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1 Locke e o liberalismo: o governo para a preservação da propriedade Camila Oliveira do Valle, UFF 1 1. Introdução Locke introduz um motivo para o estabelecimento de uma sociedade política: a preservação da propriedade – a vida, aos bens e à liberdade. É a partir de Locke que a propriedade vem para o centro da política, sendo sua preservação o grande motivo da criação do governo. Com Locke surge o liberalismo político, a não intervenção do Estado no indivíduo e a submissão do Soberano a suas próprias leis. A teoria liberal começa a ser desenvolvida num contexto de crítica ao absolutismo e ao despotismo, buscando proteger o indivíduo das arbitrariedades do Estado. Da teoria liberal saem duas correntes de pensamento: o radicalismo filosófico ou liberal e o liberalismo. O primeiro é um purismo que leva à preponderância geral do mercado – os hoje chamados de Libertários, tais como Hayek e Nozik; o segundo ainda concebe a necessidade do Estado de prever coisas mínimas, os Liberais. Ambos concebem a divisão entre a esfera econômica e a esfera política, e entendem que a presença do Estado e sua interferência na vida dos indivíduos e, em especial, na economia, deve ser restrita. A pesquisa objetiva verificar como Locke relaciona governo e propriedade Focando-me na obra “O Segundo Tratado sobre o Governo Civil”, objetivo analisar algumas categorias da teoria lockeana, a fim de compreender como o pensador legitima o poder político, ligando-o à noção de propriedade que, em sua teoria, tem como origem o trabalho. 2. Sociedade Política, Governo e Propriedade Buscando outra forma de legitimação do poder político, Locke apresenta o acordo (compact 2 ) entre os indivíduos, realizado com o próprio consentimento, como o ato fundador 1 Orientação: Professora Inês Patrício; Área 1 – Teoria Política. 2 Segundo Laslett, é o “pacto” ou, de ordinário, o simples “acordo” que cria uma sociedade ou o poder político; a palavra contrato ocorre no máximo dez vezes em seu livro e muito raramente se vê aplicada a questões políticas. Os dois primeiros são mais genéricos do que o contrato e estão mais afastados da linguagem jurídica. Por outro lado, é comum encontrar uma diferenciação relacionada à possibilidade de revogação, onde o contrato é revogável e o pacto não e, dessa forma, identificar a presença do primeiro na obra de Locke e do segundo na obra de Hobbes. 2 da sociedade política 3 . Esta e o governo surgem tendo como pré-condição a liberdade e o consentimento dos homens, de forma individual. Elevando o indivíduo como sujeito desta nova organização política e, com base em uma antropologia que considera o homem um ser racional, Locke justifica o governo na razão 4 . Concebida como uma lei (a lei da natureza), ou quase como um poder, é soberana sobre todas as ações humanas. É um atributo, que coloca os homens acima dos seres irracionais. A razão auxilia os seres humanos para entender os motivos de Deus; é o modo de cooperação entre os homens, é o vínculo comum pelo qual o gênero humano se une numa única irmandade e sociedade 5 . O estado de natureza lockeano, ao contrário do estado de guerra de todos contra todos de Hobbes (1974), é um estado de liberdade natural, onde cada um regula suas ações. Já é um estado social e político. Mas, ainda que vivessem em plena liberdade, este momento sem Estado, em que os homens se achavam naturalmente, não seria a melhor maneira de se viver, por ser uma situação “cheia de temores e perigos constantes”. Por todos serem reis, a propriedade e a vida estariam constantemente ameaçadas, uma vez que é inexistente qualquer lei conforme as quais os homens devam agir. Não sendo a lei da natureza escrita, ela é encontrada apenas no espírito dos homens e estes, por serem movidos pela paixão e pelo interesse, podem citá-la erroneamente ou a aplicarem mal, não sendo tão facilmente convencidos dos seus erros se não existe um juiz autorizado para interpretá-la. No estado de natureza, aquele que tiver o direito em seu lado, possuindo somente sua força isolada e, em certa medida, igual a dos demais, não possui o suficiente para se defender de danos ou castigar delinqüentes. A fim de evitar esses inconvenientes que perturbam as propriedades dos homens no estado de natureza, estes se unem em sociedade para que disponham da força reunida da sociedade inteira, para garantir-lhes e assegurar-lhes a 3 Segundo Bobbio (1991), o modelo jusnaturalista sobre a origem e o fundamento do Estado e da sociedade política (ou civil) partiria de Hobbes e seria utilizado por todos os maiores filósofos políticos da época moderna, entre eles Locke. O modelo jusnaturalista é construído com base na dicotomia estado de natureza / estado civil, onde há a existência de um estado não político contrário ao estado político que surge após aquele, e a passagem de um para o outro ocorre através de uma ou mais convenções. Assim, a legitimação da sociedade política é o consenso; e a imagem de um estado que surge do consenso recíproco dos indivíduos é pura construção do intelecto. O modelo jusnaturalista é diferente do modelo aristotélico, que explica a origem do Estado a partir da família, a qual evolui como povoado e origina o Estado. A concepção racionalista e a teoria contratualista contrapõe-se à concepção histórico-sociológica e à teoria naturalista de Aristóteles. (Idem: 139). 4 A antropologia lockeana produz o tipo de governo que ele propõe: da natureza dos homens eu derivo a natureza do governo. São seres humanos razoáveis, mas não predadores. 5 Segundo Laslett (2005: 26), os discursos de Locke como membro da faculdade e, sobretudo, como censor de Filosofia Moderna em 1664 tratam da Lei Natural; e a sua atitude no tocante à política era, então, tradicionalista e autoritária. “Aqui parecemos ter uma nítida ruptura com o legado que recebera e um vivo contraste com sua reputação final. Locke proclama firmemente sua submissão à autoridade. Sua posição é a de que, no âmbito das coisas indiferentes, o poder do magistrado é necessariamente absoluto, porquanto a natureza da sociedade civil assim o exige”. 