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BÁSICO TULLIO ASCARELLI CATEDRÁTICO DA UNIVERSIDADE DE BOLONHA, PROFESSOR CONTRATADO DA FACULDADE DE SÃO PAULO Obras do mesmo autor editadas por SARAIVA & CIA. : PANORAMA DO DIREITO COMERCIAL TEORIA GERAL DOS TITULOS DE CRÉDITOS Edição de 1943. 1 vol. com 518 PROBLEMAS DAS SOCIEDADES ANONIMAS E DE DIREITO de 1946. 1 vol. com 600 SARAIVA Editores LIVRARIA ACADÊMICA Industrials JOAQUIM IGNACIO FONSECA SARAIVA ORIGINAL LARGO DO OUVIDOR, 28 - S. PAULO 1947 B)AULA Resumo: 1 - Duplicidade de sistemas no direito privado. 2 Relação com problema da autonomia ou especia- lidade de um ramo de direito. 3 Posição do direito mercial. 4 - Caráter histórico da distinção entre direito ci- vil e comercial. 5-A distinção entre direito comercial e direito civil. 6 Direito comercial e lavoura. O sistema dos atos de comércio. 7 - Distinção entre dois problemas diver- 8 - Origem histórica do direito comercial. 9 - Pri- meiros problemas resolvidos. 10 Caráter 11 - Evolução sucessiva. 12 O problema da circula. ção dos direitos. 13 - 'A progressiva ampliação do campo de aplicação do direito comercial. 14 - Aproximação en- tre direito c'omercial o direito geral das obrigações. 15 - Função do direito comercial. 16 - Caráter do direito CO- mercial. 17 Características do direito comercial.1 Pode-se notar, embora não se trate de um fenômeno constante ou uniforme, que 0 direito pri- vado apresenta-se, com freqüência, distinto e sepa- rado em dois sistemas diversos; de um lado 0 siste- ma do direito tradicional, de outro lado um sistema direito equitativo, mais sensível às novas exigências que se vêm apresentando e que, portanto, elabora e siste- eg matiza, em contraposição ao direito tradicional, no- vos princípios que, embora inicialmente de exceção, passam, no decorrer da evolução histórica, a cons- tituir direito comum. Assim, no direito romano clássico, 0 jus civile de um lado e jus honorarium de outro lado, apre- sentam-se como distintos e contrapostos, às vêzes até regulando, concorrentemente, idêntica matéria e dando por isso lugar a duas séries de conceitos paralelos: propriedade quiritária e propriedade bo- nitária; e bonorum possessio e assim porPANORAMA DO DIREITO COMERCIAL TULLIO ASCARELLI 15 14 diante. Mas, no desenvolvimento histórico sucessi- 2 problema que se costuma chamar da vo, aquêles princípios que, de início, foram-se esta- autonomia ou especialidade de um direito pode ser, belecendo apenas corrigendi vel suplendi gratia do parece-me, encarado de dois pontos de vista que direito comum, passam a ter aplicação cada vez poder-se-iam respectivamente chamar de sistemá- mais vasta, chegam a constituir, por seu turno, tico 0 primeiro e de histórico segundo, sendo êste último, talvez, 0 mais interessante princípios de caráter geral e é então que deixa de ter sentido a distinção dos dois sistemas, de início Do ponto de vista histórico, com efeito, pode- mos falar em direito especial com respeito a nor- contrapostos, e se opera a fusão de ambos, mas e princípios que, embora de início aplicados Anàlogamente, no direito inglês, common law apenas em um âmbito particular e em contraste com e equity apresentam-se de início distintas e contra- direito comum, são, entretanto, em tese, aplicá- postas, assente, a primeira, na obra unificadora dos veis a um âmbito mais vasto e suscetíveis de apli- juízes, a segunda, nos poderes extraordinários da cação geral e que, com efeito, no desenvolvimento Chancery. Por isso, também acontecia regularem, histórico sucessivo, acabam, em correspondência concorrentemente, idêntica matéria, chegando-se a com 0 desenvolvimento das relações econômicas e distinguir, então, uma propriedade reconhecida em sociais, por serem aplicados em um âmbito sempre common law e uma propriedade reconhecida em mais vasto, até fundir-se no direito comum; dita- equity, com nítida contraposição de normas jurídi- dos de início corrigendi vel supplendi gratia aca cas substanciais e, ainda, de jurisdição. Mas, tam- bam no fim do desenvolvimento histórico por cons- tituir 0 próprio direito comum. bém aqui, se foi progressivamente processando uma fusão, sancionada legislativamente na Inglaterra 3 0 direito comercial apresenta-se, hoje em com 0 judicature act de 1873 que estabeleceu a pre- dia, como um direito especial no sentido valência das regras da equity. Os dois sistemas tico, como um conjunto de normas que regulam acabaram assim por se fundirem embora, ainda uma determinada matéria consoante determinados hoje em dia, a originária distinção entre ambos princípios de caráter geral. continue viva na tradição doutrinária e jurispru- Constitui, entretanto, antes de mais nada, se dencial. considerado no quadro geral do direito comparadoTULLIO ASCARELLI PANORAMA DO DIREITO COMERCIAL 17 e no conjunto da sua evolução histórica, um direi- dos jurisconsultos e aos sistemas da América la- to especial no sentido histórico e é sob êste aspecto, tina que, sucessivamente, derivaram dos primeiros. e atendida a função historicamente preenchida pelo 5 O direito comercial não pode, realmente, direito comercial em contraposição ao direito co- distinguir-se tlos demais ramos do direito, conso- a mum, que melhor se entende a sua autonomia e 0 ante aquêles critérios que facultam em qualquer seu papel, os próprios problemas que hoje se apre- sistema jurídico distinguir 0 direito substantivo e sentam quanto à sua reforma e quanto à unifica- 0 processual, 0 direito civil e 0 criminal e assim por ção do direito das obrigações (unificação de que Apresenta-se 0 direito comercial prima nem sequer se poderia cogitar caso 0 direito comer- facie, como uma subdistinção do direito privado. cial não constituísse uma categoria histórica) e, Embora constituído prevalecentemente de nor- finalmente, a sua contribuição para 0 direito mas de direito privado, 0 direito comercial não con- comum. 