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A. CASTANHEIRA NEVES APONTAMENTOS COMPLEMENTARES DE TEORIA DO DIREITO (SUMÁRIOS E TEXTOS) 1 O FUNCIONALISMO TECNOLÓGICO-SOCIAL 1. Movimento precursor – a “sociological jurisprudence”. A “sociological jurisprudence” – a que de modo eminente vai associado, como caput Scholae, o nome de ROSCOE POUND, professor de Harvard (1870-1964) – tem claras afinidades com a germânica Interessenjurisprudenz – afinidades que não resultaram só do conhecimento directo que POUND teve desta jurisprudência, mas sobretudo da comum e decisiva inspiração em IHERING e ainda em BENTHAM (cfr., por todos, FIKENTSCHER, ob. cit., 233, ss.), este último de evidente influência em POUND e também não negável em HECK – e que se traduzem no comungarem ambas no princípio fundamental de que o jurídico, na sua compreensão geral, criação prescritiva e realização concreta, seria determinado (mais geneticamente em HECK, mais funcionalmente em POUND) e teria os seus critérios práticos nos interesses socialmente relevantes. O que não exclui diferenças importantes, todavia mais de expressão metódica do que a implicarem divergências decisivas quanto ao sentido e à intenção fundamentais. Assim, anotaremos entre essas diferenças: 1) Uma menor acentuação na sociological jurisprudence da perspectiva de “conflito de interesses”, a favor antes da ideia de um correlativo equilíbrio ou do maior possível reconhecimento e satisfação global de todos os interesses (no que logo se verá mais a presença do sistemático utilitarismo de BENTHAM do que o agónico teleologismo de IHERING) – pois, se referia também POUND “the balancing of competing interests”, a solução que visava com essa ponderação era menos uma decisão de preferência em que o conflito constitutivamente persistisse, como em HECK, do que uma totalizante integração social que superasse a competição inicial. 2) Uma evolutiva distanciação relativamente às instâncias jurídico- -autoritárias de criação do direito e assim a tendência a irrelevar a mediação institucional, fosse legislativa ou judicial, na constituição e manifestação do direito – mediação que, aliás, o jurista deveria em princípio pressupor, como acentuava sobretudo a Interessenjurisprudenz através do princípio da obediência à lei e da autonomização do Gebotseite. Distanciação e tendência essas que concretamente se exprimiam na tentativa de inferir da própria análise sociológica dos interesses a solução jurídica, convertendo deste modo imediatamente o sociológico em jurídico – sentido final da sociological jurisprudence de POUND que ultrapassou uma algo distinta primeira fase (esta mais 2 próxima de HECK e em que o postulado principal era o de que a criação, a interpretação e a aplicação do direito não poderiam realizar-se sem a consideração dos “social facts”, sem o estudo da realidade social relevante – cfr. DIAS, ob. cit., 596; KANTOROWICZ, ob. loc. cits., 102) e nos leva a pensar, não obstante todas as mais diferenças, em GÉNY e na sua “livre investigação científica do direito”. 3) E daí uma base e uma investigação sociológicas bem mais amplas em POUND, a objectivarem-se na sua “Theory of Social Interests”, em que a distinção básica entre interesses individuais, públicos e sociais se prolonga numa larga especificação analítica (para uma informação geral, v. FIKENTSCHER, ob. cit., 229, ss.) e na qual se procura o próprio fundamento-critério de juridicidade – “a theory of interests as a criterion of justice” (J. STONE, Human Law and Human Justice, 273). 4) Por último, e como a mais saliente diferença, a ideia do pensamento jurídico como uma “social engineering” – ideia por que se assume pela primeira vez nesse pensamento uma intenção estritamente tecnológica, e em que o juízo normativo (a implicar a relação entre um fundamento axiológico-normativo e uma consequência-conclusão judicativamente prática, numa racionalidade de validade) cede o lugar a um juízo tecnológico (a implicar a relação entre fins e meios, numa nacionalidade de eficácia e de eficiência); intenção na verdade mais sugerida do que realizada por POUND, mas que havia de conhecer toda a sua projecção depois dele, particularmente nos nossos dias. Neste quadro se propôs, com efeito, a reconstituição da jurisprudence numa perspectiva sociológica, cujo sentido seria exactamente o seguinte. O direito devia ser concebido e o pensamento jurídico constituído “como meio de um fim social e como instrumento do desenvolvimento social” (FRIEDMANN, ob. cit., 297), ou seja, deveriam ser pensados e organizados como um sistema de “contrôle social” que visasse obter, mediante o reconhecimento e a correlativa delimitação dos interesses, o equilíbrio dinâmico de todos os tipos de interesses socialmente discrimináveis e relevantes (interesses individuais, públicos e sociais), estabelecendo simultaneamente os meios adequados à garantia desses mesmos interesses assim reconhecidos e delimitados. Trata-se de uma “concepção do direito segundo a qual ele tem fins exclusivamente sociais, da doutrina segundo a qual o direito existe para garantir interesses sociais, públicos e individuais, exigindo que os juristas estejam em contacto com a realidade – considerações abstractas e teóricas não bastam para justificar uma norma jurídica” (R. POUND, Lo spirito della “Common Law”, trad. it., 178). E a implicar um “sistema jurídico, não como um sistema de limites negativos dirigidos a garantir o mero exercício 3 dos direitos, mas antes como uma instituição social com o fim de conseguir positivamente a realização dos fins sociais” (Ibid., 178). É que, como expressamente acentua POUND (Introdução à Filosofia do Direito, trad. port., 49), “no final do século passado e princípio do actual” ter-se-ia desenvolvido “um novo método de pensar: os juristas começaram a pensar mais em termos de necessidades, desejos ou expectativas humanas do que de vontades humanas; principiaram a cogitar que o que lhes competia fazer não era simplesmente igualar ou harmonizar vontades, mas, se não pudessem igualar, pelo menos harmonizar a satisfação de necessidades; (...) começaram a pensar na finalidade da lei, não como um máximo de auto-afirmação, mas como um máximo de satisfação de necessidades”. Mudança de atitude em que, como se vê, ecoa manifestamente a influência tanto de BENTHAM como de IHERING, e que, acabando verdadeiramente por significar a intencional superação de uma perspectiva político- -social e juridicamente liberal por uma perspectiva orientada já por um compromisso e empenhamento sociais (v., aliás, expressamente POUND, Lo spirito, cit., 176, ss., ao acentuar que “o direito está a entrar numa nova fase de desenvolvimento (...) uma fase de socialização do direito”), se traduzia num expressamente assumido “utilitarismo social” (Lo spirito, cit., 185, ss.) que convocava um pensamento de finalismo instrumental – “um ponto de vista instrumental” (POUND, Las grandes tendencias del pensamiento jurídico, trad. esp., 198) – e em que “as instituições legais e as doutrinas jurídicas constituem os instrumentos de uma forma especializada de controlo social” (POUND, Sociología y Jurisprudencia, in G. GURVITCH/W. E. MOORE, La Sociología del Siglo XX, I, 275). De que modo, no entanto, se haveria de constituir metodicamente o pensamento jurídico para obedecer àquela concepção e realizar este objectivo? O sentido da resposta era inequívoco e nele se tocava o ponto decisivo: se “o problema da ética, da jurisprudência e da política” teria sido “um problema de avaliação, um problema de encontrar critériospara julgar o valor relativo de interesses” (Introdução, cit., 49), agora, e no pressuposto de um fundo cepticismo “a respeito das possibilidades de um juízo absoluto de valor” (Ibid., 52), tratar-se-ia antes de “o problema de um equilíbrio compatível com a manutenção de todos os interesses, com a resposta a todas as necessidades e exigências, a todas as expectativas que estão envolvidas na existência social civilizada”, ou, de outra forma, e que BENTHAM poderia subscrever, impor-se-ia um modelo de direito “em que se dê satisfação no máximo que for possível ao todo de necessidades humanas, com um mínimo de sacrifícios” (Introdução, cit., 54) – “Não acredito, insiste POUND (Ibid., 52), em que o jurista tenha algo mais a fazer do que 4 reconhecer o problema [da dificuldade quanto aos critérios de valor] e compreender que este se lhe apresenta como sendo uma questão de garantir todos os interesses sociais, enquanto puder, de manter o equilíbrio ou harmonia entre esses interesses, enquanto for compatível com a garantia de todos eles”; pelo que “a ordem jurídica consiste no processo de ajustar pretensões contraditórias e de encontrar soluções de compromisso entre necessidades ou desejos contrapostos, num esforço para dar eficácia a tantos quantos possamos no aqui e agora em que as necessidades se impõem” (Las grandes tendencias, cit., 207, s.). E daí a proposta, decerto a mais original, de converter o pensamento jurídico numa “engenharia social” ou de reestruturá-lo segundo uma modalidade de “engenharia social” – compreendendo a ordem jurídica “como a tarefa ou uma série de grandes tarefas de engenharia social, como um meio de eliminar fricções e evitar desgastes, na medida do possível, e satisfazer as inumeráveis necessidades humanas com base numa reserva relativamente pequena de bens materiais”, e nessa linha igualmente o direito como “o conjunto de conhecimentos e de experiência com cuja ajuda esta parte