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A luz branca do corredor de distribuição corta fileiras de prateleiras onde frascos e blisters se empilham como um inventário silencioso da modernidade hospitalar. À frente, a coordenadora de farmácia aponta para uma caixa marcada como “retorno”: “São 120 unidades vencidas só deste lote — e isso é só o que voltou ontem.” A cena, repetida em hospitais públicos e privados, traduz um problema que já deixou de ser apenas logística para se tornar questão ambiental e de saúde pública: como gerir medicamentos e resíduos farmacêuticos dentro do complexo organismo hospitalar sem transferir o dano do paciente para o ambiente? Reportagem e levantamento técnico juntam-se na rotina da farmácia hospitalar, onde decisões aparentemente administrativas têm efeitos ecológicos concretos. Fontes de contaminação são variadas: sobra de doses não administradas, medicamentos vencidos, recipientes contaminados, resíduos de manipulação de antineoplásicos, efluentes de lavagem de materiais e até excreções de pacientes que recebem fármacos potentes. Quando essas substâncias escapam das rotas controladas de destinação, entram nos sistemas de água e solo, chegando a rios, estações de tratamento e cadeia alimentar aquática, com consequências que incluem toxicidade para organismos aquáticos e potencial contribuição para a seleção de bactérias resistentes. Técnicos e farmacêuticos relatam que a complexidade começa na compra e na prescrição. Compras em bloco, falta de rastreabilidade de lote e dispensação em embalagens múltiplas elevam sobras. A adoção de sistemas de dispensação unitária, controle informatizado de estoque e protocolos de retorno — em que medicamentos não utilizados podem ser reaproveitados quando ainda íntegros — surge como primeira linha de defesa. “O farmacêutico precisa interpretar o fluxo de pacientes e ajustar estoques; isso reduz custos e diminui descarte”, diz a coordenadora, sintetizando uma prática que mescla clínica, logística e responsabilidade ambiental. A gestão de resíduos perigosos hospitalares segue um espectro técnico: segregação na fonte, acondicionamento adequado, transporte interno controlado e destinação final segura. Nem tudo pode ir para incineração: enquanto incineradores de alta temperatura são eficazes para destruir princípios ativos e citotóxicos, sua operação exige controles rigorosos para evitar emissão de dioxinas; alternativas como tratamento térmico controlado, fotólise e processos químicos estão em estudo e aplicação limitada. Muitos hospitais incorporam cooperação com empresas especializadas para o tratamento final, mas a opção correta depende do tipo de resíduo — sólido, perfurocortante, químico, citotóxico — e de critérios ambientais, técnicos e econômicos. A questão da água é especialmente crítica. Estações de tratamento convencionais não foram projetadas para remover uma vasta gama de princípios ativos encontrados em efluentes hospitalares. Estudos mostram a presença de hormônios, analgésicos e antibióticos em concentrações traço em corpos d’água próximos a centros urbanos, reforçando a necessidade de intervenções na fonte: redução de descarte líquido, uso racional de antimicrobianos e tecnologias de pré-tratamento de efluentes hospitalares que complementem as estações municipais. Além das ações operacionais, o texto da mudança passa por decisões de compra — a chamada “farmácia verde”. Isso inclui preferência por medicamentos com embalagens menos poluentes, fornecedores que adotem logística reversa e avaliação do ciclo de vida dos produtos. Ferramentas como avaliação do ciclo de vida (LCA) e critérios de sustentabilidade em editais públicos começam a ganhar espaço, ainda que esbarrem em custo imediato e falta de padronização. A narrativa hospitalar identifica também desafios humanos: equipes não treinadas descartam incorretamente materiais, médicos e prescritores desconhecem o impacto ambiental de medicamentos que rotineiramente prescrevem, e gestores resistem a investimentos que não resultem em economia tangível no curto prazo. Superar isso exige educação continuada, protocolos claros e indicadores de desempenho que conectem práticas sustentáveis a métricas financeiras e clínicas — redução de desperdício, diminuição de custos com descarte, menores índices de contaminação ambiental. Casos de sucesso emergem quando iniciativas multidisciplinares se articulam. Em um hospital com sistema de dispensação unitária e programa de devolução, o volume de resíduos farmacêuticos diminuiu significativamente, ao mesmo tempo em que se reduziu o custo com compras e descarte. Outro exemplo foi a implantação de um pré-tratamento de efluentes específicos (nebulização e sistemas de adsorção) em setores oncológicos, mitigando a liberação de agentes citotóxicos. Por fim, a sustentabilidade farmacêutica em ambientes hospitalares é tanto técnica quanto ética. A farmácia, ponte entre prescrição e administração, tem papel central: formular políticas de compra e descarte, educar equipes, monitorar indicadores ambientais e colaborar com infraestrutura hospitalar para soluções integradas. O desafio é grande — envolve legislação, tecnologia, custo e mudança cultural — mas o benefício é claro: transformar hospitais em espaços onde o cuidado ao paciente não se faz às custas do ambiente que sustenta a vida. PERGUNTAS E RESPOSTAS 1) Quais são as principais fontes de impacto ambiental em farmácias hospitalares? R: Sobra de doses, medicamentos vencidos, resíduos de manipulação (especialmente citotóxicos), embalagens contaminadas e efluentes com princípios ativos. 2) Como reduzir o desperdício de medicamentos? R: Controle de estoque em tempo real, dispensação unitária, compras por demanda, protocolos de retorno e treinamento de equipe. 3) Que destinação é recomendada para medicamentos perigosos? R: Segregação na fonte, acondicionamento apropriado e encaminhamento a tratamento final seguro (incineração de alta temperatura ou tecnologia licenciada). 4) O que faz uma “farmácia verde”? R: Compra responsável, embalagens sustentáveis, logística reversa, avaliação do ciclo de vida e práticas que minimizem emissões e resíduos. 5) Como o farmacêutico contribui para a proteção ambiental? R: Desenvolvendo políticas de gerenciamento de resíduos, otimizando estoques, educando equipes, participando de comitês multidisciplinares e monitorando indicadores ambientais.