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Introduc¸a˜o a` Relatividade e F´ısica Quaˆntica Ronei Miotto Centro de Cieˆncias Naturais e Humanas Universidade Federal do ABC Armando Corbani Ferraz Instituto de F´ısica Universidade de Sa˜o Paulo Universidade Federal do ABC Santo Andre´, dezembro de 2011. Introduc¸a˜o a` Relatividade e F´ısica Quaˆntica Ronei Miotto Centro de Cieˆncias Naturais e Humanas Universidade Federal do ABC Armando Corbani Ferraz Instituto de F´ısica Universidade de Sa˜o Paulo Universidade Federal do ABC Santo Andre´, dezembro de 2011. c© R. Miotto e A. C. Ferraz Dados Internacionais de Catalogac¸a˜o na Publicac¸a˜o (CIP) (Caˆmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Biblioteca´rio Gesialdo Silva do Nascimento CRB-8 no 7102 Introduc¸a˜o a` relatividade e f´ısica quaˆntica / Ronei Miotto, Armando Corbani Ferraz – Santo Andre´: Universidade Federal do ABC, 2011. 156 p. ISBN: 978-85-65212-05-2 1.F´ısica 2. Relatividade 3. F´ısica quaˆntica 4.Ensino a distaˆncia I. MI- OTTO, Ronei .II. FERRAZ, Armando Corbani III. Titulo. CDD 530 a` Adriana, Victoria e Ricardo Apresentac¸a˜o Ja´ e´ centena´ria a chamada F´ısica Moderna que atrave´s de ousadas con- cepc¸o˜es transformou e continua a transformar nosso cotidiano e nos propiciou uma nova concepc¸a˜o de como a natureza se manifesta. Essa verdadeira revoluc¸a˜o cient´ıfica ocorreu com o desenvolvimento das Teoria da Relatividade e da Mecaˆnica Quaˆntica no in´ıcio do se´culo XX, dando respostas e explicando de maneira inovadora os descobrimentos e resultados experimentais inexplica´veis pelas Leis da Natureza conhecidas e estabelecidas ate´ aquela e´poca. O objetivo desse livro e´ apresentar um breve histo´rico, os princ´ıpios funda- mentais e o desenvolvimento conceitual em um curso de um per´ıodo, voltado aos estudantes que ja´ tenham conclu´ıdo cursos de f´ısica ba´sica e ca´lculo ele- mentar. Atrave´s de exemplos simples associados a nossa atualidade, aplicamos essas novas teorias em alguns sistemas, notadamente os microsco´picos. vi Miotto e Ferraz Apresentac¸a˜o Suma´rio Apresentac¸a˜o v 1 Introduc¸a˜o 1 2 A Teoria da Relatividade Especial 3 2.1 Antecedentes Histo´ricos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3 2.1.1 O Conceito Mecaˆnico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4 2.1.2 A natureza da luz e o e´ter . . . . . . . . . . . . . . . . . 7 2.2 A proposta de Einstein . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15 2.3 Consequeˆncias dos Postulados de Einstein . . . . . . . . . . . . 16 2.3.1 A dilatac¸a˜o temporal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18 2.3.2 O Paradoxo dos Geˆmeos . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21 2.3.3 A contrac¸a˜o espacial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22 2.3.4 Dinaˆmica relativ´ıstica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25 2.4 A utilidade da Teoria da Relatividade . . . . . . . . . . . . . . 32 3 A Teoria Quaˆntica 33 3.1 Antecedentes experimentais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33 3.1.1 Primeiras Descobertas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34 3.2 Radiac¸a˜o do corpo negro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35 3.2.1 Formu´las emp´ıricas da distribuic¸a˜o espectral . . . . . . 41 3.2.2 A Lei Cla´ssica da Radiac¸a˜o Te´rmica . . . . . . . . . . . 41 3.2.3 A teoria de Planck sobre a radiac¸a˜o do calor . . . . . . 45 3.2.4 A introduc¸a˜o dos quanta . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48 3.2.5 Implicac¸o˜es do postulado de Planck . . . . . . . . . . . 50 3.3 O efeito fotoele´trico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 52 3.3.1 Os argumentos de Einstein . . . . . . . . . . . . . . . . 56 3.4 Efeito Compton . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 58 3.4.1 Ana´lise Quantitativa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59 3.5 A natureza dual da radiac¸a˜o eletromagne´tica . . . . . . . . . . 61 viii Miotto e Ferraz SUMA´RIO 4 Modelos Atoˆmicos 63 4.1 Antecedentes Experimentais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 64 4.1.1 Fo´rmulas emp´ıricas espectrais . . . . . . . . . . . . . . . 64 4.1.2 A descoberta do ele´tron . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67 4.2 O Modelo de Thomson . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69 4.3 Modelo de Rutherford . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71 4.3.1 A estabilidade do a´tomo nuclear . . . . . . . . . . . . . 73 4.4 O modelo de Bohr . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 74 4.4.1 Aplicac¸a˜o do Princ´ıpio da Correspondeˆncia . . . . . . . 79 4.4.2 Extenso˜es do Modelo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79 4.5 Confirmac¸o˜es experimentais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 80 4.5.1 O Experimento de Moseley dos espectros de Raios-X . . 81 4.5.2 O experimento de Franck-Hertz . . . . . . . . . . . . . . 81 4.6 A regra de quantizac¸a˜o de Wilson-Sommerfeld . . . . . . . . . 84 4.7 Cr´ıtica a` teoria de Bohr e a` Velha Teoria Quaˆntica . . . . . . . 85 5 Propriedades ondulato´rias de part´ıculas 87 5.1 Evideˆncias Experimentais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89 5.2 Pacotes de ondas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 92 5.3 Pacotes de ondas associadas a ele´trons . . . . . . . . . . . . . . 93 5.4 A interpretac¸a˜o probabil´ıstica da func¸a˜o de onda . . . . . . . . 94 5.5 O Princ´ıpio de Incerteza . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97 5.6 Dualidade onda-part´ıcula . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99 5.7 Algumas consequeˆncias do Princ´ıpio de Incerteza . . . . . . . . 102 6 Introduc¸a˜o a` Mecaˆnica Quaˆntica 105 6.1 A equac¸a˜o de Schro¨dinger . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 106 6.1.1 Condic¸o˜es sobre a func¸a˜o de onda . . . . . . . . . . . . 108 6.1.2 A Equac¸a˜o de Schro¨dinger independente do tempo . . . 109 6.1.3 O poc¸o quadrado infinito . . . . . . . . . . . . . . . . . 110 6.1.4 O poc¸o quadrado finito . . . . . . . . . . . . . . . . . . 113 6.2 Valores esperados e operadores . . . . . . . . . . . . . . . . . . 116 6.3 Transic¸o˜es entre estados de energia . . . . . . . . . . . . . . . . 118 6.3.1 Elementos de Matriz e Regras de Selec¸a˜o . . . . . . . . 120 6.4 Reflexa˜o e transmissa˜o de ondas . . . . . . . . . . . . . . . . . 121 6.4.1 Potencial degrau . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 122 6.4.2 Potencial poc¸o quadrado . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123 6.4.3 Penetrac¸a˜o em uma barreira de potencial (tunelamento) 124 6.5 A equac¸a˜o de Schro¨dinger em treˆs dimenso˜es . . . . . . . . . . 125 6.6 A equac¸a˜o de Schro¨dinger para duas ou mais part´ıculas . . . . 126 6.7 A´tomos de um ele´tron . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 130 6.8 O spin do ele´tron . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 136 6.9 O experimento de Stern-Gerlach . . . . . . . . . . . . . . . . . 138 6.10 Comenta´rios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 140 SUMA´RIO Miotto e Ferraz ix I´ndice Remissivo 142 x Miotto e Ferraz SUMA´RIO Cap´ıtulo 1 Introduc¸a˜o Ao final do se´culo XIX a F´ısica parecia ter atingido o seu cl´ımax. As Leis de Newton para a Mecaˆnica e a Gravitac¸a˜o vinham sendo aperfeic¸oadas desde o se´culo XVII, e descreviam com grande precisa˜o o comportamento dos corpos celestes e terrestres. As propriedades ele´tricas e magne´ticas, por sua vez, ha- viam sido unificadas por James Maxwell em uma Teoria Eletromagne´tica. Um dos mais nota´veis avanc¸os da Teoria de Maxwell foi a demonstrac¸a˜o de que a luz, o raio-X e o raio ultravioleta sa˜o exemplos de ondas eletromagne´ticas que se propagam pelo espac¸o. Do ponto de vista microsco´pico, a Termodinaˆmica e a enta˜o nascente Mecaˆnica Estat´ıstica relacionavam efeitos macrosco´picos, como pressa˜o e temperatura, com causas microsco´picas como a distribuic¸a˜o de energia dos gases ideais. Com as regras para o comportamento da mate´ria e dasondas definidas, caberia aos f´ısicos apenas o trabalho de aplica´-las. Na˜o existiriam fenoˆmenos que na˜o pudessem ser explicados atrave´s de tais teo- rias e bastaria o desenvolvimento das te´cnicas existentes para fenoˆmenos mais complexos. Um fato marcante que ilustra esse quadro ocorreu em 27 de abril de 1900, de forma aparentemente casual. Lorde Kelvin, enta˜o dirigente da Royal Ins- titution of Great Britain (uma das mais prestigiadas sociedades cient´ıficas de enta˜o), proferia uma palestra intitulada Nineteenth-Century Clouds over the Dynamical Theory of Heat and Light (As nuvens do se´culo dezenove sobre a Teoria Dinaˆmica do Calor e da Luz), descrevendo as teorias aceitas ate´ enta˜o. Kelvin chegou, inclusive, a sugerir que a F´ısica teria atingido o seu limite. No entanto, como ele mesmo observou, havia um pore´m, dois fenoˆmenos ainda es- tavam para ser explicados. A esses dois fenoˆmenos Kelvin chamou de nuvens que obscureciam a beleza e clareza das teorias f´ısicas: a primeira nuvem, envol- via a forma como a luz se propaga pelo espac¸o; a segunda, esta´ relacionada ao problema de como distribuir energia de forma homogeˆnea entre mole´culas vi- brantes. Em sua apresentac¸a˜o, Kelvin chegou a propor suas pro´prias soluc¸o˜es para tais nuvens. Todavia, suas previso˜es mostraram-se totalmente equivoca- 2 Miotto e Ferraz Introduc¸a˜o das. Ironicamente, o que Kelvin chamou de nuvens no horizonte eram de fato tempestades que modificaram substancialmente toda a F´ısica do se´culo XX. Os fenoˆmenos em questa˜o eram o experimento de Michelson e Morley, que procurava determinar a velocidade da luz que incidia sobre a Terra vinda de diferentes direc¸o˜es, e o estudo da distribuic¸a˜o