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A ARTE INDÍGENA CONTEMPORÂNEA 
COMO ARMADILHA PARA RMADILHAS 
9 de julho de 2020 
 
Fonte: 
http://www.jaideresbell.com.br/site/2020/07/09/a-arte-indigena-contemporanea-como-
armadilha-para-armadilhas/ 
 
 
 
 
Antes de quaisquer outras questões eu quero destacar o caráter de legitimidade deste 
ensaio. Penso e até espero que lhe deva ser considerado importante por todos aqueles 
que passeiam acerca do termo, ou da negação do termo ou mesmo em sua exaltação. 
Escrever sobre o assunto é exponencialmente uma agentividade legítima exatamente 
daqui desta posição; eu o vivente, artista, indígena e autônomo. 
 
Durante uma década inteira tenho me dedicado integralmente a pensar as artes que faço 
como partes de um sistema político e estratégico amplo, de limites indefinidos 
http://www.jaideresbell.com.br/site/2020/07/09/a-arte-indigena-contemporanea-como-armadilha-para-armadilhas/
http://www.jaideresbell.com.br/site/2020/07/09/a-arte-indigena-contemporanea-como-armadilha-para-armadilhas/
lilia
Realce
intencionalmente para que uma hora pudesse ser posto em ambiente de equivalência 
aos todos, para de fato suscitarem possibilidades reais de diálogos com os já difundidos 
movimentos. 
 
Eu não posso desde onde estou, afirmar ou negar absolutamente nada, tampouco a 
intenção da minha escrita está para além das fronteiras de suas próprias investidas. Eu 
não sou titular de nenhuma cátedra em uma influente academia, mas ao passar dos anos 
eu pude perceber que esses espaços já existem e que já constroem teorias ao mesmo 
tempo em que as disseminam segundo suas próprias estruturas e motivações. 
A gente, digo eu, nasço num ambiente fértil para as criatividades, ou para as inanições se 
eu tivesse cedido aos convites ao auto apagamento. Eu venho a esse mundo já como 
alguém desvirtuado. Eu considero usar a palavra desvirtuado com ressalvas e licenças 
pois nesse primeiro plano eu não posso deixar de dar como referência a chegada e ação 
dos invasores europeus sobre as dinâmicas próprias dos povos autóctones destas terras 
hoje re-reinvidicadas. 
 
Pois então vamos pensar um pouco sobre o tema deste texto. Armadilhas para 
armadilhas. Sistemas de poder. Conceitos coloniais. Práticas mescladas de valores e 
referências. Identidade e autoconsciência. Função forma e conteúdo. A questão do 
território e territorialidade vista deste ponto aqui, repito: eu vivente, um artista de 
ascendência Makuxi, povo de amplo movimento sócio interativo, político expansionista 
e estético marcador para bem antes da chegada dos invasores “brancos”, ponto que 
queria também marcar. 
 
Quando se nasce onde e como eu nasci, não se tem muitas escolhas senão buscar fazer-
se em si mesmo e isso pressupõe negar não exatamente quem se é mas aquilo que 
queriam que você fosse. A primeira teimosia vem mesmo dentro de casa. A forma como 
fui educado não foi nem de perto a primeira violência. É que meu corpo não me pertence 
sem que eu o veja com um alongamento de acúmulos históricos. A violência é uma 
energia propagada de alcance praticamente não rastreável, mas é. 
 
A gente precisa uma hora ampliar as leituras de mundos para minimamente ser justo com 
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aquilo ou aquele que a gente pesquisa. Imagine os efeitos de quinhentos anos sobre uma 
população que assimila e desassimila o tempo todo. 
 
Não pude me deter em questionar os modos pelos quais me foi imposta a ideia de 
educação. A revolta que hoje entendo melhor não era coisa de alguns anos, mas séculos 
e em um outro plano, milênios de distúrbios emocionais não tratados que se acumulam 
e se projetam sempre com mais eficiência nos modelos gerais oficiais e outras forças das 
próprias épocas. 
 
Eu nasci no final do regime ditatorial. De um certo modo eu fui um privilegiado pois nasci 
no berço da violência, assim pude ver a sua cara como a primeira paisagem. Como 
segunda paisagem eu pude formar em mim mesmo mundos a partir de fragmentos. Uma 
narrativa aparentemente engessada, redonda e limitada me foi apresentada em uma 
hora dessas onde os fatores todos se reúnem para dar fluxo a outros códigos genéticos, 
vamos dizer assim. 
 
