que en- fatiza déficits; ao contrário, está sempre em busca da identi- ficação dos pontos fortes em uma criança: as áreas em que se pode perceber um talento ou potencial específico. Qualquer campo que se destaque deve ser observado e valorizado. Re- conhecer esses talentos causa um impacto que dá poderes à criança. EDUCAÇÃO VOLTADA AOS VALORES Podemos criar um ambiente com ricas possibilidades para o desenvolvimento e aprendizagem das crianças e assim propiciar que se tornem competentes em diversas áreas de conhecimento. Entretanto, a pessoa pode usar seus talentos de diversas maneiras; mesmo sendo muito competente so- cialmente, não se pode garantir que desenvolverá comporta- mentos pró-sociais. Em se tratando de educação, é desejável que seja possível que as pessoas se engajem naquilo que é bom para elas e para a sociedade. Essa é a dimensão ética. No âmbito do projeto de EXE, o conceito de “ligação” ressalta a importância expressa de uma orientação positiva em relação à realidade humana. Esse conceito ainda pode ser considerado um ponto de referência quando se trata de educação. A ligação com ecossistema em sua totalidade é essen- cialmente um conceito religioso, no sentido mais amplo da palavra. Etimologicamente, “re-ligião” (re-liare) significa “li- gar novamente”. Assim como “de-linquência” significa “au- sência de ligação”, o sentido de “ligação” pode ser visto como a pedra fundamental para a prevenção de comportamentos criminosos ou de qualquer ação que cause danos às pessoas e 176 Est. Aval. Educ., São Paulo, v. 25, n. 58, p. 152-185, maio/ago. 2014 às coisas. Aquele que se sente conectado a alguma coisa, não agirá como um vândalo. Na elaboração do conceito, em se tratando de educação infantil, as crianças são auxiliadas no desenvolvimento dessa atitude de tornar-se conectados (1) consigo mesmas, (2) com os demais, (3) com o mundo material, (4) com a sociedade, e (5) com todo o ecossistema. FIGURA 4 – Atitudes básicas para ligação: cinco círculos Fonte: Elaboração do autor. As implicações para a prática incluem: oferecer um con- texto educacional no qual as crianças tenham a chance de experimentar a satisfação de pertencer a um grupo, estarem em harmonia e de valorizarem a beleza, a verdade e a bon- dade. Nesse contexto, o adulto deve atuar como um modelo, mostrando o que significa interagir com os outros de manei- ra respeitosa, engajar-se em ações que contribuirão para a construção de ambientes mais saudáveis em sala e em outras situações da vida. Est. Aval. Educ., São Paulo, v. 25, n. 58, p. 152-185, maio/ago. 2014 177 MONITORAMENTO DA QUALIDADE O SISTEMA DE MONITORAMENTO VOLTADO PARA O PROCESSO (PROCESS-ORIENTED CHILD MONITORING SYSTEM – POMS) Para identificar as crianças que precisam de atenção espe- cial, a observação sistemáticaé necessária, bem como, na verdade, algum tipo de sistema de monitoramento. Ape- sar de os sistemas tradicionais voltados para resultados de aprendizagem terem seus méritos, em especial para fins de diagnóstico, também apresentam sérias limitações. A pri- meira é que sua utilização em nível de grupo acarreta um enorme investimento, e não deixa tempo para intervenções de fato. Além disso, a maior parte dos sistemas se concen- tra tipicamente em resultados de aprendizagem escolar e se esquece de que o sucesso costuma depender mais do de- senvolvimento de habilidades e competências, tais como a capacidade de explorar, a sociabilidade, a auto-organização e o empreendedorismo. A identificação do desempenho da criança em um teste não significa que se saiba imediatamen- te que ações devem ser adotadas. O paradigma por trás da maioria dos sistemas de monitoramento parece ser o de que só se deve desmembrar uma tarefa se for para ajudar a crian- ça a superar uma dificuldade. Porém, essa abordagem não leva em conta a natureza dos processos de desenvolvimento, nem o fato de que a criança funciona como um todo. Em sintonia com a estrutura de EXE, o POMS se concen- tra nos dois principais indicadores da qualidade do processo educacional: o bem-estar e o envolvimento. Dessa forma, é mais holístico em sua natureza. Essas duas dimensões trazem a resposta para a questão- -chave: como cada criança está se saindo em minha classe ou em meu grupo? Os esforços que estamos fazendo são sufi- cientes para garantir a saúde emocional e o desenvolvimen- to de cada uma das crianças em todas as áreas importantes? Na primeira etapa, as crianças passam por uma triagem, com uma escala de cinco pontos para cada dimensão. No caso de crianças com níveis abaixo de 4, os professores fazem obser- vações e análises adicionais. É o caso de crianças com pon- tuação 3 em uma ou ambas as dimensões. Considera-se que 178 Est. Aval. Educ., São Paulo, v. 25, n. 58, p. 152-185, maio/ago. 2014 crianças com pontuação abaixo de 3 estão na zona de perigo e devem ter prioridade nas intervenções dos professores. QUADRO 4 – Escala de bem-estar: nível 1 Fonte: Elaboração do autor. Uma avaliação periódica (três ou quatro vezes ao ano) desses níveis parece ser viável e efetiva. Ao contrário de ou- tros sistemas, o POMS proporciona um senso de objetivo: os professores tem feedback imediato sobre a qualidade de seu trabalho, podendo dar continuidade a ele. O objetivo é criar um clima positivo para as crianças em que elas desenvol- vam ações intrinsicamente motivadas (LAEVERS; MOONS; DECLERCQ, 2012). ESTRATÉGIAS BASEADAS EM EFETIVIDADE E EVIDÊNCIAS A EXE não é apenas mais um programa educacional. O co- nhecimento baseado na “educação experiencial” (EXE) não se situa ao nível de “modelos educacionais” ou “currículos”; ele transcende esses níveis: é um auxílio para avaliar e me- lhorar a qualidade em qualquer modelo educacional. Um relatório recente de uma pesquisa sobre o projeto de EXE, conduzida na cidade de Milton Keynes, no Reino Unido, teve uma amostragem de 1400 crianças de 0 a 5 anos de idade em 50 unidades situadas em três locais de vulnera- bilidade social. Para avaliar os níveis de bem-estar e envol- vimento antes e depois do projeto, foi utilizada a seguinte técnica: os dados foram coletados por meio de observação de uma amostra de dez crianças em um grupo, em episódios de dois minutos, pontuando-as, ao final, conforme a escala de bem-estar e envolvimento (LAEVERS, 2008). Est. Aval. Educ., São Paulo, v. 25, n. 58, p. 152-185, maio/ago. 2014 179 Nível 1 de bem-estar Crianças com nível muito baixo de bem-estar estão claramente passando por dificuldades e não se sentem felizes no ambiente. • Momentos de “verdadeiro” prazer são escassos ou até inexistentes. • Geralmente sentem-se ansiosas ou tensas e dificilmente demonstram alguma vitalidade. • Os contatos com o próprio ambiente tendem a ser difíceis. • Estão em conflito com outros ou tentam evitar o contato. FIGURA 5 – Evolução dos níveis de bem-estar e envolvimento MILTON KEYNES PROJECT RESULTS [Avaliação de bem-estar e envolvimento por varredura] Fonte: Elaboração do autor. A Figura 5 ilustra como o bem-estar e o envolvimento das crianças evoluiu significativamente, em um período de onze meses, de 3,34 para 3,72, no caso do bem-estar, e de 2,94 para 3,47, no caso do envolvimento. A intervenção para tornar isso possível consistiu no treinamento e acompanha- mento de professores na aplicação da escala de bem-estar e envolvimento como aprendizagem para se criar um ambien- te efetivo de aprendizagem. Essa pesquisa foi complementada por um estudo de me- nor escala sobre o impacto do envolvimento sobre os resul- tados de aprendizagem das crianças. Esse estudo mostra um ganho significativo nos resultados, usando o perfil da Early Years Foundation Stage. A amostra das dez escolas mais ca- rentes em Milton Keynes não apenas teve êxito no aumento dos níveis de envolvimento, mas também obteve melhores resultados do que as pontuações médias de todas as escolas da cidade. 180 Est. Aval. Educ., São Paulo, v. 25, n. 58, p. 152-185, maio/ago. 2014 3,47 3,34 3,72 2,94 CONSIDERAÇÕES FINAIS As experiências acumuladas no projeto de EXE respaldam a conclusão de que o bem-estar e o envolvimento são bem aceitos pelos professores como fatores que realmente esti- mulam e ajudam a melhorar a qualidade de seu trabalho. Os conceitos de bem-estar e envolvimento estão em acordo com o que pensam diversos professores, e lhes proporciona uma confirmação com embasamento científico daquilo que eles já sabiam: quando podemos ter crianças nesse “estado de fluxo”, o desenvolvimento ocorre e certamente envolverá as áreas abordadas pela atividade. Em contraste com as va- riáveis de resultados de aprendizagem – os resultados reais são vistos apenas em longo prazo – as variáveis do processo dão feedback imediato sobre a qualidade das intervenções e nos indicam imediatamente alguma coisa sobre o impacto potencial de nossa abordagem. Além disso, destacar o envol- vimento como indicador-chave de qualidade congrega um volume considerável de sinergia e energia positiva: as reações entusiasmadas das crianças, quando as iniciativas didáticas são bem-sucedidas e muito impactantes e dão ao professor uma profunda satisfação, tanto em nível profissional quanto pessoal. Finalmente, considerar o envolvimento como ponto de referência na orientação dada pelo profissional possibilita o respeito às condições de atuação do professor e do ambien- te de aprendizagem. Ao implementar a educação experiencial, o professor leva em consideração as condições encontradas em relação à sala, às crianças, ao material, aos métodos e a todas as li- mitações ligadas à sua situação real. Em seguida, um campo de ação é selecionado e iniciativas são tomadas para poten- cializar o bem-estar ou o envolvimento. Essa potencialização – por menor que seja – é vivida pelo professor como sucesso e incentivo para novas iniciativas. É disso que trata a educação experiencial: mobilizar e estimular a energia das pessoas e induzi-las a uma espiral positiva que dá origem à aprendizagem significativa. Somen- te assim podemos organizar ambientes e escolas mais efica- zes e fortes o suficiente para encarar o desafio da educação: o desenvolvimento de (futuros) adultos, autoconfiantes e Est. Aval. Educ., São Paulo, v. 25, n. 58, p. 152-185, maio/ago. 2014 181 mentalmente saudáveis, curiosos e exploradores, expres- sivos e comunicativos, imaginativos e criativos, cheios de iniciativa, bem organizados, com intuição exacerbada sobre seu mundo físico e social e com sentimento de pertençae conexão ao universo e a todas as criaturas! REFERÊNCIAS AEBLI, H. Uber die geistige Entwicklung des Kindes. Stuttgart: Klett, 1963. CSIKSZENTMIHAYLI, M. The concept of flow. In: SUTTON-SMITH, B. Play and learning. Nova York: Gardner, 1979. p. 257-273. DE CORTE, E. Instructional psychology: overview. In: DE CORTE, E.; WEINERT, F. E. (Ed.). 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FERRE LAEVERS Professor doutor do Centro de Pesquisas em Educação Experimental da Universidade de Leuven, Bélgica ferre.laevers@ped.kuleuven.ac.be ANEXO 1 – Centro de Educação Experiencial: publicações orientadas à prática 1. Observing Involvement in Children from Birth to 6 Years. A training pack (Observando o envolvimento das crianças desde o nascimento até os 6 anos de idade. Pacote para treinamento) [DVD + Manual]. Autores: Dr. Ferre Laevers, Bart Declercq, Colleen Marin, Julia Moons e Frankie Stanton. 2. Observation of well-being and involvement in babies and toddlers (Observação do bem-estar e do envolvimento de bebês e crianças pequenas). Autor: Ferre Laevers (Ed.). 3. A Process-oriented Monitoring System for the Early Years [POMS] (Um sistema de monitoramento do processo da educação infantil). Autores: Dr. Ferre Laevers, Julia Moons e Bart Declercq. 4. My Profile. Sharing observations with parents in the early years. (Meu perfil. Compartilhando observações na primeira infância com os pais). Autores: Dr. Ferre Laevers e equipe de pesquisa. 