3 propriedade e para que gozem de leis fixas que a limitem, por meio das quais todos saibam o que lhes pertence. Locke avança mais, trazendo um outro elemento acerca da motivação dos homens em estabelecer o governo civil: não fosse a corrupção e o vício de homens degenerados, não haveria necessidade de nenhuma outra lei nem seria preciso que os homens se separassem “dessa comunidade grande e natural por meio de acordos positivos se combinassem em associações menores e divididas” (LOCKE, 1978: 83). Ora, com esta afirmação, evidencia que existem homens na sociedade que são degenerados, contra os quais deve agir o governo civil e é justamente a existência desses homens que tornam necessárias as leis civis. Locke, dessa forma, naturaliza a corrupção e os vícios, atribuindo-os a esses homens degenerados que já “são” degenerados em estado de natureza, como se a eles fosse inerente seu “descumprimento” das leis – as naturais e, posteriormente as civis. Assim, alguns homens “são” degenerados e “devem ser” reprimidos pelo governo, o qual tem, inclusive, o direito de estabelecer pena de morte. Do que se conclui que os indivíduos realizam o pacto a fim de estabelecer poderes capazes de impedir que estes homens degenerados e as minorias (aquelas que perdem em votação no parlamento) desrespeitem as leis da natureza transformadas em civis; é a possibilidade de interpretação errônea da lei natural, que acabe por lesar alguém que temdireito e, estando na mesma situação que os demais, não tenha a força necessária para impor a justiça. O que permite aos homens realizar o pacto é a crença em que a instituição do governo civil é a melhor forma de proteger a propriedade; o indivíduo constatou que o melhor é ter uma mesma lei para todos e um poder de castigar concentrado no governo. Posto que, ainda que em estado de natureza os homens sejam movidos pelo interesse, parciais para consigo e ignorantes, pois não conhecem as leis naturais, eles são racionais. Locke, então, crê na razão do homem, de um indivíduo que, sabendo o que é melhor para ele, é capaz de sair de um estado para outro. Ao realizar o pacto, os homens devem abrir mão não somente do poder de decisão, mas também da força executória – mas, ainda que isto ocorra, os homens permanecem com interesses. O que ocorre com a instituição do governo civil é a transferência dos poderes dos indivíduos ao governo por meio do consentimento de que este governo falará em nome do povo, ditando o bem comum segundo os interesses do povo. O que é passado ao governo é a legitimidade de decidir e agir em nome da maioria, uma vez que é autorizado por ela, reprimindo aqueles que não cumprirem as leis por ele estabelecidas. Em realidade, Locke não crê que todos irão cumprir as leis livremente e que vão se submeter ao pacto, por isso prevê a 4 necessidade de um poder de execução, ou seja, ele salienta que os homens deverão abrir mão de seu poder de castigar e este poder é entregue ao governo. Não há uma crença cega na obediência dos homens nem à submissão, mas a crença de que os homens “devem” obedecer, mesmo que seja à força. É forte a convicção de Locke de que as leis civis não obrigam necessariamente a consciência individual, entretanto, sustenta que há uma lei divina que proíbe a perturbação ou a dissolução dos governos. A consciência se satisfaz se um homem obedece ao magistrado a ponto de não pôr em risco ou perturbar o governo, seja qual for a forma de governo sob qual ele viva. Para Locke, o homem tem um conhecimento de si mesmo que os animais não têm, e esse conhecimento mostra ao homem que o filho deve obediência ao pai e que ambos devem obediência a Deus como supremo “autor de seu ser”. Assim, Deus espera que os homens ajudem uns aos outros, de modo que é razoável punir um filho que ofenda o direito do outro; ele fez os homens numa condição na qual não podem subsistir sem sociedade e dotou-os de raciocínio para discernir o que é capaz de preservar e manter tal sociedade, então, só lhe restaria a alternativa de obedecer às normas que conduzem à preservação da sociedade. O estado de natureza é simplesmente a condição na qual o poder executivo da lei da natureza se mantém exclusivamente nas mãos dos indivíduos e não se tornou comunal. No estado de natureza todos possuem o poder executivo, de modo que pode usá-lo individualmente, todavia, os homens podem e devem colaborar com os outros indivíduos contra quem agride a lei da natureza. É nesse direito natural, que se origina na própria humanidade, que se baseia o direito de governar e o seu poder, pois consiste num poder coletivo, ainda que exercido por um único homem. O direito de governar e o poder para governar são um direito e um poder naturais, fundamentais e individuais, equiparados aos casos de conservar a si próprios e ao resto da humanidade; são de natureza judicial, pois consistem no pronunciamento e na aplicação da lei da natureza, que é a da razão 6 . E o que levaria os indivíduos a obedecerem é a razão, a consciência, a lei natural, e não a lei civil; e o que o impulsiona a obedecer à lei civil não é a crença que o outro irá obedecer, mas que se desobedecer será castigado e, caso esteja ao lado do direito, terá a força executória para garanti-lo. Logo, Locke defende o monopólio da força entregue ao governo: somente esse poder executivo pode usar da força. 6 As implicações dessa posição acerca do poder executivo da lei da natureza é generalizada por Laslett (2005) sob o título de uma doutrina: a doutrina lockeana da virtude política natural, que explica o caráter quase social do estado de natureza e permite falar de „todos os privilégios‟ dessa „má condição‟ e permite que um número qualquer de homens estabeleça uma sociedade política. Trata-se do direito e dever de cada homem de preservar a si próprio e a todos os demais o máximo possível. 