de engenharia social pode levar-se a cabo” (Las grandes tendencias, cit., 206). Ideia que POUND retoma no último capítulo do seu The Spirit of the Common Law, dedicado à “razão jurídica”, nestes termos: “Consenti que use termos de engenharia, que fale de uma passagem de uma interpretação política ou idealístico-moral a uma engenheirística; consenti que considere o problema do fim do direito em termos de uma grande obra ou de uma série de grandes obras de engenharia social; consenti que diga que esta mutação consiste em pensar não numa abstracta harmonização da vontade de cada indivíduo, mas numa concreta garantia e realização dos interesses humanos. De um ponto de vista humano a tragédia central da existência é a de que os bens materiais dessa existência não são suficientes para todos, que enquanto os desejos e as exigências de cada indivíduo são infinitos, os meios materiais para os satisfazer são limitados (...). O fim da ordem jurídica só pode ser, pois, o de impedir o desencontro entre as classes e de eliminar o desperdício dos recursos garantindo-lhes a mais larga distribuição, de modo tal que, se não tudo o que se deseja possa ser assegurado, ao menos que seja distribuído a cada um o máximo possível; e considerando o discurso nestes termos, procuramos satisfazer o maior número de exigências e necessidades humanas – i. é, grande parte do global complexo dos interesses – com o mínimo sacrifício desses mesmos interesses” (segundo a trad. cit., 177). 5 Proposta a que POUND não logrou dar, todavia, uma base teórica concludente e projectar num modelo metodicamente eficaz. A nível teórico terá de dizer-se que a ambiguidade básica deste pensamento, que tendia afinal a confundir, como resulta dos enunciados transcritos, a intencionalidade jurídica com a intencionalidade económico- -social, não foi de todo eliminada ao considerar POUND o sentido específico desta “engenharia social” (“termo utilizado no mesmo sentido que „engenharia industrial‟”, esclarece em Sociología y Jurisprudencia, loc. cit., 275). O pensamento jurídico deveria realizar essa “engenharia social” no modo de uma “ciência aplicada”, que pressupõe uma “ciência da sociedade” (“Na jurisprudência sociológica o problema reveste um aspecto particular, ou seja: como realizar esta tarefa de engenharia social mediante a ordem legal, esse conjunto de normas estabelecidas (...). Trata-se de um problema ao mesmo tempo jurídico e prático que exige, por assim dizer, uma ciência aplicada. E, no entanto, a jurisprudência sociológica, no seu sentido mais amplo, não considera este problema como exclusivamente seu. O direito, qualquer que seja o significado que se lhe dê, constitui só uma fase muito especializada do que – num sentido amplo – designamos a “ciência da sociedade” ” – Ibid., 75). Depois, essa “teoria da sociedade”, que assim se esperaria e seria capital, não foi em POUND além de uma “teoria dos interesses”, e esta não passou do que já se disse: uma distinção especificante entre interesses individuais, interesses públicos e interesses sociais. E se podemos aceitar que uma teoria dos interesses tinha em todo este pensamento a importância de um elemento nuclear, tudo estava, porém, em passar dessa teoria à sua operacionalidade prática, convertendo-a justamente numa “engenharia”, num método finalisticamente técnico- -social, já da prescrição e institucionalização, já de decisão. E nesse ponto a inconcludência ainda foi maior. Com efeito, a referência, que se pretendia essencial, a interesses – em lugar da referência a valores, própria esta do pensamento prático tradicional –, e enquanto eram os interesses entidades ou factores empíricos (psicológica e sociologicamente empíricos) que determinariam os homens uns perante os outros na convivência social e por isso exigiam uma qualquer ordenação (“Definimos o interesse como um desejo ou uma necessidade que os seres humanos, já individual, já colectivamente, procuram satisfazer e, portanto, implicam a regulamentação das relações e condutas humanas” – Sociología y Jurisprudencia, loc. cit., 304), esperaria coerentemente uma de duas soluções metódicas. Ou um método de ponderação dos interesses que permitisse decidir da sua opção ou delimitação relativa, fosse em geral, fosse em concreto; ou um método 6 de organização dos mesmos interesses que num reconhecimento compossibilitante lhes garantisse instrumentalmente a maior eficácia (os melhores efeitos de realização). O primeiro método culminaria decerto nos critérios justificativos da decisão-opção e o segundo traduzir-se-ia numa técnica de estruturação e realização consequencialmente adequada – aquele ainda poderia dizer-se na continuidade dos objectivos práticos tradicionais do jurídico, posto que no plano das intenções determinantes o axiológico- -normativo se disse substituído pelo funcional-sociológico empírico; mas este remetia- -nos de todo a um outro mundo e a um outro discurso, ao mundo da técnica (não da prática e da inter-acção) e a um discurso de eficácia (não de validade e de fundamentação), que efectivamente se poderia qualificar de “engenharia”. E o certo é que nem um, nem outro desses métodos POUND logrou oferecer-nos – nem mesmo sabemos qual deles estaria realmente na sua preferência, pois da expressão do seu pensamento tanto se pode admitir a intenção quer a um, quer a outro. Quanto ao primeiro método, deverá reconhecer-se que a sua recusa inicial de considerar o problema da valoração – decerto numa preocupação estritamente empírico-sociológica, na linha da Wertfreiheit de todo o pensamento cientista – não foi compensada pela definição de critérios de outra índole – critérios de que se não poderia prescindir tanto no reconhecimento comona ponderação dos interesses e que da análise, classificação e discriminação só sociológica desses interesses a reconhecer e a ponderar, em que POUND fundamentalmente se manteve, se não podiam decerto inferir. Daí que se tenha POUND limitado neste ponto decisivo – e a que, expressamente reconhecia, o pensamento jurídico não pode escapar (“Difficult as it may be, the problem of values is one from which the science of law cannot escape” – Social Control through Law, 103, apud FIKENTSCHER, ob. cit., 237, n. 52) – a dizer que para a ponderação e determinação dos interesses se devia ter em conta a experiência e a observação dos efeitos, o processo do trial and error, a experimentação, o fair play e ainda, concessão aqui ao pensamento tradicional, as representações de valor dominantes na comunidade (cfr. FIKENTSCHER, ob. cit., 231, e ainda 234-236). Lacuna metódica a fazer com que a sua “jurisprudência sociológica” fosse afinal mais “sociológica” (ou sociologia) do que “jurisprudência” – e que é, aliás, comum a todos os pensamentos jurídico-metodológicos de perspectiva sociológica, pois todos eles, ao imputarem aos interesses ou a factores sociologicamente análogos o relevo e a função determinantes, tendem sempre a ver neles simultaneamente o “objecto de valoração” e o “critério de valoração”. Erro ou impossibilidade metódica a que, como sabemos, também não ficou imune a própria Interessenjurisprudenz. Quanto 7 ao segundo método possível, aquele a que apesar de tudo não pode deixar de associar-se POUND, o certo é que o grande jurista americano pouco mais fez do que dar-lhe o nome, “social engineering”, e sugerir o seu sentido geral, mas sem o ter na verdade definido no seu concreto modelo metódico. Deve todavia anotar-se que, na linha do que pudemos dizer um possível primeiro método da sociological jurisprudence, um outro autor significativo, e que vemos sempre associado a essa perspectiva do pensamento jurídico americano, concorreu de modo importante para suprir até certo ponto as carências que apontámos a POUND relativamente a essa modalidade metódica. Referimo-nos a BENJAMIN N. CARDOZO e aos quatro critérios ou “métodos” pelos quais, segundo ele, se deviam normativamente determinar as decisões jurídicas concretas – e que enunciou especialmente nos seus livros The Nature of the Judicial Process, 1921, e The Growth of the Law, 1924, resultantes de uma série de conferências proferidas em Yale (utilizámos as traduções portuguesas sob o título A natureza do processo e a evolução do direito). Mediante uma análise do efectivo “judicial process” ou do modo específico do decidir judicial, que se apoiava particularmente na sua própria experiência de juiz e se orientava pela intenção última de conciliar a vinculação da normatividade jurídica vigente com a realidade, os interesses e aspirações sociais, que permitisse uma adequada evolução do direito, propôs-se obter resposta para uma série de questões metódicas, expressamente formuladas nestes termos: “Que faço eu quando decido uma causa? A que fontes de informação recorro como guia? Em que proporção permito que contribuam para o resultado? Em que proporção deveriam elas contribuir? Se um precedente é aplicável, em que circunstâncias me recuso a segui-lo? Se nenhum precedente é aplicável, de que modo alcanço a regra que se tornará um precedente para o futuro? Se estou a procurar a consistência lógica, a simetria da estrutura legal, até onde estenderei as minhas investigações? Em que ponto será detida a investigação por algum costume discrepante, por alguma consideração do bem-estar social, pelos meus próprios ou pelos comuns standards de justiça e de ética?”