4 Com efeito, se em cada sistema positivo tém, entretanto, exclusivamente normas dessa espé- há e houve normas pêculiares ao comércio, a divi- cie, bastando, para mostrá-lo, lembrar no que res- são, entretanto, do direito privado em dois siste- peita ao processo executivo, 0 instituto da falência, mas, 0 direito civil e comercial, era alheia ao e no que respeita ao processo de cognição, as nor- direito romano como é alheia ao direito inglês desde mas peculiares, em muitos sistemas, ao processo século XVIII, ambos assentes, ao contrário, e mercial. Poder-se-ia realmente, falar em um di- 0 fenômeno não é talvez casual, naquela outra reito comercial substantivo e em um direito comer- bipartição há pouco lembrada. cial processual. Aliás, mesmo no âmbito do direito A divisão do direito privado em dois ramos privado, 0 direito comercial tem um caráter "frag- contrapostos, o direito civil e direito comercial, mentário", embora, no seu conjunto, as suas nor- no correlativa, aliás, até pouco tempo, com uma dis- mas se apresentem orientadas consoante determi- tinção jurisdicional, apresenta-se peculiar aos sis- nados critérios gerais. temas romanísticos que se foram constituindo na direito comercial não é direito da distri- Europa continental sôbre a base dos textos roma- buição e produção da riqueza, em contraposição ao nos transformados e elaborados pela interpretação direito do consumo, como foi afirmado recentemen- 1.18 TULLIO ASCARELLI PANORAMA DO DIREITO COMERCIAL 19 te, pois que, de um lado, não abrange a atividade organização interna é, até, historicamente ante- agrícola e, com freqüência, 0 comércio imobiliário e, de outro lado, compreende os atos comerciais uni- terior à análoga organização do comércio ou da in- laterais (e por isso, afinal, também 0 momento do dústria) ; de outro lado, abrange consoante mui- consumo) que, consoante alguns direitos, como tos direitos ato de comércio ocasional e, em to- código italiano de 1882, estão integralmente sujei- dos, atos cambiais que, não se prendem neces- tos às disposições do direito sàriamente, hoje em dia, qualquer que fôsse a si- Não é, 0 direito comercial, 0 direito da circu- tuação historicamente originária, a uma emprê- lação, embora haja nesta tese tradicional um gran- sa ou atividade sistemática, nem a en- de fundamento de verdade, pois que, apesar da im- tre emprêsas. portância central do fenômeno da circulação no Pode-se, talvez, acrescentar que a teoria da direito comercial e até da possibilidade de, com emprêsa confunde às vêzes, em uma única afir- fundamento na circulação, explicar algumas pe- mação elementos diversos. Ela é exata quando culiaridades de institutos que não a disciplinam di- indica objetivamente, um determinado sistema retamente, não regula êle apenas, nem tôda, a cir- culação dos bens. EMPRESA de organização técnico-econômica; errônea quando, levada para 0 terreno subjetivo, identifica na "em- Não é 0 direito comercial, direito da inter- prêsa" um sujeito de direito, que é raramente mediação, pois que não podem qualificar-se como "afirmado", sendo entretanto, com freqüência, de intermediação os atos cambiais e a produção in- "semi-afirmado". dustrial, a não ser, como acontece com Rocco, por meio de uma conexão presumida juris et de jure, Igualmente, a teoria da emprêsa é exata que já demonstra a falta de acêrto desta cons- quando indica critério em virtude do qual a ati- trução, se entendida de modo rigoroso. vidade industrial chegou a ser abrangida pelo di- Não é, 0 direito comercial, o direito das em- reito comercial no curso da sua evolução; é entre- tanto inexata quando vai ao ponto de indentifi- prêsas, pois que de um lado, não abrange as em- car em têrmos gerais 0 direito comercial com 0 di- prêsas agrícolas (e, note-se, a exploração agríco- reito das emprêsas; é exata quando faz da existên- la sob forma de emprêsa no que respeita à sua cia da organização da emprêsa um elemento de apro-PANORAMA DO DIREITO COMERCIAL 20 21 TULLIO ASCARELLI ximação entre 0 direito do comércio e da indústria dunam justamente com 0 aparecimento e desen- volvimento do direito comercial. de um lado e 0 da lavoura e especulação imobiliá- ria de outro, mas é inexata quando limita 0 seu 6 Já foi por outrem observado que, hoje exame apenas a êste aspecto. Também é exato e- em dia, a bipartição do direito privado em civil e videnciar a conexão de muitos problemas atuais comercial se prende, fundamentalmente, à distin- do direito comercial com a existência de uma em- ção entre relações agrícolas de um lado e relações prêsa e frisar a êsse respeito a diferença que vai comerciais e industriais de outro lado. crité- entre a grande emprêsa com produção em massa de um lado, e a pequena emprêsa e a atividade do rio é substancialmente exato em tôdas as legisla- artesão, do outro lado, já pelo valor qualitativo que ções atuais; exato na história do direito, pois que nunca e em nenhum direito 0 direito comercial acaba afinal por decorrer até de diferenças quan- abrangeu a lavoura. titativas; é porém inexato esquecer que os proble- mas surgidos com a existência da grande emprê- Entretanto, êle, embora feliz no que respeita sa respeitam mais às normas publicistas de con- ao fundamento atual da distinção e a um seu ca- trôle do que à disciplina do contrato no direito ráter historicamente constante, de um lado não privado. nos explica a própria ampliação do âmbito do di- Ainda é exato afirmar que institutos e prin- reito comercial no decurso da sua história, tendo do cípios do direito comercial (embora fruto de apenas em um segundo momento abrangido a ati- vidade industrial e sendo ainda em muitos direi- um regime econômico que criou a produção em massa, fundado na propriedade privada dos ins- tos alheio em princípio ao comércio imobiliário, Comercial trumentos de produção) se relacionam, de modo nem tampouco 0 fato de constituirem hoje, muitos institutos do direito comercial, institutos de di- geral, com uma economia de massa, poden- reito comum. De outro lado, dito critério não do destarte, alguns ser utilizados por em- prêsas socializadas. Isto volta a evidenciar como explica também a tendência à unificação do direi- a autonomia, do direito comercial se relaciona to das obrigações, que afinal se refere justamen- afinal, com um particular tipo de produção ecô- te à unificação entre 0 direito das obrigações da mica, cujo aparecimento e desenvolvimento se coa- lavoura e 0 do comércio e do22 TULLIO ASCARELLI PANORAMA DO DIREITO COMERCIAL 23 7 Fundado nas considerações acima pen- apenas quanto ao comércio especialmente trans- que, na realidade, há dois problemas distintos a marino e bancário. Por isso se