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Autor: Prof. Guilherme Gibran Pogibin Colaboradores: Profa. Ghislaine Gliosce da Silva Profa. Leliane Maria Aparecida Gliosce Moreira Profa. Tânia Sandroni Políticas Públicas e Psicologia Professor conteudista: Guilherme Gibran Pogibin Psicólogo (2004), bacharel em Psicologia (2004) e licenciado em Psicologia (2006) pela Universidade de São Paulo. Possui mestrado em Psicologia Social e do Trabalho pela Universidade de São Paulo (2009). Professor de Psicologia em cursos de graduação e pós‑graduação desde 2009, tendo passado pelas instituições: FIO‑Ourinhos, UNIB, PUC‑SP e Uninove. Desde 2022, leciona na UNIP, nos campi Marquês e Alphaville, atuando, também, como coordenador do curso de Psicologia no campus de Alphaville. Leciona disciplinas do campo da Psicologia Social, como Psicologia Social, Psicologia Comunitária, Psicologia do Cotidiano, Processos Grupais, Psicologia Organizacional e do Trabalho, entre outras. Responsável pela supervisão do estágio curricular nas áreas de Grupos e Comunidades e Intervenção em Contextos de Saúde. Atua, também, com atendimento clínico e orientação profissional. © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) P746p Pogibin, Guilherme Gibran. Políticas Públicas e Psicologia / Guilherme Gibran Pogibin. – São Paulo: Editora Sol, 2025. 108 p., il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ISSN 1517‑9230. 1. Políticas públicas. 2. Assistência social. 3. Psicologia. I. Título. 681.3 U522.23 – 25 Prof. João Carlos Di Genio Fundador Profa. Sandra Rejane Gomes Miessa Reitora Profa. Dra. Marilia Ancona Lopez Vice-Reitora de Graduação Profa. Dra. Marina Ancona Lopez Soligo Vice-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Claudia Meucci Andreatini Vice-Reitora de Administração e Finanças Profa. M. Marisa Regina Paixão Vice-Reitora de Extensão Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento Prof. Marcus Vinícius Mathias Vice-Reitor das Unidades Universitárias Profa. Silvia Renata Gomes Miessa Vice-Reitora de Recursos Humanos e de Pessoal Profa. Laura Ancona Lee Vice-Reitora de Relações Internacionais Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Assuntos da Comunidade Universitária UNIP EaD Profa. Elisabete Brihy Profa. M. Isabel Cristina Satie Yoshida Tonetto Material Didático Comissão editorial: Profa. Dra. Christiane Mazur Doi Profa. Dra. Ronilda Ribeiro Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista Profa. M. Deise Alcantara Carreiro Profa. Ana Paula Tôrres de Novaes Menezes Projeto gráfico: Revisão: Prof. Alexandre Ponzetto Fernanda Felix Vitor Andrade Sumário Políticas Públicas e Psicologia APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................7 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................8 Unidade I 1 FUNDAMENTOS DAS POLÍTICAS DE ESTADO ........................................................................................ 11 1.1 Constituição do Estado moderno .................................................................................................. 11 1.2 Fundamentos dos modelos de proteção social ........................................................................ 13 2 HISTÓRICO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS NO BRASIL ............................................................................. 17 2.1 Panorama geral da constituição de políticas públicas no Brasil ....................................... 17 2.2 Estado brasileiro e as condições subjetivas ............................................................................... 19 3 INTRODUÇÃO AO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS) ........................................................................ 23 3.1 Princípios e diretrizes do SUS .......................................................................................................... 23 3.2 Papel do psicólogo nas políticas públicas de saúde ............................................................... 26 4 INTRODUÇÃO AO SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL (SUAS) ......................................... 31 4.1 Princípios e diretrizes do Suas ........................................................................................................ 31 4.2 Papel do psicólogo nas políticas públicas de assistência social ........................................ 36 Unidade II 5 PSICOLOGIA E COMPROMISSO SOCIAL .................................................................................................. 44 5.1 Compromisso social da psicologia ................................................................................................ 44 5.2 Psicologia, subjetividade e políticas públicas ........................................................................... 49 6 ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO NO SUS .......................................................................................................... 53 6.1 A esfera de trabalho da psicologia no campo das políticas públicas de saúde .......... 53 6.2 Desafios teóricos‑metodológicos e ético‑políticos da atuação do psicólogo no SUS .............................................................................................................................................................. 58 6.3 Relatos de experiência ....................................................................................................................... 63 7 ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO NO SUAS ....................................................................................................... 68 7.1 A esfera de trabalho da psicologia no campo das políticas públicas da assistência social .......................................................................................................................................... 68 7.2 Do “sujeito da caridade” ao “sujeito de direito”....................................................................... 72 7.3 Relatos de experiência ....................................................................................................................... 75 8 OUTRAS ATUAÇÕES DO PSICÓLOGO NAS POLÍTICAS PÚBLICAS .................................................. 80 8.1 Psicologia e políticas públicas: violência e direitos humanos ........................................... 80 8.2 Psicologia e políticas públicas voltadas ao uso de álcool e drogas ................................. 83 8.3 Psicologia, políticas públicas e educação ................................................................................... 90 8.4 Movimentos sociais e a construção de políticas públicas: psicologia e diversidade sexual ........................................................................................................................................ 94 7 APRESENTAÇÃO A presente disciplina está inserida em um contexto no qual o estudante deve relacionar o campo social das políticas públicas com sua atuação profissional como psicólogo. Para tal, torna‑se fundamental apresentar os fundamentos das políticas de Estado e fazer uma introdução sobre o campo das políticas públicas do Sistema Único de Saúde (SUS) e do Sistema Único de Assistência Social (Suas). Para a formação profissional do futuro psicólogo, devem ser entendidas as possibilidades de atuação em diferentes contextos, considerando as necessidades sociais e os direitos humanos, assim como o exercício da cidadania, tendo em vista a promoção da qualidade de vida dos indivíduos, dos grupos, das organizações e das comunidades. É necessário, também, refletir sobre o papel do psicólogo nade 1970, ganha força o discurso da democratização do acesso à saúde, impulsionado pelos debates sociais que destacavam as mudanças profundas necessárias para garantir um acesso mais amplo e que, mais tarde, refletiriam nos princípios da universalidade, equidade e integralidade. Nesse período, também 29 POLÍTICAS PÚBLICAS E PSICOLOGIA começa a se buscar a descentralização como forma de aproximar a população local e convidá‑la a participar, em parceria com o poder público, da construção de intervenções adequadas às necessidades locais. Com a implantação do SUS, no entanto, surgiram novos questionamentos e reivindicações. Nesse contexto, o princípio da integralidade pode direcionar recursos técnicos como tratamentos e ações preventivas, o que implica que a ação integral possibilita a efetivação do cuidado. Essa abordagem garante visibilidade a aspectos que vão além dos biológicos, uma vez que as necessidades de saúde não se limitam apenas ao bem‑estar físico do indivíduo. Além disso, no contexto das ações de saúde no SUS, a demanda pode ser acolhida e tratada para além do consultório médico e da relação médico‑paciente, pois todos os profissionais de saúde têm a capacidade de aplicar o princípio da integralidade (Castro, 2021, p. 5). A autora também aponta para a prática do cuidado, em seu sentido político. Ações que buscam emancipar o indivíduo por meio da conscientização sobre seus problemas, garantindo‑lhe um papel central nas decisões relacionadas ao seu próprio processo de saúde e doença, estão sob a lógica do cuidado. Portanto, a integralidade do cuidado confere à saúde pública um lugar especial nas práticas sociais, tendo o SUS uma visão emancipadora do sujeito, apesar das dificuldades de, na prática, se afastar de uma visão médica tradicional. O princípio da integralidade não se resume apenas no cuidado ao usuário do serviço, mas, também, está na relação do trabalho em equipe, em que é possível orientar a organização de forma a atender tanto a demanda espontânea quanto as necessidades identificadas no contato com a população local, abrangendo tanto as questões que afetam o grupo populacional quanto as necessidades de segmentos específicos. Nesse contexto organizacional, é vital destacar o valor da transdisciplinaridade. A noção de atenção integral insere nas práticas de saúde a necessidade de diálogo entre campos de saber, para compreender os indivíduos sob outros aspectos que não apenas o biológico e, assim, identificar a necessidade de intervenção de outros profissionais e terapêuticas na produção do cuidado. Indo um pouco além, a partir da integralidade, o perfil de equipe mais afim a essa noção é o transdisciplinar, visto que a transdisciplinaridade evoca uma ação construída por sujeitos que não apenas buscam o diálogo, mas a integração dos saberes das diferentes disciplinas envolvidas (Castro, 2021, p. 7). A psicologia é uma disciplina que vai além do campo da saúde, transitando também por outras áreas, como as ciências humanas, o que amplia a compreensão e as possibilidades de atuação do psicólogo na saúde pública. No entanto, desde a década de 1980, há uma crítica significativa às práticas desenvolvidas pelos psicólogos no âmbito da saúde, muitas vezes baseadas na abordagem tradicional da clínica, como a psicoterapia ou o psicodiagnóstico. Esse problema decorre da manutenção de um currículo acadêmico tecnicista, que não prepara adequadamente o futuro profissional para o trabalho com grupos. A clínica aprendida nos cursos universitários ainda é predominantemente individual, com a prática com grupos sendo pouco conhecida ou desvalorizada, o que gera sérios desafios, especialmente na saúde pública, campo esse que necessita de novas metodologias. 30 Unidade I No processo contínuo de construção e desconstrução de ideias, de conhecimento e de afirmação de si e do outro surgem novas possibilidades de atuação, com limites e áreas ainda inexploradas. A prática da psicologia engloba um constante refazer, não de maneira aleatória ou reativa, mas guiado pelo desejo genuíno de afirmar a existência, com o objetivo de promover uma ação humanizada e humanizante, ao passo que se manifesta o desejo de romper com uma relação sujeito‑objeto, mecanizada e repetitiva, que não atende às especificidades da população atendida. A questão da identidade do profissional de Psicologia na saúde pública é algo que parece perpassar toda a discussão acerca do seu posicionamento na construção do atendimento prestado à população e mesmo do SUS. Ao reconhecer sua identidade – e, portanto, seu lugar no sistema –, posicionar‑se profissionalmente implica em reconhecer também a própria responsabilidade pela cogestão do SUS e, assim, um posicionamento político diante da realidade. Percebe‑se, assim, que a prática do psicólogo orientada para a transformação da realidade se articula fortemente com a atuação política quando apresenta o princípio ético da inseparabilidade: não há como se falar em cuidado sem discutir a gestão desse cuidado (Castro, 2021, p. 8). A escolha de uma atividade clássica da psicologia parece estar também ligada a interesses de uma categoria que busca se afirmar diante dos outros profissionais de saúde, estabelecendo seu espaço nesse campo, ainda que se limite às suas próprias práticas. Essa atitude perde de vista o princípio da transversalidade, assim como o da integralidade. Ao não buscar a interação com outros campos de saber, não só deixa de haver intervenções que melhor atendam à população, mas perde‑se também a oportunidade de cada vez mais construir‑se como um campo de saber. Da mesma forma, é uma demarcação de seu lugar hierárquico em relação ao usuário do SUS, uma vez que também diz respeito ao reconhecimento da sociedade, do seu lugar como profissional da área de saúde. Cabe questionar o tipo de cuidado que se produz nessa relação (Castro, 2021, p. 8). Para que os profissionais de psicologia possam atuar de acordo com os princípios da transversalidade e integralidade no sistema de saúde pública, é necessário redefinir suas práticas dentro do dinamismo da realidade que lhes confere sentido. É preciso questionar os discursos prontos e reconhecer a diversidade dos diferentes tipos de discurso. Entende‑se que é crucial avançar nessa discussão, integrando o tema ao debate sobre o projeto ético‑político da profissão, refletindo sobre os limites e as possibilidades da atuação profissional. 