de energia da luz emitida por materiais em altas temperaturas. Para Kelvin, e tambe´m para os demais f´ısicos da e´poca, a luz era uma vibrac¸a˜o e, como qualquer outra vibrac¸a˜o, podia ser tratada atrave´s das Leis de Newton. Tais vibrac¸o˜es deveriam ocorrer em algum meio, de forma que os f´ısicos propuseram que o espac¸o na˜o era vazio, mas sim preenchido por um meio com propriedades quase mı´sticas chamado e´ter. Todavia isso significa que a velocidade da luz medida a partir de um referencial na Terra deveria depender de qua˜o ra´pido e em qual direc¸a˜o a Terra se move. Como a Terra gira em torno do sol, essa direc¸a˜o muda a cada instante, o que implica dizer que a velocidade da luz tambe´m deveria variar no decorrer do ano. Michelson e Morley propuseram um experimento que tinha por finalidade detectar tais variac¸o˜es. Apesar das variac¸o˜es na posic¸a˜o da Terra em relac¸a˜o a estrelas muito distantes, na˜o foram observadas quaisquer variac¸o˜es na velocidade da luz nesse experimento. O miste´rio sobre a velocidade da luz e a existeˆncia ou na˜o do e´ter so´ pode ser resolvido com a introduc¸a˜o de uma nova abordagem: a Teoria da Relatividade, que abordaremos no Cap´ıtulo 2. A outra nuvem no horizonte de Kelvin, a distribuic¸a˜o de energia em mole´cu- las vibrantes, demandou uma revoluc¸a˜o ta˜o radical na forma de pensarmos quanto a Teoria da Relatividade: a Teoria Quaˆntica. A soluc¸a˜o para tais pro- blemas revolucionaria a forma como encaramos o mundo e sa˜o as consequeˆncias dessa revoluc¸a˜o em nosso dia a dia que queremos trazer para voceˆs. No cap´ıtulo 3, abordaremos as primeiras descobertas relacionadas ao calor e uma de suas formas de propagac¸a˜o que levaram a` proposta de Planck da quantizac¸a˜o. Nos demais cap´ıtulos sera˜o discutidas outras descobertas que se seguiram, como o efeito fotoele´trico, o efeito Compton e a descric¸a˜o microsco´pica da mate´ria atrave´s de modelos matema´ticos. Finalmente, abordaremos a descric¸a˜o mo- derna dos estados microsco´picos da mate´ria, a chamada Mecaˆnica Quaˆntica. Cap´ıtulo 2 A Teoria da Relatividade Especial Por mais de 200 anos acreditou-se que as equac¸o˜es de movimento enun- ciadas por Newton descreviam a natureza corretamente. Apenas no final do se´culo XIX, observac¸o˜es experimentais que na˜o podiam ser explicadas atrave´s das relac¸o˜es de Newton culminaram com o desenvolvimento, por Einstein, da Teoria da Relatividade. Por razo˜es histo´ricas a Teoria da Relatividade e´ usual- mente dividida em duas partes: a Teoria da Relatividade Especial (ou Restrita) e a Teoria da Relatividade Geral. A primeira foi introduzida por Einstein em 1905 e apresenta uma formulac¸a˜o matema´tica relativamente simples, enquanto a segunda, desenvolvida tambe´m por Einstein em 1916, e´ baseada em um for- malismo matema´tico elaborado, sendo utilizada principalmente para resolver problemas nas a´reas de Cosmologia e Gravitac¸a˜o. Neste trabalho discutiremos como a Teoria da Relatividade Especial foi sendo paulatinamente constru´ıda pelo me´todo indutivo, partindo dos va´rios fenoˆmenos e dados experimentais relacionados com a velocidade da luz. Nas secc¸o˜es seguintes analisaremos o processo de extensa˜o desse modelo para outros campos e sua utilizac¸a˜o, mesmo que na˜o diretamente percebida, em fenoˆmenos e aplicac¸o˜es cotidianas. 2.1 Antecedentes Histo´ricos A Teoria da Relatividade Especial preveˆ que relo´gios e re´guas que se movem em relac¸a˜o a um referencial inercial comportam-se de maneira diferente da- queles que se encontram em repouso em relac¸a˜o a este referencial. Relo´gios em movimento funcionam mais devagar e re´guas se encolhem ao longo da direc¸a˜o do movimento. Se na F´ısica Cla´ssica espac¸o e tempo fornecem, em cada teoria ou experimento, um alicerce absoluto e imuta´vel de qualquer processo f´ısico; na Teoria Especial, este alicerce depende do sistema de refereˆncia no qual um 4 Miotto e Ferraz A Teoria da Relatividade Especial processo f´ısico particular e´ medido1, o que contradiz nossas experieˆncias coti- dianas. Mas como ocorreu essa revoluc¸a˜o nos conceitos f´ısicos? Nessa secc¸a˜o vamos analisar os conceitos e experimentos que levaram Einstein a reformu- lar a f´ısica cla´ssica2. Inicialmente apresentaremos suscintamente o conceito mecaˆnico, ideia predominante na e´poca, os experimentos que culminaram com o seu decl´ınio e a proposic¸a˜o de Einstein da Teoria da Relatividade Especial. 2.1.1 O Conceito Mecaˆnico A Mecaˆnica Cla´ssica, tambe´m conhecida como Mecaˆnica Newtoniana, e´ utilizada na descric¸a˜o do movimento de objetos macrosco´picos quer sejam eles pequenos proje´teis, partes de outros sistemas mecaˆnicos ou objetos as- tronoˆmicos. Sua formulac¸a˜o e´ razoavelmente simples e permite a obtenc¸a˜o de resultados bastante precisos das grandezas macrosco´picas medidas, sendo uma das mais antigas a´reas da Cieˆncia. De fato, apesar de sua formulac¸a˜o matema´tica so´ ter sido proposta por Newton, filo´sofos gregos e, em especial, Aristo´teles esta˜o entre os primeiros a propor os princ´ıpios abstratos que go- vernam a natureza. Em sua obra De Caelo (ou Nos Ce´us), Aristo´teles ja´ fazia distinc¸a˜o entre movimento natural e movimento forc¸ado e ja´ lanc¸ava as primeiras bases para o conceito de ine´rcia. O processo anal´ıtico intuitivo de Aristo´teles foi, posteriormente, substitu´ıdo pela metodologia cient´ıfica de Galileu, onde a experimentac¸a˜o era utilizada para a comprovac¸a˜o de hipo´teses. Uma das grandes contribuic¸o˜es de Gali- leu para o avanc¸o da Cieˆncia foi propor que as leis da natureza poderiam ser expressas matematicamente3. Essa proposta, aparentemente simples, revolu- cionou a forma de representar os fenoˆmenos cotidianos. Algumas contribuic¸o˜es de Galileu para a compreensa˜o do movimento dos corpos esta˜o em seu conhecido trabalho de 1638 Discorsi e dimostrazioni ma- tematiche intorno a due nuove scienze4. Esses estudos combinados com o trabalho de Newton sintetizado no Philo- sophae Naturalis Principia Mathematica5 (Princ´ıpios Matema´ticos da Filosofia 1Na Teoria da Relatividade Geral o problema e´ ainda mais complexo, pois os alicerces da teoriadependem ate´ mesmo da distribuic¸a˜o de massa e energia no universo. 2Revista Brasileira de Ensino de F´ısica (vol. 27, nu´mero 1, p. 27 (2004)) 3Em seu livro Il Saggiatore, de 1623, Galileu ja´ registra: A filosofia esta´ escrita neste grande livro que esta´ sempre aberto diante dos nossos olhos (eu digo o universo), mas na˜o se pode entender o que ali esta´ sem se entender a l´ıngua, conhecer os personagens, nem o que esta´ ali escrito. Ele esta´ escrito na linguagem matema´tica. Traduc¸a˜o livre do autor para o original em italiano La filosofia e` scritta in questo grandissimo libro che continuamente ci sta aperto innanzi a gli occhi (io dico l’universo), ma non si puo` intendere se prima non s’impara a intender la lingua, e conoscer i caratteri, ne’ quali e` scritto. Egli e` scritto in lingua matematica. As obras completas de Galileu esta˜o dispon´ıveis em italiano em http://www.liberliber.it/biblioteca/g/galilei/index.htm. 4Ver http://www.liberliber.it/biblioteca/g/galilei/index.htm (em ita- liano) e http://galileoandeinstein.physics.virginia.edu/tns_draft/index. html (em ingleˆs). 5Ver http://astro.if.ufrgs.br/newton/principia.pdf (em latim) e http:// 2.1 Antecedentes Histo´ricos Miotto e Ferraz 5 Natural) constituem a Mecaˆnica Newtoniana, um dos principais fundamentos da F´ısica Cla´ssica. A Mecaˆnica Newtoniana e´ modernamente expressa atrave´s de treˆs Leis Fundamentais (ou Leis de Newton) que representam as bases da Dinaˆmica6: 1. Todo corpo persiste em seu estado de repouso, ou de movimento retil´ıneo uniforme, a menos que seja compelido a modificar esse estado pela ac¸a˜o de forc¸as impressas sobre ele; 2. Um corpo que sofre a ac¸a˜o de uma forc¸a move-se de modo tal que a taxa de variac¸a˜o temporal do momento linear e´ igual a` forc¸a; 3. A toda ac¸a˜o corresponde uma reac¸a˜o igual e contra´ria, ou seja, as ac¸o˜es de dois corpos um sobre o outro sa˜o sempre iguais e dirigidas em sentidos opostos. Todavia, para que possamos obter de tais leis fundamentais concluso˜es quantitativas e´ necessa´rio introduzir uma matematizac¸a˜o do problema que exige um conjunto de suposic¸o˜es, especialmente a`quelas relacionadas a` natu- reza do espac¸o e do tempo, sobre as quais muitas vezes na˜o nos damos conta. Um dessas suposic¸o˜es e´ a existeˆncia de um tempo absoluto, definido por New- ton em seu Principia como: O tempo absoluto, verdadeiro e matema´tico, por si so´ e por sua pro´pria natureza, flui uniformemente, sem relac¸a˜o com nenhuma coisa extensa, e e´ tambe´m chamado durac¸a˜o. Em outras palavras, Newton propo˜e que o tempo f´ısico tem sua definic¸a˜o associado a objetos concretos, como relo´gios ou outros sistemas de medic¸a˜o. Todavia, Newton na˜o conside- rou a possibilidade de que esses objetos, tambe´m sujeitos as Leis da F´ısica, poderiam ter seu funcionamento afetado por alguma condic¸a˜o f´ısica especial. Outro aspecto fundamental da Dinaˆmica esta´ relacionado a` escolha de um sistema de refereˆncia, ou por simplicidade, referencial. Um referencial e´ dito inercial quando nele e´ va´lida a Primeira Lei de Newton, ou seja, na auseˆncia de forc¸as o referencial permanece em repouso ou em movimento retil´ıneo uni- forme7. Decorre desse fato que qualquer referencial em movimento retil´ıneo www.archive.org/details/newtonspmathema00newtrich (em ingleˆs). 6A breve descric¸a˜o aqui apresentada tem como u´nico objetivo introduzir alguns conceitos que sera˜o discutidos no contexto da Relatividade Especial. Para maiores detalhes, consulte a literatura especializada, como por exemplo o livro introduto´rio Curso de F´ısica Ba´sica - 1. Mecaˆnica, de autoria de H. Moyse´s Nussenzveig, Edgard Blu¨cher 1996. 