constituíu então, ter em conta. em oposição ao direito comum, um direito espe- Em cada sistema positivo a distinção entre cial que ainda hoje em dia, apesar de ter passado 0 direito comercial e 0 direito civil já é estabeleci- a abranger a atividade industrial, chamamos de cida em lei, devendo 0 intéprete respeitar a ori- comercial. Foi êle, no seu início, 0 direito de nas- entação legal adotada. cente burguesia das cidades; uma libertação dos Examinando, porém, 0 problema de um pon- vínculos da sociedade feudal e do direito romano- to de vista mais amplo, independentemente dos -canônico comum então vigente. limites da aplicação do direito comercial em cada Por isso predomina, de um lado, desde 0 iní- sistema positivo e além disso, procurando a razão cio da evolução, a idéia do mercado; de outro la- da diversidade dêsses limites, nos vários sistemas do do se apresenta então, 0 direito comercial, em e nas várias épocas históricas, divisamos no direi- nexão com direito marítimo cuja importância, to comercial uma categoria histórica. aliás, é ainda na própria etimologia 8 Realmente, se retrocedermos na histó- de palavras como "arrivar" em italiano, "arri- ria do direito, fácil será constatar que 0 nasci- bar", em castelhano ou "chegar" (de llegar, liga- re), em português. seguro que, apesar de ser mento do direito comercial se conjuga com uma fratura entre direito romano-canônico comum hoje com freqüência regulado no código civil é, na sua origem, instituto tipicamente comercia- então vigente e as exigências econômicas que hoje em dia denominaríamos capitalísticas e que se fize- lístico, tem como ponto de partida, 0 seguro ma- rítimo e, êste, 0 empréstimo a risco. A sociedade ram sentir desde as comunas italianas no século em comandita deriva provàvelmente da comenda XII em contraposição ao sistema econômico en- tão mais geralmente difundido. do direito marítimo medieval. A própria socieda- de anônima tem a sua origem nas companhias Estas exigências, assentes na liberdade de loniais para a colonização transmarina e estas, iniciativa e de concorrência num mercado livre, por seu turno, consoante a tese histórica talvez surgiram de início não quanto à indústria, mas mais difundida, no condomínio naval, prendendo-24 TULLIO ASCARELLI PANORAMA DO DIREITO COMERCIAL 25 -se assim, nas origens, a responsabilidade limita- ter geral, embora independentemente da da do acionista da sociedade anônima moderna à dos esquemas contratuais nominativamente men- responsabilidade limitada do armador no direito cionados na lei. Ao contrário, sistema clássico tinha de um lado um forte cunho formalístico; Por isso, direito comercial se apresenta 0- de outro lado, mais do que 0 princípio geral da riginàriamente, com um caráter autônomo, não obrigatoriedade do contrato, encarava determi- apenas no sentido atual desta palavra, mas no nados contratos e apenas êstes, como fonte de 0- sentido que êste têrmo tinha no sistema do direi- to romano comum. Era direito autônomo, pois reestabelecimento do comércio e das comu- não se prendia ao direito estatal, mas assentava nicações juntamente com 0 hábito de escrever, e- apenas no consentimento e nos costumes dos inte- xigia por seu turno, uma disciplina da conclusão ressados, sucessivamente consolidados nos cons- dos contratos entre ausentes, que não se encon- tituta usus medievais; era autônomo, pois que trava completamente definida nos textos roma- da competência de uma jurisdição consular parti- nos antes de mais nada dominados, especialmen- cular, que por seu turno se contrapunha à juris- te no período clássico, pela idéia do contrato en- dição geral do magistrado comunal. tre presentes e do contrato verbal. É por isso que comercialistas, aliados nis- 9 Já no seu primeiro período 0 direito to com canonistas que, por seu turno, frisavam comercial foi elaborando alguns institutos, mui- valor do consentimento levados pelas suas pre- tos dos quais já passaram, há tempo, para 0 di- missas éticas, visam elaborar a disciplina geral reito comum. dos contratos, estabelecendo 0 princípio geral do A renascença do comércio e da vida econômi- consentimento gerador da obrigação, respeitados ca exigia um sistema contratual simultâneamen- determinados requisitos de caráter geral; visam te mais completo e mais elástico, assente, de um desvencilhar a conclusão do contrato de exigên- lado, na liberdade de formas e, de outro lado, no cias formais; visam simultâneamente elaborar a princípio geral da possibilidade das partes se 0- disciplina do contrato entre ausentes, de um lado, brigarem, respeitados alguns requesitos de cará- do contrato escrito, de outro lado.26 TULLIO ASCARELLI Interpretando e, às vêzes interpretando, do ponto de vista histórico, errôneamente, os textos romanos sôbre 0 contrato literal e sôbre a confes- sio, mas adaptando-os às novas exigências do tráfe- go, estabelecem uma disciplina que tem, nos tex- tos romanos, seus pontos de partida, mas é, entretanto, bastante nova; elaboram a doutrina do consentimento e da sua validade caso haja uma causa valida obrigandi; coadunam a dou- trina romana da confesio e da querela non nume- ratae pecuniae, embora com freqüência mal inter- pretada, com a disciplina jurídica dos documen- tos; encaram 0 problema do momento da conclu- são do contrato entre ausentes e procuram, assim, obter uma disciplina jurídica mais adequada às exigências do comércio, embora às vêzes contras- tante com 0 direito comum. Os resultados obtidos passam sucessivamente para êste direito, fican- do, qual vestígio da sua longínqua origem, apenas 0 fato de ser, a conclusão do contrato entre au- sentes, regulada, em alguns sistemas jurídicos (p, ex. 0 italiano), já no código comercial e não no civil. Os agentes das firmas do exterior levanta- ram 0 problema da comissão e representação; também esta doutrina era nova e de início con- trastante com 0 direito comum. Tão nova que a28 TULLIO ASCARELLI PANORAMA DO DIREITO COMERCIAL 29 nomia e a organização atividade econômica em moldes modernos, juntou-se a de todos os paí- logo reivindicaram para si 0 monopólio da função ses. As primeiras sistematizações legislativas legislativa. O direito comercial passa então a fa- completas dos seguros são catalãs e 0 tratado do do zer parte do direito estatal e a ser objeto de dis- português SANTAREM foi por séculos 0 standard ciplina nas ordenações do rei, como as célebres de book, como se diz hoje, dos seguros. 