31 POLÍTICAS PÚBLICAS E PSICOLOGIA 4 INTRODUÇÃO AO SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL (SUAS) 4.1 Princípios e diretrizes do Suas Historicamente, considera‑se que a implementação de planos, programas e políticas de assistência social no Brasil teve seu início no período colonial, tendo sua continuação durante o Império. À época, as práticas que continham um sentido de “assistencialismo” podiam ser encontradas nas práticas por favorecimento e clientelismo entre setores sociais da elite econômica e política, assim como nos setores que mantinham uma base social de dominação. Valores morais e religiosos constituíam a justificativa de tais práticas, que passavam longe de políticas de Estado e do âmbito do direito. Já durante a República, alguns movimentos de assistência passam a ganhar força, ainda que o assistencialismo clientelista continue predominando como valor social. No Estado Novo, período da ditadura varguista, são criados o Conselho Nacional de Serviço Social e a Legião Brasileira da Assistência, a LBA (Oliveira; Kahhale, 2020). A LBA era carregada por ideais assistencialistas ainda ligados às práticas sociais do Brasil Colônia. Duas características da LBA merecem especial atenção: era uma organização da sociedade civil de finalidade não econômica, voltada para congregar as “organizações de boa vontade” – compreendia, portanto, a assistência social como um ato de vontade, e não como um direito de cidadania [...]. Além disso, seu estatuto assegurava a presidência da instituição à primeira dama da República,instituindo, assim, o chamado “primeiro‑damismo”. Em outras palavras, a LBA deslocou o papel direto do Estado, fazendo com que passasse a assumir dupla figura: uma mediada pelas organizações filantrópicas, outra caracterizada pela bondade da esposa do governante (Cordeiro, 2018, p. 67). O caráter filantrópico, associado a uma imagem de boa vontade individual, é marcante até os dias de hoje, como será visto adiante, e que ainda se constitui como valor operante em diversas práticas na assistência. A noção de uma assistência social ligada ao direito do cidadão é construída no Brasil, historicamente, a partir da segunda metade do século XX, ganhando mais força com a ascensão de movimentos sociais populares das décadas de 1970 e 1980, que se articulavam como resistência ao regime ditatorial militar (que durou de 1964 a 1985), aliados, ainda, a movimentos de trabalhadores e setores intelectuais progressistas. O fim da ditadura militar se entrelaça à mobilização da sociedade civil e de movimentos pela democratização que culminam na formulação da Constituição Federal de 1988, a chamada Constituição Cidadã. É na Constituição de 1988 que a assistência social se consolida como um direito a ser garantido pela responsabilidade estatal. A ideia de assistência social como caridade passa a dar lugar ao âmbito do direito e da política pública. Já em 1993, é instituída a Lei Orgânica de Assistência Social, a Loas, para regulamentar o que a Constituição já previa em seu texto. 32 Unidade I De forma a regulamentar o artigo do texto constitucional, no ano de 1993, é promulgada a Lei Orgânica da Assistência Social, LOAS, que instituiu definitivamente a Assistência Social como um direito social não contributivo, estabelecendo seus princípios e diretrizes, bem como a proteção social a ser garantida por meio de serviços, benefícios, programas e projetos, havendo detalhamento posterior em três instrumentos principais: a Política Nacional de Assistência Social de 1998, e duas Normas Operacionais Básicas editadas em 1997 e 1998 (Oliveira; Kahhale, 2020, p. 121). A Política Nacional de Assistência Social (PNAS) e a Norma Operacional Básica (NOB/Suas) marcam o avanço do campo da assistência social como direito e política pública. A PNAS estabelece o conjunto de políticas nacionais a serem implementadas no âmbito do combate à fome, à pobreza e à exclusão social. Já a NOB fixa quais são as normas para gerir a implementação das políticas, ou seja, quem são os agentes sociais e políticos envolvidos na PNAS, nas esferas federal, estadual, municipal e na sociedade civil, organizando, inclusive, a gestão financeira da política de assistência social. Saiba mais É interessante que o aluno de Psicologia se aprofunde nos textos da lei que estabelece o Suas, assim como os textos da PNAS e da NOB/Suas. A seguir, deixamos as referências para a leitura. BRASIL. Lei n. 8.742, de 7 de dezembro de 1993. Brasília, 1993. Disponível em: https://tinyurl.com/3fe38aa6. Acesso em: 22 nov. 2024. BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). Política Nacional de Assistência Social – PNAS/2004; Norma Operacional Básica – NOB/SuaS. Brasília, 2005. Disponível em: https://tinyurl.com/4967m5e8. Acesso em: 4 abr. 2025. A NOB trouxe um avanço no sentido de estabelecer instrumentos de aprimoramento de gestão e qualificação da oferta de serviços, prevendo planejamento, monitoramento e definição dos entes federados (estados e municípios), participação popular na formulação e implementação das políticas, sendo este um princípio da Constituição Federal, além de ter objetivos como: • Garantir a proteção social de famílias e indivíduos em situação de vulnerabilidade ou risco social, por meio de serviços, programas, projetos e benefícios socioassistenciais. • Garantir acesso à renda à população em situação de pobreza ou extrema pobreza, à população idosa e às pessoas com deficiência sem condições de manter o seu próprio sustento ou de serem mantidas por suas famílias. 33 POLÍTICAS PÚBLICAS E PSICOLOGIA • Oferecer apoio para prevenção e superação de situações de fragilidade em relacionamentos familiares, sociais e comunitários, como em casos de violações de direitos, tais como violência, abandono e negligência. • Oferecer proteção em situações de extremo risco, como calamidades públicas. • Ofertar serviços de acolhimento à população em situação de rua sem lar temporário ou permanente. • Facilitar o acesso das pessoas atendidas no Suas aos serviços das demais políticas setoriais, estabelecendo parcerias e articulações. • Atuar na mobilização e conscientização das comunidades no território. Os objetivos da NOB/Suas estão sempre ligados à noção de que ser assistido pelo Estado e pela sociedade é um direito do cidadão. As condições de pobreza e vulnerabilidade não são consideradas pelos princípios do Suas uma responsabilidade do indivíduo, e o direito à assistência está ligado à ideia de que todo cidadão tem direito a condições básicas de vida e de dignidade. Aqui cabe uma discussão importante, retomando a diferenciação entre os conceitos de “assistência” e “assistencialismo”: o assistencialismo está calcado em práticas clientelistas, mantendo uma relação de poder e desigualdade entre quem oferta alguns favores e quem recebe os favores, se comprometendo com uma retribuição, em forma de apoio ou mesmo trabalho; já a assistência é um dever da sociedade, representado pelo Estado, que garante a todo cidadão as condições básicas de vida, inclusive se pautando nos preceitos dos direitos humanos. Dessa forma, quem promove a assistência social não pode exigir favores em troca. Não obstante, em uma cultura historicamente construída na base do clientelismo como forma de garantia de poder, o assistencialismo ainda é uma forma corrente de prática social. Ainda há confusão e falta de conscientização em relação ao papel da assistência social, como discorre Couto (2015, p. 673‑674): Em primeiro lugar, o abandono do debate da universalização no campo da proteção social, assumindo na focalização o papel fundamental. Nesse aspecto, ganha também notoriedade a política gerencial. Trata‑se de aplicar os parcos recursos de forma eficiente. Desloca‑se do debate a luta por investimentos e acesso à riqueza socialmente produzida. Incorpora‑se a ideia de a política de assistência social ter apenas um papel residual, compensatório e dirigido somente a uma parcela da população incapaz de se sustentar por si própria. Reatualiza‑se nessa perspectiva o entendimento da política como resposta a incapacidades individuais que devem ser parametradas, com imposição de metas que demonstrem o “envolvimento” positivo tanto dos sujeitos que buscam atendimento na política de assistência social como dos trabalhadores que executam o trabalho. A noção de que algo está “errado” com essas famílias e que é preciso identificar sua responsabilidade sustenta práticas invasivas e moralistas. O trabalho então se organiza na busca desses elementos, descolando o sujeito de suas relações sociais. 34 Unidade I Segundo a autora, ainda permeia na sociedade uma ideia de que as questões relativas a direitos sociais são de responsabilidade do indivíduo e da família “desestruturada”, reforçando o moralismo por trás dessa visão, que é herdeira do assistencialismo. Como forma de garantia dos princípios do Suas, fica estabelecida a família como foco de atenção e o território como base para que as ações sejam desenvolvidas com o enfoque na família. O envolvimento e pertencimento da família ao território se estabelece como forma de corresponsabilização da sociedade no sistema de assistência social. Assim, ficam estabelecidos dois níveis de proteção social. A Proteção Social Básica (PSB) se destina à prevenção de riscos sociais, enquanto a Proteção Social Especial (PSE) se destina a quem já está em situação de risco, tendo seus direitos violados. A Proteção Social Básica (PSB) visa a prevenir situações derisco pessoal ou social, por meio do desenvolvimento de potencialidades e do fortalecimento de vínculos familiares e comunitários. Essa modalidade de proteção é destinada às pessoas que se encontram em situação de vulnerabilidade social, decorrente da pobreza, privação (ausência de renda, precário/nulo acesso aos serviços públicos etc.) e/ou fragilização de vínculos afetivos (relacionais ou de pertencimento social, tais como discriminações etárias, de gênero, étnicas, por deficiência etc.). Seus serviços são oferecidos de forma direta nos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e de forma indireta nas organizações e entidades de assistência social da área de abrangência do CRAS [...]. Já a Proteção Social Especial (PSE) visa a intervir em casos em que a situação de risco pessoal e social já está instaurada, tal como ocorre quando há abandono, maus‑tratos físicos e/ou psíquicos, trabalho infantil, abuso sexual, drogadição, cumprimento de medida socioeducativa e situação de rua (MDS, 2005). Ela é composta por ações que requerem acompanhamento individual e maior flexibilidade nas soluções protetivas, implementadas pelos Centros de Referência Especializada de Assistência Social (CREAS), pelos Centros de Referência Especializados para População em Situação de Rua (Centros POP) e pelos serviços por eles referenciados (Cordeiro, 2018, p. 72). A PSE ainda é dividida em duas classificações: média e alta complexidade. A média complexidade é considerada quando, apesar dos direitos violados, ainda existem vínculos familiares e comunitários. Já a alta complexidade é considerada quando o indivíduo ou a família está sem laços comunitários e, geralmente, por alguma situação de ameaça, precisam se distanciar de seus núcleos de referência. O equipamento destinado à PSB é o Centro de Referência de Assistência Social, o Cras. Este tem como função atuar junto a famílias e indivíduos de forma territorializada, tendo como foco o convívio sociofamiliar e comunitário, devendo, ainda, ofertar o Programa de Atenção Integral às Famílias, o Paif. A ideia de família a ser considerada na AB leva em consideração a diversidade de arranjos familiares, quebrando o paradigma moralista que considera apenas a família nuclear patriarcal. Dessa forma, a função básica da família é “prover a proteção e a socialização dos seus membros; constituir‑se como 35 POLÍTICAS PÚBLICAS E PSICOLOGIA referências morais, de vínculos afetivos e sociais; de identidade grupal” (Brasil, 2005, p. 35), além de cumprir uma função de mediação entre seus membros e as instituições sociais, dentre elas, o Estado. Além de ser responsável pelo desenvolvimento do Paif – com referência territorializada, que valorize as heterogeneidades, as particularidades de cada grupo familiar, a diversidade de culturas e que promova o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários –, a equipe do Cras deve fornecer informação e orientação para a população de sua área de abrangência, bem como se articular com a rede de proteção social local no que se refere aos direitos de cidadania, mantendo ativo um serviço de vigilância da exclusão social na produção, sistematização e divulgação de indicadores da área de abrangência do Cras em conexão com outros territórios. Ainda, é de responsabilidade do Cras o desenvolvimento do Paif de forma territorializada, valorizando e levando em conta a multiplicidade, riqueza cultural e a forma como cada família se insere na cultura e na sociedade, considerando a heterogeneidade das formas de fortalecimento de vínculos. Já o Creas tem sua atuação no momento em que