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A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO 
AULA 1 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Prof. Cassio Gonçalves de Azevedo 
 
 
 
2 
CONVERSA INICIAL 
Em gramática, aprendemos que o sujeito é um dos termos mais 
importantes de uma oração, de uma frase, seja ela pronunciada, seja escrita. 
Geralmente, o localizamos antes do predicado, embora também possa vir 
depois. De uma ou outra forma, trata-se do termo sobre o qual se declara alguma 
coisa. Ele pode ser um sujeito simples ou composto, quando se tem um ou mais 
de um termo que se refere(m) ao sujeito; pode ser implícito ou oculto, quando 
indiretamente enunciado; ou, ainda, indeterminado, quando não se pode 
determinar quem ou o que é o sujeito da frase. O sujeito pode, assim, ser um 
lugar, quando, por exemplo, dizemos que A Amazônia possui uma diversidade 
exuberante, em que o sujeito é a Amazônia; ou um objeto, se dissermos que A 
caneta é azul. Pode ser um espaço temporal, por exemplo, a Antiguidade ou a 
Idade Média. Em suma, pode ser qualquer coisa que comporte predicados, 
atributos. 
A palavra sujeito também pode ser utilizada como adjetivo, com a 
conotação de submissão ou subordinação, quando, por exemplo, dizemos que 
um indivíduo está sujeito a uma determinada situação ou circunstância. Já no 
senso comum, que é o conhecimento advindo das experiências mais imediatas 
do ser humano com a realidade, a ideia de sujeito nos é quase que 
automaticamente equivalente à de pessoa, por exemplo, quando dizemos um 
sujeito pulou o muro; ou que determinado sujeito pode ser assim ou assado, de 
modo que o sujeito se apresenta como sinônimo de um indivíduo, de uma 
pessoa, de um ser em especial, um ser humano, a quem também conferimos 
atributos ou ações. 
Porém, como conceito, o termo sujeito abrange nuances muito mais 
multifacetadas e complexas, diferindo sua significação conforme a terminologia 
específica a cada área que o conceitua, que o operacionaliza. Podemos falar do 
conceito de sujeito para a filosofia e, nesse campo do saber, veremos uma 
proliferação de matizes que irão conferir ao conceito de sujeito diferentes 
aspectos, conforme o prisma filosófico sob o qual se queira abordá-lo. Essa 
tarefa, por sinal, não nos convém, pois o que vamos perscrutar é a emergência 
da noção de sujeito, mais do que o conceito em si, no campo da psicanálise. 
Para tanto, situaremos apenas a emergência do sujeito como advento da 
modernidade, como convém fazê-lo, para, na sequência, desmembrá-lo em 
 
 
3 
algumas possibilidades decorrentes da evolução de algumas áreas. Veremos, 
assim, brevemente, a título de contextualização e contraposição, duas 
concepções de sujeito articuladas a algumas implicações teóricas e práticas que 
as engendraram, a saber: o sujeito moderno ou cartesiano e o sujeito dos direitos 
humanos. 
Esse breve percurso nos servirá para adentrar, pelo contraste, no campo 
inaugurado por Freud e na noção de sujeito que dele decorre para verificar não 
a especificação do conceito, tarefa que coube a outro psicanalista posterior, mas 
seus fundamentos, suas incidências e seus ecos. Para tanto, aprenderemos o 
conceito revolucionário de pulsão, forjado por Freud e desenvolvido durante 
toda a sua obra para dar materialidade à dimensão econômica do aparelho 
psíquico. Veremos, ainda, como as pulsões se desenvolvem durante as fases do 
desenvolvimento da libido, o que ficou conhecido como desenvolvimento 
psicossexual; para, na sequência, adentrarmos no importante conceito de 
recalque. 
Sobre o recalque, nos deteremos sobre o mecanismo dessa operação 
psicológica para, então, compreender sua importância para a constituição do 
aparelho psíquico tal como concebido na teoria freudiana. Verificaremos 
algumas das consequências que o recalcamento da pulsão acarreta para a 
constituição do aparelho psíquico, tal como a clivagem deste entre consciência 
e inconsciência. 
Por fim, na seção “Na prática”, veremos algumas aplicabilidades do que 
foi desenvolvido e, por fim, retomaremos brevemente ao que foi estudado ao 
longo dela. 
TEMA 1 – O SUJEITO MODERNO 
É comum se atribuir ao filósofo francês Renè Descartes (1596-1650) e ao 
seu Discurso do método, de 1637, a concepção do sujeito moderno. Descartes 
(2005) foi, sem dúvida, um dos pilares da ciência, e sua operação consistiu em 
realizar um corte com a tradição filosófica ao instituir, com base em um 
determinado ceticismo, um ponto de certeza sobre o qual se pôde erigir todo um 
saber. Esse ponto não é um ponto qualquer, mas um ponto em que o sujeito 
desvela o mundo e a si próprio pelo processo do pensamento e da consciência. 
Tendo a dúvida como método, Descartes (2005) suspende quaisquer 
possibilidades de certeza com exceção de uma única, qual seja, a de que se 
 