0 endôsso que Luiz XIV. Diversamente do que aconteceu com revolucionou a função da letra de câmbio é de ori- OS demais direitos autônomos de determinadas gem francesa. Os negócios da bôlsa tiveram seu classes sociais (com os quais se aparentava à vis- primeiro grande desenvolvimento em Flandres e ta da sua origem) não é absorvido pelo direito curioso livro de JOSÉ DE LA VEGA, em 1681, comum; 20 contrário 0 direito comercial não só "Confusion de confusiones, Dialogos curiosos conserva a sua autonomia (embora com um alcan- entre um mercador discreto, um acionista erudi- ce diverso, à vista do seu diverso fundamen- to e um philosopho agudo sôbre lo jogo y lo enre- to), mas influencia 0 próprio direito comum até do de las aciones" pode ser lido ainda hoje com ponto de passarem para êste muitos dos princí- interêsse por um especulador de Wall Street. A pios e institutos que eram peculiares àquele. Já à vista do diverso caráter da autonomia disciplina das patentes de invenção tem 0 seu ponto de partida no estatuto inglês dos monopó- do direito comercial foi-se então passando pouco lios, que por seu turno tem um precedente nas a pouco (embora de início de modo indireto e qua- leis que a respeito foram ditadas em Veneza nos se hipócrita, como através da presunção da quali- séculos XV e XVI e em virtude das quais foram dade de comerciante quoad actum dos que efetu- assem um ato de comércio isolado, 0 que, por seu concedidas patentes industriais, entre outros a turno, se prendeu ao desejo da noblesse de prati- Galileo Galilei em Pádua. car atos de comércio sem ser comerciante) do 11 Na evolução-sucessiva do direito co- anterior sistema subjetivo a um sistema objetivo, mercial devemos levar em conta dois fenômenos. qual triunfou definitivamente no código napoleô- De um lado, com séc. XVII, foram se forti- nico, ou seja, à aplicação das regras comerciais a ficando os estados monárquicos centralizados que qualquer ato mercantil independentemente da pessoa do agente e portanto também aos atos rea-30 TULLIO ASCARELLI PANORAMA DO DIREITO COMERCIAL 31 lizados por quem não fôsse comerciante. Facul- trialização, que, com 0 século XIX, veio a consti- tava-se assim afinal uma maior extensão do âm- tuir um dos característicos fundamentais da SO- bito de aplicação do direito comercial. ciedade moderna. Esta condição não podia porém De outro lado, ao passo que alguns dos ins- ser preenchida a não ser resolvendo-se, titutos já elaborados no direito anterior passa- mente, 0 problema da circulação do crédito, pois vam para direito comum, outros foram-se ela- do que, sem possibilidade de mobilização, difícil se- borando para atender às exigências de uma eco- ria já a própria obtenção do crédito para 0 indus- trial ou 0 comerciante. Foi então 0 direito comer- nomia que se ia renovando e que, com a chamada cial elaborando novos institutos para satisfazer revolução industrial, procurou encontrar instru- estas exigências e facultar assim a aplicação prá- mentos jurídicos adequados para a realização dos tica dos inventos técnicos e a inventos técnicos e para a transformação econô- A velha letra de câmbio da época comunal ita- mica dêles decorrente. liana, mero documento probatório e instrumento 12 problema básico que então se apre- de pagamento, foi transformada em instrumento sentou foi da mobilização do crédito, elemento de crédito, em uma série de etapas que vão desde essencial para um desenvolvimento dêste, que por a introdução do endôsso, no século XVII, ao códi- do seu turno, passava a constituir 0 próprio oxigênio go napoleônico, às reformas inglêsas e alemãs da da economia. Ao passo que, nos séculos anteriores, metade do século XIX, às convenções genebrinas. elementa crédito tinha sido essencialmente um crédito ao Os precedentes do condomínio naval de tipo essencial consumidor para satisfazer suas transitórias ne- germânico de um lado, e os das associações de por- cessidades, passou então a ser um crédito ao em- tadores de títulos da dívida pública da Itália da preendedor e, assim, (bem como a colheita de gran- Renascença, de outro lado, foram utilizados, de des capitais, e, portanto, a participação de muitas início, para disciplinar as companhias coloniais, e pessoais, para empreendimentos sociais), a cons- constituir 0 instrumento jurídico da expansão tituir condição primordial para 0 próprio desen- lonial, com a descoberta e a exploração do novo volvimento do comércio e ainda mais para a rea- mundo, e da conseqüente e profunda transforma- lização dos inventos técnicos e para aquela indus- ção de tôda a economia. direito público cola-32 TULLIO ASCARELLI PANORAMA DO DIREITO COMERCIAL 33 borou então com 0 direito privado, consoante aque- tais (no que respeita a títulos, como as debêntu- la orientação mercantilista que, então, acompa- res e apólices, representativas de créditos a longo nhou, historicamente, no domínio econômico, a prazo ou, como as ações, representativas de parti- formação, no domínio político, dos grandes Es- cipações sociais) tados centralizados. Resolvido problema da circulação do direi- Das companhias coloniais, no desenvolvimen- to, possível se desenvolvimento do crédito, a to sucessivo, chegou-se à sociedade anônima mo- curto e a longo prazo e, simultâneamente, a obten- derna, numa série de etapas que vão desde as es- ção de grandes capitais para a realização de em- porádicas companhias do século XVII, à febre es- preendimentos industriais e, portanto, pode 0 cré- peculativa que dominou a França de Luiz XV, à dito passar a ser 0 elemento fundamental da eco- disciplina do código napoleônico, à liberdade de nomia, facultando a industrialização e 0 progres- constituição alcançada com a lei francesa de 1867, econômico. à última expansão dêste instituto, quase típico da emprêsa industrial moderna. A caminhada, entretanto, foi árdua e demo- Num e noutro caso, 0 problema resolvido foi rada, pois que apenas lentamente foi possível che- da circulação dos direitos, respectivamente do gar à objetividade em que assenta a disciplina ju- direito de crédito e da participação do sócio, coa- rídica dos títulos de crédito e das sociedades