os direitos sociais são ameaçados ou violados, seja por responsabilidade do Estado, da família ou de outro indivíduo, sendo acionado em casos de violência (seja física, psicológica, sexual etc.), abandono familiar, trabalho infantil ou pessoa em situação de rua, também podendo atuar no acompanhamento de casos de adolescentes em medida socioeducativa em meio aberto. As situações de risco demandarão intervenções em problemas específicos e/ou abrangentes. Nesse sentido, é preciso desencadear estratégias de atenção sociofamiliar que visem a reestruturação do grupo familiar e a elaboração de novas referências morais e afetivas, no sentido de fortalecê‑lo para o exercício de suas funções de proteção básica ao lado de sua auto‑organização e conquista de autonomia. Longe de significar um retorno à visão tradicional, e considerando a família como uma instituição em transformação, a ética da atenção da proteção especial pressupõe o respeito à cidadania, o reconhecimento do grupo familiar como referência afetiva e moral e a reestruturação das redes de reciprocidade social (Brasil, 2005, p. 37). O Cras e o Creas devem atuar em rede, considerando outros equipamentos amparados por políticas públicas em diferentes campos, como saúde, educação, justiça, habitação, trabalho etc. A atuação em rede ainda leva em conta outros serviços da assistência social, como: • No caso de Proteção Básica: além do Paif, há o Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos e o Serviço de Proteção Social Básica no Domicílio para Pessoas com Deficiência e Idosas. • No caso de Proteção Especial de média complexidade: o Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias Indivíduos (Paefi), o Serviço Especializado em Abordagem Social, o Serviço de Proteção Social a Adolescentes em Cumprimento de Medida Socioeducativa de Liberdade Assistida (LA) e de Prestação de Serviços à Comunidade (PSC), o Serviço de Proteção Social Especial para Pessoas com Deficiência, Idosas e suas Famílias, e o Serviço Especializado para Pessoas em Situação de Rua. 36 Unidade I • Nos casos de alta complexidade: o Serviço de Acolhimento Institucional, o Serviço de Acolhimento em República, o Serviço de Acolhimento em Família Acolhedora e o Serviço de Proteção em Situações de Calamidades Públicas e de Emergências. Cabe ressaltar ainda que o serviço social é o campo de atuação profissional que visa promover cidadania, igualdade e justiça social, sendo o assistente social o trabalhador do serviço social. Esse profissional é primordial no Suas, além de outros que podem fazer parte do quadro de trabalhadores dos equipamentos, como pedagogos, equipe administrativa e psicólogos. 4.2 Papel do psicólogo nas políticas públicas de assistência social Que especificidade o profissional da psicologia pode ter na assistência social? Para começar a destrinchar essa resposta, pode‑se remeter à subjetividade como objeto específico da ciência psicológica. Mesmo o conceito de subjetividade abrange diferentes paradigmas para o entendimento dos processos psicológicos. Portanto, um entendimento de subjetividade que se aproxime do embasamento político e social da assistência social no Brasil, amparada pela formulação do Suas e pela ordenação trazida pela PNAS e pela NOB, é mais pertinente para delimitar‑se um ponto de partida. Sendo assim, referenciais científicos e políticos que entendem a subjetividade como produzida socio‑historicamente e que abarcam preceitos ético‑políticos se aproximam de uma visão de assistência social pautada na cidadania e na promoção de direitos. Não necessariamente uma abordagem teórica específica da psicologia é mais adotada como base para o trabalho na assistência social, mas são as produções de caráter crítico que se aproximam de uma leitura da subjetividade presente nos fenômenos sociais ligados às necessidades e formulações de políticas públicas no campo da assistência. Processos sociais como pobreza, fome, violência, desemprego, constituição familiar e acesso às políticas assistenciais encontram respaldo em uma psicologia que entende os processos psicológicos como parte dos processos sociais, sem cair na dicotomia “indivíduo versus sociedade”. Oliveira e Kahhale (2020) apontam que a própria NOB traz apontamentos para a valorização do trabalho do psicólogo, assim como evidenciam que a categoria profissional dos psicólogosnão entra em acordo em relação ao caráter complementar ou específico de seu trabalho na assistência. O Crepop (Centro de Referências Técnicas em Psicologia e Políticas Públicas), em sua publicação de referência técnica para atuação do psicólogo no Cras (Conselho Federal de Psicologia, 2021, p. 40), trata do contexto social brasileiro ao afirmar a dinâmica de acumulação do capital, que, ao mesmo tempo que é capaz de produzir e acumular muita riqueza, gera a pobreza associada às formas de vida das pessoas e suas condições socioeconômicas, justificando esse processo pela naturalização da pobreza e da miséria, que, ideologicamente, seriam responsabilidade do que o indivíduo é capaz de prover em relação ao seu sucesso ou fracasso social. Ao mesmo tempo que se verifica a falta de investimento sistemático no bem‑estar das populações que sofrem com a desigualdade, cria‑se um discurso da culpabilização individual. 37 POLÍTICAS PÚBLICAS E PSICOLOGIA Com base nesse panorama, abrem‑se duas questões e princípios inerentes ao campo de atuação profissional, principalmente ao considerarmos o trabalho sobre/com os vínculos familiares e comunitários, atribuído a psicólogas e psicólogos inseridas(os) na equipe interprofissional no SUAS: 1) a comunidade ou o território como dispositivo das práticas profissionais no SUAS; e 2) a laicidade como linha orgânica das práticas profissionais da Psicologia, associada à concepção da responsabilidade do Estado na promoção, proteção e defesa dos direitos humanos (Conselho Federal de Psicologia, 2021, p. 40). Completam o raciocínio Oliveira e Kahhale (2020, p. 123), ao citarem a referência técnica do Crepop. Esse manual trata da dimensão ético‑política da Assistência Social, a respeito da trajetória percorrida pela Assistência, sua entrada para o sistema de Seguridade Social brasileiro e sua construção como política pública. O usuário da Assistência chega a ser descrito como o que sofre com as desigualdades sociais. Esse material ainda ressalta que o público também é formado pelos que foram privados dos direitos ou tiveram seus vínculos quebrados. Como já mencionado acima, a assistência social deverá ser prestada a quem dela necessitar, sem distinções, aproximando‑se aos princípios e diretrizes do SUS. O papel do psicólogo vai se delineando inserido no embate político que inclui as formulações de explicação para a pobreza e as condições de vulnerabilidade. É necessário tomar partido, o que demonstra o posicionamento do profissional em relação às condições que se configuram como necessidades de se recorrer à assistência social. Se considerarmos o fortalecimento e o empoderamento do sujeito como um dos possíveis papéis do psicólogo, significa que é necessária a compreensão do usuário do serviço como um sujeito de direitos. Desenvolver autonomia e cidadania implica um trabalho de construção junto ao público atendido do reconhecimento de si, da família e da comunidade como agentes políticos. A busca pela construção de vínculos e o entendimento dos vínculos como parte do processo de assistência na busca pela garantia dos direitos sociais coloca o psicólogo em um lugar estratégico no Suas, na medida em que o trabalho desse profissional afeta o aspecto subjetivo. Ao mesmo tempo que se constrói uma visão do que é o papel do psicólogo nesse processo, é necessário criticar certas práticas consolidadas profissionalmente na psicologia que não condizem com a visão de cidadania e de direitos sociais; uma psicologia que, em muitos momentos de sua história (e até hoje, em certa medida), categoriza, classifica, patologiza e objetifica o sujeito, contribui mais para o assistencialismo do que para a assistência. A busca por um sujeito de ação e consciência frente sua própria condição é um dos papéis do psicólogo na assistência. Uma das grandes dificuldades em exercer esse papel é o reconhecimento do campo de embate de visões políticas diferentes. A dimensão ético‑política do sujeito é um fator a ser considerado. Não se trata de um “pedagogicismo”, de ensinar o que é “certo ou errado”, nem mesmo de doutrinar, pois o 38 Unidade I Código de Ética Profissional do Psicólogo (Conselho Federal de Psicologia, 2005) proíbe que se induza o usuário do serviço a qualquer convicção política. No entanto, é preciso lembrar que os processos psicossociais necessários para promover a cidadania e o acesso a direitos implica um sujeito consciente de si mesmo em relação ao seu contexto social. Oliveira e Kahhale (2020, p. 123) ressaltam “o risco da psicologização do SUAS, ou seja, existe um temor de que o psicólogo atue para normatizar e culpar os usuários da política pela sua condição social”. A referência técnica elaborada pelo Crepop, afirmam as autoras, preconiza que os princípios que orientam a prática do psicólogo devem seguir a lógica de contribuição para a efetivação das políticas públicas da assistência social e para a construção de um sujeito ativo, resultando na prevenção de situações de risco, atuando por meio do fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários, também desenvolvendo as potencialidades pessoais e coletivas (Oliveira; Kahhale, 2020, p. 123). Lembrete Existe uma diferença importante entre assistencialismo e assistência. Enquanto o primeiro se refere a práticas que reforçam a relação de dependência entre os agentes sociais, pautada na lógica do clientelismo político, a segunda se refere à promoção de direitos e cidadania, sendo que o Estado tem o dever de garantir a todos seus cidadãos o acesso a direitos básicos. Buscando ações que visem à promoção de autonomia e cidadania, o trabalho do psicólogo na assistência social exige o entendimento de um sujeito ativo perante seu meio social. O psicólogo deve buscar desenvolver uma prática emancipatória, que leve o sujeito, dentro da rede de promoção de direitos, a romper com os ciclos de naturalização da pobreza e da violência. Trata‑se da crítica a um papel adaptativo do trabalho do psicólogo. Nesse sentido, Ayres (2004) propõe uma ética do cuidado como base para o trabalho do psicólogo. Atribuímos, aqui, ao Cuidado o estatuto de uma categoria reconstrutiva, querendo com isso nos referir à aposta […] de que existe uma potencialidade reconciliadora entre as práticas assistenciais e a vida, ou seja, a possibilidade de um diálogo aberto e produtivo entre a tecnociência médica e a construção livre e solidária de uma vida que se quer feliz, a que estamos chamando de Cuidado (Ayres, 2004, p. 85). O autor, a partir da ideia da ética do cuidado, apresenta três ferramentas que, ao serem usadas pelo psicólogo, que vão ao encontro aos princípios apresentados: o acolhimento, o vínculo e a responsabilização. O acolhimento se dá na medida em que uma escuta qualificada e atenta é proporcionada, sendo o interesse genuíno pelo outro uma de suas condições básicas. A escuta atenta deve ser oferecida em qualquer situação, proporcionando um tempo e um espaço de afirmação do sujeito. O vínculo 39 POLÍTICAS PÚBLICAS E PSICOLOGIA é considerado como dispositivo que possibilita uma relação de igualdade entre os profissionais e os usuários da saúde, permitindo que haja troca entre saberes. Dessa forma, o caráter subjetivo e o objetivo constroem uma terapêutica adequada para cada relação entre usuário e profissional (Oliveira; Kahhale, 2020, p. 125). A responsabilização (ou corresponsabilização) trata do cuidado como um atendimento integral que respeita o protagonismo do atendido, assim como pressupõe a presença ativa do usuário e a interação entre os envolvidos. Isso pode configurar uma relação de igualdade, o que se aproxima de uma responsabilização do cliente e do profissional. [...] O dispositivo de responsabilização, ou corresponsabilização, permite que o cliente/usuário e o profissional se identifiquem com o trabalho realizado, construindo em conjunto uma resolução para o sofrimento inicial (Oliveira; Kahhale, 2020, p. 125). Ainda, é importante considerarque, para o papel do psicólogo na assistência social, se leve em conta de maneira primordial a interdisciplinaridade, já que a ação interdisciplinar vai envolver essa transformação dos campos de conhecimentos na medida em que questiona conceitos, requer a sua revisão, demanda o diálogo, recria modos de agir, desafia os modos instituídos de explicação dentro das teorias. Isto não deve ser visto como uma intercorrência negativa, uma ameaça, um erro ou uma depreciação das disciplinas interrelacionadas. Pelo contrário, precisa ser valorizado como um movimento criativo que decorre do diálogo vivo entre os campos de conhecimento. É essencial submeter‑se à metamorfose, acompanhar a própria recriação. Todavia, para que surjam novos saberes e práticas, deve haver um encontro entre o acaso (a questão que desafia) e as potencialidades existentes em dada situação (a possibilidade de se trabalhar na equipe, por exemplo) (Almeida; Afonso, 2020, p. 96792). 