 
4 
duvida; e, portanto, se pensa. Nenhuma realidade externa (res extensa) pode 
garantir ao indivíduo um valor de verdade, haja vista a potencialidade 
enganadora dos seus sentidos; porém, o fato de esse indivíduo estar pensando 
se impõe, daí sua máxima Cogito, ergo sum, ou seja, Penso, logo sou 
(Descartes, 2005). 
Ocorre que o objetivo de Descartes é fixar um princípio que sirva de 
base ao saber. Um ponto de certeza. E é essa decisão que o leva a 
recusar as informações vindas da palavra revelada tanto quanto as 
informações colhidas pelos sentidos. Isso porque os sonhos – quer 
dizer, os sentidos – fornecem dados que são ilusórios. No fim, o terreno 
da realidade sensorial é movediço. Portanto, sua dúvida resulta em um 
ato. Um ato do intelecto. De deixar cair todos os pressupostos. Em 
consequência e ao longo das duas primeiras meditações, ele se despe 
de tudo o que sabe ou acredita saber. Assim sendo, deixa cair alicerces 
que escoram seu saber até ficar nu, a sós com sua razão, momento 
em que uma certeza fulgurante se lhe impõe: a certeza de ser pelo fato 
de pensar. Enquanto pensante, sou. De cogitans, sum. (Cabas, 2009, 
p. 106-107) 
Trata-se, então, não apenas da articulação do ser como sustentado pelo 
processo do pensar, a res cogitans ou substância pensante; mas do próprio 
discurso do saber tomando como objeto o seu agente, ou seja, numa formulação 
em que o pensamento implica o sujeito que o pensa, e o corolário dessa 
operação é um sujeito de conhecimento, dotado de autoconsciência e razão. 
Mas o que é este eu que pensa, e que portanto existe? É um ser 
pensante (res cogitans). O pensamento afirma-se como o atributo 
principal do sujeito, sua essência. Nada mais do que o ato de pensar é 
capaz de defini-lo enquanto “eu” que, sendo assim, não é outra coisa 
do que uma consciência autorreflexiva. É o mesmo “eu” que pensa e 
que, por pensar, descobre-se enquanto “eu”. Assim, “eu”, 
“consciência”, e “sujeito”, são termos equivalentes, cuja essência 
consiste na faculdade de pensar. (Ribeiro, 1995, p. 24) 
Ora, esse sujeito identificado com o pensamento, capaz de conduzi-lo 
pelos caminhos de uma dúvida hiperbólica, levada até as últimas consequências, 
pode, por meio da própria atividade de pensar, conhecer o mundo e a si próprio, 
ou seja, saber sobre si e sobre sua realidade. Trata-se, portanto, do sujeito da 
certeza, da autoconsciência, daquele que coincide consigo próprio, indivisível 
quando reduzido às últimas consequências pelo seu processo de pensar. 
TEMA 2 – O SUJEITO DE DIREITOS E DEVERES 
O advento do sujeito moderno, sua progressiva secularização, 
desvinculando-se das imposições dogmáticas que restringiam seu acesso ao 
conhecimento ou o condicionavam a quaisquer outras alteridades para além do 
 