anôni- dunando-se, necessàriamente, a circulabilidade da mas e portanto a possibilidade de uma circulação posição de sócio, com a responsabilidade limitada do crédito. Foi, para isso, mister superar os con- dêle. ceitos do direito tradicional assente na conexão Resolveu-se assim 0 problema da circulação do direito com 0 seu sujeito e, por isso, descon- dos direitos, da mobilização dos financiamentos, fiante da cessão e francamente hostil a uma cir- que se prendeu respectivamente, de um lado ao culação dodireito; foi mister elaborar uma disci- desenvolvimento dos bancos e do desconto (no que plina jurídica que facultasse aproximar a circula- respeita à mobilização dos créditos a curto prazo, ção dos direitos à das coisas, encarando 0 direito representados por títulos cambiários) e, de outro objetivamente e assim superando alguns conceitos lado, ao desenvolvimento de um mercado de capi- do direito comum.34 TULLIO ASCARELLI PANORAMA DO DIREITO COMERCIAL 35 Hoje em dia, esta evolução tão der a especulação imobiliária, atravessando uma natural e 0 conceito do título-valor entrou tão pro- fronteira que parecia intransponível; abrange, fundamente nas nossa consciências, que somos às consoante alguns direitos, tôdas as operações sô- vêzes levados a esquecer as dificuldades vencidas bre títulos-valores e de Bôlsa, mesmo quando rea- para alcançá-lo. A idéia da circulação está hoje lizadas apenas com intuito de inversão. de tal modo radicada em nós que parece-nos ina- Talvez, como ponto de referência na evolu- tural a idéia oposta e ainda mais estranha a idéia ção recente, durante século XIX, se possa, de que até a cessão de um direito só seja possível de um lado, indicar, no início do século, 0 código modo indireto e imperfeito. Entretanto, esta era mercial francês, com 0 qual foi, juridicamente, co- a situação do direito romano e basta, 'parece-me, dificada a liberdade de concorrência e com qual esta lembrança histórica para evidenciar cami- triunfou sistema objetivo dos atos de coméreie nho percorrido e justificar a afirmação de que e foi abandonado sistema de uma lei especial talvez, juntamente com seguro, títulos de crédi- para cada sociedade anônima; de outro lado, a to e sociedades anônimas são OS institutos jurídi- metade do século XIX em que, quase nos mesmos COS que mais profundamente caracterizam 0 di- anos, se processa -a renovação legislativa do direi- reito privado moderno, em confronto com an- to cambiário na Alemanha e na Inglaterra e se teriores e, portanto, a constituição econômica do admite, na Inglaterra e na França, a liberdade de mundo moderno, encarada sob aspecto jurídico. constituição das sociedades anônimas, independen- 13 direito comercial, no decurso da sua temente de autorização administrativa, com 0 evolução histórica, continuamente amplia 0 seu triunfo, no campo jurídico, da iniciativa privada campo de aplicação. Abrange as operações in- e do liberalismo econômico. dustriais, que, abandonando 0 sistema artesanal, À progressiva extensão daquelas exigências se organizam modernamente, surgindo, então, econômicas que, de início, tinham sido peculiares critério da emprêsa como característico para dis- comércio transmarino e bancário, segue-se a tinguir indústria e artesanato, sujeitando a pri- progressiva extensão do âmbito de aplicação do meira e não segundo ao direito comercial; chega direito comercial, e princípios e institutos que, de até, com código italiano de 1882, a compreen- início, tinham sido considerados como excepcio-PANORAMA DO DIREITO COMERCIAL 36 37 TULLIO ASCARELLI nais ou peculiares apenas a uma determinada ma- retôrno histórico, passam elas, também a constituir téria, passam, ao contrário, a constituir princí- instrumentos da atividade de entidades públicas, pios e institutos de caráter geral, aplicáveis em que assim utilizam instrumento elaborado no di- todo 0 campo de direito. reito comercial, sujeitando se aos seus princípios. Do seguro marítimo se passa ao terrestre, ao Os títulos ao portador passam, em muitos di- seguro de vida, e a disciplina dêste instituto, que reitos, para 0 código civil. se prende a um dos conceitos talvez mais impor- A letra de câmbio e 0 cheque, disciplinadas tantes e característicos do direito moderno, passa em leis especiais, constituem instrumentos gerais, até em muitos direitos, do código comercial, onde respectivamente de crédito e de pagamento que, se encontrava disciplinado consoante a sua ori- pela própria generalidade de suas funções, já não gem histórica, para 0 código civil, apesar de con- se prendem de modo necessário à atividade mer- cantil. tinuar mercantil 0 ato do segurador; passa do direito privado para o público, constitu- Seguros, anônimas, e títulos de crédito, talvez indo uma técnica jurídica que faculta de mo- os mais característicos institutos do direito comer- do geral, a eliminação das conseqüências dano- cial, OS que concentravam a atenção dos tratadis- sas de determinadas ocorrências que apresentam tas de outrora (como no tratado, tão agudo e mo- caráter de multiplicidade e estão por isso sujeitas derno, de JOSÉ DA SILVA LISBOA) constituem às leis de probabilidade. hoje institutos que, disciplinados, 0 primeiro com As sociedades anônimas passam, com fim freqüência no próprio código civil, 0 segundo, com do século XIX, a poder constituir-se para um fim freqüência em uma lei especial e, 0 terceiro, no có- civil e sua disciplina, que tende por seu turno, em digo civil e em leis especiais, são realmente de apli- muitos direitos, a passar pelas leis especiais, acaba cação geral. assim por ser uma disciplina única, independente 14 A própria distinção de jurisdição civil da diversidade do objeto social, com uma constan- mercantil começa, no fim do século XIX, a ser te sujeição da sociedade à lei mercantil, que nos abolida em muitos países; assim na Itália e no Bra- indica, na realidade, a passagem do instituto para sil. Isto por seu turno coopera para a aproximação 0 âmbito do direito comum. Por uma espécie de do direito comercial e do direito comum, pela pró-3S TULLIO ASCARELLI PANORAMA DO DIREITO COMERCIAL 39 pria conexão histórica e prática do direito subs- Tal acontece no Brasil tantivo e do direito processual. Foi, com efeito, Com efeito, ao passo que a codificação brasi- em