40 Unidade I Resumo Vimos na primeira unidade a constituição histórica e filosófica dos direitos sociais e das políticas públicas, ressaltando o caráter conflituoso entre a promoção de direitos e o crescimento econômico. Ao adentrarmos o tópico da constituição das políticas públicas no Brasil, vimos como as características marcadamente escravocratas do nosso país fizeram com que o auge das políticas públicas brasileiras ocorresse apenas a partir da década de 1980, com os movimentos pela democratização, que culminaram na Constituição de 1988. A partir desses movimentos, temos o surgimento do Sistema Único de Saúde (SUS), que vem na esteira do movimento sanitarista, tendo influência na formulação da Constituição, reivindicando um sistema de saúde de acesso universal e de atenção integral. Por fim, abordamos o Sistema Único de Assistência Social (Suas), que surgiu da necessidade de garantir os direitos sociais básicos a todo cidadão em situação de pobreza, risco e vulnerabilidade. 41 POLÍTICAS PÚBLICAS E PSICOLOGIA Exercícios Questão 1. Leia o trecho a seguir, extraído da obra O alienista, de Machado de Assis. A vereança de Itaguaí, entre outros pecados de que é arguida pelos cronistas, tinha o de não fazer caso dos dementes. Assim é que cada louco furioso era trancado em uma alcova, na própria casa, e, não curado, mas descurado, até que a morte o vinha defraudar do benefício da vida; os mansos andavam à solta pela rua. Simão Bacamarte entendeu desde logo reformar tão ruim costume; pediu licença à Câmara para agasalhar e tratar no edifício que ia construir todos os loucos de Itaguaí, e das demais vilas e cidades, mediante um estipêndio, que a Câmara lhe daria quando a família do enfermo o não pudesse fazer. A proposta excitou a curiosidade de toda a vila, e encontrou grande resistência, tão certo é que dificilmente se desarraigam hábitos absurdos, ou ainda maus. A ideia de meter os loucos na mesma casa, vivendo em comum, pareceu em si mesma sintoma de demência e não faltou quem o insinuasse à própria mulher do médico. ASSIS, M. O alienista. São Paulo: FTD, 1994. p. 2. No decorrer da história, o médico Simão Bacamarte passa a internar várias pessoas da cidade por avaliar que os comportamentos delas não eram normais, adotando para isso critérios que considerava científicos. Dessa forma, a maioria dos habitantes da pequena cidade é internada até que o médico conclua que seu método estava errado. Com base na leitura e nos seus conhecimentos, avalie as afirmativas. I – O personagem Simão Bacamarte assume uma postura que se pauta pela visão cientificista, adotando a ciência como definidora dos padrões de normalidade. II – A institucionalização de pessoas consideradas fora dos padrões de saúde mental, apresentada com ironia na obra machadiana, foi adotada como prática comum no Brasil e durou até a Reforma Psiquiátrica, que estipulou o fechamento gradual de hospícios e manicômios. III – Ao longo dos anos, no Brasil, o papel do psicólogo no tratamento de casos de saúde mental permaneceu secundário, sem alterações significativas, uma vez que o protagonismo é, por consenso, exercido pelos médicos. 42 Unidade I É correto o que se afirma em: A) I, II e III. B) I e II, apenas. C) II e III, apenas. D) I, apenas. E) II, apenas. Resposta correta: alternativa B. Análise da questão A institucionalização dos considerados doentes mentais foi a prática recorrente até a Reforma Psiquiátrica. Dessa maneira, o papel dos psicólogos no tratamento desses indivíduos não é secundário. No trecho de Machado de Assis, vemos o protagonista definindo os padrões de normalidade segundo critérios que ele julga como científicos e objetivos. Questão 2. Observe os quadrinhos. Figura 1 – Quadrinho representando o Sistema Único de Saúde (SUS) Disponível em: https://shre.ink/MS4M. Acesso em: 19 fev. 2025. 43 POLÍTICAS PÚBLICAS E PSICOLOGIA Com base na leitura e nos seus conhecimentos, avalie as afirmativas. I – O SUS, criado com a Constituição de 1988, tem como princípios a universalidade, a gratuidade, a integralidade e a organização descentralizada. II – Os quadrinhos evidenciam a importância da humanização do sistema de saúde, em que a subjetividade do paciente é reconhecida. III – No sistema de saúde, o psicólogo deve preocupar‑se exclusivamente com os desvios de conduta do paciente, não levando em conta as condições socioeconômicas dele. É correto o que se afirma em: A) I e II, apenas. B) II e III, apenas. C) II, apenas. D) I, apenas. E) I, II e III. Resposta correta: alternativa A. Análise da questão A prática do psicólogo deve levar em conta tanto os aspectos sociais quanto os psicológicos do indivíduo.concretização das políticas públicas, a partir dos determinantes éticos e técnicos da profissão. O objetivo geral da disciplina, portanto, é assegurar o desenvolvimento de competências que possibilitem intervenções nos fenômenos e processos humanos, que se caracterizam pelo estudo da teoria, do método e da aplicabilidade dos conhecimentos psicológicos em diferentes contextos institucionais e sociais, possibilitando a realização de atividades práticas de estágio que permitem uma visão ampla e crítica da atuação profissional do psicólogo articulada com a dimensão ética, as políticas públicas e o compromisso social da psicologia. Assim, a disciplina tem o objetivo de relacionar as diretrizes das políticas públicas de saúde e de assistência social com os aspectos históricos, sociais, econômicos, culturais e políticos do país, assim como as propostas e as diretrizes dessas políticas, consideradas os determinantes éticos e técnicos da profissão, através de análise das resoluções do Conselho Federal de Psicologia. Também analisaremos criticamente as fontes de dados sobre aspectos históricos e atuais, a situação socioeconômica, política e cultural das populações‑alvo das políticas públicas de saúde e de assistência social, ao passo que levantamos informações sobre as políticas públicas de saúde e de assistência social por meios convencionais e eletrônicos. Para a discussão que propomos aqui, será vital discutirmos as possibilidades de atuação em diferentes esferas de ação, de caráter preventivo ou terapêutico, considerando as características das situações e dos problemas específicos com os quais o profissional da psicologia se depara em seu cotidiano, apresentados na literatura científica. Dessa forma, durante o percurso deste livro‑texto, esperamos que o profissional de psicologia possa desenvolver competências que o auxiliem a refletir a respeito da dimensão e do papel do Estado moderno na construção de propostas que afetam diretamente a subjetividade, da interdependência entre Estado e sociedade na formulação de políticas públicas, e do papel de destaque do psicólogo no desenvolvimento de ações de prevenção, promoção, proteção e reabilitação da saúde psicológica e psicossocial, tanto no âmbito individual quanto coletivo, a partir das possibilidades de inserção profissional no campo das políticas públicas, além de pautar suas ações no conhecimento das principais diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS) e do Sistema Único de Assistência Social (Suas). Boa leitura! 8 INTRODUÇÃO O conhecimento produzido pelas ciências psicológicas tem se apresentado para a sociedade como vital para entendermos o homem contemporâneo. Pesquisas sobre processos subjetivos apontam para a importância de entendermos as experiências humanas no nosso mundo contemporâneo. Quando debatemos temas fundamentais como educação, saúde, assistência social, moradia, transporte etc., podemos sempre nos remeter a aspectos psicológicos que estão presentes nos processos sociais. A psicologia e suas práticas profissionais tem cada vez mais apontado para a necessidade de dar atenção aos aspectos subjetivos para a busca do bem‑estar individual e coletivo. Temos que entender os processos que levam muitas pessoas no mundo contemporâneo a ter, por exemplo, depressão. Como a psicologia contribui para prevenção e tratamento? O que apontam as pesquisas mais recentes? Quais são as possibilidades de uma pessoa ser atendida nos sistemas público e privado? A busca por saúde, bem‑estar e dignidade tem no conhecimento das ciências psicológicas um alicerce básico. Como a sociedade se mobiliza (ou não se mobiliza) para pensar na saúde mental e nos processos psicológicos? Como se constrói politicamente o debate sobre essas questões? A fim de respondermos essas questões, é preciso adentrarmos a seara das políticas públicas. A relação da psicologia com as políticas públicas tem se estreitado nas últimas décadas, tanto pela identificação da necessidade de a sociedade entender melhor os processos psicológicos, quanto pelo aumento das pesquisas e das reflexões por parte das ciências psicológicas em torno das políticas públicas. Assim, o estudante formando em psicologia deve ter noções sobre os processos de construção de políticas públicas e suas relações com as teorias e práticas psicológicas para sua futura atuação profissional, independentemente de suas escolhas dentro do mercado de trabalho. Dessa forma, abordaremos a questão da constituição histórica do Estado moderno, trazendo um panorama histórico geral sobre sua constituição, bem como o percurso que culminou na constituição das chamadas “políticas sociais”. Apresentaremos, então, os fundamentos teórico‑históricos e político‑econômicos que formam a base da constituição de alguns modelos de proteção social existentes, discutidos por Behring (2006). Depois, passaremos a um histórico das políticas públicas no Brasil, através de um panorama da constituição das políticas públicas no Brasil, tratando especificamente dos modos como o Estado moderno, particularmente no caso do Estado brasileiro, cria condições para determinadas formas de subjetividades. Ao introduzirmos o tópico sobre o SUS e o Suas, principalmente seus princípios e diretrizes, trataremos especificamente dos elementos teóricos fundamentais para a compreensão adequada do papel do psicólogo na articulação com as políticas públicas de saúde e das políticas públicas de assistência social. 9 As discussões concernentes às ciências e práticas psicológicas serão introduzidas, abordando o conceito de psicologia e compromisso social, aprofundando a discussão sobre a relação entre psicologia e políticas públicas. Faremos, então, uma discussão sobre a esfera de trabalho da psicologia no campo das políticas públicas de saúde, especialmente no SUS, relacionando os desafios teóricos e metodológicos, mas também éticos e políticos colocados pela configuração do campo e das experiências de vida das pessoas que fazem uso dos serviços de saúde. Traremos relatos de casos (anedóticos ou verdadeiros) da prática profissional, favorecendo a compreensão dos desafios para a concretização de um SUS marcado pela qualidade. É importante abordamos a discussão sobre os desafios que o campo da assistência social traz para a atuação profissional em psicologia, especialmente no Suas. Assim, discutiremos os aspectos históricos da relação da psicologia com o campo da assistência social e o modo como aspectos relacionados à transição de noções, como “sujeito da caridade” para a de “sujeito de direito”, são importantes marcos na atuação profissional dos psicólogos no campo da assistência social. Ao curso desta disciplina, se faz necessário apresentarmos algumas discussões da psicologia em outros campos das políticas públicas, como o tópico de violência e direitos humanos, quando visaremos trazer a discussão sobre a diversidade de possibilidades e de problemáticas que compõe o universo das relações entre psicologia e políticas públicas, tratando especificamente dos aspectos vinculados à saúde, à cultura, à violência, à educação, à liberdade religiosa, à liberdade de gênero, ao direito à verdade, dentre outros, que podem servir de base para discussões sobre os desafios atuais que a sociedade brasileira enfrenta e que colocam perguntas fundamentais às elaborações teóricas e às ferramentas práticas da psicologia por meio dos parâmetros e das referências construídas pelo Conselho Federal de Psicologia frente ao tema. Também é importante abordar a psicologia e as políticas públicas voltadas ao uso de álcool e drogas, debatendo o uso e concedendo especial ênfase às diretrizes do SUS e às atuais políticas voltadas ao tema; e a interface entre psicologia, políticas públicas e educação, ressaltando o papel do profissional na democratização efetiva das instituições escolares. Ambas abordagens serão articuladas junto às questões culturais, sociais e ao compromisso do psicólogo na construção de um modelo desociedade democrática e na participação popular da elaboração, monitoramento e avaliação das políticas por meio dos parâmetros e das referências construídas pelo Conselho Federal de Psicologia quanto ao tema. Por fim, faremos uma discussão sobre movimentos sociais e a construção de políticas públicas no campo da diversidade sexual, debatendo os movimentos sociais e a construção de políticas públicas, valendo‑se como campo específico de reflexão o tema da diversidade sexual, ressaltando o compromisso do psicólogo na construção de um modelo de sociedade democrática e a participação popular na elaboração, no monitoramento e na e avaliação das políticas. Os tópicos abordados no presente material darão subsídio para o estudante de psicologia se informar e se aprofundar no debate fundamental da relação entre psicologia e políticas públicas. O material, no entanto, não esgota o debate. As referências bibliográficas que devem ser estudadas e as indicações de material de aprofundamento deverão servir como base de apoio para toda uma carreira profissional. 