5. A Box full de Feelings. An activity set for the early years (Uma caixa cheia de emoções. Conjunto de atividades para crianças pequenas). Autores: Julia Moons e Marina Kog. Recebido em: MARÇO 2014 Aprovado para publicação em: ABRIL 2014 184 Est. Aval. Educ., São Paulo, v. 25, n. 58, p. 152-185, maio/ago. 2014 mailto:ferre.laevers@ped.kuleuven.ac.be M.C.S Barbosa e S.R.S Richeter Licenciatura em Pedagogia Barbosa, M. C. S. ; Richeter, S. R. S. Campos de Experiência: uma possibilidade para interrogar o currículo. p. 185 - 197. Campos de Experiência 185 Campos de Experiência: uma possibilidade para interrogar o currículo Maria Carmen Silveira Barbosa1 Sandra Regina Simonis Richter2 A publicação nos anos 90 dos Cadernos CEDES no 37, Grandes Políticas para os Pequenos (1995), com as propostas de currículos de distintos países como o Japão, a Itália e a Suécia, juntamente com a leitura do livro Creches e pré-escolas no hemisfério norte (1994) indicavam para nós, professores e pesquisadores brasileiros, o que acontecia internacionalmente no campo da Educação Infantil. Ambas as publicações, ao evidenciarem os distintos caminhos que alguns países estavam percorrendo em seus processos de constituição histórica, apontavam para uma multiplicidade de alternativas possíveis ao Brasil. 1 Professora Associada da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atuano Programa de Pós-Graduação em Educação, na Linha de Pesquisa: Estudos sobre as Infâncias. Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas e Pós-doutora pela Universitat de Vic, Catalunya, Espanha. Editora da Revista Pátio - Educação infantil e Líder do Grupo de Estudos em Educação Infantil e Infância - GEIN - UFRGS. 2 Doutora em Educação. Professora do Departamento de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Santa Cruz do Sul. Líder do grupo de pesquisa LinCE – Linguagem, Cultura e Educação UNISC/CNPq. 186 Foi exatamente neste período que as decisões que definiram o escopo da Educação Infantil no Brasil se con- figuraram: a Lei de Diretrizes e Bases – LDB de 1996, os Referenciais Curriculares Nacionais da Educação Infantil – RCNEI de 1998 e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil – DCNEI de 1999. Se na década anterior a concepção de criança como sujeito de direitos, dada através da Convenção dos Direitos da Criança (1989) e do Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), havia sustentado o texto dos documentos centrais da reflexão sobre infância, a nova década centrava ações e discussões em torno do estabelecimento da relação desta criança com a instituição escolar. Conhecer as Novas Orientações para a Nova Escola da Infância de 1991 na Itália, publicada no Cadernos CEDES, foi muito importante, pois estávamos começan- do a ler e debater textos sobre a abordagem da creche e da pré-escola no norte da Itália e vivíamos um grande maravilhamento com a organização do sistema público de educação infantil enraizado na cultura, na ciência e na arte que aquelas pequenas cidades haviam constituí- do. Hoje a possibilidade de revisar as diretrizes italianas ajuda a identificar aspectos significativos para pensar o processo de discussão sobre currículo que estamos vivendo na educação infantil no Brasil. A legislação italiana pode contribuir tanto pelo fato de podermos concordar com ela como pela possibilidade de dela divergimos. Neste breve texto problematizaremos dois aspectos que, apesar de interconectados, serão abordados separadamente para garantirem as suas especificidades: o currículo da Educa- ção Infantil e a formação de professores. 187 É possível, e necessário, pensar um currículo para a Educação Infantil? O ingresso da educação infantil no sistema educa- cional foi celebrado pelos educadores infantis do Brasil, pois esta era a possibilidade de romper com as abordagens assistencialistas, compensatórias e/ou preparatórias que grande parte dos atendimentos para as crianças de 0 a 6 anos estava submetida no final da década de 70. Porém, a transição das creches e jardins de infância para as escolas implicou também um processo de adaptação e ajuste destas instituições à cultura escolar. Dois aspectos da cultura escolar consideramos impor- tantes destacar. O primeiro diz respeito à função de ensino (e aprendizagem) que esta instituição ocupa na sociedade. Na Constituição Federal de 1988 e na LDB/1996 a ação pedagógica com crianças de 0 a 6 anos recebeu o nome de Educação Infantil com a intencionalidade de diferir do termo ensino que antecedia as etapas Fundamental e Mé- dio. Afinal, para todas as pessoas que estudam, convivem e trabalham com bebês e crianças pequenas fica claro que, independentemente da denominação da instituição, isto é, seja ela uma escola ou uma creche ou uma pré-escola, ela terá características distintas de uma escola convencional. Será um espaço que abriga ações educativas abrangentes, não apenas de conhecimentos sistematizados e organizados por áreas, mas também de saberes oriundos das práticas sociais, das culturas populares, das relações e interações, dos encontros que exigem a constituição de um tempo e um espaço de vida em comum no qual se possa compartilhar vivências sociais e pessoais. Na história da educação foram muitas as denomina- ções usadas para diferentes instituições educativas: acade- 188 mia, liceu, ginásio, colégio, universidade. Cada uma dessas unidades educacionais apresenta um modo específico de funcionamento. Todas apresentam elementos comuns de “escola”, mas garantem suas especificidades que têm relação com a idade, com os modos de aprender, com o tipo de conhecimento a ser transmitido, com o tipo de formação dos profissionais. Garantir esta especificidade na concep- ção de escola para a educação infantil é fundamental. Isto nos encaminha para a segunda questão: será que todas as instituições educacionais necessitam reproduzir a cultura escolar que tem como característica central a presença de uma proposição curricular? Pode haver escola sem currículo previamente definido? Podemos observar que as proposições curriculares dos distintos países variavam bastante na década de 90. Encontrávamos ainda uma imagem de escola e de currículo para crianças pequenas mais distante e diversa do ensino fundamental. A indagação sobre a articulação com o ensino fundamental se colocava pela ideia da continuidade, porém pautada no cuidado com a antecipação, a preparação, os pré-requisitos, isto é, a subordinação de uma instituição à outra. O currículo da escola de educação infantil estava em muitos casos mais centrada na formação de e em valores humanos, nas relações interpessoais, nos saberes do mundo, mais centrada na brincadeira do que em conhecimentos acadêmicos. Será que o fato de ter alterado a vinculação legal e assumido a primeira etapa da Educação Básica para inte- grar o sistema escolar define para a educação infantil uma relação de tempos e espaços prioritariamente de ensino? E se a opção é pelo predomínio do ensino, a melhor escolha seria realizá-lo a partir das áreas do conhecimento? Quais áreas? Quem as define? A partir de qual recorte: da antropologia, da medicina, da psicologia do desenvolvimento, da peda- 189 gogia, da ciência, da arte? Quais saberes e conhecimentos deveriam ser priorizados na educação de crianças pequenas? Entendidas como disciplinas ou como linguagens? O que seriam campos de experiências educativas? No Brasil, em termos de políticas curriculares, as deci- sões vêm, desde os anos 90, sendo tomadas em movimentos oscilatórios. Temos uma DCN em 1999 que se caracteriza pela abertura ao apresentar poucos e amplos artigos que favoreciam muitas possibilidades curriculares. Ao mesmo tempo, temos um endereçamento muito específico das RECNEI de 1998, que apresenta um currículo por áreas, eixos, faixas etárias. Passados 20 anos, o que permaneceu nas escolas, nas creches e pré-escolas como ação pedagógi- ca? Segundo pesquisas (BRASIL, 2009), o que foi possível encontrar com maior frequência nas orientações curricu- lares dos municípios brasileiros e nas propostas político pedagógicas das escolas públicas são referências aos RCNEI (cópias, releituras, inspirações...). Mesmo com a publica- ção das DCNEI em 2009, que reformulavam as diretrizes anteriores e traziam novas concepções, observou-se que nos textos legais de muitos municípios foram incorporados elementos da nova legislação, mas a estrutura dos RCNEIs permaneceram intactas no sentido da operacionalização dos documentos oficiais e mesmo das legislações municipais como demonstram relatórios de pesquisa (OEI, 2015). A permanência do discurso dos RECNEI deve-se ao fato de apresentarem um conceito de escola, de ensino, de conteú- do, de ação docente, muito próximo à compreensão tácita de escola convencional, ou seja, uma compreensão impregnada pelas vivências escolares dos docentes, gestores e famílias. A presença constante dos Referenciais, a ausência de problematização diante da opção pelas áreas de conheci- mentos, a falta de discussão sobre o tempo e o espaço dos 190 bebês, a desconsideração pelo movimento lúdico do corpo, a separação entre conteúdo e metodologias, entre apren- dizagem das crianças e ação pedagógica dos professores, entre conteúdo escolar e cultura nos fazem pensar que o debatesobre o currículo na educação infantil necessita, sim, ser intensificado. Precisamos ampliar na educação infantil o espectro da discussão e das interlocuções. Quanto mais elementos e instrumentos teóricos tivermos para debater possibilidades e necessidades e contrastá-las com o conhe- cimento de modelos realizados em outros países, melhor. Uma segunda questão que a cultura escolar nos coloca é sobre a relação entre conhecimentos e a idade das crianças. As indicações italianas dos campos de expe- riência educativos foram feitas para a pré-escola, portanto para crianças de 3 a 6 anos, e contemplam cinco campos: o eu e o outro, o corpo e movimento, imagens, sons e cores, os discursos e as palavras, o conhecimento do mundo. Será que, ao definirem tais campos, não estariam antecipando as áreas de conhecimento do ensino fundamental? Será preciso preparar as crianças para a escolarização do ponto de vista do conhecimento disciplinar? Seriam estes os campos de experiência educativa mais relevantes para os bebês? Borghi e Guerra (1999) fizeram a defesa de que os currículos para os bebês e crianças bem pequenas poderiam seguir a estrutura dos Campos de Experiência, porém de- veriam ter acréscimos de modos de ação e interação mais próximos às suas demandas e às suas possibilidades. Por exemplo, maior ênfase na percepção e na sensorialidade antecedendo ao movimento ou o gesto e a expressão do corpo antecedendo a da palavra. Para os autores o currículo do 0 aos 6 anos abrange um momento do crescimento e desenvolvimento humano no qual as mudanças são de grande intensidade e abrangên- 191 cia, portanto é preciso pensá-lo em suas diferenças. Borghi e Guerra (1999) apresentam um quadro que demonstra a não arbitrariedade das fronteiras entre as áreas. MAPA CURRICULAR RESUMIDO Área/ Campo Formativo Creche Pré-escola Escola Funda- mental Corpo A percepção e o movimento O corpo e o movimento Mensagem, formas e mídias Educação Física Educação das Imagens Educação sono- ra e musical Comunicação O gesto, a imagem, a palavra Os discursos e as palavras Mensagens, for- mas e as mídias Língua Italiana Língua Estran- geira Educação das Imagens Educação sono- ra e musical Lógica Os problemas, as provas, as soluções O espaço, a or- dem e a medida As coisas, o tempo e a natureza Matemática Ciências Ambiente A sociedade e a natureza As coisas, o tempo e a natureza O espaço, a ordem e a medida Ciências História Geografia Estudos Sociais Educação ético- social e afetiva O eu e o outro O eu e o outro Princípios enunciados nas premissas Estudos Sociais Princípios enunciados nas premissas Fonte: Borghi, Battista & GUERRA, Luigi. Manuale di didattica per l´asilo nido. Roma: Laterza, 1999. 