5 Por serem os homens livres em seu estado de natureza, somente aqueles que consentem participam da sociedade política e, portanto, submetem-se à autoridade criada pelo pacto social. É esta vinculação entre consentimento e criação do governo que faz com que Locke argumente que não há por que os indivíduos não se submeterem às leis, uma vez que aqueles que não querem participar do pacto social não são obrigados a fazê-lo e, assim, podem não se submeter a ele. Locke “fala” em povo, argumentando que sem o consentimento deste não é possível fundar-se nova sociedade, de modo que a conquista não pode ser uma das origens do governo, assim, a força das armas não pode ser considerada como consentimento do povo. Ainda, somente aqueles que aceitaram participar do pacto, aceitaram ser submissos e, se fizeram por consentimento, não teriam porque não obedecer. Segundo a teoria de Locke, ocorreriam dois “acordos” ou “contratos”, um que forma a sociedade política e um que forma o governo, daí a distinção entre a dissolução da sociedade e a dissolução do governo. O que faz a comunidade e tira os homens do estado de natureza para a sociedade política é o acordo que cada um tem com os demais; e a maneira usual e quase única de dissolver-se essa união é a invasão de força estranha que a venha a conquistar; pois não sendo possível sustentar-se como um corpo inteiro e independente, a união cessa, voltando cada um ao estado que se encontrava antes. E, dissolvendo-se a sociedade, dissolve- se o governo. Mas além de se dissolver por questões externas, os governos se dissolvem por motivos internos. Caso se dissolva o governo, o povo pode instituir um novo legislativo. De modo que, conforme apresentou Locke, é possível pôr fim ao governo sem eliminar a sociedade política. Só há sentido realizar o pacto para aqueles que têm propriedade, isso, pois se o contrato é feito para proteger a propriedade, não há sentido de esperar que indivíduos sem propriedade façam parte dele. Logo, a propriedade parece conferir qualidade política à personalidade, ainda que Locke não parecesse ser um defensor da terra e da propriedade fundiária enquanto base do poder político, a ser “representada”. Assim, os escravos são excluídos da sociedade, ainda que tenham que se submeter às leis criadas por ela. Os escravos, prisioneiros tomados em guerra justa, sujeitos, por direito de natureza, ao domínio absoluto e ao poder arbitrário dos senhores, perderam a vida e com ela a liberdade e as propriedades e, neste sentido, não são capazes de qualquer posse no estado de escravidão, o que os exclui da sociedade civil. Para Locke, os escravos são um tipo (sort) de servos, da qual pertencem também outros tipos de servos. Este outro tipo de servo é o homem livre que vende, por certo tempo, o serviço que se encarrega de executar a troco do salário que recebe, o que faz com que entre para a família do senhor e fique sob disciplina ordinária deste, dando-lhe poder temporário sobre ele mesmo, 6 conforme o contrato estabelecido entre eles. E este outro tipo de servos, que vende seu serviço em troca de salário? Se participam do pacto, é porque têm propriedade e, também, porque trabalham. E se trabalham e têm propriedade, por que precisamvender o serviço? Ainda que não escreva por que esses servos são servos e o que lhes faz vender seu serviço em troca de salário, submetendo-se ao Senhor, em vez de serem eles mesmos senhores, Locke entende que eles participam do pacto, já que são proprietários de sua vida e daquilo que ganham com a venda de seu serviço. Segundo ele, os servos estão subordinados ao chefe de família, tal qual a mulher, os filhos e os escravos, sob a regra doméstica ditada pelo chefe, mas submetem-se somente conforme o contrato com ele estipulado. Aqui a contradição da teoria de Locke: se todos são livres, iguais e proprietários, em condição originária, por que alguns indivíduos vendem seu serviço e se submetem a outros, ainda que momentaneamente? Locke não aprofunda sua análise em torno deste tipo de relação. Segundo a teoria lockeana, mesmo a mais pobre das criaturas possui o bastante para necessitar que a sociedade salvaguarde suas posses (o conceito e a origem da propriedade serão analisados a seguir). Mas, ainda que sua teoria fosse nesse sentido, o teor da argumentação de Locke é totalmente em favor daqueles que muito têm a perder. Para Locke, a propriedade está ligada ao trabalho, ou seja, o direito à propriedade ocorre se há interferência, se há trabalho realizado sobre o bem. Para Laslett (2005: 150), o fato de Locke admitir que “a propriedade material, a propriedade dos objetos naturais misturados com o trabalho, representasse vários ou todos os direitos abstratos do indivíduo, ajuda-nos a compreender por que esse conceito entrou de forma tão integral e decisiva em sua leitura da origem da sociedade civil”. A propriedade, para Locke, parece simbolizar os direitos em sua forma concreta, ou talvez, estabelecer o tema dos poderes e atitudes de um indivíduo; “é porque podem ser simbolizados enquanto propriedade, enquanto algo que o homem pode conceber como distinguível de si próprio - embora faça também parte de si próprio -, que os atributos de um homem, tais como sua liberdade, sua igualdade, seu poder de executar a lei da natureza, podem tornar-se tema de seu consentimento, tópico de qualquer negociação com seus semelhantes. (...) É através da teoria da propriedade que os homens podem passar do mundo abstrato da liberdade e igualdade, baseado na relação deles com Deus e a lei natural, para o mundo concreto da liberdade política garantida por acordos políticos”7. 