. Perguntas que um jurista e juiz europeu continental também se poderia pôr, se a referência directa aos precedentes fosse substituída por uma referência a normas jurídico-legais, e a que BENJAMIN N. CARDOZO tentou responder com a sua particular proposta metodológica. Assim, começa por dizer que por vezes é óbvia a fonte do direito que o juiz “incorpora no seu julgamento”: “a regra que se ajusta ao caso pode ser fornecida pela constituição ou pela lei; se assim acontece, o juiz não vai além; verificada a correspondência, o seu dever é obedecer – a constituição supera a 8 lei, mas esta, se conforme à constituição, supera o direito dos juízes; neste sentido, o direito criado pelos juízes é secundário e subordina-se ao direito criado pelos legisladores”. Pode verificar-se, todavia, que este ius scriptum, ainda que devidamente interpretado e integrado, não ofereça o exigível e adequado critério jurídico do caso decidendo, e nessa hipótese “o juiz deve dirigir a sua atenção à common law” na procura de um precedente “adaptável ao ponto em questão”, já que “stare decisis é, pelo menos, a norma operante diária do nosso direito” – não deixe de se ter presente que era no universo jurídico da common law que CARDOZO pensava. Simplesmente, “o problema enfrentado pelo juiz é, na realidade, um problema duplo: ele deve, em primeiro lugar, extrair dos precedentes o princípio já assente, a ratio decidendi; e, a seguir, determinar o sentido ou a direcção em que este princípio deverá mover-se e desenvolver-se, pois de outro modo perderá toda a sua força e morrerá”. E o que se diz para as rationes decidendi dos precedentes, dir-se-ia analogamente para as normas do ius scriptum: os imediatos critérios jurídicos que de umas e de outras se obtenham deverão remeter-se aos princípios que exprimem e esses princípios só quando compreendidos nas suas possibilidades de desenvolvimento e evolução são susceptíveis de revelarem toda a sua verdadeira “força normativa”. Justamente aqui interviriam os quatro métodos decisivamente a ter em conta: “a força normativa de um princípio pode ser exercida ao longo da linha da progressão lógica: esta eu chamarei a regra da analogia ou o método da filosofia; ao longo da linha do desenvolvimento histórico: esta eu chamarei o método da evolução; ao longo da linha de costumes da comunidade: esta eu chamarei o método da tradição; ao longo das linhas da justiça, bem-estar moral e social, os mores actuais: a este eu chamarei o método da sociologia”. Se o método lógico-filosófico ou da congruência lógica, com a sua revelação das analogias e das simetrias, exclui o arbítrio e garante a imparcialidade e a igualdade, o certo é que, por um lado, “a uniformidade deixa de ser um bem quando se torna uniformidade de opressão”, e, por outro lado, “a tendência de um princípio a expandir-se até ao limite da sua lógica pode ser contrabalançada pela tendência a confinar-se dentro dos limites da sua história” – “algumas concepções do direito devem a sua actual forma quase que exclusivamente à história; só podem ser compreendidas quando encaradas como uma evolução histórica; na sucessão destes princípios, a história é capaz de prevalecer sobre a lógica ou a simples razão”. Depois, “se a história e a filosofia não bastam para fixar a direcção de um princípio, o costume pode fornecer-nos elementos para isso” – identificado o costume, neste sentido, com “a moralidade dos costumes, o standard dominante do 9 procedimento, os mores da época”, mores que, por sua vez, encontrarão expressão nas “exigências da religião, da ética ou do sentido social da justiça, formuladas em credo ou em sistema, ou imanentes na consciência comum”. Estes métodos podem, no entanto, concorrer uns com os outros, além de que é necessário determinar os limites da sua correspectiva relevância – para resolver esta questão, e mesmo como ultima ratio metodológica, tem então lugar o método sociológico. É ele “o árbitro entre os outros métodos, determinando, em última análise, aescolha de cada um, pesando os seus pedidos concorrentes, colocando limites às suas pretensões, balanceando-os, moderando-os e harmonizando-os”, e isto porque “a causa final do direito é o bem-estar da sociedade”: “a lógica, a história e o costume têm o seu lugar; faremos o direito conformar-se a eles quando pudermos, mas apenas dentro de certos limites; o fim que o direito serve dominará todos eles”; “quando as necessidades sociais exigem uma forma, de preferência a outra, acontece algumas vezes termos de vencer a simetria, ignorar a história e sacrificar o costume a fim de atingir outros fins mais amplos”. Sendo o fundamento para tanto “a concepção segundo a qual o fim do direito determina o rumo da sua evolução”, pois essa concepção “que foi a grande contribuição de IHERING para a teoria da jurisprudence, encontra o seu meio, o seu instrumento, no método sociológico; o principal não é a origem, mas o fim; não pode haver sabedoria na escolha de um caminho, a menos que se saiba até onde ele conduz; a concepção teleológica da função do direito deve estar sempre no espírito do juiz”. A análise do “processo judicial” vem pois a dar no seguinte: “a lógica, a história, o costume, a utilidade e os standards aceites do comportamento correcto são as peças que, separadamente ou em combinação, impulsionam o progresso do direito – qual dessas forças dominará num caso concreto, eis o que dependerá, largamente, da importância ou do valor comparado dos interesses sociais que, em consequência, serão promovidos ou prejudicados”. “E se perguntardes como saberá o juiz que um interesse sobrepuja outro, poderei responder-vos apenas que o seu conhecimento deverá provir das mesmas fontes que inspiram o legislador, a experiência, o estudo e a reflexão – em resumo, da própria vida”. Neste pensamento, assim sintetizado, não podemos ver já um pensamento jurídico de radical redução sociológica, mas antes um pensamento jurídico normativo de orientação sociológica. O que o especifica não é uma redução do jurídico à factualidade social, e sim a tentativa de vencer a indeterminação, que todo o direito vigente revelará na sua realização concreta, mediante uma determinação integrante e evolutivamente reconstrutiva de sentido predominantemente social e que haveria de ser possibilitada já 10 pelo próprio desenvolvimento lógico da juridicidade institucionalizada, já pelo apelo ao ethos socialmente dominante, já pela intenção subordinante e decisiva de um utilitarismo e finalismo sociais de que o direito haveria de ser instrumento. Só que esses utilitarismo e finalismo sociais, que seriam a ultima ratio da juridicidade, acabam por remeter-se tão-só à teleologia dos “interesses sociais” – no que vemos a reafirmação da nota caracterizadora de todo o sociologismo jurídico – e interesses sociais para os quais vêm também a faltar os critérios normativos da sua ponderação jurídica: a “experiência”, “o estudo e a reflexão”, a “própria vida” têm decerto a ver com essa ponderação, mas não lhe oferecem sem mais os critérios metodológica-normativamente exigidos e fundados. Estamos assim perante um pensamento jurídico que no plano filosófico assume uma concepção finalístico-instrumental do direito e que no plano metodológico estrito, e como consequência daquela concepção, ou acaba por se mostrar com a mesma carência de fundamentos e critérios normativos de que padece todo o sociologismo jurídico, de que afinal fundamentalmente se não afasta, ou, na lógica dos seus utilitarismo e finalismo sociais, aponta implicitamente para a social engineering. Pois se esta não foi assumida metodicamente de modo expresso e mesmo em alguns pontos a vemos contrariada – assim particularmente no apelo aos critérios de valores ético-culturais ou na pressuposição de uma referência axiológico-comunitária, que exigirá um discurso de validade e excluirá um discurso simplesmente instrumental – não pode também negar-se que ela vai naquela linha de coerência ou no quadro do desenvolvimento lógico e no sentido último deste pensamento. 2. Redução científico-tecnológica do pensamento jurídico (“social engineering”). Lançada a ideia, nos termos expostos, do pensamento jurídico como uma “engenharia social”, só nos nossos dias deparamos todavia com a tentativa de a estruturar de modo metodicamente consequente. O objectivo é o que sabemos: trata-se de convocar o pensamento jurídico (encarne ele no legislador, no juiz ou no jurista em geral) à preparação ou definição, através do direito, das soluções socialmente mais convenientes – não as soluções axiológico-normativamente válidas e normativamente fundadas e sim as soluções finalístico-programaticamente mais oportunas ou úteis e 11 instrumentalmente adequadas ou eficazes – no pressuposto de uma básica preferência pela pragmática utilidade (e a sua racional eficiência) relativamente à axiológica justiça (e à sua apelativa normatividade): o técnico-sociologismo é sempre um utilitarismo (cfr. H. BATIFFOL, Problèmes, cit., 90, ss.; sobre a alternativa, no sentido aludido, entre a “justiça” e a “utilidade”, v. o conjunto dos ensaios que o tomo 26, 1981, dos Archives de Philosophie du Droit, agrupou sob o título L'utile et le juste). Aquele objectivo com esta preferência, e em que o jurista, de “prudente” ou sujeito de juízos práticos de validade e normativos, passaria a “engenheiro” ou técnico social, tem a ver com a actual opção fundamental que já conhecemos quanto ao sentido da praxis e no domínio dos problemas práticos, e particularmente prático-sociais, em que os valores se substituem pelos fins (subjectivos) e os fundamentos (normativos) pelos efeitos (empíricos), em que a legitimação axiológica (por valores e princípios normativos) cede o lugar à legitimação pelos efeitos. E deste modo também o entendimento de todo o universo jurídico se transformaria: o direito em si compreender-se-ia como uma estratégia político-social funcional e finalisticamente programada, a decisão concreta como uma táctica de realização ou execução consequencial, a própria função judicial como uma instituição funcionalmente adequada a essa estratégia táctica. E dispomos já de modelos metódicos especificamente dirigidos a cada um desses momentos da jurídica engenharia social. α) Quanto ao direito em si, consideremos o modelo que HANS ALBERT, assumindo as sugestões de POPPER, propõe para uma por ele dita prática racional (H. ALBERT, Traktat über rationale Praxis, 1978). Trata-se, no fundo, da aplicação ao domínio jurídico-social do modelo epistemológico, e de racionalidade, definido pelo “racionalismo crítico”. Segundo esse modelo, como se sabe, a ciência é a resolução de problemas pela formulação de hipóteses sistematicamente explicativas (teóricas), sujeitas não a uma directa comprovação ou verificação (que seria impossível, por razões que aqui se omitem), mas a urna crítica “falsificação” (invalidação) através de experiências decisivas que solicitariam outras hipóteses-explicações alternativas com que as primeiras se haviam de confrontar. Abandona-se deste modo tanto a ideia clássica da metafísica “fundamentação absoluta” como o racionalístico “princípio da fundamentação suficiente” (relativamente aos quais se mostraria insuperável o “trilema de Münchhausen”: essa ideia e esse princípio ou exigiriam um regresso ad infinitum, ou acabariam por fechar-se num círculo lógico, ou teriam de aceitar a interrupção da justificação infinita por uma decisão dogmática), a favor de uma “ideia de exame 12 crítico” (exame racional-crítico de hipotéticas soluções propostas sempre em alternativa com outras hipotéticas soluções possíveis); e substitui-se igualmentea concepção meramente contemplativa e passiva da ciência pela concepção do “carácter activo do conhecimento”. A ciência será uma prática criadora (constitutiva de conhecimentos ou soluções de problemas), cujo directo objectivo metódico é menos a verdade, no seu também clássico e metafísico entendimento, do que a crítica denúncia do erro, num falibilismo fundamental em que as soluções são sempre criticamente provisórias e revisíveis. Modelo este, epistemológico e de racionalidade, que HANS ALBERT considera efectivamente aplicável ao universo prático, à resolução dos problemas da prática social, permitindo uma crítico-racional organização e orientação sociais (uma social Steuerung) – pelo que, como também afirma, não haveria fundamento para uma distinção essencial, em perspectiva metódica, entre a razão teórica e a razão prática. Modelo aí aplicável no modo seguinte. No pressuposto do contexto histórico-cultural, que se assumiria num pluralismo aberto à discussão crítica, determinar-se-iam heuristicamente os “fins” e as “ideias” regulativas que a sociedade se proporia e que lhe constituiriam a sua concepção ou o seu plano de sociedade (o seu “programa político”). Para a realização desses fins e o cumprimento dessas ideias, pela resolução dos problemas que provocassem, constituir- -se-iam metodologicamente modelos (modelos institucionais) ou projectos de solução – perante soluções alternativas sempre a ter presentes – que deviam obedecer tanto ao princípio da congruência (ou da possibilidade sistemática das soluções no quadro do global contexto científico-cultural) como aos princípios da realizabilidade e da explicabilidade. O princípio da realizabilidade, para aferir da possibilidade da solução proposta relativamente às circunstâncias a que vai referido, já que “dever implica poder”; o princípio da explicabilidade, para que a construção e a aplicação da solução fossem esclarecidas pelo conhecimento científico (a obter por conhecimento monológico ou de legalidades naturais) dos seus elementos constitutivos, e assim tanto da condicionalidade empírica (positiva ou negativa) como das consequências desses elementos – “explicar um fenómeno sobre base monológica significa mostrar como ele, em princípio, pode ser evitado ou provocado”. Modelos e soluções deste modo construídos cuja aceitação se haveria de decidir, em último termo, pelos efeitos que deles resultassem, em confronto com os efeitos de que seriam susceptíveis os modelos de soluções alternativas. E seriam sobretudo duas as conclusões a sublinhar nesta proposta de uma prática racional que o direito e o pensamento jurídico deveriam 13 também assimilar. Por um lado, as soluções assim oferecidas seriam só soluções hipotéticas (não dogmáticas) sempre submetidas a uma “experimentação racional social” (ou uma “falsificação”) em função das suas condições de realização e dos seus efeitos; por outro lado, estaríamos perante uma tecnologia social sem carácter normativo, a qual, se satisfazia as exigências da ciência (ou as exigências do nosso tempo de ciência), levaria simultaneamente superado o tipo de pensamento teológico- -dogmático que sobreviria, segundo H. ALBERT, no tradicional pensamento prático- -normativo. β) Quanto à decisão concreta, consideremos o modelo de decisão jurídica definido, entre outros, por THOMAS W. WÄLDE (Juristiche Folgenorientierung, 1979) e WOLFGANG KILIAN (Juristiche Entscheidung, 1974) – e que resulta da aplicação à decisão jurídica da “teoria da decisão” (teoria teórico-analítica da decisão, já atrás referida). Começa-se aí por observar que o tradicional método dogmático-normativo não seria na realidade o determinante das soluções-decisões concretas, que não passaria esse método de uma forma de justificação ou legitimação a posteriori dessas decisões, obtidas na verdade por pragmáticas ponderações teleológicas aferidas pelos efeitos, e daí desde logo que fosse lícito pensar a substituição daquele método tradicional por esquemas metódicos da racionalidade deste tipo de ponderações – o que seria justamente conseguido pela aplicação à decisão jurídica da científico-analítica “teoria da decisão”. E o próprio sistema jurídico actual justificaria essa substituição, com a sua contínua “passagem de leis conservadoras e orientadas por regras para leis de sentido evolutivo e orientadas pelos efeitos” (WÄLDE), com “o avanço de leis orientadas planificado-funcionalmente e o recuo de leis constituídas clássico-condicionalmente” (KILIAN). Como ideia básica dessa aplicação, teríamos que “a alternativa jurídica na concreta situação consiste em regra na decisão sobre a questão de saber se um determinado conceito jurídico pode ser ou não considerado como preenchido”, e a resposta afirmativa ou negativa resultaria de saber que efeitos uma ou outra dessas respostas provocaria e se esses efeitos, referidos ao fim da norma e segundo a perspectiva do decidente (já que “ele tem o poder de dar uma interpretação autêntica ao conceito”), seriam ou não desejáveis. Nesse sentido, tudo dependeria da determinação concreta das “condições de aplicação” do conceito-norma, já que só em referência a essas condições se poderiam definir as alternativas da norma na situação concreta. Mas essa determinação, que coincidiria com a “significação pragmática” do conceito naquela situação, apenas se poderia realizar mediante uma selectiva valoração das circunstâncias 14 concretas (no quadro embora das condições de aplicação admissíveis em geral pelo conceito ou tendo em conta que essas condições admissíveis e ainda não concretamente valoradas oferecem “em termos ideais todos os pontos de vista relevantes para a interpretação”) que seja orientada pelos efeitos da decisão, os quais, por sua vez, seriam ou não desejáveis em referência ao fim da norma. Ou seja, o fim da norma (“a situação descrita ou descritível que deve ser imediatamente alcançável com uma norma concreta”) permitirá ajuizar positiva ou negativamente dos possíveis efeitos alternativos e esses efeitos ajuizados serão o crédito da valoração que levaria ou não a reconhecer verificadas as condições de aplicação da norma. Deveria, pois, reconhecer-se uma “conexão entre situação concreta (Sachverhalt), fim da norma e efeitos da decisão, constituída pragmaticamente através das condições de aplicação”; depois, os efeitos da decisão, considerados segundo a sua probabilidade, deveriam submeter-se aos conhecidos axiomas, próprios daquela “teoria da decisão”, da “comparação”, da “assimetria” e da “transitividade” para ser crítico-racionalmente possível a escolha alternativa; e esta escolha, se deveria orientar-se pelo fim da norma, caberia em último termo à responsabilidade decisória do julgador, que também não ignoraria as regras teórico-analíticas da decisão (desde logo, as minimax e maximax). Este método não se proporia, assim, oferecer um “algoritmo de solução” enquanto reconhece a intervenção pessoalmente decisiva do julgador – pelo que “a decisão plenamente racional continua a ser só uma concepção desejável” –, mas enunciaria as condições da sua máxima racionalidade, e com essas condições a possibilidade do seu intersubjectivo contrôle: situar-se-ia “num grau intermédio, mas mais próximo da prática, entre a utopia de um sistema de decisão axiomático-dedutivo e a „arte‟ da obtenção heurística do direito pela aplicação do „método jurídico‟”. γ) Relativamente à função judicial, é bem elucidativo o modelo de juiz tecnocrata (“normativo-tecnocrático”) proposto e