7Intuitivamente sabemos que na˜o existe uma velocidade absoluta, mas sera´ que existe uma acelerac¸a˜o absoluta, conforme sugerido por Newton? Imagine que voceˆ esta´ no vaga˜o restaurante de um trem que viaja em um estrada retil´ınea e plana, tomando um belo prato de sopa. Se o trem move-se a velocidade constante, a sopa no prato esta´ nivelada e na˜o oferece a voceˆ nenhuma informac¸a˜o acerca da velocidade do trem. Por outro lado se o trem muda sua velocidade, a sopa apresentara´ um desn´ıvel para um dos lados do prato e voceˆ podera´ afirmar em qual direc¸a˜o e com qual intensidade a velocidade varia, ou seja, qual e´ a intensidade e direc¸a˜o da acelerac¸a˜o. A partir desse tipo de observac¸a˜o, Newton sugeriu que seria conveniente indicar uma classe de observadores preferenciais: os observadores na˜o acelerados ou observadores inerciais. Neste trabalho o termo referencial sempre se refere a um observador ou referencial inercial. 6 Miotto e Ferraz A Teoria da Relatividade Especial uniforme em relac¸a˜o a um referencial inercial e´ tambe´m inercial. Dessa forma, na˜o existe um referencial privilegiado, o que Galileu sintetizou atrave´s do que chamamos Princ´ıpio de Relatividade de Galileu: as leis da Mecaˆnica Newto- niana sa˜o as mesmas em qualquer referencial inercial. Figura 2.1: Representac¸a˜o esquema´tica de um referencial O1 deslocando-se em relac¸a˜o ao referencial O com velocidade v1. Como sugerido pelo pro´prio Galileu, e´ necessa´rio mostrar que esse Princ´ıpio da Relatividade pode ser representado matema- ticamente. Isso significa que e´ necessa´rio mostrar que as Leis de Newton devem ter expresso˜es equivalentes em dois referenciais inerciais diferentes. Considere, enta˜o, um referencial inercial, que chamaremos O1, deslocando- se com velocidade constante v1 na direc¸a˜o x em relac¸a˜o a um outro referencial inercial O. E´ poss´ıvel mostrar que as Leis de Newton permanecem invariantes atrave´s da transformac¸a˜o: x1 = x− vt y1 = y z1 = z t1 = t (2.1) Transformac¸a˜o que e´ conhecida como Transformac¸a˜o de Galileu. O sucesso da Mecaˆnica Cla´ssica na descric¸a˜o do movimento de objetos ma- crosco´picos, desde proje´teis ate´ gala´xias, levou a tentativas de generalizar seus conceitos aplicando-os a outras a´reas do conhecimento. Essa apropriac¸a˜o de ideias de uma a´rea por outra e´ bastante comum em Cieˆncia e Tecnologia e con- tinua a ocorrer. Os economistas, por exemplo, utilizam a Teoria Lagrangeana e Hamiltoniana (importantes ferramentas matema´ticas da Mecaˆnica Cla´ssica) no estudo e ana´lise de casos relacionados a` tomadas de decisa˜o, minimizac¸a˜o de custos e maximizac¸a˜o de lucros8. 8Um exemplo interessante da aplicac¸a˜o da Teoria de Lagrange em outras a´reas que na˜o a F´ısica e´ o trabalho multidisciplinar de Caldas e colaboradores sobre a ocupac¸a˜o e desma- tamento de a´reas da amazoˆnia que pode ser encontrado na Revista Brasileira de Economia 57, 683 (2003) e dispon´ıvel na base de dados www.scielo.br. 2.1 Antecedentes Histo´ricos Miotto e Ferraz 7 Detalhes matema´ticos: A Transformac¸a˜o de Galileu e as Leis de Newton A partir da transformac¸a˜o 2.1 e´ poss´ıvel determinar-se a velocidade ~u1 do corpo em relac¸a˜o ao sistema inercial O1 em termos das componentes da velocidade ~u em relac¸a˜o ao sistema inercial O: u1,x = dx1 dt = d dt (x− v1t) = dxdt − v1 = ux − v1 u1,y = dy1 dt = d dt (y) = uy u1,z = dz1 dt = d dt (z) = uz . (2.2) De forma ana´loga, determina-se a acelerac¸a˜o ( ~a1) em relac¸a˜o ao sistema inercial O1 em termos das componentes da acelerac¸a˜o (~a) em relac¸a˜o ao sistema inercial O, o que permite escrever a Segunda Lei de Newton (em termos de suas componentes) como: F1,x = ma1,x = m d dt (u1,x) = m d dt (ux − v1) = max F1,y = ma1,y = m d dt (u1,y) = m d dt (uy) = may F1,z = ma1,z = m d dt (u1,z) = m d dt (uz) = maz . (2.3) ou seja, se no referencial em repouso ~F = m~a, enta˜o no referencial em movimento tambe´m vale ~F1 = m~a1, demonstrando a validade da Segunda Lei de Newton nos dois referenciais. 2.1.2 A natureza da luz e o e´ter Umoutro exemplo da apropriac¸a˜o de ideias de uma a´rea da F´ısica por outra e´ a utilizac¸a˜o do conceito mecaˆnico na elaborac¸a˜o de uma teoria para a luz. A teoria e´ simples e condizente com o conhecimento mais aceito9 em meados do se´culo XVIII: admite-se que todos os corpos iluminados emitem part´ıculas de luz, ou corpu´sculos, os quais, ao atingirem os olhos do observador, criam a sensac¸a˜o de luz. Esses corpu´sculos devem caminhar em linha reta pelo espac¸o vazio com uma velocidade conhecida, levando aos olhos do observador mensagens dos corpos emissores de luz. Todos os fenoˆmenos que exibem a propagac¸a˜o linear da luz justificam a teoria corpuscular, pois justamente esse tipo de movimento foi previsto para os corpu´sculos10. Em contraposic¸a˜o a` teoria corpuscular de Newton, Huygens sugeriu em seu trabalho sobre a luz11 que: Se, ale´m disso, a luz gastar tempo para a sua passagem seguir-se-a´ que esse movimento, imprimido a` mate´ria intermedia´ria, e´ sucessivo; e, consequentemente, ela se espalha, como o faz o som, em su- perf´ıcies esfe´ricas e ondas, pois eu as chamo ondas por causa de sua seme- lhanc¸a com as que se veˆ formarem-se na a´gua quando nela se joga uma pedra, 9Isaac Newton, Opticks or a treatise of the reflections, refractions, inflections and colours of light (1704), co´pias da edic¸a˜o original esta˜o dispon´ıveis em http://www.rarebookroom. org/Control/nwtopt/index.html 10A teoria tambe´m explica com muita simplicidade a reflexa˜o da luz por espelhos como sendo o mesmo tipo de reflexa˜o que e´ mostrado na experieˆncia mecaˆnica de bolas ela´sticas lanc¸adas de encontro a uma parede. A explicac¸a˜o da refrac¸a˜o e´ um pouco mais complexa, exigindo considerac¸o˜es sobre a atuac¸a˜o de forc¸as que alterem a velocidade de propagac¸a˜o dos corpu´sculos quando da mudanc¸a de meio, mas na˜o apresenta grandes restric¸o˜es conceituais. 11Traite´ de la lumiere (Leiden, Netherlands: Pieter van der Aa, 1690), co´pias da edic¸a˜o original esta˜o dispon´ıveis em http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k5659616j 8 Miotto e Ferraz A Teoria da Relatividade Especial e que apresentam uma expansa˜o sucessiva em c´ırculos, embora estes resultem de outra causa e estejam apenas em uma superf´ıcie plana12. Assim, Huygens sugere ser a luz uma onda e propo˜e a existeˆncia de uma substaˆncia hipote´tica, o e´ter, um meio transparente que permeia todo o uni- verso. O e´ter seria, enta˜o, o suporte para a transmissa˜o da luz, assim como o ar o e´ para a transmissa˜o do som. A existeˆncia dessa substaˆncia em todo o espac¸o deveria, de alguma forma, influenciar o comportamento de outros corpos que por ela propagassem, notadamente os planetas. Todavia, os astroˆnomos na˜o observavam quaisquer anomalias nas trajeto´rias dos planetas que pudessem ser associadas ao e´ter. Isso significa que o e´ter deveria existir, mas ao mesmo tempo ser imo´vel e atravessar todos os corpos sem afeta´-los de modo algum. Apesar das restric¸o˜es relacionadas ao e´ter, a Teoria Ondulato´ria de Huygens permitia uma explicac¸a˜o mecaˆnica mais simples e completa da propagac¸a˜o da luz, incluindo na˜o apenas os fenoˆmenos de reflexa˜o e refrac¸a˜o, mas tambe´m de interfereˆncia. A grande restric¸a˜o a` teoria ondulato´ria de Huygens era a neces- sidade de supor-se a existeˆncia do e´ter. Esse aspecto, contudo, na˜o impediu a ampla aceitac¸a˜o da teoria ondulato´ria da luz, ja´ que como em outras tentati- vas de compreender os fenoˆmenos da natureza do ponto de vista mecaˆnico, a introduc¸a˜o do e´ter teve o mesmo papel de outras substaˆncias artificiais com os fluidos ele´trico e magne´tico ou os corpu´sculos de luz: concentrar as dificuldades em um u´nico ponto essencial. Se por um lado, restric¸o˜es relacionadas ao e´ter eram apontadas; de outro, algumas evideˆncias importantes davam suporte a teoria ondulato´ria de Huy- gens. O trabalho de Euler sobre a teoria da luz e das cores13, por exemplo, pode ser considerado um dos mais completos trabalhos sistema´ticos em favor da teoria ondulato´ria publicado no se´culo XVIII. Nesse trabalho, Euler mostra claramente que a difrac¸a˜o da luz pode ser mais facilmente explicada atrave´s de uma teoria ondulato´ria14. Outro trabalho decisivo na aceitac¸a˜o da teoria ondulato´ria para a luz foram os experimentos relatados por Thomas Young em 180315 que demonstravam que nessa teoria o fenoˆmeno de interfereˆncia podia ser explicado de forma ana´loga a` interfereˆncia entre ondas sonoras, ale´m de prever que a luz poderia ser polarizada. Young tambe´m mostrou por meio de experimentos de difrac¸a˜o que a luz se comportava como ondas e que cores diferentes eram causadas por diferentes comprimentos de onda da luz. De todos os estudos que contribuiram para a aceitac¸a˜o da teoria ondulato´ria da luz, o trabalho de James Clerk Maxwell 16 sobre a radiac¸a˜o eletromagne´tica 12Extra´ıdo de Albert Einstein e Leopold Infeld, A evoluc¸a˜o da f´ısica, traduc¸a˜o Giasone Rebua´ (Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1980). 13Nova theoria lucis et colorum, Opuscula varii argumenti 1, 169-244 (1746); dispon´ıvel em http://eulerarchive.maa.org/pages/E088.html. 14Ver, por exemplo, R. W. Home, Leonhard Euler’s Anti-Newtonian Theory of Light, Annals of Science 45, 521 (1988). 15The Bakerian Lecture: Experiments and Calculations Relative to Physical Optics, Philosophical Transactions of the Royal Society of London 94, 1 (1804), dispon´ıvel em http://www.jstor.org/stable/107135. 