conseqüência da abolição de uma jurisdição es- leira do direito comercial é de 1850, no direito civil pecial que direito comercial se fundiu no direito passou-se diretamente do sistema das ordenações, comum, na Inglaterra, desde fim do século ou seja, do sistema do direito romano-comum, ao é a subsistência da distinção jurisdicional que frisa código de 1916, ao passo que, na Europa ociden- ao contrário, na França, a distinção entre direito tal, códigos inspirados no código napoleônico civil e comercial. substituiram na primeira metade do século XIX 0 Se, como lembra SUMMER MAINE, direi- direito romano-comum anteriormente vigente, em to nasce da ação processual, é óbvia a importância virtude da profunda e benéfica renovação decor- da unificação ou da distinção processual para pre- rente da revolução francesa. código brasileiro parar a unificação, no primeiro caso, frisar a dis- de 1916 é sob alguns aspectos, 0 mais moderno dos tinção no segundo, do direito substantivo civil e códigos inspirados no código napoleão, continu- comercial. ando, entretanto, parece-me a tradição do Pode-se até notar que quando 0 código comer- direito romano-comum dos séculos XVII e XVIII, cial é de data muito anterior ao código civil, che- viva no direito brasileiro, civil e processual, gamos a encontrar no código civil princípios que, mais do que acontece nos demais Talvez, no terreno geral do direito comparado, são, à vis- seja dito entre parêntesis, é a vitalidade desta tra- ta do seu menor formalismo, considerados como ti- dição, 0 ponto de partida de algumas das diferen- picamente comercialísticos e, ao contrário, no có- ças entre as orientações da doutrina e da prática digo comercial, princípios que, no mesmo terreno, forense no Brasil e em demais países cujo direito são considerados como civilísticos 0 que, embora igualmente assenta no direito romano. Esta vita- aparentando 0 contrário, substancialmente de- lidade, por seu turno, se coaduna com 0 fato que monstra até que ponto os princípios do direito co- as ordenações filipinas constituiram, quando edi- mercial passam a ser princípios do direito comum tadas, um texto muito adiantado e completo em e corrobora por isso a afirmação de ser, afinal, confronto com 0 direito então vigente, que, por direito comercial uma categoria histórica. seu turno, se coaduna com a história política da40 TULLIO ASCARELLI PANORAMA DO DIREITO COMERCIAL 41 península ibérica tendo, de outro lado, vigora- não adotou, por exemplo, em matéria de resolu- do, no Brasil, até 0 século XX, e, portanto, duran- dos contratos, de prova por testemunhas, de SO- te um período muito longo, muito mais longo do ee lidariedade passiva, princípios que, em outros di- que período de vigência de qualquer outro diplo- do reitos, são indicados entre os mais característicos do ma légal em países de direito romanístico na épo- direito comercial, em contraposição ao civil. ca moderna. Talvez um dos característicos da situação ju- De qualquer forma, código civil de 1916 se rídica brasileira decorre justamente desta maior apresenta, às vêzes, mais moderno que 0 código modernidade do código civil de um lado, junto, en- de comércio de 1850 fato aliás natural à vista tretanto, com a influência da tradição do direito das respectivas datas, e por isso, sob alguns as- romano-comum dos séculos XVII e XVIII, e, de pectos, mais comercialístico. outro lado, de uma menor acentuação seja como Ao passo, exemplificadamente, que 0 código agora lembrava no código do comércio, seja na ati- comercial de 1850 não adota 0 princípio dies inter- vidade industrial e comercial, de alguns dos ca- pellat pro homine (embora se trate de um princí- racterísticos do moderno direito comercial. pio geralmente adotado no direito comercial, mes- Este último aspecto se coaduna por seu tur- mo quando não 0 seja no direito civil) código no, com a estrutura econômica do país e, no âm- civil adota êste princípio. bito do direito comercial, se manifesta no caráter Nota-se assim no Brasil, antes a tendência a prevalentemente familiar das sociedades anôni- aplicar no direito comercial princípios do direito no mas; no fato de preencher, no comércio interno, cel civil, do que a tendência inversa, ao contrário do a duplicata, cuja feição formal é mais próximo à que acontece nos demais países, mas esta aparente dos títulos probatórios, as funções que, nos demais civilisation du droit commercial é na realidade países, são preenchidas pela letra de câmbio; no uma confirmação da commercialisation du droit escasso desenvolvimento de um mercado de capi- privé, pois que decorre justamente da maior mo- tais cujo desenvolvimento constitui, ao contrário, dernidade e, releve-se a expressão, da maior comer- 0 ponto de partida de muitos dos problemas hodier- cialidade do código civil. nos do direito comercial europeu ou norte-america- De outro lado direito comercial brasileiro no. Doutro lado, a existência de uma lavoura de-42 TULLIO ASCARELLI PANORAMA DO DIREITO COMERCIAL 43 dicada, com freqüência, à produção de mercadorias glo-saxônio, apesar da profunda diferença dos ins- de exportação, por isso sujeitas às flutuações dos titutos e da ausência, no sistema anglo-saxônio, da grandes mercados internacionais, concorre para falência como instituto próprio aos comerciantes; caracterizar a situação brasileira e distinguí-la da abrandou-se 0 primitivo caráter de indignidade da européia. falência. Por um fenômeno num certo sentido inverso As orientações doutrinárias frisaram esta àquela commercialisation du droit privè que até transformação acentuando 0 caráter processual da agora vim lembrando, a falência, ao contrário, se falência e visando sujeitá-la aos princípios do di- foi aproximando dos princípios peculiares ao direi- reito processual comum. to comum, abrandando os seus característicos pró- Ao passo que, quanto ao processo de cogni- prios para se transformar num procedimento exe- ção, foram com freqüência os princípios do direito cutório concursual, comercial que, no desenvolvimento histórico, in- A evolução das leis recentes foi, com efeito, fluenciaram o direito comum, no caso da falência às vêzes abolindo ou abrandando a distinção do houve, talvez um fenômeno inverso. processo da falência em duas fases; abolindo De outro lado, porém, 0 