192 Da mesma forma, é possível observar e denominar o movimento que as crianças realizam desde suas primeiras investigações no e de mundo, compondo o seu percurso curricular na simultaneidade que constitui a sua história de vida. O quadro permite compreender a importância tanto da persistência na continuidade, no aprofundamento e na ampliação das temáticas quanto na diferença das aborda- gens relativas à faixa etária. Neste sentido, podemos dizer que as crianças sempre estão investigando pesos e medi- das, enfrentando consistências e resistências do mundo. O que muda é o modo como elas realizam as suas ações, elaboram as suas perguntas e significam as respostas que obtêm. Conviver entre pares e também entre crianças com diferentes idades intensifica possibilidades de encontros, de exploração do mundo e compreensão de outros pontos de vista. Não é a idade que determina saberes e conhecimentos a serem apreendidos. É do percurso histórico da experiência no mundo e com o mundo, na temporalidade das interações com as coisas e com os outros, que emerge a compreensão de distintos mundos. Formação de professores de crianças pequenas A organização curricular por Campos de Expe- riência Educativa possibilita aos professores constituírem uma compreensão mais atualizada e complexa das áreas de conhecimento e das disciplinas acadêmicas, pois fa- vorecem a visibilidade das inter-relações entre elas. A leitura dos tópicos introdutórios dos Campos de Expe- riência, apesar de apresentarem uma visão geral, indicam um modo de conceber a organização das aprendizagens e sua vinculação com a experiência vivida das crianças, algo que em nossa realidade educacional ainda é uma grande novidade. 193 O vínculo dos Campos de Experiências com as áreas do conhecimento nos provoca várias perguntas. A primeira é a dificuldade da organização em áreas e/ou campos, pois, como vimos no quadro acima, esta é uma organização extremamente artificial. A geografia é tão humana quanto natural, pertence tanto às ciências humanas quanto às ciências naturais. O meio ambiente é um “conteúdo” con- siderado de biologia, porém tem profunda relação com a dinâmica das sociedades. O movimento interno de cons- trução das disciplinas está constantemente sendo refeito, pois as pesquisas redefinem os recortes, criam sub-áreas, ultrapassam conceitos, procuram parcerias em disciplinas colaboradoras. Portanto, definir temas em suas áreas de conhecimentos em detrimento de abordá-los numa pers- pectiva situada, isto é, “em interação” (DEWEY, 2010, p. 43), em “trans-ação” (DEWEY apud JAY, 2009, p. 338) não parece ser, exatamente, sinônimo de avanço na experi- ência educativa das crianças pequenas. Em nossa leitura, o risco da vinculação com as áreas do conhecimento é justa- mente a ênfase no “conhecimento” e essa definição emerge daquilo que Dewey (2010, p. 43) denominou de “filosofia educacional dos extremos” para destacar que temos o costume de formular nossas crenças em termos de ou isso ou aquilo, entre os quais não há possibilidades intermediárias. Quando forçados a reconhecer que não se pode agir com base em oposições extremas, ainda in- sistimos que estamos certos na teoria, mas que a prática nos leva a ceder. (DEWEY, 2010, p. 19) A segunda pergunta que emerge de nossa leitura é se a perspectiva generalista dos cursos de pedagogia permite oferecer aos acadêmicos a necessária revisão ou, novo olhar – atualizado, interdisciplinar, científico, sistematizado, aprofundado – sobre os conhecimentos que os mesmos aprenderam enquanto estudantes do ensino fundamen- 194 tal e médio. No Brasil, a formação inicial dos pedagogos, licenciados em Pedagogia, efetivamente os habilita para elaborarem e realizarem uma programação para e com as crianças pequenas a partir dos campos de experiência apresentados nas indicações curriculares italianas? Quando um grupo de crianças brinca no pátio de uma escola com água, utilizando bacias, funis, copinhos, peneiras, certamente o conhecimento de física, de quími- ca, de biologia que o professor possa ter poderá auxiliar a com preensão das ações das crianças. Ao observar, ele poderá propor novas possibilidades, como a introdução de uma anilina se considerar que a cor é um elemento fantástico para as crianças interagirem ou terra, se pensar nos processos de transformação que levem à modelagem, escultura ou ainda à organização de um aquário. Os saberes e conhecimentos prévios do professor, sua formação cientí- fica, artística, tecnológica, ambiental, cultural lhe possibilita enriquecer ou ampliar o currículo vivido pelas crianças no cotidiano da creche e da pré-escola. A questão fundamental da discussão curricular na educação infantil é que o conhecimento acadêmico, o úni- co que consegue ser visibilizado em um currículo por área ou mesmo por campos de experiência, ganha grande rele- vância. Algumas vezes o professor encanta-se tanto pelos conhecimentos sistematizados, organizados, disciplinares, hierarquizados, ocidentais e racionais que seu olhar acaba se voltando apenas para eles, abandonando o olhar para as crianças, para o grupo, para o fluxo de vida que transcorre. E então, é a partir do conhecimento ou de fragmentosde conhecimentos que o cotidiano da escola começa a ser pensado. Este pode ser o grande equívoco que a reflexão sobre currículo por áreas e ou disciplinas pode cometer na educação infantil: priorizar os conteúdos. Inversão das 195 importâncias - como poderia ter dito o poeta Manoel de Barros. Ou, como afirmou Dewey (1995), em seu artigo “A criança e o currículo”, a ideia funesta de que há uma opo- sição (mais que uma diferença de grau) entre a experiência infantil e os diversos temas que constituirão o currículo no decorrer de seus estudos. Como disse Malaguzzi (2001), precisamos seguir as crianças e não os planos. São as crian- ças, em suas brincadeiras e investigações, que nos apontam os caminhos, as questões, os temas e os conhecimentos de distintas ordens que podem ser por elas compreendidos e compartilhados no coletivo. O professor, com seu olhar de quem está com a criança, mas também com os saberes e conhecimentos, realiza a complexa tarefa educacional de possibilitar encontros, de favorecer interações lúdicas, constituir tempos e espaços para a experiência das crianças, sem nenhuma garantia de que essa possa acontecer. Os indicadores italianos são apenas uma parte do currículo de uma pré-escola: o programa. Talvez aquilo que hoje, no Brasil, buscamos quando falamos de Base Nacional Comum. Podemos citá-los como “o que toda a escola deve minimamente ter em consideração como sua obrigação para com os direitos de aprendizagem das crianças”. Po- rém, há todo um universo a ser também considerado e que diz respeito ao local, ao diverso, ao regional, ao vinculado à história de vida, à pertinência racial e social, ao gênero, ao não formal, ao não explicitado. O currículo também acontece na escola a partir daquilo que não é ensinado por nenhum adulto ou por outras crianças e, não esqueçamos, da possibilidade de as crianças não aprenderem o que adul- tos lhes determinam ou oferecem. A potência de aprender e de não aprender é a mesma. Não há como prever ou predeterminar o que o outro pode aprender. Como afirma Agamben (2008, p. 294), “o homem é o animal que pode 196 a própria impotência. A grandeza de sua potência se mede pelo abismo de sua impotência”. Um currículo para crianças pequenas exige estar inserido na cultura, na vida das crianças, das famílias, das práticas sociais e culturais, ou seja, é um currículo situado que encaminha para a experiência não na perspectiva do seu resultado, mas naquela que contenha referências para novas experiências, para a busca do sentido e do significa- do, que considera a dinâmica da sensibilidade do corpo, a observação, a constituição de relações de pertencimento, a imaginação, a ludicidade, a alegria, a beleza, o raciocínio, o cuidado consigo e com o mundo. Talvez uma das grandes contribuições do documento italiano de 2012 seja justamente a de permitir pensar, antes de um documento curricular para as crianças, uma relevante referência para a formação docente, pois o mesmo aponta para a discussão da relação da escola com a cultura, com a sociedade, as relações com as famílias e a comunidade, didática, planejamento, as reflexões sobre organização curricular e os campos de experiências. Temas que são fundamentais para a exigência de formação do professor de educação infantil. A tarefa educacional que permanece é enfrentar o exercício de uma reflexão abrangente sobre o currículo da educação infantil. As pesquisas realizadas em programas de pós-graduação em educação oscilam, pois encontramos pesquisas avaliativas que mostram o vazio dos fazeres nas escolas de educação infantil: vazio de materiais, ausência de brincadeiras, fragilidade na ação docente, ausência de escuta, de projeto pedagógico. Ao mesmo tempo, conhe- cemos pesquisas que mostram cotidianos tecidos com sensibilidade e beleza, com crianças brincando, realizando investigações, com professores provocando aprendizagens. 197 O que estas realidades discrepantes reivindicam é o estabe- lecimento de diálogos que promovam abertura ao possível e ao necessário num currículo para a educação infantil, que, não sendo uno, possa constituir um ponto de vista coletivo, uma perspectiva em comum. Pois não se pode silenciar as ausências, muito menos calar os abandonos e a privação das crianças. Referências AGAMBEN, Giorgio. La potencia del pensamiento. Ensayos y conferencias. Traducción de Flavia Costa y Edgardo Castro. Barcelona: Editorial Anagrama, 2008. BORGHI, Battista & GUERRA, Luigi. Manuale di didattica per l´asilo nido. Roma: Laterza, 1999. BRASIL. Relatório de pesquisa: Mapeamento e análise das pro- postas pedagógicas municipais para a Educação Infantil. Proje- to de Cooperação Técnica MEC e UFRGS para construção de orientações curriculares para a Educação Infantil. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/relatpesquisa%20 analise_ropostas_pedagogicas. Acesso em maio de 2009. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988. BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei nº 8.069, de 13 de junho de 1990. BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Edu- cação. Resolução CEB nº 05, 17 de dezembro de 2009. Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. Diário Oficial República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 18 de dezembro de 2009, Seção 1, p. 18. 198 BRASIL. Referencial Curricular Nacional para a Educação In- fantil – Ministério da Educação e do Desporto, Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998. Três volumes. BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Edu- cação. Resolução CEB no 01, de 13 de abril de 1999: Institui as diretrizes curriculares nacionais para a educação infantil. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, p. 18, seção 1, 13 de abril de 1999. CADERNOS CEDES. Grandes políticas para os pequenos: Edu- cação Infantil. Campinas, SP: nº 37, 1995. DEWEY, John. Democracia y educación: una introducción a la filosofía de la educación. Mexico: Ediciones Morata, 1995. DEWEY, John. Experiência e educação. Traduzido por Renata Gaspar. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010. JAY, Martin. Cantos de Experiencia. Variaciones modernas sobre un tema universal. Buenos Aires: Paidós, 2009. MALAGUZZI, Loris. La educación infantil en Reggio Emilia. Barcelona: Octaedro; Rosa Sensat, 2001. ROSEMBERG, Fúlvia & CAMPOS, Maria Malta (Orgs.). Creche e pré-escola no hemisferio norte. São Paulo: Cortez; FCC, 1994.3. A perspectiva histórico-crítica, cuja base encontra-se na Pedagogia Crítico- Social dos Conteúdos (LIBÂNEO, 1990), reconhece a escola como um espaço de ensino e aprendizagem e valoriza as questões relacionadas à chamada cultura popular apresentada na concepção de currículo como ciência crítica, mas apre- senta uma concepção mais dinâmica em relação à mesma. A escola, nessa concepção, deve resgatar sua função de ensino, mediando de maneira adequada e eficiente a relação que se dá entre o saber erudito, 38 sistematizado e organizado, para o chamado saber escolar. Nessa concepção, a escola deve cumprir seu papel de agência que possibilitará às camadas popu- lares o acesso ao conhecimento sistematizado e científico, favorecendo, assim, o processo de formação crítica e reflexiva dos indivíduos. Nesse caso, há o re- conhecimento da escola como um espaço político e não neutro, e o mesmo se estende ao conhecimento que nela é contemplado por meio do currículo. Na perspectiva histórico-crítica, a escola é um lugar onde as desigual- dades sociais podem ser amenizadas graças a um ensino de qualidade, que possibilita aos menos favorecidos o acesso ao conhecimento acumulado. Nesse caso, o currículo não se restringe a conteúdos e métodos, mas os amplia e re- conhece como função primeira da escola o ensino. O conhecimento se estabelece nas relações entre o sujeito e a realidade e sofre alterações, adaptações, interpretações, bem como as provoca. Não é neutro; pelo contrário: é histórica e socialmente determinado. Sujeito e objeto (conhecimento) determinam-se reciprocamente. Segundo Silva, a pedagogia crítico-social dos conteúdos considera importante a existência de um currículo comum básico entendido como um conjunto sistematizado de conhecimentos propostos para subsidiar o trabalho das escolas e professo- res de um determinado sistema escolar. Os conteúdos devem ser estabele- cidos em função de sua relevância social e selecionados a partir do acervo cultural disponível e convertidos em saber escolar, isto é, seqüenciados e dosados segundo as finalidades de cada nível de ensino, as características de cada matéria, os aspectos bio-psico-sócio culturais de desenvolvimento cognitivo do aluno, visando à compreensão reflexiva e crítica da realidade e à produção de novos conhecimentos (SILVA apud SAVIANI, 1998, p. 48). Diante dessa perspectiva, o professor tem de ter conhecimento e seguran- ça sobre o conteúdo a ser ministrado, assim como domínio sobre as técnicas para transmiti-lo. A concepção marxista sobre o currículo tem seus estudos enraizados no pensamento de Marx, Makarento, Vygotsky, Luria, Leontiev e outros. Na área educacional, essa concepção é refletida na Pedagogia Socialista, cujas exigên- cias estão voltadas para a formação do homem moderno, contemporâneo. O objetivo da educação escolar volta-se para a preparação dos indivíduos para as tarefas que os esperam, ou seja, é uma educação voltada para o futuro. Nessa perspectiva, são reconhecidos vários aspectos que influenciam a escola e suas relações, sendo eles: • interesses e motivações pessoais x interesses e ideologias públicas ou institucionais; 39 • novas tarefas apresentadas aos alunos x formas e condutas que eles já possuem; • exigências externas x aspirações dos educandos; • conhecimento x hábitos sociais x convicções (SAVIANI, 1998, p. 51); • diversas influências educativas (escola/família). Na Pedagogia Socialista, a ciência encontra um respaldo grande em fun- ção do reconhecimento da mesma como possibilidade de transformação social. Para tanto, pontua-se: 1) a necessidade constante de articular ciência e prática; e 2) a reorganização do processo de ensino, uma vez que mudanças rápidas têm ocorrido sobre os dados científicos – não há mais verdade absoluta. A escola, nessa concepção, deve ensinar o aluno a buscar informações necessárias ao seu desenvolvimento. Não basta só transmitir conhecimentos, mas também mostrar aos alunos como conseguir avançar por iniciativa própria em seu processo de desenvolvimento profissional e intelectual. A educação bá- sica deve assumir um caráter de formação geral. O ensino deve ser visto como um processo, precisa ter claras suas finali- dades educacionais e relacionar-se dialeticamente com a aprendizagem. Não basta só a preocupação com o conteúdo e o método, mas também com a sele- ção e organização do mesmo. “O ensino deve ultrapassar a mente e alcançar a alma e o sentimento” (SA- VIANI, 1998, p. 54). É preciso buscar indivíduos que reconheçam a realidade em que vivem e que também saibam atuar na mesma e, se possível, transformá-la. Nessa concepção, o conhecimento é definido como um processo que se inicia na percepção das propriedades externas ao objeto – reconhecido como o conhecimento sensorial. Por meio de ajustes internos, auxiliados pela linguagem, essa percepção sai do nível sensorial e avança para o racional. Ou seja, a princí- pio o conhecimento é um processo que se inicia em uma percepção concreta e avança até alcançar um nível mais abstrato, reconhecido como racional. É esperado que a escola seja organizada e planeje suas atividades e obje- tivos, visando à superação das contradições presentes nela e na sociedade: trabalho x intelecto; concepção x execução e; teoria x prática. Para que isso ocorra, segundo a Pedagogia Socialista, o indivíduo necessita perceber a estrutura do sistema capitalista em suas múltiplas facetas e buscar superá-lo. O homem precisa sair da condição estabelecida pelo conhecimento espontâneo e atingir o conhecimento científico para poder atuar na sociedade de maneira crítica e reflexiva, buscando sua transformação. 40 Para pensar . . . Os três enfoques apresentam críticas à visão simplista de que a escola, em sua relação com a sociedade, pode por si só transformá-la. É reconheci- do, pelos três, que a escola, em muitos momentos, serve como agência de manutenção da realidade social estabelecida. Não seria ingênuo acreditar que essa relação escola/sociedade ocorra sem resistência ou passivamente? 2 .3 .2 O currículo como teoria crítica do aprendizado A produção de novos conhecimentos exige um diálogo entre os pesquisa- dores e os responsáveis pela política e pelas práticas educacionais. Portanto, os debates referentes às ciências educacionais refletem as diferenças, os conflitos e os dilemas vivenciados pelos envolvidos nessa prática. Embora haja diferenças, e elas pareçam prejudicar a pesquisa educacional, acabam, na verdade, sendo um elemento de apoio. Observe que os pesquisadores precisam recorrer aos dados, às teorias alternativas e aos próprios responsáveis e praticantes des- sas políticas. Além disso, esses pesquisadores educacionais e sociais viven- ciam as experiências nas escolas em que trabalham. A Sociologia da Educação acabou enfrentando dificuldades em sua relação com as escolas. No Reino Unido, fracassou a ideia de uma educação igualitária, de uma educação para todos. Alguns dos motivos da crise foram: tentativa de ig- norar os conhecimentos adquiridos pelos pesquisadores anteriores; transferência de responsabilidades que eram do Estado para os professores, sem capacitá-los previamente. Talvez esses motivos sejam a causa de sua crise atual. A crescente demanda por recursos – por parte das escolas, colégios e universidades – para a produção de conhecimentos diferenciados acabou pro- vocando o surgimento da Sociologia da Educação. Ela analisou o papel das instituições educativas das sociedades industriais, bem como trabalhou a ques- tão ideológica da educação pública, estratégias pedagógicas e como as insti- tuições reagiram às culturas não escolares. Entretanto, ela continuou dominada pela educação formal e aceitou plenamente a diferenciação da educação em instituições mais especializadas. É exatamente esse processo de expansão, diferenciação e desvalorização do aprendizado informal que estásendo con- testado agora. O temor pelo aumento dos custos da educação tem levado os governos a transferir esse ônus, incentivando a busca por cursos de informática, 41 por exemplo, em instituições particulares. No entanto, as exigências do mercado são mais amplas. Ao procedimento de transferência da responsabilidade se dá o nome de desdiferenciação, processo que pode ser observado sob várias for- mas. A primeira é a tendência à privatização de instituições educacionais ou a intro- dução nestas de princípios empresariais ou de mercado. Comprova essa afirmação a tendência de comparar atividades e resultados da escola com os das empresas. Essa tese também está evidente nos programas de aproximação empresa-es- cola, bastante presente nos currículos das escolas americanas. Mas as ativida- des escolares e as empresariais são diferentes e não podem ser simplesmente comparadas. Essa atitude não encontra respaldo na prática. Outra forma em que aparece a desdiferenciação está na tendência de afirmar que as empresas bem-sucedidas se tornaram “organizações de aprendizado”, e as escolas foram incentivadas a copiar suas atividades. Outra desdiferenciação aparece também no fechamento de hospitais psiquiátricos e sua transformação nos chamados tratamentos comunitários. Essa política acabou criando outras desigualdades. Aceitar simplesmente essa situação equivale a aceitar sem questionamento a expansão das escolas de massa. Do final da década de 1960 até o início da década de 1980, a Sociologia teve um período de ascensão, desafiando aquilo que se entendia como concep- ção de educação na época. Acreditou-se que ela teria o papel de facilitadora da expansão da educação em todos os níveis. Entretanto, vista como um ele- mento capaz de mostrar o funcionamento objetivo da educação, ela se mostrou limitada e não conseguiu auxiliar a pesquisa. No entanto, se imaginássemos que os professores seriam um fator importante no funcionamento da educação, a Sociologia passaria a ser vista de forma positiva. Na verdade, a Sociologia tinha a oportunidade de relacionar a teoria à prática. Mas as teorias de que se valeu eram fracas. As possibilidades de junção da crítica com a educação de massa caíram na descrença, no pessimismo. Essa junção não conseguiu ser a transformação educacional esperada. Na década de 1980, com o surgimento de propostas mais práticas e de abordagens mais voltadas para as habilidades, a Sociologia da Educação acabou sendo abandonada. A Sociologia da Educação teve rápida ascensão nas décadas de 1960 e 1970 devido à expansão das Ciências Sociais num ambiente dominado pelas relações de classe social. Dois enfoques podem ser observados nesse período: o primeiro é o contextual, que via os professores como os principais agentes da transformação educativa, e o segundo é o social, com ligação marxista, que valorizava as lutas de classe. A valorização excessiva dos professores perdeu força na medida em que deixou de lado os orientadores, administradores e diretores, os quais reforçariam o elo com as forças políticas mais amplas. A tendência marxista se perdeu acreditando que o capitalismo ruiria apenas por suas contradições. 42 Os sociólogos, na década de 1970, adotaram uma postura mais “intelec- tualista”, isto é, valorizavam mais as questões sociológicas da aprendizagem e deixavam de lado as questões “politicistas”. Essas posturas acabaram limitando os debates sobre a política e a prática na educação. A escola pública no Reino Unido continua vivendo uma série de contra- dições ligadas à educação de massa, desde o saber curricular até questões relacionadas a gênero e raça. O que mudou foram apenas as circunstâncias em que isso ocorre. Hoje são questionados os valores implícitos em educação de massa, que perduram desde o século XIX, bem como o próprio papel da edu- cação de massa. Houve redução considerável nos investimentos em educação pública, inclusive pelos governos trabalhistas. O bem (conhecimento) que ultra- passa um mínimo estabelecido deve ser procurado e pago pelos interessados. Para que a Sociologia da Educação tenha papel decisivo na modernização da educação e solução dessa crise, ela deve se posicionar já com uma atitude crítica. Aí entra a desdiferenciação, que pode apresentar o surgimento de dois caminhos. Um, o da escola pública, com um ensino inferior; o outro, o da escola particular, oferecendo um ensino de mais qualidade. Essa situação é a base para novas formas de estratificação. A crescente demanda da população por educação em instituições não educacionais (empresas) representa uma grande mudança nas sociedades in- dustriais a curto e a longo prazo. A curto prazo, essa demanda mostra a busca de meios para a redução dos custos. A longo prazo, mostra como as inovações ocorrem mais rapidamente – o saber que as acompanha passou a ter vida mais curta. A educação formal produz conhecimento de forma muito lenta. Por isso, os cientistas disciplinares estão fazendo parcerias com as empresas para produzirem conhecimentos relacionados a problemas específicos. Houve, então, a criação do chamado saber transdisciplinar, que, por sua vez, provocou alguns conflitos entre conservadores e modernizadores. Os conservadores querem preservar a forma antiga de produção de conhecimento, e os modernizadores querem direcionar os conhecimentos para fins industriais e comerciais. Aqui deveria entrar a Sociolo- gia da Educação, eliminando os pontos fracos de cada um dos grupos e propondo ações