16On Physical Lines of Force, Part 1, Phil. Mag. XXI, pp. 161-175 (1861); Part 2 Phil. 2.1 Antecedentes Histo´ricos Miotto e Ferraz 9 e a luz merece destaque. Maxwell demonstrou que ondas eletromagne´ticas propagam-se pelo espac¸o a velocidade constante e que essa velocidade era compat´ıvel com os valores obtidos por Fizeau para a luz (discutidas na pro´xima sec¸a˜o), o que levou-o a concluir que a luz nada mais era do que uma forma de radiac¸a˜o eletromagne´tica17. Quer saber mais? As Equac¸o˜es de Maxwell As propostas de Maxwell em seus trabalhos On Physical Lines of Force e A Dynamical Theory of the Electromagnetic Fielda, posteriormente sis- tematizados por Oliver Heavisideb nas conhecidas Equac¸o˜es de Maxwell sa˜o os alicerces da eletrodinaˆmica cla´ssica. Sua comprovac¸a˜o experimen- talc por Hertz em 1886–1887 foi crucial para sua aceitac¸a˜o. O trabalho original de Maxwell baseava-se na ideia de que a luz propagava-se atrave´s do e´ter e que sua velocidade deveria ser por ele afetada, o que, como ve- remos mais adiante, provou-se um equ´ıvoco. Mas as restric¸o˜es a` Teoria de Maxwell na˜o se restringiam ao e´ter. Ao contra´rio do que ocorre com as Leis de Newton, as Equac¸o˜es de Maxwell na˜o sa˜o invariantes por uma Transformac¸a˜o de Galileu, isto e´, as Equac¸o˜es de Maxwell antes e depois de uma Transformac¸a˜o de Galileu na˜o sa˜o equivalentes. Essa contradic¸a˜o le- vou um grupo de pesquisadores, conhecidos como Maxwellianos, a estudar alternativas a` Transformac¸a˜o de Galileu, resultando nas Transformac¸a˜o de Lorentz discutidas mais adiante. aRoyal Society Transactions 155, 459 (1865), dispon´ıvel em http: //upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/1/19/A_Dynamical_Theory_ of_the_Electromagnetic_Field.pdf bOn the Forces, Stresses and Fluxes of Energy in the Electromagnetic Field Phi- losophical Transactions of the Royal Society 183A, 423 (1892), dispon´ıvel em http: //www.jstor.org/pss/90590. cHeinrich Rudolph Hertz, Electric waves: being researches on the propagation of electric action with finite velocity through space, (MACMILAN AND CO., Lon- don, 1893), dispon´ıvel em http://ebooks.library.cornell.edu/cgi/t/text/ text-idx?c=cdl;cc=cdl;view=toc;subview=short;idno=cdl334. Ale´m da existeˆncia do e´ter, um outro ponto central na teoria ondulato´ria de Huygens esta´ no fato da luz ter uma velocidade de propagac¸a˜o finita. Como veremos a seguir, a determinac¸a˜o davelocidade da luz desempenhou um papel fundamental no desenvolvimento da Teoria da Relatividade Especial (TER), sendo a constaˆncia dessa velocidade um dos pontos fundamentais dessa teoria. A histo´ria por tra´s da determinac¸a˜o da velocidade da luz e´ longa, tendo seus primeiros passos ja´ na e´poca dos filo´sofos gregos. Aqui discutiremos apenas alguns aspectos que influenciaram decisivamente a TER. Mag. XXI, pp. 281-291, 338-348 (1861); Part 3 Phil. Mag. XXIII, pp. 12-24 (1862); Part 4 Phil. Mag. XXIII, pp. 85-95 (1862), dispon´ıvel em http://upload.wikimedia.org/ wikipedia/commons/b/b8/On_Physical_Lines_of_Force.pdf. 17Utilizando as palavras de Maxwell ... we can scarcely avoid the inference that light consists in the transverse undulations of the same medium which is the cause of electric and magnetic phenomena. 10 Miotto e Ferraz A Teoria da Relatividade Especial Quer saber mais? A determinac¸a˜o da velocidade da luz Debates acerca da determinac¸a˜o da velocidade da luz datam dos tempos da Gre´cia Antiga. Aristo´toles cita Empedoclesa como um dos primeiros a sugerir que a luz teria velocidade finita. Essa especulac¸a˜o na˜o era fruto de nenhuma experimentac¸a˜o, mas sim de puro racioc´ınio. Uma das primei- ras menc¸o˜es a um valor para a velocidade da luz foi feita por Sayana no Rig Vedab, um livro escrito no in´ıcio do se´culo XIV. Surpreeendentemente, o valor sugerido por Sayana, 302.000 km/s, esta´ muito pro´ximo daquele aceito em nossos dias! No se´culo XVII Galileu propoˆsc que a velocidade da luz poderia ser determinada por dois observadores dotados de lanter- nas e postados em dois montes adjacentes da seguinte forma: o primeiro observador descobriria sua lanterna de modo que o segundo pudesse veˆ-la; o segundo descobriria sua lanterna e o primeiro anotaria o tempo entre descobrir sua lanterna e a observac¸a˜o da segunda lanterna. O intervalo de tempo entre os eventos permitiria determinar-se a velocidade da luz a partir do conhecimento da distaˆncia que separava os dois observadores. Galileu na˜o conseguiu chegar a um valor para a velocidade da luz, apenas concluiu que ela deveria ser muito grande. Figura 2.2: Representac¸a˜o es- quema´tica das posic¸o˜es da Terra e de Ju´piter em relac¸a˜o ao Sol. Os astroˆnomos Jean-Dominique Cassini e Ole Rømerd notaram, quando estudavam as tabelas dos sate´lites de Ju´piter, que o per´ıodo dos eclipses do primeiro sate´lite de Ju´piter sa˜o regulares, mas os instantes em que se iniciam avanc¸avam quando a terra se apro- ximava de Ju´piter (movendo-se de C para A, conforme a figura2.2) e atrasavam quando a terra se afas- tava. Apesar das discordaˆncias de Cassini, Rømer interpretou corretamente essa diferenc¸a como o tempo ne- cessa´rio para os sinais luminosos do eclipse atravessarem o diaˆmetro da o´rbita terrestre, mas se limitou a afirmar que a velocidade da luz era ex- tremamente alta, na˜o atribuindo a ela um valor nume´rico. Utilizando o formalismo proposto por Rømer, Huygens e estimou o valor da velocidade da luz como sendo 230.000 km/s. aGeorge Sarton, Ancient science through the golden age of Greece, p. 248 (Dover, London, 1952). bSubhash C. Kak, Sayana’s Astronomy, Indian Journal of History of Science 33, 31 (1998). cDiscorsi e dimostrazioni matematiche intorno a due nuove scienze (1638). dLaurence Bobis e James Lequeux, Journal of Astronomical History and Heritage 11, 97 (2008). eTraite´ de la lumiere (Leiden, Netherlands: Pieter van der Aa, 1690). 2.1 Antecedentes Histo´ricos Miotto e Ferraz 11 No in´ıcio na˜o se sabia como a velocidade da luz estava relacionada com a velocidade de seu corpo emissor ou com o e´ter. Em analogia ao caso mecaˆnico, supunha-se vagamente que a velocidade da luz era maior quando emitida no mesmo sentido que a do corpo emissor e menor quando no sentido oposto e que o e´ter deveria, de alguma forma, alterar a velocidade de propagac¸a˜o da luz. Por volta de 1840-1850, diversas teorias conflitantes acerca do e´ter foram formu- ladas com o objetivo explicar os resultados experimentais dispon´ıveis, dentre os quais o da aberrac¸a˜o da luz18. Segundo Fizeau19, essas teorias podiam ser resumidas em treˆs hipo´teses principais que se referem ao estado no qual o e´ter, dentro de um corpo transparente, deve ser considerado: a primeira hipo´tese sugere que o e´ter adere a`s mole´culas do corpo e, consequentemente, realizam o mesmo movimento imposto a esse corpo; a segunda que o e´ter e´ livre e in- dependente, na˜o sendo carregado pelo corpo em seu movimento; finalmente, na terceira apenas uma parte do e´ter e´ livre enquanto a outra porc¸a˜o e´ fixa as mole´culas do corpo, realizando o mesmo movimento imposto a ele. A terceira hipo´tese e´ uma propotas de Fresnell que funde as duas primeiras propostas e foi concebida para satisfazer ao mesmo tempo o fenoˆmeno de aberrac¸a˜o e um experimento realizado por Arago no qual se mostrou que o movimento da terra na˜o tem nenhum efeito sobre o valor da refrac¸a˜o da luz de uma estrela em um prisma. Figura 2.3: Representac¸a˜o esquema´tica do aparato experimental concebido por Fizeau (fonte:wikimedia). Com o objetivo de contribuir para elucidar essas du´vidas, Fizeau propoˆs20 em 1851 um experimento que tinha como intuito verificar pe- quenas variac¸o˜es na velocidade da luz. Para tanto Fizeau sugeriu um arranjo experimental (apresen- tado na Fig. 2.3) que produz fran- jas de interfereˆncia entre dois raios de luz depois que eles passam atrave´s de dois tubos paralelos onde ar e a´gua podem fluir a grandes velocidades e em direc¸o˜es opostas. Em seu experimento, Fizeau verificou um deslocamento das franjas de interfereˆncia, o que ele interpretou como sendo uma clara evideˆncia a favor da proposta de Fresnel, segundo a qual o movimento dos corpos produz uma variac¸a˜o na velocidade da luz. Ale´m disso, Fizeau sugeriu que a magnitude dessa variac¸a˜o depende do ı´ndice de refrac¸a˜o do meio. 18Aberrac¸a˜o da luz e´ o fenoˆmeno no qual a posic¸a˜o aparente de um objeto sofre um desvio cuja amplitude depende da amplitude de seu movimento com relac¸a˜o ao observador (ou seja, sua velocidade relativa ao mesmo). Este efeito esta´ ligado ao fato de ser finita a velocidade de propagac¸a˜o da luz. Saiba mais em http://www.if.ufrgs.br/oei/santiago/fis2005/ textos/varcrds.htm. 19Sur les hypothe`ses relatives a` l’e´ther lumineux, Comptes Rendus 33, 349 (1851), dis- pon´ıvel em http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k29901/f354. 20Sur les hypothe`ses relatives a` l’e´ther lumineux, Comptes Rendus 33, 349 (1851). 