caracterizado, p. ex., por F. OST (Juge pacificateur, juge-arbitre, juge entraîneur – Trois modèles de justice, in Fonction de Juger et Pouvoir Judiciaire, Bruxelles,1983). O modelo de “justiça científica”, que “é essencialmente funcional, teleológica, instrumental, evolutiva e pragmática”, e segundo a qual “é tida como justa a solução mais adequada ao objectivo proposto pelo planificador social, sendo neste caso secundária a consideração de valores materiais ou de regras formais”. Será este um “modelo post-liberal”, que consagraria “o declínio da rule of law”, ou onde “the rule interpretative model” – modelo de decisão de casos concretos pela aplicação de valores ou regras gerais pré-estabelecidas – se superaria por 15 “the judicial-power model” (PH. SELZNIK), aquele em que o juiz seria constitutivamente interventor, criador autónomo das soluções exigidas pelos fins e interesses sociais. Neste sentido se diz que um “juge-entraîneur” se substituirá ao “juiz-árbitro” do sistema legalista-liberal, e que lhe competirá “participar na realização de políticas determinadas e assegurar, desse modo, a melhor regulação dos interesses em causa; e se lhe cabe ainda pôr fim a diferendos fazendo a aplicação da lei, deve dizer-se que a sua intervenção pode, no entanto, situar-se também tanto antes como depois da decisão proferida nesse sentido – antes que uma controvérsia se forme, o juiz é investido de uma missão de prevenção, de conselho, de orientação; depois que as medidas tenham sido sugeridas ou ordenadas, o juiz mantém-se responsável pelos interesses em causa e pode, a todo o momento, rever as soluções, que não foram dadas senão rebus sic stantibus”. É que a sua “nova missão” imporia ao juiz que actue “para além do campo fechado dos direitos subjectivos determinados pela lei – ele é responsável pela conservação e a promoção de interesses finalizados por objectivos sócio-económicos e regulados por sistemas de normas técnicas correspondentes”, compete-lhe um “instrumentalismo dinâmico” e de oportunidade que o afasta do “aplicador passivo de regras e princípios pré-estabelecidos” e o faz “colaborar na realização de finalidades sociais e políticas: o seu papel consiste em comparar sistematicamente objectivos alternativos com vista aos seus resultados respectivos e aos valores que lhe estão subjacentes”. O que não seria senão uma consequência do Estado-providência da sociedade post-industrial (Estado do “intervencionalismo sob a forma de redistribuição, de planificação, de subsidiação, de contrôle, de orientação, de investimento, etc.”) e igualmente de um direito correlativo, onde “as obrigações cujo respeito o juiz deve assegurar tomam a forma de directivas flexíveis ou de standards, onde os direitos subjectivos aos quais ele assegura a sanção tomam a forma de simples interesses e onde conceitos precisos como os da „cessação de pagamentos‟ ou de „culpabilidade‟ são substituídos por outros como a „viabilidade duma empresa‟ ou a „perigosidade‟ de um indivíduo”. Pois tudo isso obrigaria o juiz a decidir “inspirando-se nas finalidades sociais e políticas que presidam às instituições e mecanismos no seio dos quais se oferecem estes standards, interesses e conceitos”. E daí “uma mutação fundamental que transforma progressivamente o juiz em administrador”, que o convoca a “operar como agente da mudança social”, segundo um “método substancial, pragmático e instrumental”, e mediante o qual ele resolve os conflitos de interesses “inspirando-se nas finalidades económicas, sociais, etc., que lhe parecem dever prevalecer”. Assim 16 como uma “instrumentalização do direito”, que o converte numa “técnica de gestão que visa promover o desenvolvimento económico e social óptimo da cidade”. E na base de tudo “a ideologia tecnocrática”, com a sua “legitimação pela performance ou a eficiência: uma coisa é boa se ela se mostra adequada ao fim prosseguido e este fim é ele próprio desejável se produz resultados que satisfaçam uma finalidade mais geral; pouco a pouco constitui-se um sistema finalizado no seio do qual a lógica da performance acaba por sobrepor-se à própria desejabilidade do objectivo prosseguido, de sorte que uma relação instrumental ou causal (a relação meio-fim) acaba por se substituir a uma relação valoradora ou normativa – o conhecimento das relações entre os elementos do sistema e a técnica da sua manipulação eficiente ocupam o lugar da ética”. 17 3. O pensamento tecnológico-social económico – a “análise económica do direito” (Law and Economics) 1. Tópicos gerais a) Trata-se de submeter o jurídico a uma perspectiva económica (de análise e de solução dos problemas jurídicos na perspectiva da ciência da economia), em todos os níveis do jurídico (prescritivo-legislativo e doutrinal e decisório-judicial). Numa dupla intenção, já numa intenção teorético-descritiva e de análise crítica (momento teorético ou positivo), já numa intenção reformadora e regulativa (momento normativo), e em que a determinação última e decisiva fosse no sentido da eficiência (económica). Que tanto é dizer: aos valores e outros factores a que tradicionalmente se imputava a determinação do direito substituía-se nessa mesma determinação um valor ou factor económico, o da eficiência definido pela economia. α) Segundo PARETO (o “óptimo” de PARETO): um estado de coisas (P) é superior a outro estado de coisas (Q), se, e só se, ao verificar-se a transformação de P a Q, não fica nenhum indivíduo pior do que antes e se verifica que pelo menos um deles melhora de situação (segundo a sua própria concepção do bem-estar) – a transformação social que produza este resultado é uma transformação eficiente; β) As dificuldades de avaliação e de cálculo que o critério de PARETO implicaria determinou a sua correcção por um critério de “compensação potencial”, segundo KALDOR-HICKS (Welfare Propositions of Economics and Interpersonal Comparisons of Utility, in Economic Journal, 49, n.º 549, 1939): um estado de coisas (P) seria agora eficiente, se, e só se, a sua transformação em outro estado de coisas (Q), e posto que sempre se verificam ganhadores e perdedores, tivesse por resultado que os ganhadores de algum modo compensem socialmente os perdedores; γ) Com o objectivo de superar tanto as dificuldades de cálculo que persistiam como as considerações subjectivo-individuais dos dois critérios anteriores, e numa alternativa mais objectiva que tivesse antes em vista o aumento da “utilidade total”, RICHARD A. POSNER, Economic Analysis of Law, 4.ª ed.; The Economics of Justice (col. de estudos); Some Uses and Abuses of Economics in Law, in The University of Chicago Law Review, vol. 46, n.º 2, 1979), propôs o critério da “maximização da riqueza” (wealth maximization) – sendo que “riqueza é o valor em dólares ou em moeda equivalente (...) do todo na sociedade; 18 mede-se pelo que as pessoas estão dispostas a pagar por algo ou, se já o possuem, o que exigiriam em dinheiro para desfazer-se dele; a única preferência que conta num sistema de maximização da riqueza é, portanto, aquela que é sustentada pelo dinheiro, por outras palavras, aquela que se regista no mercado”, de modo que através dessa maximização a eficiência se definiria nestes termos: “„eficiência‟ significa fruição dos recursos económicos de um modo tal que „o valor‟ – i. é, a satisfação humana medida pela vontade do consumidor de pagar por bens e serviços – é maximizado”. Pelo que a maximização da riqueza verificar-se-ia quando os recursos acabam por pertencer àqueles que mais os valorizam, posto que “determinada pela vontade de pagar”. Não se trata, pois, do direito da economia ou sequer das relações entre o direito ea economia, mas de pensar o direito segundo a economia – de ajuizar e de orientar o direito de um ponto de vista económico. b) Se o conceito de economia postulado é o que se tornou comum depois de ROBBINS – a economia como ciência que estuda os comportamentos humanos referidos à relação entre fins e meios escassos, a implicar, por isso, escolhas ou utilizações alternativas, ou, na própria formulação de POSNER (Economic Analysis of Law, cit. 3), “economics is the science of rational choise in a world, our world, in which resources are limited in relation to human wants” –, importa sublinhar que a perspectiva aqui especialmente em causa é a do neoclássico marginalismo, ao seu nível microeconómico, e orientada para uma economia de bem-estar (Welfare economics). Pelo que o relevante e o referente de análise são as decisões particulares no mercado em ordem à utilidade individual – é o cálculo dessa utilidade, nesse sentido e termos, que haverá afinal de ser considerado no juízo sobre a eficiência. c) Quanto ao seu campo de aplicação, há que considerar que, partindo de alguns problemas particulares – o problema jurídico-social dos acidentes, por GUIDO CALABRESI (Some Thoughts on Risk Distribution and the Law of Torts, in Yale Law Journal, 70 (1951), 499, ss.; e sobretudo a monografia The Cost of Accidents, A Legal and Economic Analysis, 1970), e o dos “custos sociais”, por RONALD COASE (The Problem of Social Cost, in Journal of Law and Economics, 3 (1960), 1, ss.) – a Law and Economics, ou a “análise económica do direito”, alargou-se, com POSNER e a partir dele, a todos os problemas e domínios jurídicos, do direito civil (propriedade, contratos, responsabilidade civil, família) ao direito penal, do direito comercial ao direito 19 financeiro, do direito público em geral ao processo civil e penal, etc. (v. assim in R. A. POSNER, Economic