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FILOSOFIA – Prof. Fábio Mendes 
 
KANT e a boa vontade 
Immanuel Kant (1724 – 1804) foi, sem sombra 
de duvidas, o maior filósofo a surgir desde a 
Antiguidade Grega. Nasceu na Prússia, estado 
que deu origem à Alemanha, e nunca saiu de 
sua cidade natal, Königsberg. Apesar da vida 
monótona, causou uma verdadeira revolução 
na Filosofia ao inverter o objeto de investigação 
filosófica. Antes de Kant, achava-se que o ser 
humano poderia conhecer a realidade tal como 
é em si mesma; após seus escritos, ficou claro 
que não podemos conhecer além dos limites da 
experiência possibilitada por nosso aparato 
sensorial. 
Boa vontade e desinteresse 
Em relação à Ética, Kant foi igualmente 
influente e revolucionário. O conceito central 
está em perceber que o valor moral dos atos se 
relaciona ao que leva o agente a querer a ação 
praticada. O maior valor moral pode ser 
encontrado em ações feitas a partir de uma boa 
vontade, ou seja, uma vontade que quer uma 
ação porque a considera correta, boa em si, não 
porque o agente tem algum interesse no efeito. 
Um vendedor pode sempre ser honesto, por 
exemplo, mas suas ações só terão valor moral 
se ele assim agir porque considera que isso é 
correto. Por outro lado, se ele for honesto 
apenas porque tira certa vantagem (“Ah, se eu 
for honesto, terei mais clientes e, no final, mais 
lucro”) sua ação não é moral. A ação 
moralmente correta, com valor, é, então, 
aquela feita de forma desinteressada. 
Dever e valor moral 
Uma forma de entender com maior clareza o que 
significa uma ação ter valor moral é o conceito 
dever. Kant distingue 
ações que são feitas sem 
relação com o dever 
(amorais), ações que são 
contrárias ao dever 
(imorais) e ações 
conforme o dever moral. 
São amorais as ações que não são boas ou más 
(“passar por uma porta”; “almoçar”...). São 
imorais aquelas vão contra valores, que causam 
mal de forma deliberada (“enganar alguém para 
obter ganho pessoal”; “causar sofrimento sem 
motivo”). Além dessas temos as ações que, pelo 
menos a primeira vista, são morais, ou seja, 
respeitam certos valores e podem ser 
motivadas por uma boa vontade. Essas são 
ações feitas conforme o dever, por exemplo, o 
de “ser honesto”. Contudo, Kant nota que não 
basta saber se alguém fez seu dever: é preciso 
saber por que fez a ação para saber se ela teve 
valor moral. Usando o exemplo anterior do 
vendedor, na ação honesta somente “para 
obter mais clientes” o agente a realiza não 
porque reconhece o valor próprio da 
honestidade, mas porque ser honesto é um 
meio para outro fim, no caso, ganhar clientes. 
Essas são ações realizadas meramente 
conforme o dever e, ao não reconhecerem o 
valor de agir corretamente, não tem valor 
moral. Por outro lado, é possível que alguém 
seja honesto porque nota que isso é um bem, 
que ser honesto é seu dever, e ponto final. Kant 
diz que nesse segundo caso se é honesto 
conforme o dever e pelo dever e que somente 
essa ação tem valor moral. Agir pelo dever 
seria, então, a marca da boa vontade. 
Crítica à moral interessada 
Com essa concepção, Kant critica toda e qualquer 
tipo de ação que se pretende moral, ética, de 
valor, mas que visa algum tipo de benefício 
específico (como obter favores, dinheiro e 
prazer). Isso atinge em cheio aquelas 
concepções religiosas que enfatizam a 
necessidade de buscar o bem e evitar o mal 
FILOSOFIA – Prof. Fábio Mendes 
 