12 Miotto e Ferraz A Teoria da Relatividade Especial A Cieˆncia em nosso cotidiano: O interferoˆmetro de Fizeau Utilizando o mesmo princ´ıpio de funcionamento do equipamento original- mente descrito em 1851, Fizeau desenvolveu um interferoˆmetro que utiliza espelhos girato´rios. Posteriormente esse interferoˆmetro foi utilizado por ele e outros pesquisadores como Foucault para determinar a velocidade da luz. Atualmente esse tipo de interferoˆmetro e´ utilizado na medic¸a˜o da forma de superf´ıcies o´pticas e sensoresa de temperatura, pressa˜o, etc. aVeja uma aplicac¸a˜o interessante em Luciana Montanari; Jaime Gilberto Duduch; Arthur Jose´ Vieira Porto, Estudo de padro˜es de franjas interferome´tricas aplicadas a sistemas de posicionamento de alta precisa˜o, Minerva 4, 113 (2007), dispon´ıvel em http://www.fipai.org.br Figura 2.4: Representac¸a˜o esquema´tica do aparato experimental concebido por Michelson (retirado do artigo original - domı´nio pu´blico). Os resultados obtidos por Fizeau, embora muito bem recebidos pela co- munidade cient´ıfica, na˜o eram sufi- cientemente precisos para esclarecer totalmente as ambiguidades ineren- tes a` teoria do e´ter. Assim, como esperado outras aproximac¸o˜es expe- rimentais estavam em estudo. Uma delas, proposta por A. A. Michel- son21 em 1881 admitia-seque o e´ter esta´ em repouso e que a Terra move- se atrave´s dele. Dessa forma, o tempo que a luz demora para ir de um ponto a outro da superf´ıcie da Terra deve depender da direc¸a˜o em que viaja. Em analagia ao caso mecaˆnico, a velocidade da luz sera´ maior quando emitida no mesmo sen- tido que a do corpo emissor e menor quando no sentido oposto. Michel- son utilizou um arranjo experimental como o esquematizado na figura 2.4, a luz emitida em a, passa atrave´s de um vidro plano b, parte atingindo o espelho c e parte sendo refletida para o espelho d. O feixe de luz refletido em c e d retorna a b onde foi originalmente refletido/refratado, de forma que os dois raios de luz sa˜o agora coincidentes. Sendo a distaˆncia bc igual a distaˆncia bd, os dois raios de luz tem trajeto´rias iguais e esta˜o em condic¸a˜o de interferir22. Segundo Michelson, o feixe de luz 21The Relative Motion of the Earth and the Luminiferous Ether, American Jour- nal of Science 22 , 120 (1881), dispon´ıvel em http://www.archive.org/stream/ americanjournal62unkngoog#page/n142/mode/1up. 22O vidro plano g colocado no caminho o´ptico bc e´ utilizado para compensar a espessura do vidro b. 2.1 Antecedentes Histo´ricos Miotto e Ferraz 13 que viaja na direc¸a˜o do movimento da terra o faz 4100 de um comprimento de onda a mais do que o faria se viajasse em uma direc¸a˜o na qual a terra esta´ em repouso (ver Detalhes Matema´ticos: A hipo´tese de Michelson). O outro feixe de luz estando a um aˆngulo reto em relac¸a˜o ao movimento da terra na˜o seria afetado. Dessa forma a menor diferenc¸a na velocidade de propagac¸a˜o da luz poderia ser detectada atrave´s de variac¸o˜es na figura de interfereˆncia formada pelos feixes de luz em e. Michelson realizou uma se´rie de medidas rotacionando o seu equipamento em torno de seu eixo principal mas observou apenas pequenas variac¸o˜es nas figuras de interfereˆncia obtidas, interpretando-as como desvios inerentes ao seu aparato experimental, o que o levou a concluir que a hipo´tese de um e´ter estaciona´rio estava incorreta. Nas palavras de Michelson: The result of the hypothesis of a stationary ether is thus shown to be incorrect, and the necessary conclusion follows that the hypothesis is erroneous. Detalhes Matema´ticos: A hipo´tese de Michelson Seja V a velocidade da luz, v a velocidade da Terra em relac¸a˜o ao e´ter, D a distaˆncia entre dois pontos, d a distaˆncia que a Terra viaja enquanto o feixe de luz se propagaga de um ponto a outro, e d1 a distaˆncia que a terra viaja quando a luz se propaga na direc¸a˜o contra´ria. Suponha que a linha que une dois pontos coincida com a direc¸a˜o do movimento da terra, com T o tempo necessa´rio para a luz passar de um ponto a outro, e T1 o tempo necessa´rio para realizar o trajeto inverso. Nesse caso T = D+dV = d v ; e T1 = D−d V = d1 v . O tempo necessa´rio para que um fecho de luz realize o movimento de ida e volta e´ T + T1 = 2D V V 2−v2 . Todavia, se a luz viaja em uma direc¸a˜o perpendicular ao movimento da terra, sua velocidade na˜o sera´ afetada por esse movimento e o tempo total reduz-se a 2DV = 2T0. A diferenc¸a entre os tempos de ida e volta nos dois casos vale T + T1 − 2T0 = 2DV ( 1 V 2 − v2 − 1 V 2 ) = ττ = 2DV v2 V 2 (V 2 − v2) , ou aproximadamente 2T0 v2 V 2 . No tempo τ a luz viaja a distaˆncia V τ = 2V T0 v2 V 2 = 2D v2 V 2 , ou seja, a distaˆncia real que a luz viaja no primeiro caso e´ 2D v 2 V 2 maior do que no segundo. Considerando apenas a velocidade da terra em sua o´rbita, a raza˜o v 2 V 2 vale aproximadamente 1100 000 000 milimetros, ou em termos do comprimento de onda da luz amarela 2.000.000 unidades. Em termos da mesma unidade, a distaˆncia real que a luz viaja no primeiro caso vale 2D v 2 V 2 = 4 100 . A precisa˜o dos resultados de Michelson foi contestada por va´rios pesquisa- dores, como Lorentz23, o que o levou a aperfeic¸oar seu experimento. Em 1887, 23De l’Influence du Mouvement de la Terre sur les Phen, Lum. Archives Ne´erlandaises 14 Miotto e Ferraz A Teoria da Relatividade Especial contando com a colaborac¸a˜o de E. Morley, Michelson publicou novos resulta- dos obtidos com um aparato experimental onde as incertezas eram menores do que as anteriormente obtidas24. Nesse experimento, conhecido como Ex- perimento de Michelson-Morley, estabeleceu-se que a velocidade da Terra em relac¸a˜o ao e´ter na˜o podia ser maior que 5 km/s, o que era incompat´ıvel com a teoria de propagac¸a˜o da luz aceita na e´poca. Mais do que isso, os resultados de Michelson-Morley sugeriam que a ide´ia de que o e´ter se comportava como um referencial privilegiado para as equac¸o˜es de Maxwell teria que ser descartado. O Experimento de Michelson-Morley foi objeto de inu´meros testes e verso˜es mais modernas25 utilizando lasers permitem determinar uma anisotropia na velocidade da luz da ordem de 10−17, o que corresponde a uma velocidade da Terra em relac¸a˜o ao e´ter da ordem de 10−9 m/s. Ao contra´rio do que se possa pensar, o resultado obtido por Michelson e Morley na˜o significou o fim da teoria do e´ter. Muitos pesquisadores renomados, dentre os quais George FitzGerald, Oliver Lodge, Oliver Heaviside e Heinrich Hertz buscavam alternativas que pudessem conciliar as propostas de Maxwell e a teoria ondulato´ria, que intr´ınsecamente envolvia o conceito do e´ter. Assim, G. FitzGerald, publicou uma curta nota26 em 1889, com o claro intuito de reconciliar os experimentos de Michelson-Morley e a teoria do e´ter. FitzGerald propoˆs que o comprimento dos corpos muda de uma quantidade que depende do quadrado da raza˜o entre sua velocidade e a velocidade da luz, nas palavras do autor: ... the length of material bodies changes, according as they are moving through the ether or across it, by an amount depending on the square of the ratio of their velocity to that of light. O trabalho de FitzGerald foi posteriormente aperfeic¸oado por H. A. Lorentz27 e expresso matematicamente como um conjunto de relac¸o˜es conhecidas como Transformac¸o˜es de Lorentz, que para um sistema com velocidade relativa v na direc¸a˜o x tem a forma: t′ = γ ( t− v xc2 ) x′ = γ (x− vt) y′ = y z′ = z (2.4) onde γ = 1√ 1− v2 c2 e´ chamado fator de Lorentz. xxi, 2me livr. (1886). 24On the Relative Motion of the Earth and the Luminiferous Ether, American Journal of Science 34, 333 (1887), dispon´ıvel em http://www.aip.org/history/exhibits/gap/ PDF/michelson.pdf. 25S. Herrmann, A. Senger, K. Mo¨hle, M. Nagel, E. V. Kovalchuk, and A. Peters, Rotating optical cavity experiment testing Lorentz invariance at the 10−17 level, Phys. Rev. D 80, 105011 (2009). 26The Ether and the Earth’s Atmosphere, Science 13, 390 (1889), dispon´ıvel em http: //www.archive.org/details/science131889mich. 27Simplified Theory of Electrical and Optical Phenomena in Moving Systems, Proceedings of the Royal Netherlands Academy of Arts and Sciences 1, 427 (1899), dispon´ıvel em http: //www.dwc.knaw.nl/DL/publications/PU00014571.pdf. 2.2 A proposta de Einstein Miotto e Ferraz 15 Um dos aspectos mais importantes relacionados a essas relac¸o˜es e´ o fato de que as Equac¸o˜es de Maxwell sa˜o invariantes por uma Transformac¸a˜o de Lorentz, ou seja, os aspectos f´ısicos observados em diferentes referenciais iner- ciais na˜o se alteram. Note, ainda, que ao contra´rio da proposta de Galileu, o tempo medido em referenciais em movimento relativo na˜o e´ necessariamente o mesmo, ou em outras palavras, o conceito de tempo absoluto na˜o existe nessa teoria. Como esse conceito e´ contra´rio a` intuic¸a˜o cla´ssica, Lorentz assumiu a existeˆncia de um tempo absoluto, definido em termos de um sistema de coor- denadas absoluto e um tempo medido em refereˆnciais em movimento, chamado por ele de tempo local. Quer saber mais? Novamente a velocidade da luz Recentemente,um grupo de pesquisadores, utilizando o European Synch- rotron Radiation Facility, encontraram um novo limite para a isotropia da velocidade da luz. Utilizando o que poder´ıamos chamar de um in- terferoˆmetro sofisticado, eles determinaram que a velocidade da luz na˜o depende da direc¸a˜o pelo menos em um parte em 1014, isto e´, a velocidade da luz na˜o apresenta variac¸o˜es maiores do que 0,000000000001%. Veja o trabalho completo em http://arxiv.org/abs/1004.2867. 