7 Laslett (2005: 148) afirma que a explicação lockeana para a origem da propriedade não pode aspirar a cobrir todas as acepções da palavra. De uma forma geral, a propriedade é definida como as vidas, as liberdades e os bens imóveis. “Salvo no capítulo sobre a propriedade e em outros casos em que não há dúvidas de que se esteja referindo a posses materiais, o termo „propriedade‟, no Segundo tratado, deve ser normalmente compreendido nesse sentido”. De acordo com Laslett, grande número das posições de Locke contrárias a Filmer coincidem com 7 Na natureza o bem é comum e pertence igualmente a todos, mas pelo trabalho o homem o apropria para si mesmo: o que Locke faz é decorrer do trabalho o direito à propriedade. E acrescenta mais um ponto: o usufruto. Neste sentido, o ser humano somente pode ter propriedade daquilo que usufrui, seja um bem, seja a própria terra. Isto ligado a idéia de que Deus nos deu tudo abundantemente, fez a terra para que o homem dela se apropriasse, na medida em que pode mantê-la. Deus, mandando dominar, concedeu autoridade ao homem – um ser diligente e racional – para que ele se apropriasse da terra e a propriedade privada decorre da condição da vida humana, que exige trabalho e material com que trabalhar. Neste sentido, para o homem seria impossível usurpar o direito de outro homem de ter terra, ou usurpar para si uma propriedade com prejuízo do vizinho, uma vez que nenhum trabalho do homem poderia tudo dominar ou de tudo apropriar-se, nem mesmo um homem poderia consumir tanto. Para Locke, o que toma posse da terra pelo trabalho aumenta as reservas comuns da humanidade - melhor a terra trabalhada do que a não trabalhada, ainda que seja de um único homem. Pois, ao trabalhá-la, o faz para a humanidade. Entretanto, se os produtos espontâneos da natureza alterados pelo homem, por seu esforço, não recebiam um emprego conveniente, ofendiam o direito do outro e mereciam punição. Daí o limite imposto pela natureza à posse e propriedade: todo homem deve ter tanto quanto utilizar. Mas se as coisas funcionam desse jeito harmônico, onde cada um só possui o que pode usufruir, por que é necessário que seja criado o governo e por que o motivo do governo é a preservação da propriedade? Por que o homem deixa de ser ele mesmo o Rei, a fim de criar um soberano? Por que os indivíduos precisam instituir leis para preservar a propriedade individual, se o homem é racional e pode trabalhar? Por que o homem teme que o outro homem lhe tire a propriedade? Locke mesmo constatou a abundância da terra e dos bens, ele mesmo percebeu que quem dá valor é o trabalho do homem. E que o homem é limitado pelas suas necessidades, pelo usufruto. Por que um homem iria produzir tantas maçãs que não pudesse comer? Segundo Locke, na parte do mundo primeiramente habitada, todos vagavam com seus rebanhos e manadas que lhes davam subsistência em todos os sentidos; daí a terra ser comum e sem valor, ou seja, ninguém lhe reivindicava a propriedade. Entretanto, esta situação se transformou. A invenção do dinheiro e o tácito acordo dos homens que atribui à terra um valor introduziram, por consentimento, maiores posses e direito a elas. Tornou possível a as de Tyrrell, em especial a interpretação do direito de propriedade. E alguns fatos apresentados por Laslett permitiriam argumentar que Tyrrel e não Locke deve ser considerado o criador da “teoria do valor baseada no trabalho”. 8 acumulação e a realização da troca. O dinheiro, o ouro e a prata, que têm valor somente pelo consenso dos homens, deram a oportunidade ao homem de ampliar suas posses, mas o fizeram em função da possibilidade de troca, ou seja, da existência do comércio. E é isto que impulsiona o homem a ampliar o que possui. Conforme Locke, se tudo, no começo, era como a América – onde não se conhecia o dinheiro -, é a sua invenção que impulsiona o desenvolvimento. E foi dessa forma que os homens concordaram com a posse desigual e desproporcionada da terra, tendo descoberto, “mediante consentimento tácito e voluntário, a maneira de um homem possuir licitamente mais terra do que aquela cujo produto pode utilizar, recebendo em troca, pelo excesso, ouro e prata que podem guardar sem causar danos a terceiros” (LOCKE, 1978: 53). Logo, foi com a moeda de troca que foi possível acumular. “Onde o aumento da população e da riqueza, com o uso do dinheiro, tornara rara a terra e de certo valor” (LOCKE, 1978: 52), as diversas comunidades fixaram limites dos respectivos territórios e, por meio de leis dentro deles, regularam as propriedades dos homens particulares da sociedade e, dessa maneira, por meio de acordo e pacto, estabeleceram a propriedade que o trabalho e a indústria tinham começado. Ou seja, quando não havia mais espaço suficiente no mesmo lugar para que os rebanhos se alimentassem juntos, houve a separação entre os habitantes. Os territórios distintos surgiram por consentimento, em decorrência do aumento das famílias. A atividade destas aumentou suas reservas e as posses se ampliaram de acordo com as necessidades, o que fez com que a famílias se incorporasseme se fixassem em conjunto, passando a construir cidades. Através de leis, essas famílias estabeleceram a propriedade dos membros da mesma sociedade. Para Locke, as cidades surgem da união das famílias, que aumentaram, e foi este aumento, unido à existência de um elemento universal que servisse como moeda de troca e à inferência de valor à terra e aos demais bens, que possibilitou a apropriação da terra de tal forma que ela se tornasse rara. Em que pese as “complicações” históricas dessa construção teórica de Locke, é possível começar a compreender o porquê da sua preocupação com a propriedade. Se o limite era o próprio trabalho humano e o quanto ele conseguiria produzir, bem como o usufruto dos bens sem que eles estragassem, com o uso do dinheiro - algo duradouro que os homens podem guardar sem estragar – o segundo limite é superado. O consentimento mútuo dos indivíduos em atribuir valor ao dinheiro e aos produtos da terra fez com que fosse possível produzir bens para serem trocados por aquele elemento universal e, assim, não teriam que ser consumidos por quem produziu. Mas, ainda assim, o indivíduo proprietário teria como limite o próprio trabalho e o quanto conseguisse ele mesmo produzir. Daí ser preciso, caso quisesse produzir 9 mais, buscar outros