11 POLÍTICAS PÚBLICAS E PSICOLOGIA Unidade I 1 FUNDAMENTOS DAS POLÍTICAS DE ESTADO 1.1 Constituição do Estado moderno O que são políticas sociais? Para responder a essa pergunta, e posteriormente construir o entendimento da importância da psicologia para as políticas públicas, devemos nos remeter a uma abordagem histórica do desenvolvimento das políticas sociais em relação à constituição do Estado moderno. O Estado moderno surge a partir dos processos históricos que levam gradativamente ao fim da sociedade feudal e ascensão da burguesia nos poderes político e econômico. O capitalismo mercantil (considerado a primeira fase do capitalismo) marcou o início do poderio econômico da burguesia. Na medida que o domínio das rotas comerciais e a acumulação de riqueza na forma de dinheiro se estabeleciam para o gradual domínio econômico da burguesia, a nobreza feudal buscava se manter pela dominação política. A defesa da formação de um Estado centralizador, em oposição ao sistema fragmentado de feudos, foi determinante para que a burguesia passasse a exercer domínio político, além de econômico. O Estado centralizador atendia aos interesses burgueses na medida que delimitava territórios nacionais (onde o comércio poderia ser praticado sem interferência da nobreza). Além da questão territorial, o controle da força militar e a unificação de uma moeda (unidade de valor) nacional solidificaram o poderio político da burguesia, que financiava as atividades estatais para que seus interesses fossem atendidos. Tendo em vista que o Estado moderno vai se consolidando historicamente com o desenvolvimento do capitalismo, a questão das políticas sociais acompanha, em cada período histórico, as necessidades e reivindicações daqueles que, à margem da sociedade, estavam em situação desfavorecida, econômica ou socialmente. Com a transição do modo de produção artesanal para o industrial (segunda fase do capitalismo), e consequente formação de contingentes populacionais em condições de pobreza extrema com o surgimento das grandes cidades, coloca‑se para a sociedade a seguinte pergunta: o que fazer com essas pessoas? As respostas partiam das políticas sociais, calcadas em direitos sociais e critérios ético‑políticos para se pensar na questão. Ao longo da história do Estado moderno, a visão sobre as políticas sociais variou conforme os interesses dos diferentes grupos sociais, de acordo com as características do Estado em cada época. A passagem do Estado absolutista para o Estado liberal democrático, e as respectivas crises do Estado liberal, revelam que o debate sobre as políticas sociais sempre esteve presente. Como veremos a seguir, diferentes correntes político‑filosóficas e os diferentes pensadores que as representam acentuaram argumentos significativos para fomentar a discussão. Muitos dos pontos levantados por essas correntes são influentes até os dias de hoje, sendo necessário contextualizar cada período da história para compreender como as ideias e ideologias constituem a formatação das políticas sociais. 12 Unidade I Observação Considera‑se que o capitalismo tem quatro fases: capitalismo comercial (século XV a XVIII), capitalismo industrial (século XVIII a XIX), capitalismo financeiro (século XX) e capitalismo informacional (final do século XX a século XXI). Alguns autores consideram que o capitalismo informacional faz parte da fase do capitalismo financeiro. É importante entender como cada fase compreende e pratica as políticas sociais, de acordo com interesses e necessidades, considerando as formas específicas de produção e o papel das classes sociais nos processos produtivos. A racionalidade é vista como um valor essencial para o desenvolvimento do Estado moderno, já que as leis baseadas em valores religiosos ou espirituais passam a ser abandonadas com a derrocada do sistema feudal. Nesse sentido, Maquiavel aponta para o Estado como uma espécie de mediador civilizador, cuja função seria controlar as paixões humanas, ou seja, de frear os desejos de se ter vantagens materiais uns sobre os outros. Hobbes tem uma visão complementar, apontando que os apetites e as aversões são bases para ações humanas voluntárias. Para esse pensador, a renúncia individual em favor de um monarca soberano é uma solução racionalizada para que as paixões humanas (irracionais) sejam controladas. Ou seja, uma primeira versão de Estado moderno, monárquico, nacionalista e centralizador, teve subsídio importante na ideia de que a população só poderia ser controlada na sujeição a um poder único e absoluto. A monarquia absoluta passa a ser questionada por outros pensadores modernos, como Locke e Rousseau, que mantinham dos supracitados a ideia da necessidade de um Estado organizado, como forma de se defender da barbárie e da guerra, mas trazendo a defesa de um poder compartilhado coletivamente. Locke propõe um poder estabelecido pelo consentimento mútuo dos indivíduos, buscando preservar a vida, sendo colocada a necessidade de um pacto social. A noção de propriedade como direito individual, e o respeito mútuo à propriedade alheia, é o alicerce para que haja uma sociedade justa e equitativa. Já Rousseau indica que a propriedade é a base da desigualdade, e serviria apenas para proteção de interesses dos mais ricos e poderosos. O que tem em comum com Locke é a defesa de um pacto social, mas a ideia de poder para o pensador francês está na cidadania, não na propriedade. Rousseau foi um dos mais influentes na Revolução Francesa, ao combater o Estado absolutista e propor mecanismos políticos calcados na democracia para que se pudesse atingir uma condição coletiva de bem‑comum. Aqui vemos uma proposição de ideais democráticos de um Estado de direito. A vontade geral é a base para as leis e a governança, sempre voltada para o interesse coletivo. Busca‑se, dessa forma, o estabelecimento de justiça, acesso a direitos e promoção de bem‑estar coletivo. Vemos que as noções de política social e políticas públicas começam a ter seus fundamentos no período histórico de definição do Estado moderno. Como sabemos, entre os séculos XVIII e XIX houve uma série de revoluções importantes para a consolidação do Estado moderno, destacando‑se a Revolução Francesa e a Revolução Industrial. 13 POLÍTICAS PÚBLICAS E PSICOLOGIA A partir dessa era, as questões sociais referentes à defesa de direitos universais, ao combate à desigualdade e ao estabelecimento de garantia de condições mínimas de vida (moradia, trabalho, renda, educação, saúde, entre outros) se colocaram como centrais na disputa de ideias e práticas políticas. Dessa forma, a história das reivindicações por políticas sociais, sempre em um terreno de lutas, tensões e conflitos, tem influência direta para nossa experiência humana até os dias de hoje. Saiba mais Pare se aprofundar nas questões sobre os fundamentos das políticas sociais, recomendamos os seguintes textos:BEHRING, E. R. Fundamentos de política social. In: MOTA, A. E. (org.). Serviço social e saúde: formação e trabalho profissional. São Paulo: Cortez: Opas/OMS/Ministério da Saúde, 2006. BOBBIO, N. Estado, governo e sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. CASTEL, R. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes, 1998. COIMBRA, M. A. et al. Política social e combate à pobreza. Rio de Janeiro: Zahar, 1987. TEIXEIRA, L. G. Compreender o liberalismo: crítica a partir da utopia. Curitiba: CRV, 2013. 1.2 Fundamentos dos modelos de proteção social Cabe aqui entrarmos em contato com a construção histórica dos diferentes argumentos e interesses que pautam a formulação das políticas sociais. Quais são as necessidades da população? Como são vistas as questões relativas a essas necessidades? Quais são os princípios que pautam a garantia de direitos para toda a população? Como se enxerga a desigualdade e o combate à desigualdade? As respostas para essas perguntas passam necessariamente pelos períodos históricos da modernidade, lançando luz sobre as diferentes fases econômicas do modo de produção capitalista (passando inclusive pelas propostas antagônicas ao capitalismo) e sobre as diferentes fases políticas na história mundial. O liberalismo abarca uma corrente de ideias que será crucial para a compreensão proposta sobre os processos históricos. Ora com mais força, ora com menos, as bases liberais constituirão pontos fundamentais para se pensar nas políticas sociais. Adam Smith foi um dos principais idealizadores do liberalismo, dizendo que as práticas econômicas deveriam ser relegadas aos indivíduos sem interferências externas, ou com o mínimo necessário. 14 Unidade I O mercado liberal deixaria para o Estado a função de garantir as liberdades individuais. Ao buscarem os ganhos materiais, os indivíduos, de acordo com o autor, seriam orientados pela moral e pelo desejo de ausência de guerras e conflitos prejudiciais à coletividade. Dessa forma, não haveria necessidade de intervenção do Estado para a busca do bem‑estar, já que este estaria garantido pela liberdade individual. O cidadão é, de acordo com o autor, livre para decidir como buscar sua subsistência material. Assim, quanto mais interferência, menor a liberdade. A individualidade é um valor que se instaura na era moderna. Portanto, as liberdades individuais são fundamentais para a utopia liberal. A busca pela liberdade seria mais efetiva com um Estado mínimo, pois as leis do mercado “naturalmente” guiariam os homens na busca pelo bem‑estar; aí reside a ideia de “mão invisível”. Atrelada à filosofia liberal, surge a ideia de um “darwinismo social”, no qual os homens seriam selecionados socialmente de acordo com sua adaptabilidade à sociedade. Nessa ótica, as políticas sociais se tornariam contrárias à “natureza” econômica da humanidade. A subsistência seria gerada pela própria necessidade, e leis que possam garanti‑la a partir do Estado levariam as pessoas a não produzir seus próprios meios de sustento. O liberalismo vai aos poucos encontrando mais espaço na economia ao longo da Revolução Industrial. A ideia de que o homem se sustenta encaixa perfeitamente à necessidade de mão de obra fabril. O trabalhador é livre, e deve produzir seu sustento a partir das bases materiais disponíveis, gerando a ideia da meritocracia. No entanto, na segunda metade do século XIX, a economia capitalista vai se esgotando a partir do surgimento de monopólios e oligopólios econômicos. Ao mesmo tempo, os trabalhadores passam a se organizar para reivindicar melhores condições de vida e de trabalho. Com as crises econômicas do início do século XX, a ideia de que o Estado precisa intervir na economia e gerar políticas sociais de proteção ao cidadão cresce com força. Encontraremos em um autor, Keynes, a ideia de que o Estado precisa intervir na economia para evitar crises, gerar crescimento econômico e garantir o bem‑estar e o acesso de direitos básicos da população. A expressão teórica e intelectual dessa limitada autocrítica burguesa teve seu maior expoente em John Maynard Keynes, com o livro A teoria geral do emprego, do juro e da moeda, de 1936. Com a curiosidade intelectual aguçada pelos acontecimentos do final dos anos 1920, este economista inglês se afasta da ortodoxia em que foi formado. A situação de desemprego generalizado dos fatores de produção – homens, matérias primas e auxiliares, e máquinas –, no contexto da depressão, indicava que alguns pressupostos clássicos e neoclássicos da economia política não explicavam os acontecimentos. Keynes questionou alguns deles, pois via a economia como ciência moral, não natural; considerava insuficiente a Lei de Say (Lei dos Mercados), segundo a qual a oferta cria sua própria demanda, impossibilitando uma crise geral de superprodução; e, nesse sentido, colocava em questão o conceito de equilíbrio econômico, segundo o qual a economia capitalista é autorregulável. O economista inglês via com crítica a lei dos mercados como uma “lei natural”, pois considerava que os pressupostos de uma economia totalmente liberal não explicariam um contexto de depressão econômica. 