 
5 
próprio sujeito, esse novo sujeito com liberdade de consciência para autogerir 
suas próprias ações, com base na assunção de seu pensamento racional, 
impulsionará outra corrente filosófica que se valeu do conceito de sujeito com 
vistas a criticar e interferir na organização da sociedade. No entanto, foram 
necessárias revoluções que promoveram profundas transformações tanto nocampo político quanto na própria estrutura social, para que, ao conceito de 
sujeito moderno, fossem incrementadas outras nuances. 
No mais, é justamente a obsolescência dessas estruturas políticas 
(ceifadas no findar do século XVIII pelo cutelo da guilhotina) que 
marcará o fim do Antigo Regime e o advento de um novo laço. Um laço 
onde o súdito – acorrentado à vontade do suserano – é libertado dessa 
tirania pela pura soberania da Lei. A profunda reformulação dos 
fundamentos jurídicos, concluída pela Revolução Francesa, transforma 
o súdito em sujeito. A partir desse momento o sujeito é sujeito da lei. 
Sujeito de direitos e deveres. Sujeito da modernidade – uma 
concepção com a qual concordam e da qual comungam as mais 
diversas correntes da filosofia política. Por esse viés abrem-se as 
portas à questão da cidadania, da mesma maneira que o estatuto da 
subjetividade conduz ao problema dos direitos das minorias. É a 
apologia dos direitos. É a epifania da liberdade subjetiva [...] 
A filosofia política, assim, voltou seu aparato crítico para as relações de 
poder que vigoram nas sociedades para identificar no sujeito seu efeito, e a 
emancipação do ser de pensamento como advento da modernidade resultou em 
uma consciência moral que inevitavelmente precisou perpassar as relações do 
sujeito com o outro. 
De fato, a ideia de sujeito revela uma parte da história das conquistas 
humanas nos campos da moral, da cidadania e dos direitos humanos. 
Isso porque o sujeito não é apenas um ser capaz de agir moralmente, 
já que ele também se apresenta como um portador de direitos e 
deveres, ou seja, ela é capaz de alcançar e assumir a condição de 
cidadão. O sujeito-cidadão se define a partir de sua relação com as 
leis, instituições e esferas de poder. Aqui ele encontra os meios para a 
atuação social e a manifestação da sua consciência política. O sujeito, 
como já mostramos, é determinado por sua individualidade e, da 
mesma maneira, por suas relações e experiências compartilhadas. 
Suas ações cotidianas são orientadas por princípios legais e valores 
morais. É isso, aliás, que define sua condição de sujeito de direitos. 
(Pequeno, 2016, p. 34) 
Teóricos como Foucault, por exemplo, irão justamente apontar seu 
arsenal crítico para denunciar a falta de efetividade dessa formalidade jurídica 
no que diz respeito à liberdade dos sujeitos por ela designados: “No 
entendimento de Foucault, o sujeito é um ponto mínimo imerso numa trama. Um 
elemento sem relevo em meio às pressões de uma microfísica do poder” (Cabas, 
2009, p. 111). 
 
 
6 
Vemos, portanto, que o sujeito da filosofia política se define por meio de 
suas relações com o outro, seu semelhante, e com o outro da cultura, da 
estrutura da sociedade objetivada na forma do conjunto de leis, mesmo que 
implícitas. O espaço a ser debatido pelas várias correntes filosóficas, nesse 
âmbito, é o da liberdade que esse sujeito pode gozar nas suas relações sociais, 
numa determinada sociedade, no tempo. Logo, a interrogação recai sobre a 
maquinaria do outro, ou seja, sobre o lugar que uma determinada organização 
social, simbólica, reserva ao indivíduo a ela sujeito. 
Ocorre que, tanto para a filosofia política como para a Crítica 
Contemporânea (a crítica de Foucault), o Sujeito é sempre deduzido. 
Isso significa que é extraído por meio de uma dedução cuja premissa 
reside no Outro. Na presença do grande Outro. Nas relações de poder 
que vigoram numa sociedade dada. Depreende-se que, nesse 
contexto, o Sujeito não representa uma questão. A questão é o Outro. 
Nesse sentido, o Sujeito não é mais que um efeito. O produto de uma 
sobredeterminação. Uma cristalização. (Cabas, 2009, p. 112) 
Essas breves explanações acerca do percurso e das possibilidades que 
o conceito de sujeito ensejou no campo da filosofia nos servirão para melhor 
especificar o conceito de sujeito que a psicanálise irá colocar em pauta, bem 
como aquilatar com mais precisão o valor da subversão que o discurso 
psicanalítico representa. 
TEMA 3 – A PULSÃO 
Um dos mais inovadores e surpreendentes conceitos forjados por Freud 
para dar conta da excentricidade da experiência humana é o conceito de pulsão. 
Substrato último da dimensão econômica da metapsicologia freudiana, o 
conceito de pulsão vem propiciar as bases materiais que sustentam a 
animosidade psíquica, subjacente ao aparelho psíquico e às representações 
inconscientes (Cabas, 2009, p. 56). 
Desde os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, de 1905, Freud já 
chamara atenção para a origem somática das pulsões, isto é, já as localizara em 
zonas erógenas do corpo. Contudo, em 1915, no texto As pulsões e suas 
vicissitudes, Freud (1996) as localiza numa região fronteiriça entre o corpo e o 
psíquico. 
Se agora nos dedicarmos a considerar a vida mental de um ponto de 
vista biológico, um ‘instinto’ nos aparecerá como sendo um conceito 
situado na fronteira entre o mental e o somático, como o representante 
psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo e 
 