instrumentos de produção ou se apropriar do trabalho alheio, tal qual fazem os senhores com os servos e escravos, algo que Locke também concebe em sua teoria. Se cabe considerar o emprego do conceito propriedade como simbólico, o sistema simbólico parece expressar todos os direitos humanos como bens de mercado. “Locke aceita perfeitamente a contínua ou permanente apropriação do produto do trabalho de um homem por outro, de um servo por um senhor. O trabalho escravo não o perturba em absoluto. (....) Locke deixa de tomar qualquer medida preventiva contra as evidentes conseqüências da acumulação ilimitada de pedras preciosas, metais e dinheiro em todas as suas formas, tão logo o consenso lhes tenha atribuído valor” (LASLETT, 2005: 154). Neste sentido, se o trabalho deu o direito à propriedade no que havia de comum na natureza e o gasto para o próprio uso o limitava, era fácil identificar aquilo que era “meu” e “seu”, uma vez que produzia e consumia; e isto não deixava dúvida com relação a direito de terceiros. Mas, segundo Locke, isto se transformou quando o homem pôde produzir para troca, quando passou a se relacionar com os outros homens. Aí surgiram as controvérsias. E como solucioná-las? Ora, por meio das leis todos poderão saber o que lhes pertence. Responde-se, então, o questionamento antes realizado. Se as terras se tornam raras; se o usufruto já não é mais o limite, se o homem pode produzir não mais somente para uso próprio, o que o impulsiona a ampliar cada vez mais a produção e a fazê-lo se relacionar com os outros homens, trazendo dúvidas quanto a direitos de propriedade – até porque o ouro, a prata e o dinheiro só tem valor em função do consentimento entre os homens -; se a população aumenta; parece que a propriedade passa a ser objeto de conflitos e, portanto, necessária a existência de um soberano que garanta a sua preservação e que solucione as controvérsias. Ora, a propriedade passa a ser motivo do governo civil como conseqüência do desenvolvimento da sociedade mercantil, onde o comércio – a troca de mercadorias - passa a ser a relação dominante e, com ele, os conflitos em torno da propriedade. São as relações sociais capitalistas desenvolvendo-se e trazendo novos conflitos, que precisam ser regulados, condicionando a política e, por conseguinte, expressando-se na teoria. Segundo Locke, os homens se unem em governo, pois a razão os conduz a isso. Deus concedeu o mundo aos homens no estado de natureza e designou o governo como um remédio para inconveniências de tal estado, pois por obra de sua própria diligência e racionalidade os homens criaram inconveniências para si mesmos e para o resto da humanidade, instaurando relações entre eles por meio do contato cada vez mais complicado deles com as coisas materiais, relações essas que escapavam ao controle de indivíduos que agissem como meros executores solitários da lei da natureza. Estabeleceu-se um controle um controle consciente e 10 cooperativo, através de governos em que as leis regulamentam o direito de propriedade e a posse da terra é determinada por legislações positivas. Deus designou o governo para conter a parcialidade e a violência dos homens. A grande arte do governo consiste no aumento das terras e no uso acertado delas. Segundo Locke, o governo deverá assegurar, mediante leis, a liberdade, proteção e estímulo da indústria honesta dos homens. E assim o deverá fazer, já que estão postas as controvérsias em torno da propriedade, já que se tornou legítima a posse desigual e desproporcionada de terra e de propriedade. O dinheiro é a grande invenção capaz de permitir a acumulação, o comércio garante a circulação, e o acúmulo de riqueza e, também, do capital, estão consagrados. Todos, para Locke, como grandes impulsionadores do desenvolvimento humano. Daí a salvaguarda da propriedade ser a justificativa da criação do governo. E o que faz Locke pensar que o trabalho gera a propriedade? E por que a propriedade individual? O direito da humanidade aos bens da natureza provém da concessão divina, relatada nas Escrituras, da racionalidade do homem e da lei natural fundamental da autoconservação. Os bens da natureza eram originalmente comuns, seja porque a Bíblia o afirma, seja porque a liberdade e a igualdade universais devem significar um comunismo original. Daí a dificuldade de Locke de explicar o fato desse comunismo original dar lugar à propriedade privada; e sua solução foi postular que cada homem tem uma propriedade em sua própria pessoa, de modo que o trabalho de seu corpo e a obra de suas mãos são seus. Tudo quanto ele retire do estado em que a natureza o proveu e deixou mistura-se com o seu trabalho, transformando-se em sua propriedade. O objetivo é demonstrar que a propriedade não se originou no consentimento comum de toda a humanidade; e “pode-se julgar que sua ansiedade em assegurar que os direitos proprietários não dependam do consentimento universal de toda a humanidade, ainda que a distribuição da propriedade por meio do dinheiro esteja sujeita a esse consentimento, representa um interesse mais convincente do que a mera necessidade de responder a Filmer” (LASLETT, 2005: 153). Assim, se é o trabalho que dá valor ao bem, o qual se encontra comum, porém, pouco servindo à sociedade nesta condição; e se o trabalho é realizado pelo homem, sendo ele senhor de si mesmo, proprietário de sua pessoa, das ações e do trabalho que executa, logo, o que o indivíduo faz é dele e não comum. Portanto, o bem é dele porque e na medida em que ele deu valor ao bem. Locke reduz os homens a indivíduos, o trabalho para ele é uma atividade privada, daí o seu produto ser do indivíduo e não da sociedade, logo, sua propriedade só poderia ser individualizada. Por meio do “trabalho”, Locke justificou a retirada do bem do comum e considerou-o como propriedade privada: uma propriedade 11 privada que se define como direito absoluto e exclusivo sobre os bens e não como participação nos resultados de sua produção. E é retirando o