que pudessem produzir resultados positivos para todos. O correto seria unir o que há de melhor no saber disciplinar, no transdisciplinar e no não disciplinar. A maior parte dos programas de ensino universitário mudou pouco, ficando estática no tempo. Isso criou vários problemas. O primeiro é que as universidades abandonaram as condições sociais do aprendizado e procuraram selecionar alunos que elas julgam ter bons resultados. O segundo problema relaciona-se à própria instituição. Ela é especializada na produção de conhecimentos, mas nem sem- pre os proporciona aos seus professores e funcionários. O terceiro refere-se ao 43 próprio isolamento do meio em que está inserida. Nem sempre seus ex-alunos têm habilidades ou motivação para continuar a aprender. O quarto problema é que apenas aquilo que é considerado pesquisa resultaria em conhecimento. Não há recursos para o desenvolvimento de ensino e aprendizado. Os sociólogos da educação normalmente não se interessam pelas questões ligadas ao aprendizado. O aprendizado não está necessariamente ligado à escola. Ele pode ocorrer em qualquer situação, embora a pedagogia e os currículos orga- nizados auxiliem muito. Para diversos estudiosos sobre o assunto, o aprendizado ocorre como uma forma de participação social. O mais importante nessa ques- tão é explorar as diversas formas de como pode ocorrer o aprendizado. Nas décadas de 1960 e 1970, houve um aumento no número de profes- sores que buscaram atualização e melhoria profissional. Os estudantes eram incentivados a se tornarem críticos e profissionais competentes. No entanto, isso acabou. Provavelmente porque houve um ataque do governo denunciando que esses profissionais formavam um grupo de interesses e, posteriormente, porque se percebeu que os estudantes não estavam desenvolvendo as habili- dades e conhecimentos necessários ao exercício da profissão e a seus novos de- safios. Em suma, as universidades desenvolveram mais a questão crítica e menos a questão das habilidades. O fim do saber disciplinar estava relacionado ao tipo de saber produzido pelas universidades e outras escolas. A solução do proble- ma, portanto, está relacionada à criação de oportunidades para que esse tipo de conhecimento seja questionado e para que teoria e prática mantenham um diálogo constante. As escolas terão de oferecer uma formação mais ampla aos seus professores.A Sociologia da Educação teve seu período áureo com a crítica às formas de ação da educação de massa, e seu declínio ocorreu na década de 1980, com o clima político desfavorável. Na década de 1990, as mudanças globais e a desdife- renciação das instituições criaram vários problemas, para os quais as disciplinas educacionais e as instituições não tinham preparo para resolver. Imaginando-se o aprendizado como uma estrutura ligada à produção do saber, concluimos que há algumas formas de aprendizado que só ocorrem em instituições especiali- zadas e que estas acabam se unindo a outras instituições não especializadas. Daí surge uma teoria do futuro contemplando os seguintes quesitos: conceito de futuro com a visão de sociedade do futuro, maior aproximação entre as dis- ciplinas educacionais, destaque para as questões de aprendizado e produção de conhecimentos, realização do potencial emancipador do aprendizado para todos e postura crítica em relação à escolaridade de massa e educação formal em geral. 44 Os desafios educacionais enfrentados pelo Reino Unido hoje são mais complexos do que os enfrentados pela primeira Sociologia da Educação. São desafios deste momento: o desenvolvimento de critérios para articular as perspectivas de diferentes abordagens disciplinares do aprendizado; a identificação das possíveis con- seqüências de mudanças de política que passe da expansão das oportu- nidades de aprendizado formal para as novas formas de estratificação que elas podem provocar; a incorporação dos conceitos de ‘aprendizado’ como ‘participação social’ e de ‘comunidade de prática’ nas escolas e universidades, e suas relações com outros tipos de organizações onde o aprendizado tem lugar; o exame das diferentes maneiras como o aprendizado escolar e não escolar e o saber disciplinar e não disciplinar podem ser relacionados e como eles podem melhorar uns aos outros (YOUNG, 2000, p. 258). Essa é uma proposta considerável, pois os problemas educacionais con- tinuam sendo problemas consideráveis de todos. 2.3.2.1 A estruturação curricular e as teorias relacionadas ao processo de aprendizagem Este item será brevemente apresentado, visando relacioná-lo com as ques- tões do conhecimento e do currículo, uma vez que a elaboração das propostas curriculares visa favorecer a aprendizagem dos alunos. Daí a importância de conhecer os estudos que indicam como o aluno aprende. Dando continuidade aos seus estudos, Saviani (1998) procura apresentar quais as influências e possíveis contribuições das teorias sobre desenvolvimento cognitivo em relação à elaboração do currículo. Seus estudos focaram os pensa- mentos de Piaget, psicólogos soviéticos – Vygotsky e Rubinstein – e Ausubel. Há a preocupação em reconhecer a importância dos aspectos de ordem biológica ou de ordem social na apropriação de novos conhecimentos. Parece lógico pen- sar que, assim como a escola e o professor sofrem influências do tempo, local e interesses maiores de onde estão inseridos, o processo de aquisição do conheci- mento por parte do aluno também sofre tais influências. Ele é reconhecido como um sujeito em fase de desenvolvimento e em constante relação com o mundo externo. É a partir dessas interações internas e externas que ocorre a aprendiza- gem. Essa dinâmica tem influenciado as estruturações curriculares, visando favo- recer o processo de ensino e aprendizagem e trazer contribuições que possam se efetivar na prática escolar. Os estudos de Piaget valorizam os estágios do desenvolvimento, como os que seguem: 45 • Sensório-motor • Pré-operacional • Operacional concreto • Operações formais Para Chakur (apud SAVIANI, 1998), a interpretação e a aplicação dos es- tudos de Piaget têm assumido duas vertentes não tão adequadas à estruturação curricular: ora aceitam os estágios do desenvolvimento como naturais e, portan- to, assumem uma característica espontaneísta do ensino; ora entendem que os estágios ocorrem em suas etapas rigorosamente marcadas e que, portanto, ne- cessitam ser criteriosamente estimulados. Nesse caso, o ensino deve ser orga- nizado e planejado detalhadamente, o que lhe dá um aspecto rígido e estático. Ambas as perspectivas deveriam ser superadas, oferecendo lugar a uma postura que valoriza as contribuições de Piaget e promovendo uma estrutura- ção curricular que respeita as fases do desenvolvimento sem torná-las uma camisa de força, que apresenta conteúdos progressivamente, possibilitando um tempo para assimilação e acomodação e que, finalmente, promove situações para que o próprio aluno tenha condições de construir seu conhecimento e avançar gradativamente em relação ao mesmo. Sob a influência dessa concepção, as matérias de ensino – também cha- madas componentes curriculares – assumem uma sequência gradativa, pas- sando do mais simples ao mais complexo, do concreto ao abstrato. Os estudos de Saviani (1998) indicam que a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) 5.692/71, de certa forma, foi influenciada por esses princípios, uma vez que estabeleceu uma organização curricular com atividades – nas séries iniciais –, áreas de estudo – a partir da quinta série do primeiro grau – e disciplinas – no segundo grau ou colegial. Ainda seguindo essa perspectiva, é possível pensar que a concepção crítica, que tem por base a cultura popular, também esteja pauta- da pelos princípios da teoria do desenvolvimento da aprendizagem segundo Piaget. Isso se reflete na preocupação explícita em partir de um conhecimento prévio, já existente e reconhecido, ou seja, partir da cultura popular (concreto) para, a partir daí, poder avançar para conhecimentos mais elaborados, como o científico (abstrato). O risco que essa tendência corre é o de não conseguir proporcionar avan- ços na apropriação do conhecimento científico, ficando restrita ao conhecimento popular. Ou seja, pode partir da realidade dos alunos, da escola e da comunidade, mas não conseguir avançar em relação à mesma. Esse é um cuidado que deve ser tomado. 46 Os estudos de Vygotsky e Rubinstein, assim como os de Piaget, trazem grandes contribuições no que se refere às teorias do desenvolvimento cognitivo. Para Vygotsky e Rubinstein, o indivíduo precisa exercitar as funções psí- quicas superiores e buscar a aquisição e progressão do conhecimento por meio da interação com o meio. Nessa perspectiva, faz-se necessário compreender que a aprendizagem não é necessariamente natural e espontânea e, portanto, reclama planejamento e organização curricular, contemplando conteúdos e mé- todos que favorecem esse processo. Busca-se também articular possibilidades de relacionamento entre o particular e o geral, o comum e o específico, o sim- ples e o complexo, o abstrato e o concreto. Esses mecanismos não podem ser interpretados segundo uma única via ou ser vistos como estanques. Pelo contrário, devem ser considerados dinami- camente em suas múltiplas possibilidades. Nesse caso, as disciplinas curriculares assumem um caráter de organi- zação e sequenciação. Busca-se articular o que o aluno já sabe com o que ele supostamente deva saber. Essa preocupação em promover o avanço do conhecimento popular para o científico faz com que seja definido e explicitado qual será esse conhecimento do qual o aluno deverá se apropriar. Portanto, é necessário selecionar o conteúdo, determinar a sequência que será seguida, quais disciplinas serão ministradas, com que carga horária, entre outros. É ne- cessário pensar que isso é definido por alguém ou por um grupo, nesse caso, os que têm maior poder de decisão. É graças a essa organização de conteúdos, acompanhada de métodos eficientes, que o aluno poderá transitar e avançar da cultura popular para o conhecimento científico. Os estudos de Saviani (1998) apresentam a educação como possuidora de uma natureza e especificidade próprias. À escola cabe o papel de cumprir sua função de instituição de ensino, proporcionando aos alunosa aprendizagem das “ferramentas básicas” para sua inserção e participação social. Nessa perspectiva, o aluno deve aprender a ler, escrever, compreender, contar e reconhecer aspec- tos sociais e de natureza científica. A escola deve fornecer-lhe as “ferramentas básicas” para que ele saiba avançar em seu conhecimento e tenha também uma inserção social que lhe possibilite analisar, refletir, criticar e transformar. Uma vez tendo dado conta de contemplar sua função de ensino, a escola poderá também abordar as questões relacionadas com as habilidades, socialização, valores, etc. Mas não pode, em nome disso, deixar para segundo plano o ensino, que lhe é específico por natureza. Os estudos de Ausubel trazem contribuições, pois evidenciam a necessidade da aprendizagem significativa. Esse conceito traz implícita a necessidade de se- lecionar adequadamente os conteúdos que serão abordados, definindo qual a 47 melhor maneira para ministrá-los, visando alcançar a apropriação dos mesmos, e quais os melhores critérios para avaliar/acompanhar tal processo. A aprendizagem significativa ocorre quando o aluno consegue se apropriar do conhecimento trabalhado e aplicá-lo em diferentes contextos ou situações. Nessa perspectiva, a memorização pode até ocorrer como uma das etapas da apropriação do saber, mas o processo é estabilizado com a apropriação/acomo- dação do conhecimento. O aluno interioriza o que foi ensinado, de tal forma que essa aprendizagem se mantém em outros momentos ou contextos. Sendo assim, é possível dizer que, quando ocorre a aprendizagem significativa, ocorre também o entendimento do que é aquele conhecimento e por que ele é importante. Para que ocorra a aprendizagem significativa, faz-se necessário que as matérias de ensino sejam estruturadas de maneira significativa. Para Saviani (1998, p. 96), com base em Moreira & Mazini (1982), tal estruturação implica a relação e a hierarquização dos conceitos de cada disciplina, a organização de corpos conceituais ligados a conjuntos de disci- plinas ou áreas de conhecimento, além de adequados métodos, técnicas e recursos de ensino e sistemas de avaliação condizentes com a programação do conteúdo. Resumindo: Teoria do desenvolvimento segundo Piaget Teoria Crítica: conteúdos dos mais simples aos mais complexos. Vygotsky e Rubinstein Teoria Histórico-Crítica: organização dos conteúdos, possibilitando o avanço da cultura popular para o conhecimento científico. Ausubel Teoria Marxista: elaboração dos conteúdos visando à aprendizagem significativa. 