princípio da concur- encerramento por union des creanciers qual se en- sualidade da falência tende a estender-se a todos contra no código francês e que evidencia um ca- OS casos em que haja uma pluralidade de credores. ráter quase que de execução privada, nas suas ori- Foi-se também, embora com a oposição da gens, peculiar à falência; passou-se, da falência doutrina, evidenciando 0 característico da falên- considerada como crime, a uma presunção de cul- cia como meio de liquidar uma situação onerosa, 0 pa na falência e, sucessivamente, à incriminação que se pode notar de um lado na evolução da con- apenas de determinados fatos, considerada a fa- cordata, e do outro, nas providências especiais di- lência como condição de punibilidade; a reabilita- tadas fora do campo comercial. ção foi disciplinada de modo sempre mais genero- 15 Talvez esta rápida, embora à vista do e chegou, na interpretação brasileira, a respei- tempo disponível, demasiado extensa, visão cine- tar também os efeitos patrimoniais da falência, matográfica, evidencie aquela função que quase aproximando-se por isso ao order of discharge an- diria, de bandeirante, preenchida em geral pelo di-44 TULLIO ASCARELLI PANORAMA DO DIREITO COMERCIAL 45 reito comercial e ligada ao significado e à função da sua autonomia. alcançar a solução de um problema insatisfeito; Elaborou êle, com efeito, em oposição ao di- criando-se novos instrumentos, quase diria novos reito comum, institutos mais típicos da econo- maquinismos jurídicos, para 0 progresso econômico mia moderna, aquêles que constituem quase que os técnico e a solução de problemas ocasionados por instrumentos jurídicos desta. êsse progresso Quem quisesse caracterizar no direito priva- Se, como se lê no talvez mais célebre de todos de do moderno 0 que mais 0 distingue dos direitos an- OS cursos jurídicos de extensão universitária, tigos dificilmente poderia indicar institutos mais naquela obra prima constituída pela Common Law típicos que as sociedades anônimas, títulos de de HOLMES the life of the law has been expe- moder crédito, 0 seguro, isto é, aquêles que, qualquer que rience, disso se pode encontrar confirmação no de- seja a sua hodierna colocação legislativa, foram senvolvimento histórico dos institutos do direito talvez os mais típicos institutos elaborados pelo comercial. direito comercial. 16 As exigências econômicas a que se pren- Até atingi-los, entretanto, 0 caminho percor- diam institutos do direito comercial fizeram-se rido foi longo, árduo e, em certo sentido um cami- sentir, de início, em um âmbito limitado; sucessiva- nho experimental; as soluções que representam não mente, se foram estendendo a tôda a economia. foram alcançadas de chofre, mas lenta e paulati- Foi por isso que, parece-me, direito comercial namente numa constante colaboração entre a lei, a se constituiu como um direito autônomo e especial doutrina e a jurisprudência, sendo às vêzes, apro- em contraposição ao direito romano-canônico veitados institutos do direito tradicional para adap- mum então vigente; que elaborou os seus institu- tações e desenvolvimentos, passando-se, quase que tos e seus princípios, em relação a matérias pe- experimentalmente, de aplicações particulares a culiares, malgrado se terem êles, sucessivamente, aplicações mais vastas, consoante as várias exi- tornado de aplicação sempre mais vasta e até ge- gências; se às vêzes que poderíamos ral a ponto de surgir 0 problema da sua recepção chamar de "invenções" jurídicas, isto é, novas com- geral do direito comum. binações de princípios jurídicos já conhecidos para É por isso que, embora a tese seja heterodoxa,46 TULLIO ASCARELLI PANORAMA DO DIREITO COMERCIAL 47 vejo no direito comercial uma categoria histórica, tuição como direito especial e do seu desenvolvi- aproximando, respeitadas, é óbvio, as profundas mento. diferenças, 0 fenômeno do direito comercial ao do Apresenta-se, por isso, 0 direito comercial, jus honorarium romano e ao da equity inglêsa. històricamente ligado nas suas origens, com a eco- comera A constituição de um direito comercial espe- nomia capitalística que, por seu turno, històrica- cial decorre das exigências daquela mente se liga à constituição da economia de mas- economia capitalística que, surgida com a burgue- sa; apresentam, hoje, muitos institutos do direito sia das cidades italianas e com característicos bem comercial uma correlação geral com a economia diversos dos até então tradicionais, foi progressi- de massa constituindo 0 instrumento jurídico desta. vamente renovando com espírito de racionalização, 17 A concepção que vinha expondo do "di- de risco, de livre concorrência, e de livre iniciativa constituição econômica. reito comercial" como categoria histórica, demons- Embora, como é óbvio, essa transformação tra, parece-me, 0 que há de exato e, simultânea- econômica tenha influenciado todo 0 direito e pos- mente, de unilateral, na tese da mediação, ou da sa indicar-se também entre as causas da renas- circulação, ou da emprêsa ou da produção em mas- cença do direito romano desde 0 século XII, encon- sa, que evidenciam, afinal, a primeira, 0 ramo de trou, ela, uma especial expressão jurídica no di- atividade em que, de início, se manifestaram his- reito comercial que, justamente por isso, passou a tòricamente as novas exigências; a segunda, uma preencher aquêle papel de bandeirante que lem- dos característicos fundamentais do sistema eco- bramos há pouco, passando, destarte, a elaborar nômico que se foi elaborando os instrumentos técnicos-jurídicos de uma quando considerado, afinal, na sua relação com economia de massa. mercado; a terceira um dos característicos dêste Coaduna-se, destarte, direito comercial no sistema quando considerado no que respeita à or- terreno da economia, não com determinada ativi- ganização técnica da produção; a quarta um ca- dade econômica, mas com determinado sistema de racterístico do sistema que cada vez mais se foi economia, encontrando no aparecimento e desenvol- acentuando e que concerne, igualmente, à técnica dêste sistema a explicação da sua consti- da produção. As três primeiras teses nos indicam48 TULLIO ASCARELLI PANORAMA DO DIREITO COMERCIAL 49 0 que, constituiu 0 ponto de parti- 0 caráter que lhe é próprio na economia, mas si- da da evolução