bem “do comum” e existindo proprietários privados que se torna possível a troca de mercadorias. Para compreender a construção teórica de Locke é preciso analisar seu contexto histórico e buscar os autores com quem ele dialoga, ou melhor, quais são as teorias que ele critica. Há que se considerar a necessidade de responder a Filmer. Para que o Monarca Absoluto deixe de ser arbitrário, ele precisa de limites.E como ter limites, se é proprietário de tudo o que há e detém o pátrio poder que lhe confere uma jurisdição soberana sobra a humanidade? Locke, então, baseia a propriedade em algo diferente da herança passada por Adão ao Rei; e reforça a idéia de que a paternidade vem do gerar e o pátrio poder dura até a maioridade. Afirma que tudo quanto poderia ter Adão em termos de propriedade ou paternidade necessariamente morreu com ele, não podendo ter sido transferido a seus descendentes por herança. Opondo-se a Filmer e ao direito natural do Rei, Locke baseia a propriedade em ações humanas, no esforço humano, tal qual o faz com o governo civil. Se o Rei é proprietário de tudo, não lhe há limites. Daí ser necessário justificar a propriedade em outra coisa que não a herança de Adão. Por isso, o trabalho: a atividade humana que atribui valor a tudo o que há. Compreende-se o porquê da propriedade ligar-se ao trabalho e seu papel central na obra de Locke: é ela, com sua nova origem – o trabalho – que permite a Locke justificar a criação de um governo civil limitado, impedindo a intervenção do Soberano na propriedade, tanto de aristocratas, como de burgueses – e pode-se dizer dos servos, que como propriedade tem o que conseguem com seu serviço. Já não é mais o Rei, o descendente de Adão, o Senhor de tudo; a propriedade vem do trabalho humano e ela é o limite para o Rei. O que faz Locke questionar o poder deste Monarca e buscar defender uma outra forma de governo é a arbitrariedade, ou seja, a intervenção arbitrária na propriedade. Ainda que o poder seja absoluto onde necessário, não é arbitrário por ser absoluto. Daí que o governo se limita em sua justificativa, logo, a preservação da propriedade. E este limite é estabelecido pelas leis civis criadas pelo Parlamento. Locke argumenta que a monarquia absoluta é incompatível com a sociedade civil e, portanto, não pode ser, de modo algum, uma forma de governo civil, pois o monarca julga em causa própria. Não obstante, Locke “não renega sua tese de 1667, segundo a qual o magistrado pode designar maneiras de transferir propriedade de um homem para outro, e editar as leis que quiser referentes à propriedade, contanto que sejam justas” (LASLETT, 2005: 152). Inserido num contexto de conflitos entre Parlamento e Coroa, onde esta exerce um poder ilimitado, podendo fechar o Parlamento a qualquer tempo, a teoria de Locke apresenta 12 uma solução a esses conflitos, ao impor limites à ação do Soberano 8 . Até então, o Rei era o intérprete das leis naturais vindas de Deus e, portanto, uma autoridade sobre a qual não havia qualquer outra, o que lhe dava poder absoluto sobre a Terra: os três poderes estavam nele concentrados. Por isto, o Rei, segundo Locke, encontra-se em estado de natureza. Enquanto existiram Reis virtuosos, isto não pareceu ser um problema, mas surgiram os Reis não- virtuosos. O povo, então, verificando que a propriedade não estava segura sob o governo que então tinha, viu que não poderia jamais gozar de segurança ou tranqüilidade na sociedade civil enquanto o poder não passasse para o corpo de homens. O parlamento passa a ser o intérprete das leis naturais, e cada membro seu se submete às leis por ele criada. Assim, o Rei sai do estado de natureza; e está instituído o governo civil: equilibra-se Parlamento e Coroa, a solução de Locke que salva a ambos: o Rei permanece, ainda que sem poder absoluto, e o Parlamento vira o intérprete das leis naturais e o limite para as ações do Monarca 9 . Isto permite compreender porque que se atribui à Locke o surgimento do liberalismo político: só há sociedade política onde há uma autoridade reconhecida que se submeta às leis criadas pelo legislativo, conforme o bem comum. Locke, como whig 10 , argumenta em prol do governo civil, em contraposição à monarquia absoluta; mas não contra a monarquia. Locke 8 “Com exceção, talvez, do último capítulo, a preocupação fundamental de Locke era a convocação e a dissolução do Parlamento. Ali residia, no seu entender, o relacionamento crucial entre o Legislativo e o Executivo. Era o fator a que podia conduzir a „um estado beligerante‟ (isto é, com o povo) quando o „Poder Executivo fizer uso da força para impedir a reunião e a atuação do Legislativo. Ora, não era esta a questão central de 1688 e tampouco do reinado de Jaime II. Mas estava na ordem do dia nos anos entre 1678 (ou mesmo 1675) e 1681, quando Shaftesbury, com Locke tantas vezes a seu lado, empreendeu tentativa após tentativa de forças Carlos II a dissolver um parlamento de longa data obsoleto, ou de convocá-lo ao cabo de uma intolerável série de prorrogações. ” (LASLETT, 2005: 79). 9 Segundo Peardon, Locke escreve contra duas linhas de argumentos absolutistas: a Teoria Patriarcal do direito divino dos Reis, desenvolvida por Filmer; e o argumento absolutista de Hobbes. Laslett afirma que Locke rejeitava tanto o absolutismo de Hobbes como o absolutismo de Filmer, mas Locke não teria escrito seu livro para refutar Hobbes e, sim, escreveu os Dois Tratados em contraposição a Filmer, em especial, a sua obra Patriarcha. Peardon escreve que Locke aproxima-se da tradição política medieval de que o governo emana da comunidade, é subordinado à lei e deve buscar o bem comum, tal qual desenvolve Hooker. Apropriou de Lawson e Hunton que o governo é uma confiança no comportamento do povo. Suas idéias sobre lei natural foram influência dos escritos de Grotius e Pufendorf. Laslett entendeu que Hobbes, Locke, Tyrrell, Sidney, etc, estavam de um lado e Filmer e a tradição por ele defendida de outro. Leibniz aparentemente incluía numa mesma classificação os Dois tratados e o Leviatã em contraste com o Patriarcha. 