48 2 .3 .3 Currículo: limites, possibilidades e interpretações Este texto trata mais das concepções paralelas às diferentes concepções de currículo do que das suas particularidades. A questão agora é mais de interpre- tação do currículo e menos de sua construção. Nesse sentido, podemos ter dois tipos de currículo: currículo como fato e currículo como prática. O currículo como fato foi criticado por educadores como Paulo Freire (1971), que via nele uma construção feita por homens, mas com experiências não vividas por eles. Os dois tipos de currículos podem apresentar deficiências. O currículo de fato parece ter vida própria, mas não contempla os contextos sociais do aluno e não permite modificações. Já o currículo como prática, se limitado apenas à sala de aula, deixa esvair-se, faz perder sua noção histórica e tolhe a possibilidade de alterações. Normalmente, o currículo é visto mais como uma realidade externa e me- nos como uma realidade social. Para alunos de alto desempenho, o currículo se torna algo a ser preservado ou atualizado. Nesse sentido, o conhecimento é algo a ser transmitido e aprendido tal como ele se apresenta. Para alunos de baixo rendimento, é algo a ser modificado ou tornado mais relevante para a realidade deles. Para alunos com especialização precoce, deve ser ampliado ou integrado. Mas há teorias propondo que o currículo seja algo a ser estudado, analisado e reorganizado. Paralelamente, a Sociologia propõe a integração das áreas de saber, e a Psicologia propõe o desenvolvimento mental e o estudo das fases de aprendizado. Mas a separação entre as áreas de saber tornam-se problemas ainda não resolvidos. As relações sociais são tratadas no currículo como um conjunto de crenças a respeito do mundo, como se fossem de interesse nacional, por exemplo. Essa visão é mascarada, distorcida pela linguagem teórica dos currículos. Esse tipo de currículo é adotado largamente e apresenta resultados desfavoráveis. É pre- ciso questionar a ideia de educação e do que vale a pena ensinar. Um mau aprendizado é resultado de um mau ensino ou de deficiências sociais e psico- lógicas dos alunos. Como o currículo representaria teoricamente a porta de entrada para o mundo adulto, é por ele que os alunos teriam de buscar o seu próprio caminho. Apesar de o currículo provocar essa busca, não envolve necessariamente o aluno no processo de integração. Quando rejeitam o choque entre os conhecimentos do currículo e os seus próprios, os alunos são considerados menos capazes. O currículo como fato não facilita as propostas de mudanças e ignora as relações sociais entre os elementos envolvidos no processo educacional. Volta- se para a individualização, enquanto o currículo como prática utiliza o conhe- cimento produzido por pessoas dentro de uma ação coletiva. Nesse caso, os 49 conhecimentos não são exteriores aos alunos, mas fazem parte de suas vivên- cias, de suas experiências. É dentro dessa perspectiva que os professores agem e descobrem as capacidades dos alunos. Por isso mesmo, os professores en- tendem melhor as propostas de mudanças. No entanto, essa dedução pode não ser verdadeira, pois essa aparente autonomia de mudanças pode também camuflar histórias de fracassos. No currículo como prática, o saber é algo realizado numa colaboração entre os agentes educativos. Isso pode ser interessante para uns e assustador para outros, pois continua sendo apenas teoria. Na elaboração do currículo, acabam entrando interesses diversos, entre eles os de familiares e emprega- dores. Uma mudança de currículo poderia provocar choques entre os diversos grupos de professores, por pensarem diferente; ou entre empregadores e pais, por terem expectativas diferentes do que deve ser ensinado. Para demonstrar algumas limitações ou incoerências do currículo formal diante de contextos que valorizam o saber prático, citamos os dois exemplos seguintes. Nos anos 1970, surgiu o movimento Ciência das Coisas Comuns, que valorizava as experiências domésticas dos alunos, transformando-as em base para a elaboração do currículo. Houve, no entanto, um forte movimento contrário, que temia que os estudantes fossem levados a pensar mais criticamente nas atividades econômicas de que a região se ocupava, a indústria do algodão, e que isso pudesse gerar algum conflito. Outro exemplo contrário ao currículo como prática vem do aluno que desejou estudar a aerodinâmica dos barcos. A prática era construir o barco, mas, para isso, precisou conhecer a viscosidade, que era parte do saber imposto, matéria oficial. Para a prática, o aluno dedicava apenas uma tarde, porque tinha valor menor na avaliação, e, para o estudo da visco- sidade e de outros conhecimentos impostos, dedicava o restante da semana, porque tinha valor maior na avaliação. Nas sociedades industriais avançadas, a organização do conhecimento em matérias é, em certo sentido, necessária, e os professores não conseguem cons- truir o currículo ao desenvolvê-la. Nesse sentido, é como se abandonassem a his- tória passada, que produziu o presente, e imaginassem o presente como algo in- findável. Por isso, os professores não conseguem modificar o currículo e acaba aí o seu papel construtivo. Por essas razões, o currículo como fato torna-se a base da organização educacional. As possibilidades de mudanças não se firmam nemna teoria do currículo como fato nem na teoria do currículo como prática. O currículo como fato nega aos professores as possibilidades de mudança, atribuindo-lhes apenas o papel de distribuidores de conhecimento. O currículo como prática vê o professor como agente de mudança e ressalta as possibilidades humanas. Mas, ao agir assim, 50 torna-se abstrato em relação às experiências e à capacidade dos professores como agentes transformadores. É necessário um estudo mais aprofundado da situação dos currículos como resultado de ações coletivas e históricas. Ambos os currículos têm origem nos setores conservadores, afastados das práticas educativas. Muitos professores aderiram às ideias do currículo de fato porque simplesmente queriam justificar o que faziam. Mas ficou apenas nisso. Da mes- ma forma, as propostas do currículo como prática não ajudaram devidamente os outros professores nas suas práticas. O melhor caminho para resolver essa situação seria a parceria universidade-escola, com a criação de comunidades de prática, unindo professores e acadêmicos e desenvolvendo teorias com base prática e práticas com base teórica. Às vezes, o aprendizado escolar é feito como se estivesse isolado dos ou- tros tipos de aprendizado, e as teorias educacionais quase não mostram essa falha. Nesse processo é preciso considerar os locais onde ocorre o aprendizado, pois as práticas escolares não podem ser limitadas às práticas dos professores e suas atividades em sala de aula. É necessário que a elaboração do currículo contemple tanto a interferência de pessoas fora do âmbito escolar como ativi- dades consideradas não escolares. Assim, os alunos viverão uma experiência libertadora. De acordo com os princípios da Teoria Crítica, as disciplinas escolares deveriam ser revistas na elaboração do currículo. Quem define as disciplinas? Como elas são elaboradas? Há integração entre os conceitos e/ou conteúdos? Outro aspecto que é foco de preocupação e questionamento nessa perspectiva refere-se à necessidade de o currículo acompanhar e reconhecer a agilidade das mudanças sociais, tecnológicas e científicas, assim como de reconhecer a influência da televisão, música, jornais e video games na formação das crianças e jovens. Ou seja, abordar a cultura popular e sua capacidade de construção e reconstrução contínua. Retomando os estudos apresentados em Matrizes teóricas do pensamento pedagógico II, apoiados nas pesquisas de Grande (1998), Elenice Onofre (2008, p. 27-28) indica que o currículo pode ser: Nulo: diz respeito ao currículo que a escola não ensina. Trata-se da ausência de oportunidade de aprender os conteúdos. Essa ausência é tão significativa como a presença de outros conteúdos. Laevers Ferre Licenciatura em Pedagogia Ferre Laevers. Fundamentos da educação experiencial: bem-estar e envolvimento na educação infantil. Est. Aval. Educ., São Paulo, v. 25, n. 58, p. 152-185, maio/ago. 2014. Fundamentos da Educação Experiencial TEMA EM DESTAQUE FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO EXPERIENCIAL: BEM-ESTAR E ENVOLVIMENTO NA EDUCAÇÃO INFANTIL FERRE LAEVERS TRADUÇÃO: Tina Marie Stutzman * Do original em inglês “Making care and education more effective through wellbeing and involvement. The basics of experiential education”. RESUMO O modelo da educação experiencial é o resultado de um projeto inspirado na abordagem rogeriana. Seu principal foco é a perspectiva da criança, buscando identificar os tipos de experiência que o ambiente de aprendizagem oferece e como essas experiências podem ser otimizadas. Uma das principais contribuições desse modelo está na identificação de dois indicadores-chave de qualidade, bem-estar e envolvimento, que oferecem uma medida reveladora do poder do processo e esclarecem como as crianças avançam. Como consequência, o conhecimento sobre o contexto educacional apresenta uma série de princípios e práticas que podem ser vistos como um caminho para aumentar os níveis de bem-estar e envolvimento das crianças. Esse modelo vai além da relação processo e contexto, articulando os resultados do processo educativo. Aqui, inspirados por Piaget, o conceito de aprendizagem significativa foi desenvolvido em conexão com uma visão holística sobre resultados e competências. PALAVRAS-CHAVE EDUCAÇÃO INFANTIL • EDUCAÇÃO EXPERIENCIAL • EDUCADORES • QUALIDADE DA EDUCAÇÃO. 152 Est. Aval. Educ., São Paulo, v. 25, n. 58, p. 152-185, maio/ago. 2014 RESUMEN El modelo de la educación experiencial es el resultado de un proyecto inspirado en el abordaje rogeriano. Su principal foco es la perspectiva del niño, buscando identificar los tipos de experiencia que el ambiente de aprendizaje ofrece y cómo es posible optimizar tales experiencias. Una de las principales contribuciones de este modelo reside en la identificación de dos indicadores clave de calidad, bienestar e involucramiento, que ofrecen una medida reveladora del poder del proceso y aclaran cómo avanzan los niños. Por consiguiente, el conocimiento sobre el contexto educacional presenta una serie de principios y prácticas que se pueden considerar como un camino para aumentar los niveles de bienestar e implicación infantil. Este modelo va más allá de la relación proceso y contexto, articulando los resultados del proceso educativo. Aquí, inspirados en Piaget, el concepto de aprendizaje significativo se desarrolló conectándose con una visión holística sobre resultados y competencias PALABRAS CLAVE EDUCACIÓN INFANTIL • EDUCACIÓN EXPERIENCIAL • EDUCADORES • CALIDAD DE LA EDUCACIÓN. ABSTRACT The model of experiential education is the result of a project inspired by the Rogerian approach. The main focus is the perspective of the child, attempting to identify the types of experiences that the learning environment offers and how these experiences may be optimized. One of the main contributions of this model is the identification of two key indicators of quality: well-being and involvement. These offer a revealing measure of the power of the process and clarification of how children progress. As a consequence, knowledge about the educational context presents a series of principles and practices that may be seen as a way to increase the levels of well-being and involvement of children. This model goes beyond the process and context