 
7 
alcançam a mente, como uma medida da exigência feita à mente no 
sentido de trabalhar em consequência de sua ligação com o corpo. 
(Freud, 1996, p. 127) 
Importa atentar para o fato de que a tradução utilizada na citação anterior 
decorre da tradução inglesa, em que o termo alemão Trieb, pulsão, foi traduzido 
como instinct, instinto. Esse adendo é absolutamente fundamental, pois nele 
reside uma distorção conceitual de magnitude conhecida em psicanálise. 
Diferentemente do instinto, que se processa de forma intermitente e que possui 
um objeto específico para sua satisfação, a pulsão é uma força constante e não 
possui, como veremos, um objeto específico. Nessas particularidades residem 
algumas das principais diferenças no regime de funcionamento que rege a 
experiência humana e a difere do modo de operação do reino animal. 
Feito esse adendo, voltemos ao texto sobre as pulsões para verificar que, 
nele, Freud (1996) se debruça sobre a estrutura daquelas para decompô-la como 
tendo uma força, que é constante; um fim, que é sempre a satisfação; um 
objeto, que é variável; e uma fonte, que é somática. A finalidade das pulsões é 
a satisfação, e esta consiste na diminuição da excitação infligida ao aparelho 
psíquico, no que a pulsão é imperativa. Trata-se de uma excitação constante 
(Konstant Kraft), sentida como tensão, desprazerosa, proveniente de fontes 
internas (zonas erógenas) que almejam satisfação, ou seja, a redução dessa 
excitabilidade que perturba a homeostase do organismo, ou, nos termos de 
Freud, apoiado no filósofo alemão G.T. Fechner, o princípio da constância. 
Quando uma determinada ação muscular se estende na direção da supressão 
desse estímulo perturbador, o que se tem é a redução dessa tensão e a 
consequente satisfação, sentida como prazer. 
É importante notar que, diferentemente dos estímulos externos que 
podem ser intermitentes, o estímulo provocado pelas pulsões provêm do próprio 
organismo, ou seja, não se pode, portanto, correr de suas investidas e de sua 
premência. Além do mais, no que diz respeito às fontes das pulsões, Freud as 
privilegia como sendo as bordas dos orifícios corporais, por exemplo, a boca e o 
esfíncter anal, o que nos chama atenção para sua estrutura de furo. Adiantamos, 
desde já, que essas características pulsionais, por exemplo, de suas fontes, 
serão fundamentais para a compreensão do que virá a se constituir como 
sujeito, e que nos propomos a abordar. 
De tal modo que o mais importante, nesse contexto, é ressaltar que a 
fonte passa a ter a função de um furo e a causa freudiana o estatuto 
 
 
8 
de uma falta. No fundo, isso implica que quando se trata da causa o 
que está em jogo é a falta. E que a falta é a causa do ato e, por 
extensão, que o furo é, no plano pulsional, o sustentáculo material do 
lugar do sujeito. Entende-se: na experiência freudiana. (Cabas, 2009, 
p. 60) 
Essa característica da estruturadas fontes pulsionais, por assim dizer, 
hiante, soma-se a outra, a da falta de um objeto inerente, e ambas marcam as 
pulsões com uma característica indelével, a da falta, pois, no que diz respeito 
aos objetos pulsionais, Freud (1996, p. 128) identifica as seguintes 
características: 
O objeto [Objekt] de um instinto é a coisa em relação à qual ou através 
da qual o instinto é capaz de atingir sua finalidade. É o que há de mais 
variável num instinto e, originalmente, não está ligado a ele, só lhe 
sendo destinado por ser peculiarmente adequado a tornar possível a 
satisfação. O objeto não é necessariamente algo estranho: poderá 
igualmente ser uma parte do próprio corpo do indivíduo. Pode ser 
modificado quantas vezes for necessário no decorrer das vicissitudes 
que o instinto sofre durante sua existência, sendo que esse 
deslocamento do instinto desempenha papéis altamente importantes. 
Faz-se importantíssimo ressaltar, mais uma vez, que a tradução utilizada 
no trecho anterior também substituiu o termo alemão Trieb por instinct, ou seja, 
traduziu por instinto o que Freud (1996) denominou pulsão. Como já adiantamos, 
diferentemente do regime instintual dos animais, que se satisfazem com objetos 
específicos, o ser humano é extremamente plástica quanto aos objetos que lhe 
são meios para obtenção de satisfação. Depreende-se, desses aspectos 
estruturais das pulsões, um funcionamento assaz particular, pois, diferente do 
instinto, que vigora e regula o funcionamento animal com demandas 
intermitentes e objetos específicos, a pulsão é uma força constante, e isso se dá 
não apenas em função da morfologia de sua fonte, em forma de furo ou buraco, 
mas também em virtude dessa falta de objeto que lhe é constitutiva. 
De modo que, partindo de uma fonte em forma de furo, não tendo objeto 
específico e sendo, portanto, uma força constante, o que se apresenta é uma 
espécie de montagem aparentemente fadada à insatisfação. Vale lembrar, 
ainda, que as pulsões, como uma medida da exigência feita à mente no 
sentido de trabalhar em consequência de sua ligação com o corpo, 
precisam ser inscritas no psiquismo para que uma via de acesso a sua satisfação 
se faça reconhecer. Essa inscrição, como veremos, nunca se dá por completo, 
de modo que resta sempre um mais além, pulsional, que insiste. 
 