10 “A ameaça de uma sucessão católica ao trono inglês, na pessoa de Jaime, duque de York e irmão do rei Carlos II, leva à formação dos futuros partidos whig, defensor de sua exclusão da sucessão, e tory, partidário do direito divino e, portanto, do acesso do herdeiro legítimo do trono. Os whigs serão os futuros liberais, partido importante até a década de 1920, enquanto os tories são os conservadores, ainda existentes na Grã-Bretanha. A „conspiração papista‟, na verdade, foi um pretexto encontrado, de boa-fé ou não, pelos whigs para defender a exclusão de Jaime; Carlos II, porém, conseguiu vencer a oposição que em 1681 estava esmagada. Essa oposição whig sustentava que o filho bastardo do rei Carlos II, o duque de Monmonth, na verdade resultava de um casamento secreto entre o então príncipe e uma moça protestante, sendo o herdeiro legítimo do trono. Carlos sempre negou esse matrimônio, do qual não há provas, mas a legenda assim constituiu Monmonth como o paladino protestante. Em 1685, pouco após a coroação de Jaime II, seu sobrinho Monmouth rebelou-se. Derrotado e preso, foi decapitado” (LASLETT: 2005, 43). Hobbes e Filmer compartilhavam praticamente de todos os atributos do absolutismo, do modo como era rejeitado pelos partidários do Parlamento inglês. A forma das proposições absolutistas que Locke rejeitava eram quase sempre as defendidas por Filmer. 13 apresentou uma solução entre Coroa, aristocracia e burguesia, conciliando os “realmente” proprietários 11 . Locke não se refere à propriedade capitalista nem à burguesia, e o conceito de propriedade que usa como justificativa da criação do governo e da sociedade política é diferente do conceito de propriedade capitalista. Mas, se, por um lado, se afasta da propriedade capitalista ao argumentar que a propriedade se refere a uma propriedade individualizada - dos bens, da liberdade e da vida – e que mesmo os servos a possuem; por outro lado, ao afirmar que os bens vêm do trabalho seu e deseu súdito admite que um homem se aproprie do “produto” do trabalho alheio, e daí sua aproximação com a propriedade capitalista. Além disso, já há em seu contexto histórico o que, posteriormente, se chamou de “propriedade capitalista”, a qual, por ser propriedade, é também protegida pelo “acordo”. Ainda que essa liberdade de dispor de sua propriedade esteja ligada a uma aristocracia (ou o que alguns chamam de senhorio 12 ) e, portanto, o governo civil criado para impedir uma intervenção arbitrária na propriedade (e em Locke o direito à liberdade direciona-se muito mais ao Rei do que aos próprios indivíduos entre si) seja necessário (e defendido) aos senhores, também o é ao que, posteriormente, veio a se chamar de burguesia 13 . De modo que, como já mencionado, a instituição de um governo civil nos moldes do que Locke apresentou parece conciliar o interesse tanto do Rei como de senhores e burgueses 14 . 11 Os objetivos de Locke e as circunstâncias em que os Dois tratados foram escritos são estabelecidos no Prefácio. Segundo Laslett (2005: 66), Locke tinha esperanças que o livro fosse “suficiente para consolidar o trono de nosso grande restaurador, o atual rei Guilherme; para confirmar seu título no do Consentimento do Povo (...) e justificar perante o mundo o povo da Inglaterra, cujo amor por seus direitos justos e naturais e determinação em preservá-los salvou a Nação, quando esta se encontrava na iminência da escravidão e da ruína”. Parte do texto foi escrita sem dúvida em 1689, visando aplicar-se à situação corrente e Locke deve ter tido a intenção de que o conjunto da obra fosse lido como um comentário acerca de tais acontecimentos, contudo, não se pode sustentar que o livro tenha sido originalmente concebido como uma justificação de uma revolução já consumada. “Na verdade, os Dois Tratados revelam um clamor por uma revolução a ser promovida, e não a racionalização de uma revolução necessitada de justificativas” (Idem: 68). “Do ponto de vista de nossa discussão sobre o livro enquanto resposta a circunstâncias políticas e literárias, sua origem pertence ao outono e inverno de 1679-80, exatamente uma década antes da data tradicionalmente atribuída para sua composição. Os Dois tratados são um ensaio da Exclusão, não um panfleto da Revolução”. 12 Wood (1995). 13 Utilizo, aqui, a palavra burguesia referindo-me à teoria marxista e sua longa discussão em torno das classes sociais. 14 Laslett (2005: 61) entende afirma que Locke veio o mundo em meio à atmosfera clássica do capitalismo primitivo, no seio de uma família que se poderia classificar como formação puritana, no sentido vago do termo, pois foi criado entre advogados, funcionários e comerciantes que haviam conseguido se introduzir na pequena nobreza de Somerset. “Quando se juntou a Shaftesbury, poder-se-ia dizer que passara da petite bourgeoisie para a haute bourgeoisie. Acompanhou seu próspero patrono em seus investimentos – na Companhia da África, na Companhia Lustring e, por fim, no Banco da Inglaterra. Investia em hipotecas, emprestou dinheiro a juros aos amigos, para a conveniência destes, durante toda a sua vida, e, embora tenha declarado solenemente que „nunca me atraiu a especulação na bolsa‟, encontra-se, em suas cartas de 1700-1, um claro exemplo de especulação no mercado de valores da Antiga e da Nova Companhia das Índias Orientais. Em suas obras publicadas, mostrava-se um resoluto inimigo dos mendigos e dos indigentes ociosos, cuja existência se devia, considerava ele, ao „afrouxamento da disciplina e à corrupção dos bons modos‟. Chegou mesmo a insinuar que 14 Se, por um lado, o governo civil é criado para entregar o legislativo a um corpo de homens e, assim, tirá-lo do Soberano; num estado de natureza sem o Monarca, o poder executivo foi tirado dos homens individuais, e entregues ao poder executivo (o Monarca?), que irá agir conforme as leis estabelecidas pelo legislativo. A sociedade política, então, se dá quando qualquer número de homens, proprietários, no estado de natureza, se reúne em uma sociedade, abandonando o próprio poder executivo da lei da natureza, passando-o ao público. Constitui-se o povo, um corpo político, sob um governo supremo. De um Monarca Absoluto ou de um estado de liberdade, passou-se a um governo de e para proprietários individuais; mesmo que um governo exercido por representantes. 