15 POLÍTICAS PÚBLICAS E PSICOLOGIA A economia seria, para Keynes, mais uma ciência moral que natural. Assim sendo, seria esperado que um empresário investisse mais onde obtivesse um retorno imediato, e não onde influenciasse o conjunto global da economia. Assim, a operação da mão invisível não necessariamente produz a harmonia entre o interesse egoísta dos agentes econômicos e o bem‑estar global. As escolhas individuais entre investir ou entesourar, por parte do empresariado, ou entre comprar ou poupar, por parte dos consumidores e assalariados podem gerar situações de crise, onde há insuficiência de demanda efetiva, e ociosidade de homens e máquinas (desemprego) (Behring, 2006, p. 8‑9). Dessa forma, Keynes considera que o Estado tem a prerrogativa para adotar medidas econômicas que visem o crescimento como um todo, bem como intervir, quando necessário, em formas que protejam a economia de suas flutuações, como gerar demanda efetiva, disponibilizando meios de pagamento e garantia de retorno aos investimentos (mesmo que haja déficit público). Segundo Keynes, cabe ao Estado o papel de restabelecer o equilíbrio econômico, por meio de uma política fiscal, creditícia e de gastos, realizando investimentos ou inversões reais que atuem nos períodos de depressão como estímulo à economia. Dessa política resultaria um déficit sistemático no orçamento. Nas fases de prosperidade, ao contrário, o Estado deve manter uma política tributária alta, formando um superávit, que deve ser utilizado para o pagamento das dívidas públicas e para a formação de um fundo de reserva a ser investido nos períodos de depressão (Behring, 2006, p. 9). O pensamento de Keynes veio bem a calhar para a economia capitalista de Estado no contexto da Guerra Fria. No meio de uma guerra ideológica, em que a defesa do capitalismo se fazia necessária ante o desenvolvimento social dos países socialistas, a intervenção estatal na economia se atrelava à promoção de políticas sociais. Agregado ao pacto fordista (produção e consumo em massa), a defesa do Estado forte se colocava diante do aparente sucesso social dos países capitalistas desenvolvidos. Nota‑se o “American dream” (em português, “sonho americano”) como resultado de investimento do Estado para que o setor privado garantisse emprego e conforto para a população (ou, a maior parte dela, já que, por exemplo, nos Estados Unidos, a população negra estava excluída desse processo). Outro pensador importante para citar a questão social no século XX foi Thomas Humphrey Marshall, sociólogo inglês que influenciou o pensamento e a formulação de políticas públicas na Inglaterra e em outros países. Para ele, a educação era o único direito social inquestionável, o que definiria a igualdade humana. Partindo do ideário liberal, esse pensamentovê a cidadania como o exercício dos direitos individuais, inclusive a competitividade de mercado. Assim, para Marshall, a cidadania se faz na combinação entre acumulação e equidade. Para T. H. Marshall, o conceito de cidadania, em sua fase madura, comporta: as liberdades individuais, expressas pelos direitos civis – direito de ir e vir, de imprensa, de fé, de propriedade –, institucionalizados pelos tribunais de 16 Unidade I justiça; os direitos políticos – de votar e ser votado, diga‑se, participar do poder político – por meio do parlamento e do governo; e os direitos sociais, caracterizados como o acesso a um mínimo de bem‑estar econômico e de segurança, com vistas a levar a vida de um ser civilizado (Behring, 2006, p. 10). A experiência do Estado de bem‑estar social europeu balizava seu pensamento e, a despeito das diferenças culturais nacionais, considerava que havia um ponto ideal a ser alcançado a partir desse parâmetro. O que parecia no pensamento de Marshall um ideal foi severamente criticado, pois um elemento fundamental da questão social acabava sendo desconsiderado: as contradições presentes na política social. Ou seja, aquilo que Marshall tinha como um ponto ideal a ser alcançado (em uma tese que se aproxima à ideia de “fim da história”), jamais será possível, dado que uma zona de conflito é inerente às relações sociais. De qualquer forma, a despeito das críticas, o autor influenciou muitos de sua geração. Os pensamentos de Keynes e Marshall foram se desfazendo na própria dinâmica social à medida que o capitalismo foi conhecendo suas recorrentes crises e esbarrando na saturação das formas de acumulação. As convulsões sociais do fim da década de 1960 que traziam as reivindicações por direitos civis, atreladas a um crescente desemprego, chegam à crise do petróleo de 1973, esfacelando o sonho de cidadania plena relacionada à proteção social. Com o crescimento da dívida pública, o papel do Estado passa a ser questionado enquanto financiador do bem‑estar, e o pensamento liberal passa a ganhar força novamente, apregoando o Estado mínimo. Dessa forma, as políticas sociais passam a ser cada vez mais revistas e escamoteadas. No decorrer da década de 1980, ao se deparar com o declínio econômico e a crescente reivindicação pelas liberdades individuais nos países do bloco socialista, os países capitalistas passam a prescindir do Estado de bem‑estar social como propaganda. Com a consolidação da derrocada socialista na década de 1990, o liberalismo volta à crista da onda, recorrendo a um pensador que é considerado pioneiro no chamado neoliberalismo: Friedrich Von Hayek. Com esse advento, as teses neoliberais ganham força, culpando os sindicatos e as políticas sociais estatais pelas crises econômicas, já que, em comum, os dois setores buscavam no salário a sustentação da visão do bem‑estar social. A fórmula neoliberal para sair da crise pode ser resumida em algumas proposições básicas: 1) um Estado forte para romper o poder dos sindicatos e controlar a moeda; 2) um Estado parco para os gastos sociais e regulamentações econômicas; 3) a busca da estabilidade monetária como meta suprema; 4) uma forte disciplina orçamentária, diga‑se, contenção dos gastos sociais e restauração de uma taxa natural de desemprego; 5) uma reforma fiscal, diminuindo os impostos sobre os rendimentos mais altos; e 6) o desmonte dos direitos sociais, implicando na quebra da vinculação entre política social e esses direitos, que compunha o pacto político do período anterior (Behring, 2006, p. 12‑13). 17 POLÍTICAS PÚBLICAS E PSICOLOGIA Já nos anos 1980 os governos de Inglaterra (Thatcher), Estados Unidos (Reagan) e Alemanha Ocidental (Khol) implementam políticas de estrangulamento dos direitos sociais. O que se vê a partir da década de 1990 é, em escala global, crescimento da pobreza e do desemprego, acompanhando a financeirização do capitalismo e o avanço dos setores de serviço e de tecnologia. Os direitos trabalhistas são esmagados pelas novas políticas sociais do trabalho, em nome de uma flexibilização das relações e dos contratos de trabalho. No século XXI, com o avanço das tecnologias de informação e comunicação, e do avanço tecnológico dos processos produtivos, temos um capitalismo globalizado que passa por crises cíclicas e que se reinventa a partir da criação de novas demandas. Os direitos sociais, nesse panorama, passam a se sustentar na zona de conflitos entre os movimentos de reivindicação (há o crescimento das pautas identitárias, como os movimentos negro, feministas, indígenas, LGBTQIAPN+ etc., e também das pautas ambientalistas) e o malabarismo dos Estados em angariar força política e amparar as elites econômicas. Grande exemplo do novo panorama é a chamada “uberização” do trabalho, baseada nos serviços de transporte da Uber, na qual o trabalhador é um profissional “autônomo”, sendo responsável pelos seus meios de trabalho, mas que fica na dependência total da empresa, por meio de sua tecnologia desenvolvida no aplicativo de aparelho celular. Curiosamente, o discurso neoliberal se consolida de tal forma, que muitos dos trabalhadores que são “motoristas de aplicativo” são contra a adoção de proteção social, argumentando que a taxação dos serviços por parte do Estado, que traria benefícios previdenciários ao trabalhador, resultaria em perda de rendimento imediato. Ou seja, quem necessita da proteção social por meio de políticas públicas se volta contra elas. 2 HISTÓRICO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS NO BRASIL 2.1 Panorama geral da constituição de políticas públicas no Brasil O Brasil é um país que se constitui no colonialismo escravista e, embora tenha havido intensa transformação social e política a partir de meados do século XIX, os valores referentes à escravização e à prática de clientelismo político da colônia permeiam, de alguma forma, até os dias de hoje, inclusive nos ataques às políticas sociais. Após a proclamação da República em 1889, tínhamos um cenário de um Estado conservador, centralizador e autoritário. O desenvolvimento econômico não necessariamente promovia desenvolvimento social. Na primeira metade do século XX, o Estado brasileiro, sustentado pelas suas elites, tem um objetivo final de consolidar a industrialização. O Estado desempenhava a função de promover a acumulação privada na esfera produtiva. O essencial das políticas públicas estava voltado para promover o crescimento econômico, acelerando o processo de industrialização, o que era pretendido pelo Estado brasileiro, sem a transformação das relações de propriedade na sociedade brasileira (Araújo, 2003, p. 1). 18 Unidade I Tendo como principal objetivo o crescimento econômico, no campo das garantias de direitos sociais, o Estado brasileiro tinha uma prática muito mais voltada para o “fazer” (conforme seus interesses) do que regular as políticas públicas. O autoritarismo presente em duas ditaduras (Estado Novo varguista, de 1937 a 1945, e ditadura militar, de 1964 a 1985) demonstra uma tendência centralizadora, que atende as demandas das elites econômicas, deixando a regulação de políticas públicas em segundo plano, porém ainda houve regulações nas políticas que iam de encontro ao interesse econômico – como a Consolidação das Leis Trabalhistas, que serviram ao desenvolvimento da industrialização. Não havia a necessidade de legitimação das políticas sociais, dado o caráter autoritário. Não obstante houvesse resistência de setores populares e intelectuais, a maior parte deles eram brutalmente reprimidos, já que, tanto na ditadura varguista quanto na do período militar a relação com os movimentos sociais era pautada com violência e repressão. Entretanto, que tipo de ação o Estado praticou? O Estado brasileiro fez de tudo para promover o projeto industrial: financiou, protegeu, criou alíquotas, produziu insumos básicos. As estatais, que estão sendo privatizadas agora, produziam insumos básicos. Nas atividades mais pesadas, de investimento expressivoe com taxa de retorno mais lento, houve participação do setor estatal produtivo. A produção de aço, a mineração, a produção de petróleo e de energia têm a mesma natureza: são insumo básico. O Estado investiu em projetos grandes, onerosos, com taxas de retorno mais lentas, para possibilitar que o setor produtivo privado ficasse com o mais leve e rapidamente rentável. O que se fez de rodovias, de portos, de instalações de telecomunicações nesse país, nos últimos anos, é inimaginável. E quem foi responsável por todas essas realizações? O Estado brasileiro (Araújo, 2003, p. 1). Agora, parte dessa estrutura está sendo desmontada, devido às privatizações. O Estado brasileiro investiu fortemente, até a consolidação da industrialização, em criar empresas estatais que produzissem insumos básicos, como aço, petróleo, mineração e energia. No período da ditadura militar políticas econômicas que caracterizaram o chamado “milagre econômico” denotam, mais uma vez, grande investimento em infraestrutura e incentivo ao crescimento sob a ideia do “progresso”, ao mesmo tempo que a desigualdade social e econômica cresceu. Com a crise do petróleo e o início de um ciclo de crises de acumulação do capital global, o Brasil viu o “milagre” findar. A situação da população pobre e marginalizada piorou. A década de 1970 viu, apesar da repressão política, um aumento da insatisfação popular, mesmo diante da propaganda do regime, culminando na virada para a década de 1980 no crescimento de movimentos populares, ligados ao trabalho (sindicatos e oposições sindicais a sindicatos ligados ao regime), à questão campesina, estudantil e movimentos de cidadãos insatisfeitos com as condições de vida, como os movimentos ligados ao combate à fome e ao direito à saúde. Em contrapartida, a década de 1980 foi um momento crucial para a chamada transição democrática, no bojo dos movimentos sociais e políticos. Embora o panorama dos países desenvolvidos visse um 19 POLÍTICAS PÚBLICAS E PSICOLOGIA aperto no investimento público e uma dinâmica rumo às privatizações e desmonte de políticas de bem‑estar social, como nos casos de Estados Unidos, Inglaterra e Alemanha, o clima no Brasil foi propício para a formulação da Constituição Cidadã, já no término do regime ditatorial militar, Constituição essa promulgada em 1988. Apesar de a Constituição trazer uma visão pautada nos direitos humanos e na democracia, não foi sem resistência das elites que a implementação das políticas públicas se deu. A transição democrática no Brasil foi, na verdade, um pacto conservador interelites, com forte caráter “negociado” e “pelo alto” que acabou por gerar uma fissura na coalizão governista com sérios impactos nos rumos das políticas sociais no país. Enquanto um grupo queria a expansão dos direitos sociais, o outro, constituído pelos setores conservadores – com epicentro no Executivo federal – buscava obstruir esse processo tanto na Assembleia Nacional Constituinte como na regulamentação constitucional complementar. Nesse momento há uma primazia das ações assistencialistas‑clientelistas, com fragmentação e sobreposição de programas em todos os setores, que por muitas vezes eram geridos com inúmeras denúncias de corrupção e favorecimento, que mancharam tal filosofia (Pinheiro Junior, 2014, p. 9). De qualquer modo, a implementação do SUS e do Suas são marcos importantes na história das políticas públicas brasileiras. O princípio da universalidade, por exemplo, denota uma legislação de grande avanço para o acesso do cidadão aos serviços públicos. As décadas seguintes à Constituição são marcadas por diferentes entendimentos e princípios dos governos federais (e também nos estaduais e municipais) em relação ao investimento em políticas públicas, variando entre maior ou menor investimento público, o que tem gerado desde a virada do século um campo de disputa constante nos setores sociais e políticos. Um exemplo desses embates se deu na pandemia do covid‑19, em que, logo após a aprovação de corte de gastos públicos significativos, que afetavam o SUS, o país vivenciou como nunca a importância de um sistema de saúde de acesso universal. 2.2 Estado brasileiro e as condições subjetivas Assim, o debate sobre as políticas sociais tende a ganhar novos matizes quando se beneficia do conhecimento científico da psicologia, especialmente de uma vertente da psicologia que seja crítica e que se apoie nos preceitos da ética e dos direitos humanos. Como se verá adiante, em termos de atuação profissional, há muito que contribuir por parte da psicologia. Tão importante quanto o fazer é o olhar crítico para uma análise psicossocial, e, nessa medida, cabe aqui entender a dimensão subjetiva que vivenciamos em termos de políticas públicas e da dinâmica social. 