2.2 A proposta de Einstein Assim como FitzGerald e Lorentz, no in´ıcio do se´culo XX, diversos ci- entistas, como Poincare´ e Bucherer, buscavam uma forma de reconciliar as Equac¸o˜es de Maxwell, a Teoria Ondulato´ria e os muitos experimentos deriva- dos de tais tentativas. Em 1905, Einstein apresentou sua contribuic¸a˜o sobre o tema em um longo trabalho28 com sua interpretac¸a˜o das teorias e resultados dispon´ıveis. Logo em seu segundo para´grafo, o trabalho de Einstein ja´ expli- cita claramente a quebra do paradigma aceito ate´ enta˜o: ... o insucesso dos experimentos feitos para detectar qualquer movimento da Terra em relac¸a˜o ao e´ter sugere que os fenoˆmenos da Eletrodinaˆmica, tal como os da Mecaˆnica, na˜o apresentam nenhuma propriedade que corresponda a ide´ia de repouso absoluto. Ao contra´rio, eles sugerem que em todos os sistemas de coordenadas em que sa˜o va´lidas as Equac¸o˜es da Mecaˆnica tambe´m sa˜o va´lidas as Leis O´pticas e Eletrodinaˆmicas. Vamos elevar a` categoria de postulado essa conjectura (que chamaremos daqui em diante Princ´ıpio da Relatividade); vamos, ale´m disso, introduzir o postulado - so´ aparentemente incompat´ıvel com o primeiro - de que a luz, no va´cuo, se propaga com velocidade determinada, independente do estado de movimento da fonte de luz. Estes dois postulados sa˜o suficientes para construir uma eletrodinaˆmica dos corpos em movimento, simples e livre 28Zur Elektrodynamik bewegter Ko¨rper, Annalen der Physik 322, 891 (1905), dispon´ıvel em http://www.archive.org/stream/annalenderphysi108unkngoog# page/n1021/mode/1up. 16 Miotto e Ferraz A Teoria da Relatividade Especial de contradic¸o˜es. A introduc¸a˜o de um “e´ter” se revelara´ supe´rfluo, uma vez que para a teoria que vamos desenvolver na˜o necessitamos introduzir um “espac¸o em repouso absoluto”, nem atribuir um vetor velocidade a um ponto do espac¸o vazio no qual o processo eletromagne´tico ocorre.29 A proposta de Einstein pode ser simplificada em dois postulados: 1. Postulado (ou Princ´ıpio) da Relatividade: as Leis da F´ısica teˆm a mesma forma em todos os referenciais inerciais; 2. Postulado da constaˆncia da velocidade da luz: a velocidade da luz no va´cuo e´ uma constante universal que independe do movimento de sua fonte. Esses dois postulados sa˜o a base do que hoje denominamos Teoria da Rela- tividade Especial ou Restrita. Ale´m desses dois postulados, Einstein indicou claramente que a transformac¸a˜o de coordenadas e tempos de um referencial estaciona´rio para outro referencial em movimento uniforme em relac¸a˜o ao pri- meiro obedecia as Transformac¸o˜es de Lorentz (Equac¸a˜o 2.4). Quer saber mais? Por tra´s da Relatividade Em seu trabalho A f´ısica cla´ssica de cabec¸a para baixo: Como Einstein des- cobriu a teoria da relatividade especial, Ju¨rgen Renn relata os eventos que culminaram com a introduc¸a˜o da Relatividade. Veja o trabalho completo em http://www.sbfisica.org.br/rbef/pdf/renn.pdf. 2.3 Consequeˆncias dos Postulados de Einstein O primeiro postulado e´ uma generalizac¸a˜o do Princ´ıpio de Relatividade de Galileu, ja´ que inclui todos os fenoˆmenos e na˜o apenas os Mecaˆnicos. Ele implica na inexisteˆncia de um referencial inercial privilegiado. Isso significa 29Traduc¸a˜o livre do autor para o original em alema˜o: sowie die mißlungenen Versuche, eine Bewegung der Erde relativ zum ’Lichtmedium’ zu konstatieren, fu¨hren zu der Vermu- tung, daß dem Begriffe der absoluten Ruhe nicht nur in der Mechanik, sondern auch in der Elektrodynamik keine Eigenschaften der Erscheinungen entsprechen, sondern daß viel- mehr fu¨r alle Koordinatensysteme, fu¨r welche die mechanischen Gleichungen gelten, auch die gleichen elektrodynamischen und optischen Gesetze gelten, wie dies fu¨r die Gro¨ßen ers- ter Ordnung bereits erwiesen ist. Wir wollen diese Vermutung (deren Inhalt im folgenden ’Prinzip der Relativita¨t’ genannt werden wird) zur Voraussetzung erheben und außerdem die mit ihm nur scheinbar unvertra¨gliche Voraussetzung einfu¨hren, daß sich das Licht im lee- ren Raume stets mit einer bestimmten, vom Bewegungszustande des emittierenden Ko¨rpers unabha¨ngigen Geschwindigkeit V fortpflanze. Diese beiden Voraussetzungen genu¨gen, um zu einer einfachen und widerspruchsfreien Elektrodynamik bewegter Ko¨rper zu gelangen unter Zugrundelegung der Maxwellschen Theorie fu¨r ruhende Ko¨rper. Die Einfu¨hrung ei- nes ’Lichta¨thers’ wird sich insofern als u¨berflu¨ssig erweisen, als nach der zu entwickelnden Auffassung weder ein mit besonderen Eigenschaften ausgestatteter ’absolut ruhender Raum’ eingefu¨hrt, noch einem Punkte des leeren Raumes, in welchem elektromagnetische Prozesse stattfinden, ein Geschwindigkeitsvektor zugeordnet wird. 2.3 Consequeˆncias dos Postulados de Einstein Miotto e Ferraz 17 que nenhum experimento pode medir ou detectar o movimento uniforme do sistema de refereˆncia utilizado. Ja´ o segundo postulado indica que a veloci- dade da luz (c) e´ constante em qualquer referencial inercial. Dessa forma a luz se propagando no va´cuo passa a ter propriedades comuns a outras ondas mecaˆnicas, como o som, por exemplo. O segundo postulado de Einstein, apesar de tambe´m parecer bastante razoa´vel, apresenta consequeˆncias surpreendentes que contradizem o senso co- mum. Considere, por exemplo, uma fonte de luz L e dois observadores O1, em repouso em relac¸a˜o a L, e O2, em movimento em relac¸a˜o a L com uma dada velocidade v. A velocidade da luz emitida pela fonte medida a partir do referencial O1 vale c ' 3.108 m/s. Utilizando os conceitos de velocidade relativa da Mecaˆnica Cla´ssica, esperamos que o valor da velocidade da luz emitida pela fonte medida a partir do referencial em movimento O2 seja v+ c. Observe que, como um sistema no qual o observador O2 esta´ em repouso e a fonte L e o observador O1 esta˜o em movimento, do ponto de vista de O2 e´ a fonte que esta´ em movimento. Se levarmos agora em considerac¸a˜o o postulado da constaˆncia da velocidade da luz que e´ claro ao dizer que c independe do movimento de sua fonte, temos imediatamente que a velocidade medida a par- tir de O2 tambe´m deve ser c. Se a velocidade da luz medida a partir de dois referenciais em movimento relativo e´ a mesma, isso significa que na˜o pode- mos perceber o movimento absoluto. Mais do que isso, Einstein sugere que nenhuma experieˆncia podera´ medir ou detectar o movimento uniforme do sistema de refereˆncia utilizado, o que e´ coerente com as propostas de Galileu e Newton nas quais se baseiam a Mecaˆnica Cla´ssica. Vamos analisar outro exemplo sugerido por Einstein30. Considere uma sala em movimento com dois observadores: um posicionado dentro da sala (obser- vador interno) e outro fora dela (observador externo). Um sinal luminoso e´ emitido do centro da sala e pergunta-se aos dois o que esperam observar consi- derando apenas os postulados propostos por Einstein. Citamos suas respostas: Observador interno: O sinal luminoso que caminha do centro da sala atin- gira´ as paredes simultaneamente. Isso significa que todas as paredes esta˜o equidistantes da fonte de luz e a velocidade da luz e´ a mesma em todos as direc¸o˜es. Observador externo: Em meu sistema, a velocidade da luz e´ exatamente a mesma que a medida pelo observador que se move com a sala. Na˜o me im- porta se a fonte de luz se move ou na˜o em meu referencial, seu movimento na˜o influi sobre a velocidade da luz. O que vejo e´ um sinal luminosocaminhando com uma velocidade padra˜o ideˆntica em todas as direc¸o˜es. Um das paredes se afasta do sinal e a parede oposta aproxima-se dele. Logo, a parede que se afasta sera´ atingida pelo sinal um pouco mais tarde do que a parede que se aproxima. Embora a diferenc¸a seja diminuta se a velocidade da sala for pe- quena em comparac¸a˜o com a velocidade da luz, o sinal luminoso na˜o atingira´ 30A. Einstein e L. Infeld, A Evoluc¸a˜o da F´ısica, traduc¸a˜o de Giasone Rebua´, Quarta Edic¸a˜o, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1980, p. 146-147. 18 Miotto e Ferraz A Teoria da Relatividade Especial simultaneamente as duas paredes opostas, perpendiculares a` direc¸a˜o do movi- mento. Mais do que isso, as paredes paralelas a` direc¸a˜o do movimento tambe´m na˜o sera˜o atingidas no mesmo instante que as paredes perpendiculares, mesmo que todas estejam dispostas simetricamente em relac¸a˜o ao centro da sala. Comparando as previso˜es de nossos dois observadores, encontramos um resultado que contradiz frontalmente os conceitos aparentemente bem funda- mentados da Mecaˆnica Cla´ssica. Dois acontecimentos, no caso os dois raios de luz atingirem as paredes, sa˜o simultaˆneos para o observador interno, mas na˜o para o observador externo. Na Mecaˆnica Cla´ssica t´ınhamos um relo´gio, um escoamento do tempo, para todos os observadores em todos os referenciais. O tempo, e, portanto, palavras como simultaneamente, mais cedo e mais tarde, tinham um significado absoluto, independente de qualquer referencial. Dois acontecimentos que ocorressem ao mesmo tempo em um referencial, necessa- riamente ocorreriam simultaneamente em qualquer outro referencial. Os postulados de Einsten nos forc¸am a abandonar esse ponto de vista. Des- crevemos dois acontecimentos ocorrendo ao mesmo tempo em um referencial, mas em instantes diferentes em outro referencial. Isso significa que dois ob- servadores inerciais em movimento relativo discordam se dois acontecimentos que tenham ocorrido em lugares diferentes sa˜o simultaˆneos ou na˜o. 2.3.1 A dilatac¸a˜o temporal Figura 2.5: Representac¸a˜o esquema´tica de dois espelhos, A e B, separados por uma distaˆncia d e de um observador O em repouso (esquerda) e em movimento (direita). Mas como explicar esse aparente paradoxo? Para abordar esse problema, con- sidere um exemplo similar ao sugerido por Einstein31 no qual dois espelhos A e B esta˜o dispostos paralela- mente, separados por uma distaˆncia d, conforme es- quema ao lado. Um obser- vador O determina o tempo necessa´rio para que um flash de luz, que viaja em linha reta com velocidade c, efetue o movimento de ida e volta entre os dois espelhos, tal qual o tic-tac de um relo´gio. No esquema a` esquerda, o observador O esta´ em repouso, o que nos permite escrever a distaˆncia entre os espelhos d em termos do intervalo de tempo que a luz leva para viajar de A para B (t′) e da velocidade da luz: c = d t′ → d = ct′. 31Relativity: The Special and General Theory, traduzido por Robert W. Lawson, Methuen and Company, London, revised edition 1924. 