3 . Conclusão A construção teórica de Locke justifica a existência do Estado como um “corretor” social, que atua sobre os homens degenerados que não respeitam as “leis da natureza” ou que não se fazem “maioria” no parlamento. É um Estado que busca equilibrar e gerar um mínimo de regras para que um indivíduo não possa se sobrepor a outro “injustamente”. Pois uma sociedade em que cada um interpreta a lei da natureza segundo seu juízo permite que um indivíduo invada e infrinja o direito do outro. O Estado, então, é um mero “regulador”. Com Locke, ao mesmo tempo que a “economia” e o “social”entram na “política”, dá-se essa separação do que se poderia chamar de uma esfera “política”, a qual iria organizar, ou seja, regular e por ordem, em uma esfera que poderia se chamar de “econômica” e/ou “social”, a qual, por seu funcionamento e “liberdade” excessivas, precisaria de uma regulamentação – mas uma regulamentação que levasse em conta as próprias “leis naturais” desse estado de natureza. Daí, com base em sua teoria, poder ser feita uma “analogia”, onde o estado de natureza seria a sociedade capitalista em desenvolvimento (não é a toa que Locke diz que já é possível uma sociabilidade e, portanto, que não é um estado de guerra); e que dessa situação de “extrema liberdade” seria necessário um mínimo de regras que solucionem os conflitos de propriedade: que é justamente o governo dessa sociedade política que surge ao se sair de um uma família de trabalhadores não tinha o direito de admitir o ócio dos filhos após os três anos de idade” (grifos meus). Mas Locke nutria uma profunda desconfiança do comércio e dos comerciantes e, embora tenha aprovado o banco da Inglaterra, expressa em um diálogo que possuía profundas suspeitas quanto aos capitalistas que o haviam fundado. Segundo Laslett, talvez a melhor descrição que caiba a Locke seja a de um intelectual independente, um livre-pensador mais consciente que os demais da direção das mudanças sociais; e as tentativas de converter a doutrina de Locke numa justificativa declarada do capitalismo devem ser complexas, extremamente complexas para que sejam convincentes. 15 estado de natureza sem Estado. De uma “mão invisível”, de leis de natureza não escritas que existem somente no espírito dos homens, faz-se uma “mão visível” e leis civis escritas e reconhecidas, como um estado de “melhor viver”. A sociedade política é o momento de uma sociedade já com um Estado “regulador”, que não deixa aqueles “indivíduos-reis” ofenderem o direito uns dos outros, que se mantenham com um mínimo de “organização” para que não surja um estado de guerra – que poderia surgir daquela situação de instabilidade. Locke considera a propriedade um direito natural intocável, incontestável. Subordina a política à economia, à preservação da propriedade – é este elemento da economia o próprio bem comum. Essa esfera econômica vai ganhando “leis” próprias, e isso se dará conforme o próprio desenvolvimento das relações sociais de produção capitalista. A teoria liberal, com seus diferentes teóricos, acaba por enaltecer o mercado e o transformar em espaço da oportunidadee não da coação, em contraposição à esfera política, apresentada como uma esfera que oprime e mina as individualidades. O governo que Locke defende é um governo que proteja a propriedade, que se baseie no individualismo da sociedade e não na coletividade; é um governo que legitima a propriedade desigual, onde cada um possui não o que precisa, mas o quanto pode acumular. Se a teoria de Locke, ao justificar a existência do governo na preservação da propriedade o faz no sentido de defender não só bens materiais, porém a própria vida e liberdade das ações arbitrárias do soberano, representa um avanço em termos de conquistas políticas, mesmo para aqueles que têm, como propriedade, sua vida, sua liberdade – ainda que seja a liberdade em termos liberais - e aquilo que consegue com a venda de seu serviço; é esta mesma teoria que reconhece a acumulação, o dinheiro e a propriedade desigual. A antiga idéia desenvolvida por Locke de que o Estado existe para proteger a propriedade permanece – mas uma propriedade que vai, cada vez mais, ser retirada daqueles que trabalham. 4. Referências Bibliográficas Bobbio, N. (1991). Thomas Hobbes. Rio de Janeiro. Constant, B. (1980) Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos. Trad. por Silveira. De la Liberté chez lês Modernes. (Collection Pluriel, Paris). Fontana, J. (1998) História: análise do passado e projeto social. São Paulo: EDUSC. Hamilton, A; Madison, J.; e Jay, J. (1993) Os Artigos Federalistas, 1787-1788. Rio de Janeiro, Nova Fronteira. Hobbes, T. (1974) Leviatã. São Paulo. 16 Laslett, P. (2005) “Introdução”. In: Segundo Tratado sobre o Governo Civil. São Paulo: Martins Fontes. Locke, J. (2005) Segundo Tratado sobre o Governo Civil. São Paulo: Martins Fontes. Locke, J. (1952) The Second Treatise of Government. United States of America: The Liberal Arts Press, Inc. Marx, K. Notas Marginais Críticas ao artigo “O Rei da Prússia e a Reforma Social. Por um Prussiano. Trad. João Medeiros. Marx, K. (1996) O Capital: Critica da Economia Política. São Paulo: Nova Cultural. V.1, Livro Primeiro. Montesquieu. (1999) Do espírito das leis. In. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural Ltda. Wood, E. (2003) Democracia contra capitalismo: a renovação do materialismo histórico. São Paulo: Boitempo. Yolton, J. (1996) Dicionário de Locke. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
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