 
 
9 
TEMA 4 – O RECALQUE 
Tendo como pano de fundo as divergências entre autores que ainda se 
valiam do termo psicanálise para nomear suas práticas, que já não mantinham 
com aquela nenhuma relação, como a de Carl G. Jung, por exemplo, Freud 
(1996) decide resumir, em 1914, A história do movimento psicanalítico, em que 
se refere ao recalque (traduzido erroneamente, a seguir, como repressão) da 
seguinte maneira: 
A teoria da repressão é a pedra angular sobre a qual repousa toda a 
estrutura da psicanálise. É a parte mais essencial dela e todavia nada 
mais é senão a formulação teórica de um fenômeno que pode ser 
observado quantas vezes se desejar se se empreende a análise de um 
neurótico sem recorrer a hipnose. Em tais casos encontra-se uma 
resistência que se opõe ao trabalho da análise e, a fim de frustrá-lo, 
alega falha de memória. O uso da hipnose ocultava essa resistência; 
por conseguinte, a história da psicanálise propriamente dita só começa 
com a nova técnica que dispensa a hipnose. A consideração teórica, 
decorrente da coincidência dessa resistência com uma amnésia, 
conduz inevitavelmente ao princípio da atividade mental inconsciente, 
peculiar à psicanálise, e que também a distingue muito nitidamente das 
especulações filosóficas em torno do inconsciente. Assim talvez se 
possa dizer que a teoria da psicanálise é uma tentativa de explicar dois 
fatos surpreendentes e inesperados que se observam sempre que se 
tenta remontar os sintomas de um neurótico a suas fontes no passado: 
a transferência e a resistência. Qualquer linha de investigação que 
reconheça esses dois fatos e os tome como ponto de partida de seu 
trabalho tem o direito de chamar-se psicanálise, mesmo que chegue a 
resultados diferentes dos meus. Mas quem quer que aborde outros 
aspectos do problema, evitando essas duas hipóteses, dificilmente 
poderá escapar à acusação de apropriação indébita por tentativa de 
imitação, se insistir em chamar-se a si próprio de psicanalista. Eu me 
oporia com maior ênfase a quem procurasse colocar a teoria da 
repressão e da resistência entre as premissas da psicanálise em vez 
de colocá-las entre as suas descobertas. Essas premissas, de 
natureza psicológica e biológica geral, na verdade existem e seria útil 
considera-las em outra ocasião; mas a teoria da repressão é um 
produto do trabalho psicanalítico, uma inferência teórica legitimamente 
extraída de inúmeras observações. (Freud, 1996, p. 26, grifos do 
original) 
No mesmo volume das obras completas que citamos, encontramos o texto 
O recalque, de 1915, prenunciado n’As pulsões e suas vicissitudes. Nele, 
apreenderemos que essa operação psicológica é correlata da cisão do aparelho 
psíquico em atividade consciente e inconsciente, e que sua essência “[...] 
consiste simplesmente em afastar determinada coisa do consciente, mantendo-
a à distância” (Freud, 1996, p. 152). 
O autor especifica que a ação do recalque incide sobre o representante 
pulsional no sistema psíquico consciente, não impedindo que continue a existir 
no inconsciente e se proliferando no escuro: 
 