2.3 Consequeˆncias dos Postulados de Einstein Miotto e Ferraz 19 Agora vamos nos concentrar no caso em que o observador O viaja com velo- cidade v. Nesse caso, como exemplificado no esquema a` direita, o observador vera´, apo´s um certo intervalo de tempo 2t, o flash de luz refletido por B. Nesse caso, o raio de luz viaja uma distaˆncia de A para B maior do que d. Como a velocidade da luz e´ constante, essa distaˆncia vale ct. Nesse mesmo intervalo de tempo t, o observador O tera´ se deslocado vt em relac¸a˜o a` sua posic¸a˜o inicial. Do triaˆngulo retaˆngulo formado, temos c2t2 = v2t2 + c2t′2, ou seja, t′2 = t2 ( 1− v 2 c2 ) → t′ = t √( 1− v 2 c2 ) . (2.5) Observe que a equac¸a˜o acima indica que os tempos medidos em diferentes referenciais em movimento relativo na˜o sa˜o ideˆnticos. A expressa˜o acima indica que o tempo medido por um observador em repouso (t′) e´ menor do que aquele medido por um observador em movimento (t). Em outras palavras, relo´gios que se deslocam em relac¸a˜o a um referencial inercial andam mais devagar. Esse efeito e´ conhecido como dilatac¸a˜o temporal e pode ser enunciado como: dois observadores em movimento relativo medem tempos diferentes para o mesmo acontecimento e para os intervalos entre dois acontecimentos. Na˜o se trata de uma ilusa˜o, mas de um efeito f´ısico real decorrente da na˜o simultaniedade de eventos em referenciais em movimento relativo. Note que nos eventos cotidianos, a dilatac¸a˜o temporal na˜o pode ser per- cebida, pois as velocidades dos objetos que nos cercam sa˜o muito menores do que a velocidade da luz. Considere, por exemplo, o movimento translac¸a˜o da Terra em torno do Sol. Nosso planeta realiza esse movimento com uma velo- cidade me´dia de aproximadamente 30 km/s, o que e´ extremamente alta para nossos padro˜es32. Apesar de parecer muito grande, a velocidade de translac¸a˜o da Terra resulta em um raza˜o v 2 c2 = 10 −8! Considere dois observadores, um na Terra e outro no Sol. Para que a diferenc¸a nos relo´gios dos dois observa- dores fosse de 1 segundo, ter´ıamos que esperar cerca de 108 segundos, ou seja, milhares de dias! Para que a dilatac¸a˜o temporal fosse percept´ıvel, os objetos deveriam mover- se a grandes velocidades. Apenas algumas part´ıculas naturais, como os mu´ons33, por exemplo, que sa˜o raios co´smicos, possuem velocidades compara´veis a` velo- cidade da luz. Os mu´ons viajam com velocidade me´dia em torno de 0,9992c, o que torna poss´ıvel verificar efeitos relativ´ısticos. 32Como comparac¸a˜o, considere a nave New Horizon desenvolvida pela Nasa para atingir Pluta˜o. A New Horizon atingiu uma velocidade ma´xima de aproximadamente 16 km/s, sendo considerada um dos objetos mais velozes concebidos pelo homem. Confira a trajeto´ria da New Horizon em www.nasa.gov. 33No modelo padra˜o da f´ısica de part´ıculas, o mu´on e´ uma part´ıcula elementar similar ao ele´tron, com carga ele´trica negativa unita´ria e spin 1 2 . 20 Miotto e Ferraz A Teoria da Relatividade Especial Quer saber mais? Comprovac¸a˜o experimental da dilatac¸a˜o tem- poral Uma comprovac¸a˜o experimental da dilatac¸a˜o temporal foi obtida por Ha- fele e Keatinga. Durante outubro de 1971, Hafele e Keating utilizaram quatro relo´gios atoˆmicos transportados em voˆos comerciais, com velocida- des me´dias de 900 km/h, em rotas ao redor do mundo a oeste e a leste e compararam suas medidas com relo´gios de refereˆncia montados no U.S. Naval Observatory. Observe que os relo´gios de refereˆncia na˜o esta˜o de fato parados, mas sim em movimento, devido a` rotac¸a˜o da Terra. Os relo´gios de refereˆncia esta˜o no paralelo 39◦, o que significa que eles percorreram uma trajeto´ria de cerca de 31.000 km em aproximadamente 24 horas, ou seja, viajam com uma velocidade de aproximadamente 1.300 km/h. Considere inicialmente o avia˜o voando na direc¸a˜o oeste, ou seja, contra´ria a rotac¸a˜o da Terra. A velocidade relativa relo´gio no avia˜o/relo´gio de re- fereˆncia e´ v = 1300 + 900 = 2200 km/h. No experimento de Hafele e Keating o avia˜o, viajando a aproximadamente de 900 km/h demora cerca de t = 31000900 ' 31,4 horas ou 124.000 segundos para completar a volta em torno da Terra. Assim, a Equac¸a˜o 2.5 tem a forma t′ = 124.000 (√ 1− ( 1.3002 (3,6× 3× 108)2 ) − √ 1− ( 2.2002 (3,6× 3× 108)2 )) = 170× 10−9s. Observe que o valor acima e´ uma aproximac¸a˜o, pois arredondamos os nu´meros de forma a facilitar os nossos ca´lculos. Os valores previstos por Hafele e Keating a partir da Teoria da Relatividade Restrita indicam uma variac¸a˜o de 275(±21) nanosegundosb compara´veis aos 273(±7) nanosegun- dos obtidos considerando-se a me´dia de mais de 5.000 observac¸o˜es experi- mentais. Agora e´ com voceˆ! Estime o valor previsto para a variac¸a˜o no relo´giocolocado no avia˜o que viaja para leste e compare com o resultado expe- rimental de 59(±10) nanosegundos e com o valor por eles estimado de 40(±23). Nesse caso, o desvio em relac¸a˜o ao valor experimental e´ um pouco maior do que o observado no caso anterior. Voceˆ saberia dizer o por queˆ? aAround-the-World Atomic Clocks: Predicted Relativistic Time Gains, Science 177, 166 (1972). b1 nanosegundo = 1× 10−9 segundos 2.3 Consequeˆncias dos Postulados de Einstein Miotto e Ferraz 21 2.3.2 O Paradoxo dos Geˆmeos Em um trabalho de 1911, Einstein34 sugeriu que suas observac¸o˜es relativas a` dilatac¸a˜o temporal tambe´m se aplicam a organismos vivos35: Se conside- rarmos, por exemplo, um organismo vivo contido em uma caixa e aplicarmos as mesmas condic¸o˜es observadas anteriormente para os relo´gios humanos, e´ poss´ıvel que o organismo retorne ao seu local de origem de um voˆo arbitra- riamente longo com pequenas modificac¸o˜es em relac¸a˜o ao seu estado origi- nal, enquanto organismos semelhantes mantidos no local de partida ja´ deram espac¸o a novas gerac¸o˜es ha´ muito tempo. Se o movimento ocorreu a velocidade pro´xima da luz, o longo per´ıodo contabilizado por seus semelhantes no local de origem, para o viajante nada mais representou do que um breve instante! Es- sas sa˜o as consequeˆncias irrefuta´veis dos princ´ıpios por no´s estabelecidos e que a experieˆncia nos impo˜e. Com base nessas conjecturas, Langevin 36 propoˆs um experimento mental que classificou como singular e que modernamente denominamos Paradoxo dos Geˆmeos. Ao inve´s de discut´ı-lo na sua forma original, vamos apresentar uma versa˜o mais aplica´vel ao nosso cotidiano. As transformac¸o˜es de Lorentz possuem uma simetria com relac¸a˜o a` direc¸a˜o da velocidade do observador. Se invertermos apenas o sentido da velocidade, ou seja, considerarmos ~v → −~v, as transformac¸o˜es de Lorentz na˜o se alteram. Este fato esta´ associado com a equivaleˆncia entre observadores inerciais. Des- crever o afastamento de um observador B com velocidade ~v com relac¸a˜o a um observador A parado e´ equivalente a descrever o observador B parado e A se movendo com velocidade −~v. No entanto, a passagem de tempo depende do estado de movimento do observador, logo, poder´ıamos fazer a seguinte per- gunta: se dois geˆmeos sa˜o separados, um permanecendo na Terra e o outro sendo levado para viajar numa espac¸onave com velocidade compara´vel a da luz durante alguns anos terrestres, ao retornar a` Terra como sera´ a relac¸a˜o entre as idades dos dois geˆmeos? Considere, por exemplo, o caso em que um dos geˆmeos fez uma viagem de ida e volta a um determinado local. Essa viagem teve a durac¸a˜o de 1 ano medida pelo geˆmeo no referencial da Terra, e foi feita a uma velocidade me´dia 34Die Relativita¨ts-Theorie, Naturforschende Gesellschaft, Zu¨rich, Vierteljah- resschrift 56, 1 (1911), dispon´ıvel em http://www.archive.org/stream/ vierteljahrsschr56natu#page/1/mode/1up. 35Traduc¸a˜o livre do autor para o original em alema˜o ... Wenn wir z. B. einen leben- den Organismus in eine Schachtel hineinbra¨chten und ihn dieselbe Hin- und Herbewegung ausfu¨hren liessen wie vorher die Uhr, so ko¨nnte man es erreichen, dass dieser Organis- mus nach einem beliebig langen Fluge beliebig wenig gea¨ndert wieder an seinen urspru¨ngli- chen Ort zuru¨ckkehrt, wa¨hrend ganz entsprechend beschaffene Organismen, welche an den urspru¨nglichen Orten ruhend geblieben sind, bereits la¨ngst neuen Generationen Platz gema- cht haben. Fu¨r den bewegten Organismus war die lange Zeit der Reise nur ein Augenblick, falls die Bewegung anna¨hernd mit Lichtgeschwindigkeit erfolgte! Dies ist eine unabweisbare Konsequenz der von uns zugrunde gelegten Prinzipien, die die Erfahrung uns aufdra¨ngt. 36L’E´volution de l’espace et du temps, Scientia 10, 31 (1911), dispon´ıvel em http://fr. wikisource.org/wiki/L’volution_de_l’espace_et_du_temps. 22 Miotto e Ferraz A Teoria da Relatividade Especial de 0,8c. Utilizando a equac¸a˜o 2.5, e´ imediato que t′ = 1 √ 1− (0,8c) 2 c2 = 3 5 anos, ou seja, para o geˆmeo que viaja, passaram-se apenas 3/5 do tempo! Em outras palavras, a dilatac¸a˜o temporal indica que o geˆmeo que viajou com velocidade compara´vel a da luz esta´ mais jovem do que o geˆmeo que permaneceu na Terra. Se levarmos, agora, em considerac¸a˜o a simetria das Transformac¸o˜es de Lorentz, poder´ıamos dizer que do ponto de vista do geˆmeo no foguete, e´ a Terra quem se move a uma velocidade de 0,8c, enquanto ele permanece parado. No seu referencial e´ o geˆmeo terrestre quem deveria ser mais novo, o que nos leva ao paradoxo: qual dos dois irma˜os de fato envelheceu mais devagar? A resposta a este aparente paradoxo pode ser dada de diferentes formas37. Aqui abordaremos apenas uma delas. Embora as transformac¸o˜es de Lorentz exibam simetria entre o afastamento dos geˆmeos, ao longo de toda a jornada, existe uma diferenc¸a fundamental en- tre as duas situac¸o˜es: enquanto o geˆmeo terrestre permanece com velocidade constante ao longo de toda a viagem, o geˆmeo viajante e´ acelerado para pos- sibilitar o seu retorno a` Terra. Esta assimetria rompe com a argumentac¸a˜o de equivaleˆncia entre os geˆmeos. Enquanto o geˆmeo terrestre permanece sempre em um mesmo referencial inercial, o geˆmeo viajante muda de referencial ao longo de sua viagem. De fato, o geˆmeo viajante encontra-se em parte de sua viagem em um referencial na˜o inercial, pois e´ acelerado de forma a possibilitar seu retorno a` Terra. Lembre-se de que o primeiro postulado de Einstein limita claramente a validade de suas propostas para referenciais inerciais. 