Analysis of Law, cit., passim). Se conjugarmos o objectivo referido na al. a), com este campo de aplicação, compreende-se que se impute ao movimento em causa o “ideal de uma economização do direito” (ERICH SCHANZE, Ökonomische Analyse des Rechts in den U. S. A.: Verbindungslinien zur realistischen Tradition, in HEINZ-DIETER ASSMANN, CHRISTIAN KIRCHNER, ERICH SCHANZE, Hrsg., Ökonomische Analyse des Rechts, 15). O direito, o universo jurídico, não teria a ver só exclusivamente com interesses, mas ainda, de um modo mais específico, com interesses apenas economicamente entendidos. d) Em coerência com o objectivo económico, o princípio fundamental da racionalidade prática aqui assumida seria o princípio da utilidade – o princípio racional da utilidade económico-social em alternativa ao princípio axiológico da “justiça”, posto que a economia só pensa em ternos económicos. “Dado que a ciência económica, acentua POSNER (ob. cit., 14) não dá qualquer resposta à questão de saber se a distribuição actual dos ganhos e da riqueza é boa ou má, justa ou injusta (...), também esta não pode portanto dar uma resposta à questão final de se uma eficiente distribuição dos recursos é coisa boa, justa ou socialmente ou moralmente desejável”. O que significaria, afinal, uma auto-limitação metodologicamente assumida que se converte em princípio determinante – sendo certo, como se verá adiante, que o “problema de distribuição” não poderá ser posto assim entre parêntesis ou iludido. Só que com uma especificação também quanto àquele princípio. Como se sabe, o princípio da utilidade foi enunciado, pela vez primeira, de uma forma expressa e sistemática por JEREMIAS BENTHAM (Introduction to the Principles of Morals and Legislation, 1789) e depois retomado por J. STUART MILL (Utilitarismus, 1863). E conhece-se também o sentido que originariamente lhe foi dado: no pressuposto de que o homem se determinaria fundamentalmente na sua vida em ordem a evitar a dor e a lograr o prazer, ou à satisfação dos seus desejos e interesses, e concebendo nessa base a “felicidade” como o excedente ou a prevalência do prazer sobre a dor, BENTHAM entendia, numa estrita lógica consequencialista, que qualquer acção ou prática seria boa ou correcta se maximizasse a felicidade daquele modo entendida – “A natureza, dizia BENTHAM numa formulação impressiva e bem conhecida, pôs a humanidade sob o governo de dois senhores soberanos, o prazer e a dor; são eles só que indicam o que devemos fazer, assim como determinam o que faremos; aos seus tronos estão ligados, por um lado, os standards de o correcto e o incorrecto, e, por outro lado, a cadeia de 20 causas e efeitos”. Pelo que o princípio capital de toda a acção e igualmente de toda a planificação e organização social seria o “princípio da maior felicidade”, nestes termos: deveria pretender obter-se a maior felicidade possível para o maior número possível de pessoas, ou, numa versão mais elaborada, a correcção dos comportamentos seria avaliada pela contribuição das suas consequências para a felicidade de todos aqueles que sejam afectados por essas consequências – ou ainda pela “maior soma líquida de satisfação” dos sujeitos a considerar (J. RAWLS). Prescindindo de atender aqui a todas as modalidades de que o utilitarismo é susceptível (“utilitarismo de actos” e “utilitarismo de regras”, “ut. positivo” e “ut. negativo”, etc.) e das inúmeras críticas de que a “moral utilitarista” tem sido objecto (uma das ultimamente relevantes é decerto a de JOHN RAWLS, A Theory of Justice, 1972, 22, ss., 183, ss.; na trad. port., 40, ss., 153, ss.), aludiremos apenas às que lhe dirige também o movimento Law and Economics, sobretudo por POSNER: o problema da medição (como se poderá medir a satisfação subjectiva em termos objectivos?), o problema moral do “monstro utilitário” (como ponderar as satisfações do criminoso e dos não produtivos?), o problema dos limites (de quem são as utilidades relevantes? conta a felicidade dos animais? dos estrangeiros? das futuras gerações?) – sobre esta crítica e para desenvolvimentos, v. ANDRÉS ROEMER, Introducción al análisis económico del derecho, 1994, 29, ss. E tanto basta para compreender que POSNER se propusesse substituir essa versão originária e criticável do “princípio da utilidade” pelo sentido que lhe definiria a “maximização da riqueza” (o “princípio da maximização da riqueza”), nos termos atrás enunciados. e) Na perspectiva cataláxica própria de todo este pensamento, o critério decisivo da análise e dos projectos regulativos, i. é, o critério para a solução de todos os problemas jurídicos em perspectiva económica, será o da “cost-benefit-analysis”. O critério visa o cálculo económico próprio do mercado, não uma valoração axiológica, e haveria de reconhecer-se, por isso mesmo, a “função mimética do direito relativamente ao mercado” (G. ALPA) – já para corresponder às exigências provindas do mercado, já para impor correcções que impedissem o seu funcionamento, e sempre com vista à “racional distribuição dos recursos” que o mercado lograria. f) Perspectiva esta em que vai decerto pressuposta uma muito particular concepção antropológica. O homem que habita este universo jurídico-económico será um “homem racional”, posto que no sentido estrito de um sujeito e agente que se determina pela racionalidade utilitária dos interesses com o objectivo da sua maximização, o homo œconomicus em último termo – e a considerar não pelo que ele deve fazer, mas pelo que efectivamente faz (realismo antropológico). Por outro lado, o 21 seu comportamento compreender-se-á “behavioristicamente” – o comportamento humano concreto será explicável por estímulos e reacções a esses estímulos. Por tudo o que se poderá dizer estarmos perante uma concepção radicalmenteindividualística do homem. Nem é outro o sentido a inferir desta formulação de POSNER (ob. cit., 3): “The man is a rational maximizer of his ends in life, his satisfactions – what we shall call his „self-interest‟”. g) Quanto à concepção do direito, as coisas não são menos evidentes. O direito vai aqui decerto concebido tão-só como uma técnica ou operador regulativo, institucional e decisório funcionalmente instrumentalizado à eficiência económica – ao bem-estar dos membros da sociedade, enquanto sociedade de desenvolvimento sócio- -económico e que procura maximizar a riqueza e os interesses e evitar ou minimizar os custos e os danos. E directa e especificamente com a função de criar estímulos e contra- -estímulos, pelos meios jurídicos, aos comportamentos que o possibilitem. Pelo que, dir- -se-á com OWEN FISS, se os movimentos da teoria crítica afirmavam que “o direito é política”, aqui postula-se que “o direito é eficiência”. 2. Problemas exemplares Em referência aos tópicos gerais que foram enunciados, importa considerar agora alguns problemas de que a “análise económica do direito” se tem ocupado e cujo tratamento nessa perspectiva nos revela exemplarmente a índole e o modus desse pensamento jurídico-económico. a) O problema das “externalidades” (“externalities”) ou dos “custos sociais” dos “efeitos externos” e o “teorema de COASE” ………………………………………………………………………………………………………... b) O direito privado e o mercado ……………………………………………………………………………………………. c) O direito dos acidentes e a responsabilidade civil ……………………………………………………………………………………………. d) O direito penal ……………………………………………………………………………………………. 22 3. Limites problemáticos e outras direcções a) O “problema de distribuição” (justiça distributiva) ou os limites impostos a uma estrita “análise económica do direito”. ……………………………………………………………………………………………. b) A análise das “public choices” ……………………………………………………………………………………………. c) A perspectiva neo-institucional ……………………………………………………………………………………………. 23 O FUNCIONALISMO SISTÉMICO a) O primeiro ponto a considerar é decerto o novo conceito de sistema que vai pressuposto por este funcionalismo. Não se trata já de um sistema no seu sentido tradicional: totalidade de uma constitutiva unidade entre um todo e as suas partes ou elementos, unidade essa entre todo e partes que teria uma índole material e em que o todo seria mais do que as partes e a pensar como que numa perspectiva centrípeta ou numa estrita unidade de interioridade constitutiva. Trata-se antes de um sistema em que o relevante estará na conjugação de duas diferentes notas capitais: por um lado, a sua unidade deixa de ser material para se compreender antes em sentido formal, e para pensar simplesmente uma relacionalidade, uma estrutura conexionante das relações variáveis ante elementos também contingentes; por outro lado, o decisivo estará, não já numa centrípeta interioridade constitutiva, mas na diferença e relação (diferença/relação) entre o sistema e o seu meio exterior ou meio ambiente, e graças à qual o sistema garantiria a sua identidade e a sua subsistência perante esse meio exterior (“diferença de identidade e diferença” – LUHMANN, Soziale Systeme, 26). Ou seja, o decisivo não estaria em saber o que constitui a sua unidade numa relação interna entre todo/partes, mas referir a sua unidade a uma relacionalidade estruturante que lhe garantiria a sua identidade e diferenciação na relação externa com o seu mundo exterior, e com essas identidade e diferenciação a possibilidade da sua subsistência perante esse mundo. O que, se implicaria uma “mudança de paradigma na teoria de sistema” (LUHMANN, Ibid., 15, ss.), seria também a base para a elaboração de uma nova “teoria geral de sistema” (L. V. BERTALANFFY, General