 
10 
Sob a influência do estudo das psiconeuroses, que coloca diante de 
nós os importantes efeitos da repressão, inclinamo-nos a 
supervalorizar sua dimensão psicológica e a esquecer, demasiado 
depressa, o fato de que a repressão não impede que o representante 
instintual continue a existir no inconsciente, se organize ainda mais, dê 
origem a derivados, e estabeleça ligações. Na verdade, a repressão só 
interfere na relação do representante instintual com um único sistema 
psíquico, a saber, o do consciente. (Freud, 1996, p. 153-154, grifo do 
original). 
O autor especifica que a ação do recalque incide sobre o representante 
pulsional no consciente, mas isso não impede que ele aja sobre “[...] todos os 
derivados” (Freud, 1996, p. 154, grifo nosso), o que possibilita que cadeias de 
associações ideativas possam ascender à consciência. E Freud (1996, p. 157) 
prossegue, ressaltando o caráter móbil das pulsões subjacentes aos seus 
representantes pulsionais: 
Até esse momento, em nosso exame, tratamos da repressão de um 
representante instintual, entendendo por este último uma ideia, ou um 
grupo de ideias, catexizadas com uma quota definida de energia 
psíquica (libido ou interesse) proveniente de um instinto. Agora, a 
observação clínica nos obriga a dividir aquilo que até o presente 
consideramos como sendo uma entidade única, de uma vez que essa 
observação nos indica que, além da ideia, outro elemento 
representativo do instinto tem de ser levado em consideração, e que 
esse outro elemento passa por vicissitudes de repressão que podem 
ser bem diferentes das experimentadas pela ideia. Geralmente, a 
expressão quota de afeto tem sido adotada para designar esse outro 
elemento do representante psíquico. Corresponde ao instinto na 
medida em que este se afasta da ideia e encontra expressão, 
proporcional a sua quantidade, em processos que são sentidos como 
afetos. A partir desse ponto, ao descrevermos um caso de repressão, 
teremos de acompanhar separadamente aquilo que acontece à ideia 
como resultado da repressão e aquilo que acontece à energia instintual 
vinculada a ela. (Freud, 1996, p. 157, grifo do original) 
Ou seja, Freud aponta para a cisão entre a inscrição psíquica de uma 
pulsão, seu representante no campo do inconsciente e sua base material 
econômica, a pulsão propriamente dita. Não nos é possível, nos limites de que 
aqui dispomos, acompanhar em detalhes como Freud (1996) esmiúça o 
mecanismo do recalque, por exemplo, no texto O inconsciente, que se segue ao 
texto d’O recalque, mas contentamo-nosem concluir que o mecanismo do 
recalque denuncia a divisão da estrutura psíquica e que incide sobre os 
representantes psíquicos das pulsões parciais. Essa é a via que nos subsidiará 
na compreensão da noção de sujeito para Freud (1996), noção de uma 
subjetividade dividida, clivada entre processos conscientes e inconscientes, bem 
como entre um funcionamento puramente pulsional e outro simbólico. 
 
 
 
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TEMA 5 – FASES DA PULSÃO: LIBIDO 
Convencionaram-se chamar de desenvolvimento psicossexual as fases 
em que preponderam diferentes pulsões parciais que vão se somando e se 
sobredeterminando, em um processo que não é linearmente progressivo, mas 
complexo e dinâmico, posto que até regressivo. As pulsões balizadas pela ação 
do recalcamento chamou-se de libido, e o desenvolvimento psicossexual, o 
processo por meio do qual essa libido (pulsão sexual) se desenvolve 
atravessada pelos cinco estágios: as fases oral, anal, fálica, de latência e genital, 
mediadas sempre pelo outro. 
Não nos ocuparemos em detalhar, aqui, cada estágio pelo qual a pulsão 
é atravessada, mas apenas indicaremos que a estruturação da subjetividade 
freudiana passa pelo histórico a que são submetidas as pulsões, no processo de 
desenvolvimento psicossexual das vicissitudes a que as pulsões vão sendo 
expostas, e a conformação subjetiva que se vai adotando por meio dessa 
demarcação. 
Salientamos que esses impulsos que são originados nas zonas 
erógenas são denominados de pulsões. Essas pulsões estão situadas 
na fronteira entre o corpo e a psique dos indivíduos e sempre fazem 
pressão para obterem satisfação. A satisfação está sempre em parte 
relacionada ao próprio corpo e em parte aos objetos externos. Elas 
funcionam independentemente umas das outras e por isso são 
chamadas de pulsões parciais. Seus objetos podem ser os mais 
variáveis possíveis e elas podem encontrar diversos tipos de 
satisfação. Entretanto, a frustração dessas pulsões é que vai 
determinar como as pessoas se relacionam com os outros e com a 
cultura. Daí a importância da educação como agente civilizatório, pois 
é através da educação que a criança passa a tentar ter um domínio 
sobre esses impulsos, sejam eles sexuais ou agressivos. É através da 
internalização das diversas proibições dirigidas a esses impulsos que 
a criança aprende a lidar com seus limites e aprende a conviver em 
sociedade. (Furtado; Vieira, 2014, p. 100) 
Ou seja, as pulsões parciais não são integradas num todo coerente, posto 
que provêm de diferentes fontes e almejam satisfações perpassadas por 
diferentes objetos. Essas satisfações sofrerão ações frustrantes, dentre elas a 
do recalcamento, haja vista que se constituem em etapas primitivas da 
organização do sujeito e não coincidem com os ideais sociais da educação e das 
barreiras psíquicas como nojo, vergonha etc. que vigoram na organização da 
sociedade. A estruturação da subjetividade para Freud, portanto, vai se 
consolidando em torno dessa demarcação que as frustrações vão impondo às 
 