relationship, articulating the results of the educational process. Here, inspired by Piaget, the concept of meaningful learning was developed in connection with a holistic vision of results and competencies. KEYWORDS EARLY CHILDHOOD EDUCATION • EXPERIENTIAL EDUCATION • EDUCATORS • EDUCATIONAL QUALITY. Est. Aval. Educ., São Paulo, v. 25, n. 58, p. 152-185, maio/ago. 2014 153 INTRODUÇÃO A ORIGEM DO MODELO DE EDUCAÇÃO EXPERIENCIAL DE LEUVEN Em maio de 1976, doze professores de pré-escola de Flandres na Bélgica, auxiliados por dois consultores educacionais, iniciaram uma série de sessões cuja intenção era refletir de maneira crítica sobre suas práticas. Sua abordagem era inspirada no trabalho de Carl Rogers e intitulada “expe- riencial”: a intenção era descrever detalhadamente e passo a passo o que significava para a criança vivenciar e fazer parte de um grupo no contexto educacional. Essa meticu- losa observação e a “reconstrução” das experiências das crianças revelaram uma série de condições inadequadas. Muitas oportunidades eram perdidas para promoção do desenvolvimento das crianças. Durante as dezenas de ses- sões seguintes, o grupo refletiu sobre suas experiências e discutiu possíveis soluções para os problemas que encon- traram, buscando resolvê-los ao longo do trabalho com as crianças.Gradativamente, começaram a perceber o quan- to se estavam afastando das práticas vigentes. Um novo 154 Est. Aval. Educ., São Paulo, v. 25, n. 58, p. 152-185, maio/ago. 2014 modelo educacional para a pré-escola começava a tomar for- ma: a educação experiencial (EXE). A EXE oferece um modelo conceitual que provou ser útil para além da educação infantil e em qualquer ambien- te onde a aprendizagem e o desenvolvimento profissional aconteçam, como em escolas de ensino fundamental, médio e superior, na educação especial e em instituições que ofere- cem cursos de formação de professores. EM BUSCA DA QUALIDADE O que constitui “qualidade” no cuidado e na educação? Do ponto de vista dos pais, do orientador, do diretor da esco- la, do coordenador pedagógico, a questão é geralmente res- pondida expressando expectativas em relação ao contexto educacional e às ações dos professores: a infraestrutura e o equipamento, o conteúdo das atividades, os métodos de en- sino, como o adulto interage com a criança etc. Do ponto de vista da política pública, a expectativa está nos resultados de aprendizagem obtidos pelos alunos. Mediante avaliações regulares, o sistema de cuidado e educação, de certa forma, é “impelido” a obter melhores resultados. Em meio a tudo isso, encontra-se o professor. Vivendo e trabalhando com as crianças. Querendo sempre o melhor para elas. Ele tende a aceitar as orientações para a prática e o fato de que a edu- cação deve ser efetiva. Porém, como combinar todos esses fatores e atingir os dois extremos – contexto e resultado – ao mesmo tempo? FOCO NO PROCESSO Uma das mais importantes contribuições da educação expe- riencial responde exatamente essa questão, identificando indicadores de qualidade situados precisamente no meio do caminho entre as duas abordagens de qualidade. Aponta para o elo que falta: o conceito que nos ajuda a perceber que o que estamos fazendo aqui e agora (o contexto) nos está levando a algum lugar (o resultado). Est. Aval. Educ., São Paulo, v. 25, n. 58, p. 152-185, maio/ago. 2014 155 FIGURA 1 – Esquema: contexto, processo resultados Fonte: Elaboração do autor. Essa é uma afirmação audaciosa que precisa apoiar-se em conceitos, práticas e evidências. A afirmação indica que, quando desejamos saber como cada criança se está saindo em determinado contexto, pri- meiro temos de explorar o grau em que a criança se sente à vontade, age de forma espontânea, demonstra vitalidade e autoconfiança. Esses sinais indicam que o bem-estar das crianças e suas necessidades físicas de carinho e afeto, de se- gurança e clareza, de reconhecimento social, de se sentirem competentes e de terem um significado na vida e valores mo- rais estão satisfeitos. O segundo critério – envolvimento – está ligado ao processo de desenvolvimento e incita o adulto a construir um ambien- te desafiador que favoreça a concentração, a motivação intrín- seca e a intensidade mental ao desenvolver atividades. Escolas de educação infantil devem ter êxito em ambas as tarefas: apenas dar atenção ao bem-estar emocional e ter um clima positivo não basta, por outro lado, a promoção do envolvimento só terá impacto nas crianças se se sentirem à vontade, podendo expressar suas emoções. 156 Est. Aval. Educ., São Paulo, v. 25, n. 58, p. 152-185, maio/ago. 2014 CONTEXTO Princípios Meios PROCESSO RESULTADOS Objetivos Produtos BEM-ESTAR ENVOLVIMENTO A proposição básica da teoria EXE é que a maneira mais econômica e conclusiva de se avaliar a qualidade de qualquer contexto educacional (da pré-escola à educação de jovens e adultos) é concentrar-se em duas dimensões: o grau de “‘bem-estar emocional” e o nível de “envolvimento”. O PROCESSO: BEM-ESTAR E ENVOLVIMENTO BEM-ESTAR COMO PRINCÍPIO-CHAVE Observar o bem-estar das crianças tem um propósito. O bem- estar indica que uma criança está bem emocionalmente. Quando podemos observar esse estado de espírito em diversas situações, podemos deduzir que a pessoa está em harmonia com seu meio. O que também indica que a pessoa dispõe da competência e das atitudes necessárias para lidar com seu ambiente de forma positiva e, em decorrência disso, suas necessidades básicas são atendidas. QUADRO 1 – Definição de bem-estar Fonte: Laevers, Moons e Declercq (2012). Um nível baixo de bem-estar é motivo de preocupação. Significa que uma criança em sua situação presente não está sendo capaz de satisfazer suas necessidades básicas. O não atendimento a uma ou mais necessidades básicas não implica necessariamente que a criança tenha um proble- ma socioemocional, apesar de que um problema do gênero pode ser causado por uma situação como essa. Quando uma criança não é mais capaz de suportar um estado de angústia que ocorre juntamente com uma frustração contínua, o mais provável é que a criança bloqueie essa experiência dolorosa e a necessidade a ela vinculada. É assim que uma criança se torna alienada de seus próprios sentimentos e sua autocon- fiança é prejudicada. Sinais da falta de bem-estar devem ser levados a sério. Esses sinais indicam que o desenvolvimento social e emocional da criança está em risco. Est. Aval. Educ., São Paulo, v. 25, n. 58, p. 152-185, maio/ago. 2014 157 BEM-ESTAR Crianças em situação de bem-estar se sentem como “peixes na água”. A sensação predominante em suas vidas é o prazer: elas se divertem, apreciam a companhia de outras crianças e se sentem bem em seu meio. • Irradiam vitalidade, relaxamento e paz interior. • Mantêm uma atitude aberta e receptiva em relação ao ambiente. • São espontâneas e se sentem confortáveis em todo tipo de situação, sendo realmente elas mesmas. Uma situação de bem-estar ocorre mais facilmente quando a criança tem autoconfiança, autoestima, assertividade, resiliência e fica bem em contato com seus próprios sentimentos. Fomentar o bem-estar das crianças nada tem a ver com “mimar” as crianças, ceder à vontade delas ou agir com permissividade. A criança desempenha um papel ativo na satisfação de suas necessidades básicas. Nosso papel é ofere- cer o apoio emocional necessário e as condições para que a criança aprenda a interagir de forma bem-sucedida com seu ambiente, com as pessoas, os lugares e objetos, e, ao fazê-lo, fortaleça seu desenvolvimento social e emocional. Com o “bem-estar” como guia, trazemos a criança de volta ao caminho em direção às experiências positivas. Essas experiências do verdadeiro “bem-estar” não enfraquecem a pessoa; na verdade a tornam mais forte. Elas intensificam a relação da pessoa consigo mesma e a empodera. Dessa for- ma, devemos investir no bem-estar, favorecendo a criança de hoje e auxiliando o adulto de amanhã. ENVOLVIMENTO COMO PRINCÍPIO-CHAVE O conceito de envolvimento refere-se a uma dimensão da atividade humana. O envolvimento não está ligado a tipos específicos de comportamento nem a níveis específicos de desenvolvimento. Um bebê em seu berço, brincado com a própria voz; ou um adulto, tentando formular uma defini- ção; ou ainda uma criança portadora de deficiência (mental); ou um estudante com altas habilidades demonstram níveis de envolvimento. Csikszentmihayli (1979) fala do “estado de fluxo” como uma condição que todos reconhecem, um esta- do de entusiasmo ou “fluxo”. 158 Est. Aval. Educ., São Paulo, v. 25, n. 58, p. 152-185, maio/ago. 2014 QUADRO 2 – Definição de Envolvimento Fonte: Elaboração do autor. Uma das características predominantes desse estado é a concentração. Uma pessoa envolvida foca sua atenção até seu limite máximo. O envolvimento acompanha uma forte motivação, fascinação e implicação total: não há distância entre a pessoa e a atividade; não há preocupação com os possíveis benefíciosda atividade. Dessa forma, a percepção do tempo é distorcida (o tempo passa rapidamente). Além disso, há uma abertura para estímulos (relevantes). Porém o que torna o envolvimento particularmente valioso é que ele combina com uma atividade mental específica: as funções perceptiva e cognitiva mantêm uma intensidade que não se percebe em outros tipos de atividades. O significado das palavras e das ideias são sentidos com mais força e profun- didade. Análises complementares revelam um sentimento manifesto de satisfação e uma corrente de energia positiva sentida pelo corpo. As pessoas buscam ativamente o envolvi- mento. As crianças o encontram, na maior parte do tempo, em suas brincadeiras. Naturalmente, poderíamos descrever uma variedade de situações em que podemos falar de satisfação combinada com experiências intensas, porém nem todas coincidiriam com nosso conceito de envolvimento. Envolvimento não é um estado de entusiasmo facilmente atingido por qualquer entretenimento. O ponto crucial é que a satisfação é prove- niente de um mecanismo interno de exploração: da neces- sidade de se compreender melhor a realidade, do interesse Est. Aval. Educ., São Paulo, v. 25, n. 58, p. 152-185, maio/ago. 2014 159 Envolvimento é o que observamos quando as crianças estão intensamente engajadas em uma atividade. As características do envolvimento são: • extrema concentração, sem interrupções, ficando a criança totalmente absorvida, sem noção de tempo; • alto nível de motivação, interesse, fascinação e perseverança; • atividade mental intensa, sensações vívidas e um senso de significação que toma forma; • profunda satisfação ao atingir o objetivo inicial; • trabalhar no limite das próprias capacidades, como na “zona de desenvolvimento proximal” (Vygotski). Com todas essas características, consideramos que o envolvimento seja um dos indicadores mais diretos e confiáveis de aprendizagem significativa. intrínseco no modo como as coisas e as pessoas são, da ne- cessidade de experimentar e descobrir. Apenas quando te- mos êxito em ativar esse mecanismo conseguimos atingir o tipo de envolvimento intrínseco, e não apenas um envolvi- mento do tipo emocional ou funcional. E ainda o envolvimento apenas ocorre na pequena área em que a atividade coincide com as capacidades da pessoa, isto é, na “zona do desenvolvimento proximal”. Para concluir: envolvimento significa que há atividade mental intensa, que a pessoa está agindo no limite de suas capacidades, com um fluxo de energia que provém de fontes intrínsecas. Não é possível imaginar qualquer condição mais favorável ao desenvolvimento. Para que se obtenham apren- dizagens significativas, há que se ter envolvimento. AVALIANDO BEM-ESTAR E ENVOLVIMENTO Bem-estar e envolvimento podem parecer conceitos subje- tivos, mas é perfeitamente possível avaliar seus níveis em crianças e adultos. Uma escala foi desenvolvida para am- bos os indicadores, e pode ser baixada on line gratuitamente como parte de um instrumento de autoavaliação das institui- ções (Self-Evaluation Instrument for the Care Sector – SiC). A ferramenta utilizada para medir o envolvimento é basea- da na escala Leuven de envolvimento (Leuven Involvement Scale – LIS) que pode ser aplicada em grupos de bebês, crian- ças, adolescentes