Ouvir sobre a grande árvore me levou a mundos distantes. Era noite de verão, céu sem 
lua e eu senti a via láctea. Passei a olhar todos os tipos de árvores e a olhar todos os tipos 
de rastros, revirar pedras, entrar em fendas escacaviando tudo. Certamente nada de mais 
teria acontecido na minha vida se a história tivesse sido a mim apresentada de uma outra 
forma, por outro alguém e em outro momento. 
 
Mas foi onde hoje é a nossa terra, a Terra indígena Raposa Serra do Sol. Quem me falou 
foi o meu avô exímio contador de estórias lúdicas e fantásticas, mas ele fora um escravo 
nas fazendas dos estranhos que usurparam nosso mundo com a melhor das intenções 
deles e para eles. 
 
Eu não podia imaginar que aquele cenário era cenário, que o couro de vaca que 
estávamos deitado em cima eram as estampas da colonização e da guerra pelas terras 
que então já estávamos como estranhos pois por ordem nacional não nos pertenciam 
como ainda continua assim até hoje e me parece que será para sempre assim. 
– Há muito tempo existiu por aqui uma grande árvore. Ela tinha todos os tipos de frutas… 
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Como eu poderia achar normal ter de ir para a escola e não poder acompanhar meus 
próprios parentes no trabalho comunitário desfrutando do verdadeiro saber que era a 
nossa língua e nossas tradições? Com quem eu poderia dialogar sobre as grandes 
questões que me assolavam se minhas professoras só sabiam alfabetizar com maestria e 
não tinham tempo para me ver aéreo, pois estavam aéreas pensando no importo de 
renda. Cada um em um mundo e eu no outro mundo mais longe rabiscava imaginários 
enquanto a turma chorava para aprender a escrever o próprio nome. 
 
Aquilo hoje posso bem dizer que já era a arte me alcançando. E foi nesse ritmo que me 
mantive esses anos todos. Um constante movimento de cruzar sentidos andando por 
uma margem muito estreita, esses lugares invisíveis por onde só andam os mais 
astuciosos exploradores. 
 
Me fiz explorador em um lugar onde tudo se explorava. Eu tive que negociar com o medo, 
com a timidez, com a tristeza, com a solidão, com a apatia. Por lá exploravam a terra não 
mais para agricultura familiar comunitária. Se explorava a terra para grandes companhias. 
Agricultura de monocultura. Exploravam a terra para retirar minérios, madeira, terra para 
grandes fazendas de gado que a gente não via para onde ia tamanho rebanho. 
Exploravam a terra para caçar mãos de obra. Exploravam a terra para disseminar a 
miscigenação aos modos perversos desde enganações e promessas a estupros violentos 
nos campos longínquos de onde imaginavam nunca alguém poder ser capaz de revelar. 
Assim os sistemas, as artimanhas, as estratégias, as políticas públicas oficiais e não oficiais 
de genocídios foram se estabelecendo. Eu pude acompanhar todo o processo desde onde 
estava, como disse tendo o privilégio de nascer onde nasci e vejam bem, por poder 
usufruir do sistema cristão que meus pais já nasceram dentro. A igreja ainda não havia 
declarado guerra ao estado. E relação deles ainda era complementar. 
 
Como um menino na escola de catequese eu pude explorar a igreja, andar com as madres 
por boa parte da minha própria terra, ver e sentir como a igreja os tratava e como era 
esse trato deles com o estado, as forças constituídas. Eu posso dizer com mais segurança 
hoje que o que eu fazia era uma pesquisa minuciosa sobre minha própria origem. 
Sobretudo posso dizer que se tratava portanto de uma pesquisa sobre meu próprio 
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destino pois de todas as partes da sociedade eu tinha curiosidade desproporcional para 
minha idade ou realidade. 
 
Então por que é que eu digo que usar o termo Arte Indígena Contemporânea é antesde 
tudo uma estratégia? Talvez pelo fato de eu não conseguir dizer, fazer, mostrar e viver 
tudo o que acumulei de imaginação e visão por outros meios. 
 