System Theory. Foundations, Development, Applications, 1968). Só que também aqui com uma evolução teórica que importa ter presente. Num primeiro momento, a relação entre sistema e meio exterior foi pensada segundo o esquema input/output dinamizada por uma retroacção (feedback), em último termo segundo um esquema cibernético, pelo qual o sistema lograria a sua adaptação (equilíbrio de adaptação) e a sua transformação perante o meio exterior, como que num modo de co-produção conjunta entre eles e de que o “modelo causal” não estaria ainda de todo ausente. Nessa perspectiva tinha-se por capital a distinção entre “sistema fechado” e “sistema aberto” – na qual insistiria justamente BERTALANFFY. Num segundo momento acentuou-se a auto-organização (a 24 subsistente auto-organização estrutural) como a característica fundamental em que o sistema afirmaria a sua autonomia e preservaria a sua identidade. Característica a que foi atribuída uma tal importância e expansão para o entendimento de todas as autonomias diferenciadas – inclusive do indivíduo perante as instituições, da sociedade civil perante o Estado, etc. – que se pôde falar, como já atrás foi aludido, de uma “galáxia-auto”. Com uma radicalização final, todavia, quando à auto-organização (estrutural) se refere a própria autoprodução ou autopoiésis dos elementos do sistema através dos seus próprios elementos, numa auto-referência de pressuposição e sentido. Começando por dever-se à biologia este conceito acabado do sistema auto-referencial ou autopoiético (H. R. MATURANA/FRANCISCO J. VARELA, Autopoiesis and Cognition, The Realisation of the Living, 1972) – sistema não só auto-organizado como auto- constitutivo dos seus próprios elementos numa circularidade de auto-subsistência reprodutiva e que também seria assimilado por todos os domínios de inteligibilidade: das ciências físico-naturais às ciências da vida, da sociologia à ciência política, da antropologia à cultura, etc. – dele se dirá, com LUHMANN (ob. cit., 27) que traduz uma “segunda mudança” em que culmina a alteração do paradigma de sistema. Com duas notas mais. Por um lado, a auto-referência ou autopoiésis implicaria para o sistema uma sua “clausura”, ou em termos de se haver de reconhecer agora nele a índole de um “sistema fechado” nessa sua auto-referencialidade constitutiva, posto que sem poder também dispensar uma “abertura cognitiva” relativamente ao meio exterior de que se alimentaria a dinâmica da sua autonomia. Por outro lado – e a permitir a essencial relação deste conceito de sistema com a funcionalidade –, os elementos seriam decerto contingentes, já que não importariam eles em si mesmos, mas sim a sua função no sistema e como elementos a ele funcionalizados, concluindo-se não apenas por uma radical “desontologização” desses elementos, como ainda pela sua fungibilidade de meras variáveis, na exigência tão-só de uma “equivalência funcional” ou de uma “equifinalidade”. b) Tudo o que expressamente se pretende projectar nos quadros gerais do pensamento jurídico – também o direito se haveria de pensar segundo um sistema funcionalmente auto-referencial ou autopoiético. Assim, e por todos, N. LUHMANN, Die Einheit des Rechtssystems, in Rechtstheorie, 14 (1983), 129, ss., e G. TEUBNER, Recht als autopoietisches System, 1989 (de que há tradução portuguesa, em edição Gulbenkian). Pelo que a instrumentalização teleológica, fosse a do finalismo 25 directamente político, fosse a da estratégia imediatamente social e económica, cede a uma estrita instrumentalização funcional. Se naquela uma teleologia que se determinava por objectivos programados, por fins, por interesses, e se aferia pelos efeitos, conferia à instrumentalizaçãocorrelativa um cariz material, agora é a função enquanto tal que se torna decisiva e a instrumentalização consequente, que se lhe continua a reconhecer, é já tão-só de índole formal. A função avulta como a categoria, não apenas implícita, como nas outras duas modalidades de funcionalismo, mas convoca-se explicitamente decisiva ao primeiro plano e tudo determina. Pelo que se põe funcionalmente como que entre parênteses e releva só funcionalmente a consideração mesma dos objectivos, dos fins, dos interesses, etc. – “não a verdade dos fins nem a necessidade dos fins (...), mas a função da posição dos fins enquanto redução da infinidade (complexa) deverá ser conceitualizada” (N. LUHMANN) –, levando-se assim às últimas consequências, repita- -se, a de de-ontologização e de de-substancionalização dos elementos, os quais deixam de ser “em si” e passam unicamente a “ser para”. O que subsiste não são os elementos numa afirmação e numa coerência materiais, mas o sistema na sua formal e auto- -organização e autoprodução funcional e apenas para a subsistente realização dessa sua funcionalidade. Quanto ao direito, porque estando nas nossas sociedades – assim se postula – suprimida sem remédio e irreversivelmente a viabilidade de uma ordem axiológico- -materialmente pressuposta, dada a crescente complexidade social e os pluralismos de todos os tipos, apenas restaria a solução de uma estrutura normativo-social que pudesse ser o indispensável sistematizador da contingência (da possibilidade sempre aberta de acções e soluções diferentes entre si) de que dependeria podermos conviver no caos que tenderiam a fomentar essa complexidade e esses pluralismos – a única possibilidade, dir-se-á, de vencer de algum modo a entropia social. E tudo se traduziria numa auto- -referente selecção simplificante, tanto das alternativas contingentes como do tipo e número dos problemas a considerar e bem assim das pré-determinações das suas soluções (definindo-lhe os critérios no quadro institucional ou estruturalmente funcional de uma “coerente generalização” de certas expectativas segundo o esquema lícito/ilícito – o seu “código da diferença entre o sim e o não”). Expectativas a reafirmar apesar das suas possíveis violações e justamente contra estas – por isso “expectativas normativas” ou “contrafactuais” a distinguir das “expectativas cognitivas”, que seriam “factuais” –, decididas-constituídas segundo um “processo” que funcionaria mediante um “mecanismo-reflexivo” de uma “dupla reflexibilidade” – as regras ou expectativas 26 generalizadas seriam decididas-constituídas em auto-referência aos elementos pressupostos do sistema (“o sistema autopoiético constitui os seus elementos através dos elementos de que se compõe” – LUHMANN) e as decisões selectivas, que definiriam o “programa normativo”, operariam essa sua constitutiva decisibilidade mediante regras (e operações) definidas pelo próprio sistema – regras (ou operações) sobre regras – e com o objectivo último de se lograr, através dessa selectiva e constitutiva decibilidade do programa ou das regras-expectativas funcionalmente adequadas, a identidade subsistente do sistema (sistema jurídico) perante os problemas que lhe são postos pela dinâmica e as solicitações-informações do social meio exterior. Sistema, por isso, “normativamente fechado” e “cognitivamente aberto”. E assim se compreenderá que se fale aqui de uma “coacção para a selecção” (Selektionszwang) e se diga também que “valores são expectativas contrafactualmente estabilizadas” (LUHMANN). Sistémico e estrito funcionalismo jurídico este que, dada a sua abstracção de compromissos materiais (teleologicamente materiais) e o abandono da referência consequencial para acentuar antes a reflexibilidade autopoiética, a condicionalidade processual e a redutividade referenciadora, vemos considerado como um “modelo pós- -instrumental do direito” (TEUBNER) – isto decerto porque se pensa a instrumentabilidade apenas segundo o esquema meio/ fim e tendo, portanto, sempre presente uma material teleologia. Mais importante para nós é, todavia, reconhecer que nele se manifesta uma concepção do direito em que há a sublinhar três pontos principais, a saber: 1) Uma recompreensão do “sistema jurídico”, que seria o próprio direito, nos termos aludidos – um sistema autopoiético, com uma “constituição de elementos através dos próprios elementos”, que não existiria senão na “comunicação” (mediante informações, mensagens, compreensões, etc.), e de uma unidade que se identificaria com essa autopoiésis, i. é, “a função que assegura a formação da unidade (...) consiste na autocriação” (LUHMANN, Die Einheit des Rechtssystems, cit.). Noutros termos, um sistema de intencionalidade auto-referentemente constitutiva, cuja unidade não resultaria de nenhum principium unitatis, mas da imanente reconstrutiva circularidade e recursividade, segundo o esquema binário lícito/ilícito (ou recht/unrecht, legal/ilegal, etc.) – em paralelo, mas diferentemente, de esquemas binários próprios de outros sistemas, como os do dinheiro na economia, do poder na política, etc. –, e graças ao qual ele veria assegurada a sua autonomia e a sua diferenciação perante outros sistemas. 27 2) Um entendimento da função do direito, não já no sentido regulativo- -normativo do comportamento (critério materialmente intencional da acção), e antes selectivo e estabilizador de expectativas, mediante uma redução da complexidade social, numa estrutura formal e de intencionalidade só procedimental (critério tão-só estruturante e condicionante da acção). 