20 Unidade I As ideias liberais têm, sem dúvida, um alcance global na maneira de constituição das subjetividades. Calcada em valores individualistas, o liberalismo defende que há uma liberdade inalienável para que o indivíduo se desenvolva plenamente. A própria ideia de indivíduo enquanto célula social é consolidada pelo liberalismo. Essa liberdade individual, no entanto, tem um lugar bem definido, que é o mercado. O indivíduo é livre para produzir, por meio do trabalho, e consumir a mercadoria que tem possibilidade de comprar. Os direitos civis e políticos estão ligados diretamente à liberdade individual. Evidentemente, essa individualidade não é qualquer uma, é aquela que se adequa aos limites do mercado. Tanto é assim, que outro aspecto presente nas políticas, as quais nesse período apresentam‑se de forma ainda difusa, refere‑se à obrigatoriedade do trabalho, que é imposto sob a alegação moral de que a vadiagem é um mal a ser combatido (Gonçalves, 2010, p. 66). A liberdade de empreender encontra limites na configuração do mercado monopolista. Ou seja, atrás da ideia de que qualquer um tem o direito de constituir um empreendimento pela sua competência individual, está a ilusão da igualdade de oportunidades. De qualquer forma, o convencimento da liberdade individual se dá pela possibilidade de desejar e consumir. O Estado, além de mediar o processo produtivo com seu poder, funciona como disciplinador da condição de classe. Surge, respaldada pelas ciências médicas, sociais e até pela psicologia, a ideia de normalidade. Dessa forma, cabe à educação treinar os indivíduos para ser um “cidadão de bem”, adaptado ao ciclo do capital, do qual o indivíduo faz parte. A visão sobre as políticas sociais, dessa forma, recai na lógica privatista. Em função disso, as políticas sociais se esvaziam de conteúdos e de direitos, uma vez que os direitos tinham relação com o lugar do trabalho. Também ocorre uma mistura dos direitos com o consumo. A privatização das políticas sociais e a diminuição da responsabilidade do Estado para com elas colocam as ações de proteção aos indivíduos e atendimento de suas diversas necessidades como uma questão de consumo como outra qualquer. Os serviços, todos eles, inclusive os anteriormente ligados a direitos (saúde, educação, segurança, cultura) passam, deliberadamente, a ser mercadorias (Gonçalves, 2010, p. 68‑69). A racionalidade científica faz com que o pensamento moderno se consolide em busca de objetividade. assim, a percepção dos aspectos subjetivos fica encoberta por critérios advindos da racionalidade e da naturalização. Dessa forma, a experiência subjetiva alienada do próprio sujeito tende a descolar o indivíduo das relações sociais. Exemplo dessa constatação é o rompimento de vínculos sociais, principalmente em condições de pobreza e desigualdade, em que a fragilização dos vínculos (familiar, comunitário, institucional) leva o indivíduo ao isolamento. Tal processo é entendido como de responsabilidade do indivíduo, fazendo que processos de estigmatização e preconceito reforcem a percepção alienada. Mesmo a diversidade cultural é absorvida pela lógica do consumo, quando incorporada ao ideário liberal. 21 POLÍTICASPÚBLICAS E PSICOLOGIA Observação O Brasil foi constituído historicamente no processo de escravidão. Embora a escravidão tenha sido oficialmente abolida, os valores a ela atrelados permanecem em práticas sociais e culturais, resultando em preconceito e violência. O entendimento da subjetividade nas políticas públicas deve necessariamente passar pela análise da constituição do país a partir do racismo e da desigualdade. No caso brasileiro, o ideário liberal se torna ainda mais complexo quando levamos em conta a condição da desigualdade herdada da escravidão. Ao ter a escravidão abolida, vê‑se o que o sociólogo Jessé Souza chama de formação da “ralé” (Souza, 2017). Os ex‑escravizados (ou “ex‑escravos”, como utilizado pelo autor) são lançados à própria sorte em relações sociais da lógica competitiva. Como todo processo de escravidão pressupõe a animalização e humilhação do escravo e a destruição progressiva de sua humanidade, como o direito ao reconhecimento e à autoestima, a possibilidade de ter família, interesses próprios e planejar a própria vida, libertá‑lo sem ajuda equivale a uma condenação eterna. […] O ex‑escravo é jogado dentro de uma ordem social competitiva, como diz Florestan, que ele não conhecia e para qual ele não havia sido preparado. Para os grandes senhores de terra, a libertação foi uma dádiva: não apenas se viram livres de qualquer obrigação com os ex‑escravos que antes exploravam, mas puderam “escolher” entre a absorção dos ex‑escravos, o uso da mão de obra estrangeira que chegava de modo abundante ao país – cuja importação os senhores haviam conseguido transformar em “política de Estado” – e a utilização dos nacionais não escravos. Estes últimos haviam evitado os trabalhos manuais como símbolo de degradação quando monopolizados pelos escravos (Souza, 2017, p. 74‑75). Na transição de uma economia agrária para a industrialização, a livre concorrência colocava o negro em competição com o imigrante europeu (seja na lavoura, seja na fábrica), que chega ao Brasil a partir de políticas escancaradas de “embranquecimento populacional”. A visão que se tem do branco europeu é de alguém que vai trazer a experiência de países que já experimentam o progresso industrial. O negro torna‑se vítima da violência mais covarde. Tendo sido animalizado como “tração muscular” em serviços pesados e estigmatizado como trabalhador manual desqualificado – que mesmo os brancos pobres evitavam –, é exigido dele agora que se torne trabalhador orgulhoso de seu trabalho. O mesmo trabalho que pouco antes era o símbolo de sua desumanidade e condição inferior. Ele foi jogado em competição feroz com o italiano, para quem o trabalho sempre havia sido motivo principal de orgulho e de autoestima. Belo início da sociedade “competitiva” entre nós (Souza, 2017, p. 77). 22 Unidade I A busca por um lugar social de reconhecimento por parte dos negros faz com que recaiam em valores brancos para galgarem um mínimo de possibilidade de inserção no mundo do trabalho, lutando arduamente com o estigma de “vagabundo e preguiçoso”. O ódio de classe se constitui sobre o racismo. A vivência histórica dessa posição social jamais foi superada no Brasil, denotando como, mais uma vez, e nesse caso específico, a subjetividade se constrói na política de Estado. Essa herança passa de geração para geração, sem mediação para o entendimento de tal sofrimento (ou, pelo menos, os movimentos coletivos reivindicatórios se constituem em possibilidade de mediação, mas ainda alcançando pequena parte da população, que se molda subjetivamente à lógica privatista e consumista). É o desconhecimento da hierarquia moral, especificamente capitalista e não mais escravocrata, que produz de modo novo tanto a distinção que legitima as novas formas de privilégio quanto o preconceito que marginaliza e oprime em violência aberta ou muda (Souza, 2017, p. 81). A experiência de classe e, consequentemente, racial, se dá na socialização, mediada pelas instituições sociais, sendo a família a instituição primária. “As classes são reproduzidas no tempo pela família e pela transmissão afetiva de uma dada ‘economia emocional’ pelos pais aos filhos” (Souza, 2017, p. 88). A classe social, fruto da estrutura social e também de políticas públicas, é, portanto, para o autor, um fenômeno não apenas econômico, mas sociocultural, ao que podemos complementar, psicossocial. São os estímulos que a criança de classe média recebe em casa para o hábito de leitura, para a imaginação, o reforço constante de sua capacidade e autoestima, que fazem com que os filhos dessa classe sejam destinados ao sucesso escolar e depois ao sucesso profissional no mercado de trabalho. Os filhos dos trabalhadores precários, sem os mesmos estímulos ao espírito e que brincam com o carrinho de mão do pai servente de pedreiro, aprendem a ser afetivamente, pela identificação com quem se ama, trabalhadores manuais desqualificados. A dificuldade na escola é muito maior pela falta de exemplos em casa, condenando essa classe ao fracasso escolar e mais tarde ao fracasso profissional no mercado de trabalho competitivo. Na base da nova hierarquia social moderna está a luta entre indivíduos e classes sociais pelo acesso a capitais, ou seja, tudo aquilo que funcione como facilitador na competição social de indivíduos e classes por todos os recursos escassos. Como, na verdade, todos os recursos são escassos e não apenas os recursos materiais como carros, roupas e casas, mas também os imateriais como prestígio, reconhecimento, respeito, charme ou beleza, toda a nossa vida é pré‑decidida pela posse ou ausência desses capitais (Souza, 2017, p. 90). O pensamento de Jessé Souza nos mostra como a psicologia pode contribuir para o entendimento da subjetividade nas políticas públicas. As noções de direitos e de política, no panorama apresentado pelo autor, se desmancham frente à necessidade de sobrevivência pautada na lógica liberal “à brasileira”. Pois é a própria política pública, se pensada a partir de critérios da subjetividade, que pode ser fator 23 POLÍTICAS PÚBLICAS E PSICOLOGIA de transformação social e promoção de direitos. “Nesse sentido, a Psicologia pode contribuir para a elaboração de políticas dizendo o que constitui a dimensão subjetiva e como ela pode se configurar de acordo com um projeto de sociedade determinado“ (Gonçalves, 2010, p. 75). Lembrete A história política e social de um país ou de determinada região geográfica passa, de acordo com as teorias da psicologia social, pela vivência subjetiva dos atores sociais. Para que se possa refletir sobre políticas públicas, o conhecimento científico da psicologia é importante, pois, para além dos resultados estatísticos, os processos subjetivos nos trazem parâmetros sobre as necessidades das populações. 3 INTRODUÇÃO AO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS) 3.1 Princípios e diretrizes do SUS No Brasil, os primeiros esforços de organização estatal de serviços de saúde se dão na década de 1920 com a Lei Eloy Chaves, que aponta para a seguridade de trabalhadores de setores organizados específicos. As chamadas “caixas” se configuram em uma estratégia de apaziguação de conflitos com a classe trabalhadora, que passa a ter acesso a serviços de saúde conforme algumas reivindicações. Os serviços médicos eram destinados apenas a trabalhadores, ou seja, não era um sistema com o princípio da universalidade. Em 1966, com a criação do Instituto Nacional de Previdência e Saúde (INPS), as “caixas” são reorganizadas e unificadas em um modelo que une previdência (o INPS era responsável pela aposentadoria) e saúde. É interessante notar que o INPS encontra nas “caixas” uma oferta insuficiente de serviços, encontrando como solução os convênios e terceirizações, pagando por serviços privados. Nesse sistema está o embrião do que hoje encontramos nos planos de saúde privados. O sistema do INPS se baseava em um modelo médico de assistência individualizada, ao mesmo tempo que surgia, nadécada de 1970, uma incipiente tentativa de implementação de saúde pública por meio do Ministério da Saúde, que trazia medidas médico‑sanitárias. É nesse período que se observam algumas tendências, como: [...] a extensão da cobertura previdenciária de modo a incluir toda a população urbana e parte da rural; a reorientação para uma prática médico‑curativa individual, em detrimento de medidas de Saúde Pública de caráter preventivo e de interesse coletivo; a alocação preferencial de recursos previdenciários para a compra de serviços de prestadores privados, propiciando a mercantilização e empresariamento da Medicina e a expansão da base tecnológica da rede de serviços e de consumo de medicamentos (Spink; Mattel, 2010, p. 38). 