2.3.3 A contrac¸a˜o espacial Em todos os exemplos discutidos, o fato de dois observadores inerciais em movimento relativo discordarem se dois acontecimentos que tenham ocorrido em lugares diferentes sa˜o simultaˆneos ou na˜o desempenha um papel fundamen- tal na compreensa˜o dos fenoˆmenos discutidos. Ocorre que a influeˆncia dessa na˜o simultaniedade na˜o se limita a`s medidas temporais. Considere, por exemplo, o ato de medir o comprimento de um corpo. Se o objeto esta´ em repouso em relac¸a˜o ao observador, o ato de medir pode ser feito simplesmente colocando ao lado do objeto um padra˜o para sua determinac¸a˜o. Por outro lado, se o objeto estiver em movimento, uma poss´ıvel estrate´gia seria adotar um eixo coordenado, como o representado na figura ao lado, e medir os intervalos de tempo nos quais o objeto passa por um determinado ponto de refereˆncia, no caso o eixo y. Sabendo a velocidade e o tempo necessa´rio para que o objeto passe pelo ponto de refereˆncia, obte´m-se seu comprimento. 37Veja, por exemplo, Paul A. Tipler e Ralph Al. Llwellyn, F´ısica Moderna, traduc¸a˜o Ronaldo Se´rgio Biasi, LTC Editora, Rio de Janeiro, 2001, p. 33. 2.3 Consequeˆncias dos Postulados de Einstein Miotto e Ferraz 23 Figura 2.6: Representac¸a˜o esquema´tica de duas poss´ıveis formas de se medir um ob- jeto. Para um objeto em repouso, coloca- mos um padra˜o ao seu lado. Ja´ para um objeto em movimento, adotamos um eixo coordenado e observamos os intervalos de tempo nos quais o objeto passa por um de- terminado ponto de refereˆncia, no caso o eixo y. Sabendo a velocidade e o tempo ne- cessa´rio para que o objeto passe pelo ponto de refereˆncia, obte´m-se seu comprimento. Ocorre que, devido a na˜o si- multaniedade, observadores em diferentes referenciais inerciais podem na˜o concordar sobre o instante em que o objeto passa pelo ponto de refereˆncia, ou seja, em diferentes referenciais os eventos de medic¸a˜o sa˜o na˜o si- multaˆneos. Isso significa que a medida do comprimento do ob- jeto na˜o e´ u´nica, mas depende do referencial38. Vamos agora estimar o valor dessa variac¸a˜o considerando um outro exemplo em que a medida do comprimento do objeto e´ feito da mesma forma tanto para o re- ferencial em repousoquanto para o referencial em movimento. Su- ponha que em um dado referen- cial, P ′, o objeto, no caso uma barra, encontra-se em repouso, com uma das suas extremidades na posic¸a˜o x′1 e a outra na posic¸a˜o x ′ 2. Nesse caso, podemos medir o comprimento da barra em um dado instante t′ qualquer atrave´s da relac¸a˜o Lp = x ′ 2−x′1. Considere, agora, um outro referencial S, em movimento em relac¸a˜o a P ′ com velocidade v. Se utilizarmos o mesmo procedimento para medir a barra, seu comprimento no referencial S e´ dado por L = x2 − x1, onde x1 e´ a posic¸a˜o de uma das extremidades da barra no instante t1 e x2 e´ a posic¸a˜o da outra extremidade medida no mesmo instante t2 = t1 = t. Como P ′ e S esta˜o em movimento relativo, a na˜o simultaniedade preveˆ que os tem- pos medidos nos dois referenciais t′ e t na˜o sa˜o ideˆnticos. Vamos agora, com o aux´ılio das Transformac¸o˜es de Lorentz (equac¸a˜o 2.4) relacionar as posic¸o˜es das extremidades das barras nos dois referenciais:{ x′2 = γ (x2 − vt) x′1 = γ (x1 − vt) , com γ = 1√ 1− v2 c2 . Subtraindo as duas equac¸o˜es temos x′2 − x′1 = γ(x2 − x1), 38Como discutido anteriormente, essa constatac¸a˜o e´ consistente com a proposta de Fitz- Gerald segundo a qual o comprimento dos corpos muda de uma quantida que depende do quadrado do raza˜o entre sua velocidade e a velocidade da luz, necessa´ria para explicar o Experimento de Michelson-Morley no contexto da Teoria do E´ter. 24 Miotto e Ferraz A Teoria da Relatividade Especial ou seja Lp = γL −→ L = (√ 1− v 2 c2 ) Lp. (2.6) Como do ponto de vista do observador em S e´ o objeto que esta´ se movendo, essa expressa˜o equivale a dizer que o comprimento de um objeto e´ menor quando ele e´ medido em um referencial em que ele se encontre em movimento. Essa consequeˆncia dos Postulados de Einstein e´ conhecida como contrac¸a˜o espacial ou contrac¸a˜o de Lorentz-FitzGerald. E´ importante salientar que a contrac¸a˜o espacial so´ se verifica na direc¸a˜o do movimento relativo entre o referencial e o objeto. Assim, se considerarmos, por exemplo, um quadrado em movimento de tal forma que dois de seus lados esta˜o posicionados na direc¸a˜o do movimento e dois na direc¸a˜o perpendicular a do movimento, a contrac¸a˜o so´ se verificaria nos lados paralelos a` direc¸a˜o do movimento e sua forma final seria a de um retaˆngulo. Se o quadrado estiver posicionado de tal forma que suas faces formam um aˆngulo em relac¸a˜o a` direc¸a˜o de movimento, na˜o so´ suas faces sera˜o deformadas, mas tambe´m os aˆngulos internos deixara˜o de ter 90◦. Agora e´ a sua vez: Verifique que um quadrado cujo lado A forma um aˆngulo de 30◦ em relac¸a˜o a` direc¸a˜o x sera´ visto como um paralelogramo com lados 0,901A e 0,968A, cujos lados menores fazem um aˆngulo de 33,7◦ em relac¸a˜o a` direc¸a˜o x′ quando visto de um referencial que se move a uma veloci- dade v = 0,5c. Quer saber mais? Os mu´ons, um exemplo da dilatac¸a˜o temporal e contrac¸a˜o espacial Um exemplo interessante que ilustra a dilatac¸a˜o temporal e a contrac¸a˜o espacial esta´ relacionado ao decaimento de mu´ons que se formam na atmosfera a partir dos chamados chuveiros de raios co´smicosa. Os mu´ons decaem de acordo com a lei estat´ısica da radiotividade N(t) = Noe−τ/r, onde No e´ o nu´mero de mu´ons no instante t = 0, N(t) o nu´mero de mu´ons no instante t e τ o tempo me´dio de vida, que no caso dos mu´ons e´ de aproximadamente 2 µs. Os mu´ons sa˜o formados nas camadas superiores da atmosfera, aproximadamente 10 km acima do n´ıvel do mar. Um mu´on t´ıpico, com uma velocidadesde 0,998c, percorreria apenas 600 m em 2 µs. Ocorre que tais part´ıculas sa˜o detecta´veis na superf´ıcie terrestre e mesmo abaixo do n´ıvel do marb. A explicac¸a˜o desse aparente paradoxo esta´ na dilatac¸a˜o temporal: para um observador na Terra, o mu´on tem um tempo de vida t′ = t √ 1− v2 c2 = 30 µs. Esse tempo e´ o suficiente para que o mu´on, que tem velocidade 0,998c, percorra cerca de 9.000 metros antes de decair quando visto do referencial da terra. aO estudo dos chuveiros co´smicos foi de fundamental importaˆncia no desenvolvi- mento da f´ısica no Brasil. Grandes pesquisadores como Ce´sar Lattes, Marcelo Damy, Gleb Wataghin, e Paulus Pompe´ia, dedicaram parte de suas carreiras a essa importante a´rea. Sa˜o dignos de nota os trabalhos de Wataghin, Dami e Pompe´ia sobre o compo- nente penetrante da radiac¸a˜o co´smica (Phys. Rev. 59, 902 (1941)) e o estabelecimento da existeˆncia do me´son-pi por Lattes (Nature 159, 694 (1947)). bEm 1947, Wataghin, Damy e Pompe´ia relataram em seu trabalho a detecc¸a˜o de tais part´ıculas a profundidades equivalentes a 60 m abaixo do n´ıvel do mar! 2.3 Consequeˆncias dos Postulados de Einstein Miotto e Ferraz 25 2.3.4 Dinaˆmica relativ´ıstica Na sec¸a˜o 2.1.1 O Conceito Mecaˆnico vimos que as Leis de Newton sa˜o invariantes (equivalentes) em relac¸a˜o a` Transformac¸a˜o de Galileu. Isso significa que a Segunda Lei de Newton ~F = m~a e´ va´lida em qualquer referen- cial inercial, ou seja, a acelerac¸a˜o ~a medida em um dado referencial deve ser igual a uma acelerac¸a˜o ~a′ medida em outro referencial inercial em movimento relativo em relac¸a˜o ao primeiro. Por outro lado, segundo os Postulados de Einstein, o tempo e o espac¸o medidos em diferentes referenciais inerciais em movimento relativo na˜o sa˜o iguais, o que implica que as velocidades e ace- lerac¸o˜es tambe´m na˜o o sera˜o. Em outras palavras, a Segunda Lei de Newton na˜o e´ invariante em relac¸a˜o a` Transformac¸a˜o de Lorentz. Dessa forma, faz-se necessa´rio determinarmos uma nova lei de movimento, equivalente a` versa˜o cla´ssica de Newton, mas tambe´m consistente com os Postulados de Einstein. Para tanto, vamos, inicialmente observar o que ocorre com a velocidade de um corpo quando medida em diferentes referenciais. Transformac¸o˜es de velocidades Considere dois referenciais inerciais S e S′, com velocidade relativa ~v = v ıˆ na direc¸a˜o do eixo x. Nesse caso, as transformac¸o˜es de Lorentz (equac¸a˜o 2.4) tem a forma: x′ = γ (x− vt) y′ = y z′ = z t′ = γ ( t− vc2x ) com γ = (√ 1− v 2 c2 )−1 . (2.7) As velocidades, por sua vez, sera˜o dadas por: v′x = x′ t = γ (x− vt) γ ( t− vc2x ) = x− vt t− vxc2 = t ( x t − v ) t ( 1− vc2 xt ) = vx − v 1− vvxc2 v′y = y′ t = y γ ( t− vc2x ) = y t 1 γ ( 1− vc2 xt ) = vy γ ( 1− vvxc2 ) v′z = z′ t = z γ ( t− vc2x ) = z t 1 γ ( 1− vc2 xt ) = vz γ ( 1− vvxc2 ) , (2.8) onde vα = α t e´ a velocidade na direc¸a˜o α com que o um dado objeto se move em relac¸a˜o ao referencial S. E´ importante ressaltarmos que nossa escolha de escrever as posic¸o˜es e velocidades do referencial em movimento S′ em termos de seus equivalentes no referencial em repouso S na˜o e´ u´nica. Poder´ıamos ter feito a transformac¸a˜o inversa, isto e´, verificado como um sistema de refereˆncia em repouso se comporta sob a o´ptica de um observador em um sistema de refereˆncia em movimento. Por simetria, a transformac¸a˜o inversa leva ao mesmo conjunto de equac¸o˜es, pore´m com a velocidade com sinal oposto, ja´ que do 26 Miotto e Ferraz A Teoria da Relatividade Especial ponto de vista de S′ e´ o outro referencial que se move na direc¸a˜o contra´ria. Se considerarmos o exemplo anterior, a velocidade na direc¸a˜o x, por exemplo, seria escrita como: vx = v′x + v 1 + vv′x c2 . Observe que as expresso˜es que relacionam as velocidades nos diferentes re- ferenciais teˆm consequeˆncias importantes especialmente na determinac¸a˜o das velocidades relativas. Enquanto as Transformac¸o˜es de Galileu previam que a velocidade relativa era determinada pela soma alge´brica das velocidades (vrel = vA±vB), o mesmo na˜o ocorre se utilizarmos as expresso˜es
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