 
12 
pulsões, ou seja, em torno das sucessivas frustrações às quais o indivíduo vai 
sendo exposto e que vão modulando os seus imperativos pulsionais. 
O fato é que Freud isolou essas modulações sob o nome de 
“vicissitudes da pulsão” e, indo mais longe, observou que elas 
compreendem uma série de alternativas, como a transformação no 
contrário, o retorno contra a própria pessoa, o recalque e a 
sublimação. Todavia, para além dos pormenores que incidem no 
curso pulsional, para além dos percalços do impulso e para além das 
nuances da modulação, o essencial é que esses destinos imprimem 
uma torção ao circuito da pulsão. O termo merece destaque: torção. E 
tais destinos modulam o impulso de um modo tal que acabam impondo-
lhe uma inflexão e obrigando-o a fazer o retorno. Assim, o curso se 
completa quando o ciclo pulsional atinge o ponto de partida, a saber, a 
fonte pulsional. E, no exato momento em que o circuito se fecha, um 
efeito se inscreve no lugar de onde brotara o empuxo. Esse ponto 
concerne ao sujeito. O sujeito enquanto determinado pela incidência 
da pulsão. 
Em consequência, temos de postular que a forma da pulsão demarca 
um ponto muito preciso, um ponto específico: o lugar-do-sujeito. 
(Cabas, 2009, p. 68, grifo do original) 
Assim, como defende Cabas (2009, p. 73), o percurso que Freud percorre 
no que diz respeito ao desenvolvimento da pulsão, e que apenas tangenciamos 
aqui, “[...] tem por objeto um único desfecho: dar conta da questão do sujeito”, 
na medida em que esse sujeito é 
“[...] correlato da pulsão, um efeito da satisfação, [...] Que o lugar do 
sujeito é congruente com a fonte pulsional. Que sua materialidade é da 
ordem de um buraco. Que sua substância é da ordem de um furo e 
que, por tudo isso, o sujeito freudiano é – em última instância – um dos 
efeitos do real. (Cabas, 2009, p. 73) 
NA PRÁTICA 
Para efeitos de aplicabilidade prática, sugerimos que sejam tomadas 
como exemplos as discussões a respeito da sexualidade humana, mais 
especificamente, sobre o objeto de satisfação sexual. Como proceder, por 
exemplo, diante do fato de que os objetos de satisfação sexual das pessoas, 
diferentemente dos animais, não são rigidamente determinados pela natureza, 
que não têm objeto inerente e fixo? Um tigre se relaciona sexualmente apenas 
com outro tigre e, ao que tudo indica, sempre do sexo oposto. O mesmo não 
ocorre com a espécie humana cuja sexualidade, para ficar dentro do campo tido 
como normal, sem abordar os comportamentos sexuais patológicos, abrange 
uma quantidade quase que ilimitada de possibilidades. 
Se quisermos nos valer de argumentos com fins meramente reprodutivos 
para determinar a normalidade da vida sexual humana, certamente 
 