ou adultos. A ferramenta é constituída por uma escala de cinco pontos: Nível 1: sem atividade. A criança está mentalmente ausente. Se qualquer ação for observada, será meramente uma repe- tição estereotipada dos movimentos mais elementares. Nível 2: a criança desenvolve ações com diversas interrupções. Nível 3: a criança desenvolve atividade, mas sem envolvimento. Apesar de a criança estar participando de uma atividade (por exemplo, ouvindo uma estória; brincando com argi- la, massinha ou areia; interagindo com outras pessoas; es- crevendo; lendo; terminando uma tarefa qualquer; etc.), 160 Est. Aval. Educ., São Paulo, v. 25, n. 58, p. 152-185, maio/ago. 2014 ela não demonstra concentração, motivação ou prazer na atividade. Em muitos casos, a criança está apenas presente nas atividades de rotina. Nível 4: a criança apresenta momentos de atividade mental intensa. Nível 5: a criança apresenta atividade intensa contínua. Há engajamento total expresso pela concentração e absorção absoluta pela atividade. Qualquer perturbação ou inter- rupção seria encarada como um frustrante rompimento de um processo que estava sendo executado suavemente. A essência do processo de pontuação está na empatia, pela qual o observador se sensibiliza ao observar a experiên- cia da criança. Com isso, ele obtém informações para chegar a conclusões relativas à atividade mental da criança e à intensi- dade de sua experiência. Apesar das habilidades de observação exigidas, a confiabilidade da pontuação entre observadores em diversos estudos é de 0,90 ou mais na escala LIS-YC (The Leuven Involvement Scale for Young Children) para crianças. ORGANIZAÇÃO DE UM AMBIENTE ADEQUADO PARA APRENDIZAGEM AUMENTANDO OS NÍVEIS DE BEM-ESTAR E ENVOLVIMENTO Os conceitos de bem-estar e envolvimento não são apenas úteis para fins de pesquisa, mas também para profissionais que desejem melhorar a qualidade de seu trabalho. Estudos de intervenção conduzidos nas cidades de Kent e Milton Keynes, no Reino Unido, demonstraram que os níveis de bem-estar e envolvimento podem ser elevados significativa- mente em menos de um ano, mesmo em ambientes situados em áreas carentes. A chave está em auxiliar os profissionais a observar os níveis de bem-estar e envolvimento e a identi- ficar intervenções passíveis de elevar esses níveis. Contando com a experiência de profissionais/professores, um grupo de especialistas se reuniu e sistematizou Os Dez Pontos de Ação, um inventário de dez tipos de iniciativas que favorecem o bem-estar e o envolvimento (LAEVERS; HEYLEN, 2003). Est. Aval. Educ., São Paulo, v. 25, n. 58, p. 152-185, maio/ago. 2014 161 QUADRO 3 – Os dez pontos de ação Fonte: Laevers e Heylen (2003). Os pontos de ação cobrem uma ampla gama de inter- venções. Nos pontos de ação 1, 2 e 3, a organização do espaço e a provisão de materiais e atividades interessantes estão em pau- ta. No ponto de ação 4, o professor é convidado a observar cuidadosamente como as crianças interagem com todas as pessoas que encontram em seu (rico) ambiente, de forma a identificar interesses que possam ser atendidos com uma oferta de atividades mais adequada. É nesse cenário que os projetos se desenvolvem, tomando forma gradualmente a partir do que as crianças indicam como pontos de interesse em suas ações anteriores. A organização de um ambiente rico não se completa apenas com a provisão de ampla variedade de materiais e atividades potencialmente interessantes. Um elemento de- cisivo para a ocorrência de envolvimento é a forma como o adulto apoia as atividades em andamento com intervenções estimulantes (ponto de ação 5). Observar as crianças e como elas se envolvem nas ativi- dades exige um formato aberto de organização do ambiente que estimula as crianças a tomar a iniciativa (ponto de ação 6). E é por isso que nos contextos da EXE as crianças são livres para escolher entre uma ampla gama de atividades (até mais de 65% do tempo disponível). Esse ponto inclui a definição 162 Est. Aval. Educ., São Paulo, v. 25, n. 58, p. 152-185, maio/ago. 2014 1. Reorganizar a sala de aula em cantos ou áreas mais atraentes. 2. Verificar os materiais que estão nesses cantos ou áreas e substitui-los, caso necessário, por outros mais adequados. 3. Introduzir novos materiais e atividades não convencionais. 4. Observar as crianças, descobrir seus interesses e atividades que atendam a estas orientações. 5. Dar apoio às atividades em andamento, estimulando iniciativas e enriquecendoas intervenções. 6. Ampliar as possibilidades de livre iniciativa e apoiá-las com regras e acordos pertinentes. 7. Explorar o relacionamento com cada criança e entre elas, tentando aprimorá-los. 8. Introduzir atividades que ajudem as crianças a explorar as relações, sentimentos e valores. 9. Identificar crianças com problemas emocionais e formular intervenções sustentáveis. 10. Identificar crianças com necessidades específicas e planejar intervenções que as estimulem a se envolver em atividades nas quais encontram mais dificuldade. de regras que garantem o uso da sala com liberdade de esco- lha para cada criança (não apenas para as mais bem adapta- das ou as mais assertivas). É necessário algum tempo até se atingir esse ponto com um grupo de crianças. Os esforços, porém, para se implementar esse formato aberto são recom- pensados. A pesquisa indica que – diante de uma riqueza da oferta –, quanto mais as crianças puderem escolher suas ati- vidades, mais altos serão os níveis de envolvimento. No ponto de ação 7, o campo das relações sociais é aborda- do. O adulto não apenas explora as relações entre as crian- ças, mas também procura estar ciente de como ele próprio é visto pelas crianças. As diretrizes nessa área abrangem qualidades já definidas por Carl Rogers (empatia e autenti- cidade). Em nível de grupo, dá-se atenção explícita à criação de oportunidades de compartilhar experiências e gerar um clima positivo. No ponto de ação 8, são desenvolvidas atividades que dão apoio à exploração de sentimentos, ideias e valores. Trata-se, em parte, do desenvolvimento de competência social. Uma das fontes que respaldam esse ponto de ação é a Box Full of Feelings (Caixa cheia de emoções). A série de ativi- dades abertas ligada a esse conjunto ajuda as crianças a dis- cernir entre quatro sentimentos básicos – felicidade, medo, raiva e tristeza – e a desenvolver a inteligência emocional e a capacidade de assumir papéis. O efeito foi relatado por Smith (2002) – com base em sua tese de doutorado pela Fa- culdade de Educação de Worcester – em um programa do canal inglês BBC para especialistas: “Utilizamos o Box Full of Feelings por apenas sete semanas. Já notamos uma grande e significativa diferença. [...] podemos perceber o sentimento geral de proteção, conscientização, amizade e empatia nas crianças, que não existia antes”. Os pontos de ação 1 a 8 apresentam uma característi- ca geral: formar a base para a proposta EXE. Os outros dois pontos de ação chamam a atenção para as crianças que pre- cisam de cuidados especais por não terem atingido os níveis esperados de bem-estar e envolvimento. No primeiro deles (ponto de ação 9) temos de lidar com problemas comportamen- tais e emocionais. O último ponto de ação (ponto de ação 10) Est. Aval. Educ., São Paulo, v. 25, n. 58, p. 152-185, maio/ago. 2014 163 é sobre crianças com necessidades especiais de desenvolvimento. Definimos essas crianças como aquelas que deixam de par- ticipar em uma atividade cuja qualidade de “envolvimento” ocorre em uma ou mais áreas de competência. Isso quer di- zer que seu desenvolvimento está ameaçado e que há gran- des chances de essas crianças não atingirem seu potencial pleno. O ESTILO EXPERIENCIAL DO ADULTO As intervenções do professor podem variar consideravel- mente, conforme a natureza das atividades ou as reações e iniciativas das crianças. No entanto, podemos discernir pa- drões individuais na forma como os adultos intervêm numa variedade de situações. A noção de “estilo” é utilizada para englobar esse padrão. O “Instrumento de Observação do Estilo Adulto” (Adult Style Observation Schedule – ASOS) se desenvolve em três dimensões: estímulo, sensibilidade e autonomia (LAEVERS; HEYLEN, 2003). Intervenções estimulantes são iniciativas que envolvem uma cadeia de ações com crianças e que diferenciam entre alto e baixo nível de envolvimento. Por exemplo: sugerir atividades a crianças que estão perambulando à toa, oferecer materiais que se encaixam na atividade em andamento, convidar as crianças a se comunicarem, confrontá-las com questões que estimulem o raciocínio e dar a elas informações que possam capturar sua atenção. A Sensibilidade é identificada em respostas que revelam uma compreensão empática das necessidades básicas da criança, tais como, as necessidades de segurança, de afeto, de atenção, de afirmação, de clareza e de apoio emocional. Dar autonomia não é percebida apenas na forma como a sala foi organizada, mas também deve ser introduzida no nível das intervenções, o que significa respeitar o senso de iniciativa da criança, reconhecendo seus interesses, dando a ela espaço para experimentar, deixando-a decidir sobre a maneira como uma atividade se realizará e quando o produto será finalizado, implicá-la no contexto de regras e solução de conflitos. 164 Est. Aval. Educ., São Paulo, v. 25, n. 58, p. 152-185, maio/ago. 2014 Ao observarmos a maneira como os adultos interagem com as crianças, percebemos o quanto essas dimensões são poderosas. Com o intuito de obter altos níveis de bem-estar e envolvimento, o adulto é mais importante do que outras dimensões do contexto, tais como o espaço, o material e as atividades oferecidas. ELEMENTOS DE UM AMBIENTE ADEQUADO PARA APRENDIZAGEM Os Dez Pontos de Ação refletem aquilo que consideramos “boa prática”. Em um simpósio organizado pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD) em Estocolmo, em 2003 (ORGANIZAÇÃO PARA COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO, 2004) foram discutidos quatro modelos de boas práticas no campo da educação infantil. Os modelos selecionados foram: HighScope (EUA), Reggio Emilia (Itália), Te Whāriki (Nova Zelândia) e Educação Experiencial (Bélgica). Todos foram considerados inspiração para especialistas no mundo inteiro. A tarefa que temos nas mãos agora é a de identificar as características comuns nessas abordagens. Apontamos abaixo seis características que poderiam ser consideradas pedras fundamentais de qualquer modelo educacional do futuro. 1. Respeito pela criança A declaração universal dos direitos das crianças fez com que esse primeiro princípio assumisse a posição mais im- portante no cenário da educação infantil. Como princípio, parece ser bastante óbvio. Nesse campo em especial, os pro- fissionais da educação infantil se sentiriam confiantes por estarem lidando com a criança de forma respeitosa. No en- tanto, quando observamos mais de perto, percebemos que esse respeito à criança vai além de ser “gentil” com elas. Em todos os momentos da história em que direitos são concedi- dos a determinado grupo de pessoas, observa-se um esfor- ço profundo e uma mudança expressiva na visão vigente de mundo. Veja-se, por exemplo, o movimento feminista. Qual- quer um fica abismado ao notar que, até meados do século passado, as mulheres não tinham sequer o direito de votar. Est. Aval. Educ., São Paulo, v. 25, n. 58, p. 152-185, maio/ago. 2014 165 Se nos aprofundarmos no tema, descobriremos que esse tipo de evolução decorre de mudanças no nível das “imagens”. Os homens não permitiam às mulheres que votassem porque as viam como “incapazes” para tomar decisões que considera- vam de ordem “superior” – como, por exemplo, no campo político. Para termos uma visão completa da situação, deve- mos reconhecer que as próprias mulheres (a maioria delas) compartilhavam essa ideia – mantendo-as em posição de subordinação. O movimento pelos direitos das mulheres, assim como o movimento pela abolição da escravatura, o Apartheid e a segregação dos negros, não foram uma cami- nhada amena. Conceder direitos a pessoas é um processo doloroso. Sempre há alguns que perderão poder, controle ou alguma coisa; certamente, para ganhar algo em troca, que não fica claro