pela promessa do paraíso ou temor do inferno. 
Ter boa vontade é realizar uma ação por que 
notamos que ela, em si, é correta, sem visar 
algo além. Kant mostra que ser caridoso para 
ascender ao paraíso é idêntico a prestar uma 
ajuda para obter um favor (não se trata querer 
agir bem, mas de querer obter um benefício ou 
fugir de um mal). Essas são todas ações 
realizadas meramente conforme o dever e 
nenhuma delas possui valor moral 
O valor da ação moral 
Kant se esforça para entender a boa vontade e 
o que faz uma ação boa em si mesma se 
distinguir de uma ação meramente útil. Quando 
uma ação é útil, podemos dizer que a pessoa a 
executa para obter um resultado benéfico. De 
forma geral podemos dizer “Quero Y, então 
devo fazer X”, ou seja, só vou fazer X se tiver Y 
como objetivo (o dever X é um meio, Y é o fim 
buscado). O valor, portanto, está no resultado 
Y. Em relação às ações boas temos algo 
diferente: a ação conforme o dever X é feita 
porque ela, em si mesma, é considerada de 
valor. De forma geral, temos um “Devo fazer X” 
(mesmo que isso não seja agradável ou útil). 
Assim, a ação com valor moral, motivada pela 
boa vontade, é aquela que se basta a si mesma, 
cujo valor não depende de outras condições, 
circunstâncias ou desejos: tem valor absoluto. 
O Imperativo Categórico (IC) 
Kant chega, então, a uma formulação que 
traduz o querer característico da boa vontade, 
um querer algo de forma absoluta. Ele a chama 
de Imperativo (porque é um comando) 
Categórico (que vale sempre): “Age de tal forma 
que possa querer que tua máxima (a regra de 
ação) possa ser convertida em uma lei 
universal”. Essa é a lei moral, o critério pelo 
qual reconhecemos a moralidade as ações. Isso 
pode parecer confuso, mas não é tanto assim. O 
IC significa apenas que agimos de forma moral 
quando podemos querer isso para nós e para 
todos, em todos os casos. A mentira é imoral, 
porque, se a mentira fosse a regra, não haveria 
confiança e, então, a própria mentira não faria 
sentido. Da mesma forma, ser honesto é moral 
porque podemos querer que todas as pessoas 
em todos os casos sejam honestas (mesmo que 
isso leve a eventuais mágoas). 
Por outro lado, a regra que guia uma vontade 
interessada no resultado é muito mais simples: 
“Age de forma a obter o resultado”. Esse é 
considerado o Imperativo Hipotético, ou seja, 
uma regra do querer que só vale na hipótese de 
querermos outra coisa. Uma vontade que se 
guia por Imp. Hip. não é boa e suas ações não 
tem valor moral. 
Moralidade e Felicidade 
Aqui aparece uma questão fundamental: se 
sempre agimos para sermos felizes, então as 
todas nossas ações em busca da felicidade são 
frutos de Imp. Hip. Ora, como vimos, esses 
imperativos não revelam uma boa vontade. 
Então, segundo Kant, buscar a felicidade leva a 
ações imorais? A resposta de Kant é que, em 
geral, sim. Contudo, isso depende de que forma 
concebemos nossa felicidade: se ela se resumir 
à satisfação de nossos desejos, ela é imoral; 
mas se ela for concebida como mais do que 
isso, ela pode acarretar ações morais. Pode ser, 
por exemplo, que tenhamos uma profissão que 
nos dá prazer e um salário, mas que, além 
desses benefícios, nos permita fazer o que 
consideramos ser “o correto”. Nesse caso, é 
possível ser feliz e moral. Contudo, viver para 
ter dinheiro, saúde e conforto podem levar a 
uma vida feliz, mas não necessariamente a uma 
vida moral. Vale notar: alguém que vive 
somente para obter prazeres e benefícios 
dificilmente resistirá à imoralidade. 
 Máxima: regra que usamos para justificar uma ação 
 e que revela, então, nossa intenção. 
 Ex.: “Fui gentil com ela, porque era minha tia” 
 Máxima: “devemos ser gentis com nossos parentes” 
 A ação será moral se a máxima passar no teste do IC. 
FILOSOFIA – Prof. Fábio Mendes 
 