Eu não seria assim se tivesse me tornado um cientista, um padre, um militar, um 
garimpeiro, um fazendeiro, um servente, ou um professor. Eu não poderia talvez 
externalizar, dar vazão aos meus eus e aos outros se eu tivesse me tornado um pai de 
família, um trabalhador comum assalariado. Certamente não teria sido assim se eu não 
tivesse aberto a mão de todas essas possibilidades para ser unicamente artista. 
E mesmo o termo artista pelo que se espera de um profissional desta área não poderia ir 
por tantos caminhos assim. Em mim está sendo assim, eu digo que sou artista, mas o que 
sou de fato? 
 
Eu decidi assumir estas funções, me ocupar integralmente nisso e mesmo assim para 
poder chegar aqui eu precisei, por estratégia, percorrer caminhos convencionais como 
ter um emprego formal. Consegui um emprego via concurso público onde fiz carreira 
como auxiliar técnico numa empresa estatal de energia elétrica. Mesmo lá me pus a dar 
continuidade a minha pesquisa sobre sistemas, políticas e estratégias. Nesse tempo 
também pude fazer um curso superior. Fiz uma graduação e tentei seguir, mas não me 
deixaram. Assim pude ter introduções sobre metodologias cientificas e compreender um 
pouco os mecanismos com os quais a ciência se faz valer. 
 
Voltando para o assunto maior, a arte indígena contemporânea, posso dizer que é um 
termo a mais no mundo dos termos. Mas, quando é trabalhado desse lado de cá, o eu 
sujeito, artista, indígena e autor, passa a ter legitimidade inquestionável. É armadilha para 
pegar armadilhas por diversas razões, sobretudo para o campo da autocrítica, autoanálise 
e autodesenvolvimento. 
 
Talvez se espera discutir sobre tal arcabouço questões como se índio faz arte, artesanato 
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ou artefato. Questionar usos e apropriações de ambos os lados. Discutir questões de 
autoria coletiva, a autonomia do artista ou mesmo obter parâmetros que digam quem 
pode ser considerado artista ou não entre os sujeitos indígenas. Talvez ir além a ponto 
de forçar limites e fronteiras que são tênues em muitos pontos como a legitimação de 
uma reivindicação autoidentitária ou a miscigenação ou a dupla identidade étnica 
quando os nativos se fundem com os afrodescentes. 
 
Talvez ir mais além como ter um campo mais definido para alardear injustiças que não 
podem deixar ser mostradas como a desvantagem que temos enquanto povos originários 
sobre todos os demais grupos étnicos, inclusive em relação aos movimentos da 
população negra neste país e Américas, por exemplo. 
 
É claro que lanço este ensaio aberto para o todo e gostaria que este material pudesse ser 
inserido nos conteúdos dos cursos de nível superior. Que estejam a lê-lo nas pós 
graduações, nos cursos de formação de professores e meios afins. 
 
Temos hoje como identificar por meio de dúzias de sujeitos indígenas que se expressam 
abertamente para o grande público, que tratamos de fato de um sistema extremamente 
complexo de visibilização de pluralidades. Temos artistas de ambos os sexos que 
sinalizam para uma estratégia ainda pouco evidente. Talvez o que se trata seja de uma 
guinada transgeracional fenomemal e não modal. Não só pela idade dos sujeitos, mas 
pelo conteúdo, o teor de suas performances, de suas vozes e pelo crescente levante de 
artistas indígenas não binários, os sem gênero. 
A questão do gênero, da radicalização, do aldeamento ou a falta dele, o domínio ou não 
das línguas maternas dos seus povos de origens são questões latentes que podem e dever 
ser acolhidas sempre em uma perspectiva construtiva. Não posso deixar de assinalar para 
a questão da autoria, da autonomia do fazer artístico como uma voz dissonante do meio 
comum sem deixar de sê-lo. 
 
Da prática artística como composto de atos mais elevados. Como conjunto ritualístico 
mais que mítico chegando a pajelagem. Como prática xamânica, curativa e 
psicomedicinal. Como um conector para fatos históricos e como um disparador de 
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sinapses para mundos que existem, mas não são como os que a gente tem acesso. Um 
artista não se desenvolve com imposições. As imposições violentas podem ser muito 
perigosas para as mentes sensíveis de artistas. Por fim não vou deixar de lembrar que em 
tudo há armadilhas e que nós, os indígenas, precisamos de uma armadilha para identificar 
armadilhas e quem sabe esta não seja exatamente a AIC – Arte Indígena Contemporânea, 
feita e contextualizada por seus autores próprios. 
 
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