 
13 
procederemos de modo bastante bizarro, pois não é necessário ir muito longe 
para verificarmos, em nós próprios, a incidência de fantasias que ultrapassam os 
fins reprodutivos e comportam contingências que em nada atendem aos fins de 
reprodução. Ou seja, verificaremos a incidência da pulsão tanto no que diz 
respeito à plasticidade de objetos que satisfazem as pulsões humanas como 
veremos também sua incidência de força constante, haja vista que nossa 
espécie não se restringe a períodos como os de cio. 
FINALIZANDO 
Vimos que a palavra sujeito comporta diferentes significações, desde o 
senso comum, passando pela gramática, até adquirir o status de conceito, em 
diferentes filosofias, com acepções distintas e com diferentes desdobramentos. 
Sua emergência na modernidade decorre do cogito cartesiano, que, por meio da 
dúvida metódica e hiperbólica em relação ao acesso humano à verdade, 
postulou o pensamento como realidade incontestável fundamentando, inclusive, 
na atividade racional a consistência do sujeito (Descartes, 2005). 
Essa emancipação do sujeito como alguém dotado da capacidade de 
pensamento pavimentou diferentes concepções, inclusive com implicações 
práticas, por exemplo, para a filosofia política, o que culminou com o sujeito dos 
direitos humanos, que, como vimos, se define como o efeito das relações com 
os outros indivíduos no interior de uma dada organização social e tem como 
premissa o estatuto da cidadania, resguardado pelo conjunto de normas e leis 
que nessa estrutura vigora e ao qual aquele se assujeita. 
Essas referências nos serviram de contraste para especificar o espaço 
que a teoria freudiana iria descobrir para aquilo que veio a se desenvolver como 
o lugar do sujeito. Para tanto, iniciamos pela conceituação que Freud faz do 
conceito de pulsão, localizando-o na fronteira entre o psíquico e o somático, 
como uma exigência feita à mente pelo fato de ela não prescindir de um corpo 
para advir. Fomos advertidos em relação à leitura do termo instinto, que, na 
literatura freudiana, deve ser sempre lido como pulsão, pois trata-se justamente 
de um conceito delimitador do campo inaugurado por Freud e que desvincula a 
psicanálisedas teorias biológicas. 
Vimos ainda que Freud operou uma espécie de desmontagem da pulsão, 
identificando nela uma fonte, no corpo, que são as zonas erógenas; uma força, 
que é constante (Konstant Kraft); um fim, que é obter a satisfação por meio da 
 
 
14 
redução da excitação desprazerosa que atenta contra o princípio da constância; 
e um objeto, que é variável posto que não é inerente à pulsão. Essas 
características conferem à pulsão uma montagem que parece fadada à 
insatisfação, por si própria, na medida em que ela provem de uma estrutura em 
forma de furo ou buraco e que não dispõe de um objeto que lhe seja inerente. 
Não obstante, fomos ainda levados a compreender melhor uma das vicissitudes 
à qual as pulsões são impostas e que dificulta ainda mais e particularmente suas 
satisfações, a saber, o recalque. 
Tido por Freud como a pedra angular da psicanálise, vimos que o 
recalque opera afastando da consciência os representantes das pulsões, e que 
estas continuam operando no sistema inconsciente, o que nos fez concluir que, 
diferentemente do cogito cartesiano ou do sujeito da filosofia política, a noção de 
sujeito para Freud se dispõe de tal modo que comporta uma divisão 
intrapsíquica, um conflito inerente entre processos conscientes e inconscientes, 
bem como entre um funcionamento puramente pulsional e outro simbólico. 
Continuamos ainda verificando que as pulsões seguem um curso de 
desenvolvimento em que o traço principal é sua superposição, bem como a 
existência de processos de modulação, de resistência aos fins por elas 
almejados. Por fim, concluímos que a estruturação da subjetividade freudiana se 
dá em torno das sucessivas faltas impostas às satisfações pulsionais, e que a 
posição subjetiva se constitui em torno dessas obstruções, por assim dizer, que 
imprimem nas pulsões uma marca de insatisfação de onde emerge o sujeito 
como um dos efeitos do real. 
 
 
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REFERÊNCIAS 
CABAS, A. G. O sujeito na psicanálise de Freud a Lacan: da questão do 
sujeito ao sujeito em questão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. 
DESCARTES, R. Discurso do método. Porto Alegre: L&PM, 2005. 
FREUD, S. A história do movimento psicanalítico, artigos sobre a 
metapsicologia e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição 
standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. 14). 
FURTADO, L. A. R.; VIEIRA, C. A. L. A psicanálise e as fases da organização 
da libido. Scientia, v. 2, n. 4. p. 92-107. Disponível em: 
. 
Acesso em: 1 abr. 2022. 
PEQUENO, M. J. P. O sujeito dos direitos humanos. In: FERREIRA, L. de F. G.; 
ZENAIDE, M. de N. T.; NADER, A. A. G. Fundamentos histórico-filosóficos e 
político-jurídicos. João Pessoa: Ed. UFPB, 2016. (Educando em Direitos 
Humanos, v. 1). 
RIBEIRO, E. E. M. Individualismo e verdade em Descartes: o processo de 
estruturação do sujeito moderno. Porto Alegre: Edipucrs, 1995.

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