Boa vontade e vaidade 
Um aspecto importante sobre nossas ações é 
que somente nós conhecemos o que nos 
motiva. Duas pessoas podem ter sido filmadas 
fazendo caridade e, para quem assiste ao vídeo, 
ambas estão “fazendo a coisa certa”. Contudo, 
a verdade é que um pode estar de fato agindo 
pelo dever, pensando que a caridade e boa, e o 
outro meramente conforme o dever, 
interessado, por exemplo, na sua boa fama. 
Mesmo assim, reconhecida ou não sua boa 
vontade, a pessoa caridosa poderia ficar 
tranquila quanto o valor moral de seus atos e 
pensar “ah, mesmo que outras pessoas sejam 
caridosas por interesse, eu não”. 
Todavia, aconteceque o caso é mais complexo. 
Kant alerta para o fato de que ninguém, nem 
mesmo nós mesmos, pode conhecer a fundo o 
que nos motiva e que, além disso, temos um 
enorme carinho por nós mesmos. Resumindo: 
somos vaidosos. A pessoa caridosa pode, ao agir 
pelo dever, sentir-se superior aos outros, 
melhor do que eles, vaidosa de sua própria boa 
vontade. Então, seria uma ação, no final das 
contas, interessada, interessada em si mesmo. A 
solução para esse impasse seria nutrir uma 
saudável desconfiança em relação ao que 
realmente nos motiva a agir bem. “Fiz o que me 
pareceu correto, mas será que não foi fruto de 
vaidade?” é uma pergunta que precisamos nos 
fazer constantemente ao agir pelo dever. 
Autonomia: o valor inscrito no IC 
Kant continua investigando a natureza da 
moralidade a partir do IC. Esse fornece uma lei 
moral para todo e qualquer agente racional. 
Seja uma pessoa, seja um extraterrestre, se for 
racional, então pode entender o que é uma 
ação com valor moral. Em outras palavras, a 
razão é o que nos permite entender o que é “o 
correto” e, então, nos dá a capacidade de deixar 
de lado nossos desejos. Ser moral, portanto, é 
modo pelo ganhamos liberdade em relação aos 
nossos instintos e desejos, é o que faz com que 
nossa vontade seja livre. (Por outro lado, 
quando agimos a partir de um Imp. Hip., não 
somos livres, mas “escravos de nossos desejos” 
e temos nossas ações determinadas por eles.) 
Além disso, Kant percebe que a liberdade é o 
valor fundamental que se relaciona a 
moralidade. Esse tipo de liberdade é a 
Autonomia (auto=próprio + nomos=regra). Ao 
contrário de coisas que tem “valor para”, a 
autonomia tem “valor em si”, ela é o valor a ser 
preservado e promovido. Os seres racionais, 
aqueles que são capazes de serem autônomos, 
possuem um “valor fora de escala”, chamado 
“dignidade”. Portanto, Kant descobre na 
autonomia (através do IC) o fundamento da 
dignidade humana, que serve para justificar a 
existência de direitos humanos. Eles são nada 
mais do que o direto que todos temos a 
manifestar nossa liberdade de escolha. 
 
 
Fontes: 
- KANT, I. Crítica da razão prática. São Paulo: Martins 
Fontes, 2002. 
- KANT. I. Fundamentação da metafísica dos costumes 
[Os pensadores]. São Paulo: Abril Cultural, 1980. 
- HERMAN, B. Moral literacy. Harvard: U.P., 2007. 
- HERMAN, B. The practice of moral judgement. 
Harvard, U.P., 1993. 
FILOSOFIA – Prof. Fábio Mendes 
 
- MENDES, F. Moralidade, autonomia e educação em 
Kant: uma leitura a partir de Barbara Herman [Tese de 
doutorado]. Porto Alegre: UFRGS, 2013.

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