3) Uma totalmente distinta concepção da “justiça”, que de todo abandona a sua tradicional “intenção de apelo”, intenção axiológica e normativa com o sentido de validade legitimante e crítico, para se definir, diversamente, pela adequação da complexidade do sistema jurídico – complexidade esta através da sua autopoiésis e da sua selectiva estabilização de expectativas – à complexidade social. “De tal modo, torna-se problemático que seja possível ver na justiça uma espécie de norma das normas que sirva como critério para estabilizar relações; parece antes tratar-se, no caso da justiça, de uma expressão global para indicar a complexidade do sistema jurídico que é adequado ao seu ambiente social”; “hoje a justiça não pode ser entendida como norma jurídica superior, mas só como a expressão de uma adequada complexidade do sistema jurídico, especialmente com exigência de aumentar a complexidade na medida em que ela seja compatível com um consistente decidir” (LUHMANN, Gerechtigkeit in den Rechtssystemen der modernen Gesellschaft, in Rechtstheorie, 4 (1973), 181, ss.; Rechtssystem und Rechtsdogmatik, Cap. II). O que metodologicamente implicaria um pensamento jurídico determinado por duas dimensões muito específicas: a elaboração tanto de uma dogmática como de um esquema da decisão que sejam correlativos das referidas índole e função do sistema jurídico. Quanto à dogmática, por princípio caracterizada como qualquer outra por um Negationsverbot, o seu objectivo será garantir a autonomia actuante do sistema jurídico, “a sua função directa é a da manutenção da diferenciação (Ausdifferenzierung) do sistema jurídico”, assegurando que o direito seja tratado segundo critérios especificamente jurídicos e definindo as relações entre o “programa das decisões geralmente válidas” e “as decisões dos casos concretos”. Uma coisa e outra, e simultaneamente, seriam possíveis mediante a “dogmatização do material jurídico” (o que significará antes de mais “a sua elaboração conceitual e classificatória”), “transformando-a assim numa massa dinâmica capazde autocrítica”, pois ao organizar “a liberdade de decisão mediante a negação de várias imposições de sentido”, não consistiria num vínculo do espírito, mas antes num “acréscimo de liberdade no confronto das experiências e dos textos”, consentindo “o aumento das incertezas 28 suportáveis” ou “o aumento da tolerância no confronto da incerteza” – de outro modo, definiria “as condições do que é juridicamente possível”, estruturando o direito mediante abstractas delimitações conceituais (“a compreensão conceitual dos pensamentos jurídicos singulares dos princípios e institutos jurídicos”). Com uma nota ainda: o postulado tradicional de uma “dogmática justa”, ou a sua referência última à justiça, manter-se-ia, só que agora – de acordo com o sentido sistémico de justiça, convergindo na unidade e na complexidade e sabendo que “o critério da justiça se refere à unidade do sistema como um todo” –, do que se trata é da imanência do sistema jurídico e, exactamente, de “a dogmática enquanto a concepção, interna ao sistema, de uma complexidade que como unidade só será representável referindo o sistema jurídico ao seu meio (Umwelt) social”. Numa palavra, a dogmática será a sistematização conceitual do material jurídico (das “proposições jurídicas”) que não só definiria os critérios jurídicos (para que juridicamente se operasse só em critérios jurídicos), como delimitaria a juridicidade (“o juridicamente possível”) e a elevaria a um grau adequado de abstracção, i. é, simultaneamente enquadrante e possibilitante, no seu quadro abstracto, da contingência concreta e portanto de uma correlativa liberdade (resultante “do facto que o sistema deve oferecer uma possibilidade de decisão para qualquer caso de conflito juridicamente relevante”). Concepção esta da dogmática jurídica que naturalmente excluiria – ponto de enorme relevo neste pensamento jurídico sistémico – a validade de nela se considerarem “os efeitos como critérios” – os efeitos seriam realidades sociológicas, não entidades jurídicas. Quanto ao esquema da decisão – e em coerência com as concepções esboçadas do sistema jurídico e da sua assunção dogmática em termos aconsequenciais –, o seu mecanismo capital seria o da condicionalidade. O sistema jurídico seria um Konditionalprogramm e não um Zweckprogramm. Já o sabemos: seria ele exclusivamente um programa de condições para as decisões concretas ou de modo que estas o seriam segundo uma relação do tipo “se/então”. Verificadas as condições seguir- -se-ia a decisão no sentido programado, ou com o conteúdo previamente definido, abstraindo tanto de qualquer político-sociológica teleologia como de qualquer consequencialismo social. Nem a realização de fins (extrajurídicos), nem os efeitos (sociais) teriam relevo jurídico, a normatividade jurídica enquanto tal seria estritamente condicional, não teleológica ou consequencial. A teleologia e o consequencial seriam, repita-se, dimensões sociológicas e não jurídicas – e a preocupação fundamental do 29 funcionalismo sistémico é pensar a autonomia e a diferenciação do sistema jurídico, enquanto puramente jurídico. d) Para uma projecção exemplar deste funcionalismo sistémico-jurídico, consideremos a sua assimilação no direito criminal, nos termos como o pensam, por exemplo, penalistas como AMELUNG e JAKOBS. É certo que é este um caso extremo, mas tem para nós a importância de nos mostrar como que as consequências no limite de uma concepção estritamente sistémica ou funcionalisticamente sistémica. O direito penal seria de sentido exclusivamente preventivo, serviria para a estabilização do sistema social definido normativamente, e deveria pensar-se em termos rigorosa e sistematicamente funcíonalísticos: segundo o “princípio da danosidade social” (que se especificaria numa selecção de “bens jurídicos”), a pena só se legitima pela (e visa unicamente) a reafirmação da norma que o sistema exija subsistentemente eficaz na sua contrafactualidade de normativa licitude/ilicitude, e a culpa vê-se despida de todo o sentido axiologicamente ético para ser só admitida como critério funcionalmente justificado (numa linha análoga, compreende-se assim que com ela se faça intervir, como faz ROXIN, a “responsabilidade” só penal). A culpa reduz-se à questão de saber se, por um lado, a imputação subjectiva é sistémico-funcionalmente ou “finalisticamente” (“Zweckbestimmt”) justificada e necessária, para a recuperação da eficácia das expectativas garantidas pelo sistema e perturbadas pelo delito, e, por outro lado, o agente haverá normativamente de ser visto de modo a ter de suportar as exigências sociais da norma-proibição, e bem assim de se ponderar se a sociedade haverá ou não de aceitar o fracasso da pressão dessas exigências no agente com os seus efeitos desorientadores ou o perigo mesmo de uma desorientação “contagiante” e expansiva. A questão é, pois, exclusivamente social, no quadro da relação sociedade- -pessoa, e esta tão-só, no fundo, um elemento do sistema com o relevo que este lhe confira e a desempenhar papéis funcionalmente determináveis – a “funcionalização da pessoa” (HASSEMER). Pelo que a distinção, que não deixamos de ver considerada por LUHMANN, entre “pessoa” e “papéis” (Rollen) não teria em princípio aqui grande importância, se não fora o entorse, para a coerência sistémico-funcional, do postulado constitucional da “garantia do valor autónomo da pessoa” (AMELUNG). 30 JUÍZO CRÍTICO SOBRE O FUNCIONALISMO JURÍDICO A complexidade e a pluralidade de modalidades do funcionalismo jurídico força- -nos a um juízo crítico também complexo e plural. Desde logo, a dois níveis – a um nível geral ou criticamente global de todo o funcionalismo e a um nível especial ou a considerar especificamente cada uma das suas modalidades em particular. 1. Assim, há que ser consciente de que no fundo de tudo se impõe uma capital opção antropológico-cultural de que dependerá o sentido do direito e inclusive a sua própria subsistência autenticamente como direito. Com efeito, o homem dos nossos dias terá de perguntar-se que sentido se propõe conferir à sua prática e, através desse sentido, que compreensão assimilará de si próprio na sua existência histórico-comunitária. Uma prática referida a uma validade, seja ela porventura problemática mas não prescindindo nunca de interrogar por ela, a implicar um fundamento axiologicamente crítico e o homem transcendendo-se assim a um sentido materialmente vinculante em que assuma o projecto responsabilizante da sua própria humanidade; ou uma prática determinada tão-só por estratégias contingentes (políticas ou sociais) e a orientarem-se por juízos de oportunidade, a não exigir mais do que programações finalísticas actuadas ou por compromissos ideológicos ou por esquemas de uma operatória eficiente, e o homem reduzindo-se à imanente titularidade de uma luta ideológica e de estratégias de interesses que lhe permitirão uma qualquer vitória na luta social ou um bem-estar axiologicamente neutralizante e uma existência interesseiro-racionalmente calculada, e nada mais. Uma opção entre a validade (fundamentalmente crítica) e o conflito militantemente irredutível), entre o sentido e a eficácia, entre a “justiça” e a “utilidade”. E falamos de opção, porque caduca para sempre a pretensão das evidências metafísicas de que se alimentou também o jusnaturalismo (no seu postulado de uma normatividade ontologicamente necessária, inferida directamente da natureza das coisas ou da natureza do homem), o homem terá de decidir-se a si próprio. O que não será diferente de dizer que radical no homem é a sua liberdade para se salvar ou para se perder numa responsabilidade
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