do direito comercial; a última nos multâneamente transformado e modernizado a sua indica a função atual de muitos institutos dêsse ramo do direito, que justamente sob êste aspecto técnica; restringe-se, então, a contraposição en- tre lavoura, de um lado e atividade comercial e in- podem ser utilizados até independentemente de al- gumas entre as premissas em que, historicamente, dustrial de outro lado, e, conseqüentemente, apro- assentou seu desenvolvimento. ximam-se 0 sistema civilístico e 0 comercialístico; a posição do problema de unificação do di- Dita concepção parece-me justificar: fato de, 0 direito comercial, ter surgido na história do reito das obrigações e da extensão da falência que concernem afinal, à extensão a todos ramos de direito com 0 início de uma determinada economia atividade e, por isso, antes de mais nada, à lavou- e ter encontrado no seu desenvolvimento, um cam- ra de princípios e institutos comercialísticos do di- po de aplicação cada vez mais vasto em relação à reito das obrigações e da falência. progressiva extensão desta economia; a contraposição tradicional entre a lavoura, O primeiro dêstes dois problemas tem hoje, na prática, importância menor do que nas aulas uni- em que se conservou mais viva a forma patriarcal, e 0 direito comercial, e a própria posição, de iní- versitárias, justamente na medida em que, de fato, já se verificou a passagem de princípios do direi- cio, quase excepcional dêsse direito, à vista do ca- to comercial para 0 direito geral das obrigações, a ráter não só fundamental mas, a princípio, prevale- ponto de haver códigos civis que, por serem crono- cente, da lavoura entre as atividades econômicas, lògicamente posteriores aos correspondentes có- caráter que só com 0 século XIX se veio alterando, digos comerciais, são mais comercialísticos do que devido à industrialização; êstes. Na realidade, 0 que prevalece não é portanto a posterior aproximação entre 0 direito 0 problema de uma unificação do direito das obri- mercial e a lavoura: esta aproximação se mani- gações, já em grande parte realizada de fato, mas festa quando a lavoura passa a recorrer, sistemà- 0 da possibilidade da aplicação à lavoura, de al- ticamente, ao crédito bem organizado, racionaliza guns institutos comercialísticos; por exemplo, quan- seus métodos de exploração e, como significativa- to à mobilização do crédito; às garantias do cre- mente se diz, se industrializa, conservando assim dor mobiliário; aos limites desta possibilidadeTULLIO ASCARELLI PANORAMA DO DIREITO COMERCIAL 51 à vista das peculiaridades da lavoura, aliás, fre- corrência, junto, porém, com 0 esfôrço de avaliar diversas nas várias regiões; às ne- e, afinal de segurar 0 risco; a presunção de one- cessárias adaptações a serem feitas (já à vista do rosidade dos contratos e das obrigações comerciais ciclo de produção da lavoura e da prevalecente im- que, no código italiano, conduz ao princípio do ar- portância do elemento imobiliário, cuja situação tigo 41 a respeito dos juros até independentemen- jurídica é, já, de per si, sujeita à publicidade). te de mora, e à disciplina como contratos a título segundo dos problemas, referente à ex- oneroso, de contratos, (por exemplo 0 tensão da falência, prende-se, de um lado, à evolu- que são, ao contrário, a título gratuito, no direito dêste instituto e, de outro lado, à racionaliza- civil; caráter internacional e assim por diante; ção da lavoura e à utilização, nela feita, do crédi- os problemas que se foram levantando nos úl- to, até fora do campo hipotecário, com um oportu- timos decênios - à vista da progressiva acentua- no tecnicismo. ção do característico da produção como produção O ponto de vista desenvolvido no início dêste em massa, com a freqüente substituição de uma parágrafo explica, parece-me, os característicos pluralidade de pequenos empreendedores por gran- geralmente indicados como típicos do direito co- des emprêsas organizadas a respeito dos contra- mercial; a maior liberdade de formas e provas e tos de adesão, da concentração industrial e das a prevalência do princípio da boa-fé, que entretan- ligações entre sociedades, da luta contra os mono- to, não exclui, justamente, à vista das exigências pólios e assim por diante, visando tutelar a massa da tutela da boa-fé e da circulação, formalismo, dos consumidores em face das grandes emprêsas que aparece de novo nos títulos de crédito; a pre- organizadas, levar em conta os problemas que de- ocupação de cuidar dos problemas da circulação, correm da concentração do contrôle da riqueza, e- de mercados e bôlsas e bancos; a racionalização, já vitar que posições de privilégios obstem a expan- evidenciada nos livros dos comerciantes; a preocu- são econômica no interêsse de todos; a dimi- pação de tutelar crédito, à vista da entrosagem nuição de um lado, na evolução recente, de relações de débito e de crédito e da pluralidade da discricionariedade contratual, à vista de delas quanto a cada devedor, como resulta do ins- normas publicistas, a utilização, de outro lado, de tituto da falência; a liberdade de iniciativa e con- muitos institutos do direito comercial até no âm-52 TULLIO ASCARELLI bito do direito público ou para empreendimentos de caráter coletivo, passando, destarte, muitos ins- titutos do direito comercial a constituir mentos técnico-jurídicos gerais de uma economia de massa, frisando-se seu caráter técnico e fun- cional. Entre os institutos do direito privado, são AULA justamente os institutos do direito comercial os que se apresentam mais relacionados com desen- volvimento econômico. De um lado, por isso, os problemas do direito Resumo: comercial se coadunam com os problemas mais debatidos de nossa época, como os que respeitam 1 Consentimento e vinculum juris. princípio ao intervencionismo estatal e à liberdade de ini- da liberdade contratual a dos contratos. 3 Li- ciativa, à socialização e à propriedade privada; de berdade contratual e teoria geral dos contratos. 4 A re- outro lado, entretanto, a estrutura técnica dos ins- presentação. titutos do direito comercial, parece, com freqüên- cia, participar daquela "neutralidade" que é pecu- liar à técnica, numa medida maior do que acon- tece com os institutos do direito civil.

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