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DO ANTROPOCENTRISMO AO TEOCENTRISMO

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DO ANTROPOCENTRISMO AO TEOCENTRISMO: O surgimento da filosofia cristã medieval. 
 A Filosofia grega antiga surge em claro desafio lançado contra o status-quo mitológico, fazendo aparecer a consciência crítica que, inicialmente com Tales e depois com outros filósofos da natureza, abraçou o grande empreendimento intelectual da descoberta do arché, o princípio único de todas as coisas existentes no universo. 
 Após intensos debates sobre qual seria o elemento material que melhor representaria esse arché (água, fogo, número, átomo), a Filosofia grega, especialmente no período dos Socráticos voltou suas atenções e reflexões para as questões do homem, especialmente de sua vida em sociedade. Podemos denominar essa passagem de uma transição da cosmologia para a antropologia. 
 Quando examinamos o cenário da reflexão filosófica em período anterior ao surgimento da chamada Era Cristã, percebemos facilmente o predomínio de uma abordagem antropocêntrica (homem no centro) às questões do cotidiano, ou seja, o pensamento filosófico crítico que havia surgido tão fortemente entre os últimos pré-socráticos (como, por exemplo, Protágoras que pontificou: “O homem é a medida de todas as coisas, das que são enquanto são e das que não são enquanto não são”), permanece como um valor muito estimado, tanto dentre os Socráticos, na Maiêutica de Sócrates ou nas formulações da famosa “República” de Platão, quanto dentre os pós-socráticos, com as constantes buscas de um sentido para a vida humana, de um caminho para a busca da virtude maior (areté) almejado de maneira tão intensa pelo Epicurismo e pelo Estoicismo.
 Ao longo desse período de alguns séculos, mudaram algumas abordagens da questão filosófica, mas não se alterou seu eixo principal: o antropocentrismo como valor-referência, seja para exaltar a virtude da cidadania, ou a melhor organização da cidade (pólis), seja para afirmar qual é o comportamento mais virtuoso e mais valioso do ser humano. Podemos mesmo afirmar que, do ponto de vista grego, na maior parte do período, entre o século 6º a.C. e o século anterior ao surgimento da religião que viria a predominar no Ocidente, aos homens livres era permitido pensar livremente, sem interferências maiores, de um poder político soberano, ou de uma organização religiosa fortemente hierarquizada e centralizadora. Vale lembrar que o tão famoso politeísmo grego se encarregava de evitar grandes centralizações ou controles do tipo monoteísta, enquanto que do ponto de vista político, Atenas serviu como berço da democracia ocidental. Somente com Alexandre, o Grande, e seu vasto império, a história terá o registro de uma organização política mais centralizada, (Éditos Imperiais) mas a reflexão filosófica continuava fluindo livremente, agora voltando seu fluxo para a vida subjetiva do indivíduo (realização pessoal).
 Uma grande guinada dentro desse quadro de antropocentrismo (homem no centro) se deu com o advento do Cristianismo. Inicialmente uma ramificação dentro do Judaísmo, essa religião terá um crescimento vertiginoso, mesmo debaixo de perseguição. A expansão da fé cristã foi notável e se espalhou rapidamente a boa nova da salvação por meio da morte e ressurreição de Jesus Cristo por através de todo o mundo civilizado da época, basicamente as terras ao redor do Mediterrâneo. No século II e III depois de Cristo, também áreas mais afastadas vão sendo atingidas. Tendo surgido entre pessoas simples e atingido inicialmente as classes mais desfavorecidas, o Cristianismo vai avançar gradativamente para todas as camadas da população, atingindo inclusive as pessoas de maior nível intelectual ou capacidade econômica. Estava se consolidando uma vida social marcada pelo teocentrismo (Deus no centro).
 Dentre os imperadores romanos quem mais claramente percebeu a necessidade de fazer-se aliado dessa nova fé foi Constantino, o Grande, (272-337), o qual no ano 313, no princípio do século III da Era cristã providenciou o Édito de Milão e muito contribuiu para a cessação definitiva das perseguições aos cristãos. Deixou-se batizar como cristão no final da vida, mas a autenticidade de sua conversão é alvo de controvérsia. Depois dele, Teodósio I, em 380, proclamou o Cristianismo religião de Estado no Império, através do Édito de Constantinopla e assim estavam dadas as condições para o surgimento da chamada Aliança Trono-Igreja. De agora em diante, estava montado o cenário para o surgimento do Teocentrismo (Deus no centro). 
ALIANÇA TRONO-IGREJA. 
 Essa expressão é utilizada pelos historiadores para se referir ao processo crescente de comprometimento entre o trono, o poder imperial ou temporal, e a igreja, o poder espiritual, em um processo de sinergia, caso queiramos usar uma palavra moderna. Era mutuamente conveniente ao poder temporal e ao poder espiritual esse esforço conjunto e as relações amistosas, pois o Cristianismo poderia oferecer ao Império um grande fator de unificação, uma crença comum unificadora e que viria a evitar muitos conflitos ou discórdias em inúmeras províncias. Essa concórdia tem componentes ideológicos (ideologia também é uma palavra da Modernidade), uma vez que a fé em uma vida futura de paz e o ensino de que deve haver respeito total ao monarca (por exemplo, o Direito Divino de Governar) servirão para manter as populações de vastas regiões razoavelmente conformadas com o status-quo.
 Por seu turno, ao desempenhar pacificamente um papel de fator unificador do Império, a Igreja passa a desfrutar de benefícios do poder temporal, por meio de leis favoráveis, na forma de benefícios diretos como terras agriculturáveis, ajuda financeira para construção de abadias, mosteiros e catedrais, assim como apoio intenso, e mesmo militar se fosse preciso, para manutenção e expansão da fé cristã. Basta, por exemplo, observar o exemplo das famosas Cruzadas. 
 É nesse quadro histórico que se insere a análise do aparecimento de dois grandes filósofos, ou, para usarmos uma terminologia mais eclesiástica, dois grandes pensadores da Igreja: Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. Esses dois pensadores são indispensáveis para a análise do período Medieval.
 Prof. Ms. MARIVALDO GOUVEIA, teólogo e psicólogo clínico, professor universitário na TOLEDO, Especialista em Filosofia Política (UEL) e Mestre em Ciências da Religião (UPM – Universidade Presbiteriana MACKENZIE).

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