24 Unidade I No final da década de 1970, no bojo do crescimento de movimentos sociais de resistência à ditadura e de defesa da democratização, surge, com a participação de “profissionais de saúde, intelectuais, organizações populares e membros da própria burocracia estatal” (Spink; Mattel, 2010, p. 38), o Movimento Sanitarista, que mobiliza uma grande discussão sobre modelos de saúde no país, ao identificar que o modelo vigente não dava conta da demanda. Em 1976, surge o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), que fomenta pesquisas e publicações em torno do debate da saúde pública. Em 1979, foi criada a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), que engrossa o coro por reivindicação por um novo modelo de saúde, trazendo a ideia de um sistema único. Esses debates e a crescente aceitação dos problemas do modelo vigente de atenção à saúde levaram a uma série de medidas intermediárias. Em 1975, buscando dar maior racionalidade aos serviços de saúde, foi promulgada a Lei 6.229, que criou o Sistema Nacional de Saúde, definindo‑o como o complexo de serviços (do setor público e privado) voltados às ações de interesse da Saúde, abrangendo ações de promoção, proteção e recuperação da saúde (embora mantendo a separação organizacional entre o Ministério da Saúde e o da Previdência e Assistência Social). Em 1983/1984 foi formulado o projeto de Ações Integradas de Saúde, que adotou os princípios de universalização, descentralização e integração dos serviços de saúde, estabelecendo convênios entre União, estados e municípios na perspectiva dos ideais da constituição de um sistema único e descentralizado. Em 1986, foi realizada a 8ª Conferência Nacional de Saúde, resultante de longo processo de preparação e discussão sobre a questão da saúde envolvendo profissionais de saúde, intelectuais, centrais de trabalhadores, movimentos populares e partidos políticos. Seu relatório final serviu como subsídio para os deputados constituintes elaborarem o artigo 196 da Constituição Federal sobre a Saúde (Spink; Mattel, 2010, p. 39). A Constituição de 1988, que muito deve ao Movimento Sanitário, reconhece a saúde como direito de todas as pessoas e dever do Estado. Ainda, a Constituição promove a perspectiva de organização descentralizada, que possibilita que os diversos municípios elaborem políticas pertinentes à realidade local. O texto constitucional referenda os princípios básicos do SUS: universalidade, gratuidade, integralidade e organização descentralizada. • Universalidade: é a garantia de atenção à saúde por parte do sistema a todo e qualquer cidadão. Com a universalidade, o indivíduo passa a ter direito de acesso a todos os serviços públicos de saúde, assim como àqueles contratados pelo poder público, sendo a saúde direito de cidadania e dever do governo municipal, estadual e federal. • Equidade: é assegurar ações e serviços de todos os níveis de acordo com a complexidade que cada caso requeira, independentemente de onde o indivíduo mora. Todo cidadão é igual perante o SUS e será atendido conforme suas necessidades até o limite do que o sistema puder oferecer para todos. 25 POLÍTICAS PÚBLICAS E PSICOLOGIA • Integralidade: é o reconhecimento na prática dos serviços de que cada pessoa é um todo indivisível e integrante de uma comunidade; as ações de promoção, proteção e recuperação da saúde formam também um todo indivisível e não podem ser compartimentalizadas; as unidades prestadoras de serviço, com seus diversos graus de complexidade, formam também um todo indivisível, configurando um sistema capaz de prestar assistência integral. Com base nesse texto constitucional, foi aprovada a Lei n. 8.080, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes. Saiba mais Leia a lei que estabelece o SUS. BRASIL. Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990. Brasília, 1990. Disponível em: https://tinyurl.com/ya2zrfa8. Acesso em: 22 nov. 2024. Assim, segundo a Lei n. 8.080, “o homem é um ser integral, biopsicossocial, e deverá ser atendido com esta visão integral por um sistema de saúde também integral, voltado a promover, proteger e recuperar sua saúde”. Conforme a lei, os princípios que regem a organização e gestão do SUS são: • Regionalização e hierarquização: os serviços devem ser organizados em níveis de complexidade tecnológica crescente, dispostos numa área geográfica delimitada e com a definição da população a ser atendida. Isso implica a capacidade dos serviços em oferecer a uma determinada população todas as modalidades de assistência, bem como o acesso a todo tipo de tecnologia disponível, possibilitando um ótimo grau de resolubilidade (solução de seus problemas). O acesso da população à rede deve se dar através dos serviços de nível primário de atenção, que devem estar qualificados para atender e resolver os principais problemas que demandam os serviços de saúde. Os demais deverão ser referenciados para os serviços de maior complexidade tecnológica. A rede de serviços, organizada de forma hierarquizada e regionalizada, permite um conhecimento maior dos problemas de saúde da população da área delimitada, favorecendo ações de vigilância epidemiológica, sanitária, controle de vetores, educação em saúde, além das ações de atenção ambulatorial e hospitalar em todos os níveis de complexidade. • Resolubilidade: é a exigência de que, quando um indivíduo busca o atendimento ou quando surge um problema de impacto coletivo sobre a saúde, o serviço correspondente esteja capacitado para enfrentá‑lo e resolvê‑lo até o nível da sua competência. • Descentralização: é entendida como uma redistribuição das responsabilidades quanto a ações e serviços de saúde entre os vários níveis de governo, a partir da ideia de que quanto mais perto do fato a decisão for tomada, mais chance haverá de acerto. Assim, o que é abrangência de um município deve ser de responsabilidade do governo municipal; o que abrange um estado 26 Unidade I ou uma região estadual deve estar sob responsabilidade do governo estadual; e o que for de abrangência nacional será de responsabilidade federal. Assim, deverá haver uma profunda redefinição das atribuições dos vários níveis de governo com um nítido reforço do poder municipal sobre a saúde – é o que se chama de municipalização da saúde. Aos municípios cabe, portanto, a maior responsabilidade na promoção das ações de saúde diretamente voltadas aos seus cidadãos. • Participação dos cidadãos: é a garantia constitucional de que a população, através de suas entidades representativas, participará do processo de formulação das políticas de saúde e do controle da sua execução, em todos os níveis, desde o federal até o local. Observação A Organização Mundial de Saúde (OMS) define saúde como “um estado de completo bem‑estar físico, mental e social, e não somente ausência de afecções e enfermidades”. 3.2 Papel do psicólogo nas políticas públicas de saúde O papel do psicólogo no SUS envolve a compreensão dos amplos conceitos relacionados à condição humana, o que exige uma abordagem interdisciplinar. É fundamental que o psicólogo esteja inserido no contexto local, identifique recursos psicossociaistanto individuais quanto coletivos, promova um diálogo entre o conhecimento popular e o científico e crie oportunidades para a participação social. Os profissionais devem continuar a se especializar, priorizando o atendimento àqueles que enfrentam maior vulnerabilidade psicossocial e expandindo suas áreas de atuação para além dos ambientes convencionais. A prática do psicólogo deve levar em conta tanto os aspectos sociais quanto os psicológicos, tendo como objetivo romper o ciclo de dependência dos usuários em relação às políticas assistenciais e promover a autonomia. Melo e Silva (2024) analisam que, no contexto global da saúde, e reconhecendo a importância do apoio em diferentes fases da vida, os psicólogos têm a responsabilidade de acompanhar os cuidados paliativos no SUS. Esses cuidados devem ser realizados de modo integral e multidisciplinar, envolvendo a interação com o usuário, seus familiares, cuidadores e a equipe de profissionais de saúde, especialmente em momentos que se aproximam da finitude da vida. No contexto da saúde, a atenção psicológica deve englobar a promoção da autonomia e da cidadania. Para tanto, as funções dos psicólogos no SUS (no caso da assistência primária) incluem acolhimento, discussão de casos e elaboração de planos terapêuticos individuais, entre outras atividades. Na categoria do atendimento longitudinal, por sua vez, verifica‑se que acontece uma transferência da responsabilidade do cuidado em saúde mental quando o cliente é direcionado para outros serviços da saúde, o que traz como resultado profissionais que vivenciam pouca responsabilidade no atendimento das demandas de saúde mental. Nesse cenário, geralmente 27 POLÍTICAS PÚBLICAS E PSICOLOGIA os encaminhamentos sobrecarregam a atenção secundária, assim como reforçando uma cultura de medicalização dos usuários. A equipe deve ser capaz de assegurar um espaço de trocas e fortalecimento dos elos sociais para que o atendimento possa ser efetivo na atenção primária a saúde (Melo; Silva, 2024, p. 9). Assim, o hospital se configura como o espaço mais adequado para os processos de recuperação da saúde, já que o ambiente hospitalar reflete uma série de mudanças estruturais no contexto social e histórico, sendo carregado de significados simbólicos e culturais. Dessa forma, o psicólogo deve estar preparado para lidar com essa realidade, pois tal instituição também oferece o contexto para o surgimento de processos que vão além do reducionismo biológico ou das questões relacionadas a doenças, envolvendo aspectos que pertencem ao domínio da mente. A inclusão dos psicólogos no sistema de saúde pública abre a possibilidade de explorar novas áreas de atuação, o que, por sua vez, exige mudanças na forma como a prática é realizada. Primeiramente, é fundamental entender que o psicólogo no SUS desempenha um papel essencial na rede pública de saúde (embora nem sempre seja reconhecido pela sociedade e pelos outros profissionais da área). Sua atuação, nesse contexto, envolve trabalhar em equipes interdisciplinares, em estreita colaboração com médicos, enfermeiros, assistentes sociais e outros profissionais de saúde. Essa abordagem colaborativa busca oferecer um cuidado integral aos pacientes, levando em consideração não apenas as questões físicas, mas também as emocionais e sociais. Quanto às dificuldades de atuação no SUS, os psicólogos enfrentam desafios para buscar formas alternativas de intervenção além da psicoterapia individual, devido à sua formação predominantemente clínica. Nesse contexto, a formação e capacitação dos psicólogos ainda caminham na direção oposta às diretrizes da reforma psiquiátrica e de saúde mental, ao privilegiarem abordagens tradicionais e a psicopatologia, o que enfraquece o atendimento integral. Além desses aspectos, pesquisas da área identificaram uma demanda excessiva, dificuldades na articulação entre os serviços, desconhecimento dos profissionais sobre o funcionamento da rede e a insegurança, ou despreparo, dos psicólogos para lidar com a população infantil que necessita de atenção em saúde mental no SUS. Essa dificuldade foi frequentemente associada a questões pessoais, como aspectos emocionais dos profissionais, à dificuldade em identificar as demandas que podem ser atendidas na Atenção Básica (AB) ou aquelas que devem ser encaminhadas para as demais especialidades. Uma possível solução para essas problemáticas foi mostrada por meio da promoção de intervenções intersetoriais, como estratégia para a construção de uma rede de atenção efetiva (Melo; Silva, 2024, p. 11). Além disso, propôs‑se a realização de ações e intervenções em saúde mental infantil na AB, com base na territorialidade, a fim de organizar as estratégias de atendimento entre os serviços de saúde e outras redes de cuidado e apoio, como a família e a escola, levando em consideração o contexto e a realidade do território. Também se ressaltou a importância da integralidade do cuidado, através da articulação de diferentes conhecimentos e serviços da rede, abrangendo, além da saúde mental, o fortalecimento do vínculo e a inserção social como fatores essenciais para a promoção da saúde. 28 Unidade I Enquanto Melo e Teo (2019) explicaram que existe a necessidade da atuação dos psicólogos em ressignificarem sua própria trajetória formativa, os psicólogos reconhecem que, ainda assim, a saúde da família é um campo profícuo de estudos para melhorias na prática profissional e aperfeiçoamento da formação na área da saúde. Em tal aspecto, os autores Oliveira e Kahhale (2020) apresentaram como estratégias a serem usadas pelos psicólogos a valorização do diálogo, assim como o reconhecimento de que é preciso conceber o sujeito na sua totalidade em conformidade com as práticas do cuidado. A reflexão no que tange às práticas do psicólogo nos equipamentos públicos de atenção à população é crucial, visto que uma prática direcionada apenas aos aspectos particulares não corresponde às demandas e bases das políticas públicas instituídas a fim de superar as vulnerabilidades (Melo; Silva, 2024, p. 12). Dessa forma, Castro (2021) aponta que, entre os princípios do SUS, a integralidade é central tanto nas discussões quanto nas práticas da área da saúde, e envolve a compreensão do ser humano de forma holística, em contraste com uma visão fragmentada. Em outras palavras, o sistema de saúde deve estar preparado para ouvir ativamente o usuário, compreendendo o contexto social em que ele está inserido e, a partir disso, atender suas demandas e necessidades de forma adequada. O princípio da integralidade permite pensar a implantação de ações em saúde que incorporam as práticas integrativas da Política Nacional de Humanização, as quais demandam dos profissionais da saúde pública a realização de atividades interdisciplinares, de modo a efetivar o princípio da integralidade em seu cotidiano. Em particular, a aplicação desse princípio procura, de modo geral, assegurar a atenção em saúde integral à população como estratégia de ampliação do direito e cidadania das pessoas (Castro, 2021, p. 2). A iniciativa do acolhimento das demandas nas unidades de saúde exige a compreensão do contexto específico de cada localidade. Nesse processo, é fundamental reconhecer as narrativas individuais geradas nos processos de saúde/doença e, em certa medida, estabelecer uma relação horizontal com a comunidade. Com base nesses princípios, o profissional de psicologia deve ajustar seu campo de atuação às diferentes formas de cuidado, de modo que sua atuação possa se desenvolver, a fim de propor formas de atuação que não se separem do aspecto político presente tanto na prática da psicologia quanto no SUS. No campo da saúde pública, por muito tempo, os temas foram tratados de forma superficial, com foco na identificação e eliminação de sintomas de maneira autoritária e vertical, sem levar em conta os aspectos socioeconômicos que afetam as condições de vida e saúde da população. A partir da década