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O CURRÍCULO MÍNIMO DE GEOGRAFIA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO PARA O 1º ANO DO ENSINO MÉDIO: ANÁLISE E PROPOSTA DE ATIVIDADE PARA O ENSINO REMOTO Kesia Costa de Oliveira Azevedo RESUMO Este artigo tem como objetivo analisar criticamente o Currículo Mínimo de Geografia para o 1º ano do Ensino Médio da rede estadual do Rio de Janeiro, com foco em sua estrutura, orientações pedagógicas e nos pressupostos teórico-epistemológicos que o fundamentam. A análise centra-se em elementos como planejamento de aula, uso do livro didático e a viabilidade do trabalho de campo, conforme sugerido pelo documento oficial. A metodologia consistiu em uma análise documental qualitativa, confrontando as proposições curriculares com as teorias da Geografia Crítica e do conceito de transposição didática. Como resultado, identifica-se uma proposta ambiciosa e alinhada com a Geografia Crítica, porém, com desafios significativos em sua operacionalização, especialmente no contexto do ensino remoto. Para superar parte dessas limitações, é proposta uma atividade online que busca traduzir os princípios do currículo, utilizando a paisagem urbana do Rio de Janeiro como objeto de estudo para a compreensão das categorias de espaço geográfico e território. Palavras-chave: Currículo Mínimo; Geografia Escolar; Ensino Médio; Transposição Didática; Ensino Remoto. INTRODUÇÃO O currículo escolar configura-se como um artefato cultural que reflete não apenas um conjunto de conteúdos, mas também intencionalidades políticas, epistemológicas e pedagógicas. No Estado do Rio de Janeiro, o Currículo Mínimo para a disciplina de Geografia no Ensino Médio se propõe a ser um documento orientador que visa garantir um padrão de qualidade e unidade na diversidade de contextos escolares. Este artigo dedica-se a analisar a proposta curricular para o 1º ano do Ensino Médio, investigando como os seus eixos norteadores – a relação sociedade-natureza e a geograficidade do mundo moderno – são traduzidos em orientações práticas para o docente. A investigação parte de uma premissa central: a de que existe um abismo, por vezes considerável, entre a teoria curricular e a prática em sala de aula, um processo conhecido como transposição didática. Nesse sentido, questiona-se: De que maneira o Currículo Mínimo do Rio de Janeiro conduz a transposição do saber sábio da Geografia acadêmica para o saber a ser ensinado? Como elementos cruciais como o planejamento, o livro didático e o trabalho de campo são abordados para efetivar uma Geografia crítica? Para responder a essas indagações, o artigo realiza uma análise crítica do documento curricular, discutindo seus acertos e deficiências à luz dos referenciais teóricos da Geografia. Em seguida, elabora-se uma proposta de atividade aplicável ao ensino online, que busca materializar, de forma concreta, os princípios elencados pelo currículo, demonstrando a viabilidade de se promover um ensino significativo e crítico mesmo em contextos desafiadores, como o do ensino remoto. DESENVOLVIMENTO O Currículo Mínimo de Geografia para o 1º ano do Ensino Médio do Rio de Janeiro se mostra, em sua concepção, um documento progressista e alinhado com os princípios da Geografia Crítica. Seu eixo temático principal, “A Geograficidade do Mundo Moderno: A Relação Sociedade-Natureza em Diferentes Contextos Socioespaciais”, evidencia a intenção de superar uma visão fragmentada e neutra do conhecimento geográfico. A proposta de trabalhar com a cartografia como linguagem e os fenômenos geográficos a partir de uma perspectiva que evidencie conflitos e contradições é louvável e necessária. Do ponto de vista epistemológico, o currículo realiza uma transposição didática inicial bem-sucedida ao selecionar categorias centrais da Geografia Crítica, como espaço geográfico, território, lugar e paisagem, e colocá-las como fio condutor da aprendizagem. A orientação para que se analise a produção do espaço a partir de processos como a urbanização, a industrialização e a globalização demonstram uma preocupação em contextualizar historicamente os fenômenos, fugindo de uma abordagem descritiva e estática. No entanto, a análise revela deficiências significativas na transposição didática interna – a transformação do saber a ser ensinado em saber efetivamente ensinado em sala de aula. As orientações sobre planejamento de aula são genéricas. O documento sugere a utilização de metodologias diversificadas, como seminários e pesquisas, mas não oferece um repertório mais concreto de estratégias para o professor traduzir conceitos complexos como “divisão territorial do trabalho” ou “acumulação flexível” para a realidade cognitiva de jovens do 1º ano. Quanto ao livro didático, o currículo parece pressupor sua utilização como um recurso entre outros, o que é positivo. Porém, não há uma discussão aprofundada sobre como o professor deve mediá-lo criticamente, uma vez que muitos livros disponíveis no mercado podem não estar totalmente alinhados com a abordagem crítica proposta, mantendo uma estrutura mais tradicional. A falta de um guia de análise crítica desses materiais é uma lacuna perceptível. O ponto mais crítico diz respeito à proposta do trabalho de campo. O currículo o recomenda como uma ferramenta essencial para a leitura da paisagem e a compreensão do lugar. Epistemologicamente, esta é uma ferramenta poderosa, pois permite ao aluno confrontar a teoria com a realidade concreta. No entanto, o documento ignora as condições materiais precárias da maioria das escolas estaduais fluminenses. A realização de trabalhos de campo envolve custos de transporte, logística, planejamento complexo e, sobretudo, a superação de desafios de segurança pública, fatores que o tratam como uma possibilidade distante para a maioria dos professores. No contexto pós-pandêmico e com a expansão do ensino remoto, essa deficiência tornou-se ainda mais evidente, pois não há orientações sobre como adaptar essa metodologia fundamental para um ambiente virtual. Como bem define Chevallard (1991) sobre o processo de adaptação do saber Para Chevallard (1991, p. 39), "o saber sofre, a partir do momento em que é selecionado para ser ensinado, um conjunto de adaptações e transformações que irão torná-lo apto a ocupar um lugar entre os objetos de ensino". A ausência de uma adaptação que considere as reais condições das escolas fluminenses resulta, portanto, em um currículo idealizado e de difícil aplicação. Para superar parte dessas limitações e demonstrar a viabilidade de operacionalizar o currículo de forma crítica e online, propõe-se a atividade “Geografando a Cidade: Análise Crítica da Paisagem Carioca pelo Google Earth”, destinada ao 1º ano do Ensino Médio. O tema central é a produção do espaço urbano carioca, com foco em suas contradições e conflitos na paisagem. Os objetivos são identificar e analisar elementos da paisagem do Rio de Janeiro por meio da plataforma Google Earth; relacionar as características observadas com os conceitos de espaço geográfico, território, segregação socioespacial e lugar; e interpretar as contradições urbanas como resultados de processos socioespaciais históricos. Os recursos necessários são computador ou smartphone com acesso à internet, a plataforma Google Earth e um grupo de WhatsApp ou sala virtual no Google Classroom. O desenvolvimento da atividade se dará em três etapas. Na primeira etapa, de Exploração Guiada, os alunos, individualmente, seguirão um roteiro com coordenadas geográficas que formam um percurso virtual contrastante, utilizando as funções de visualização de mapa, satélite e a "Vista de Rua" do Google Earth. O roteiro será guiado por perguntas que instiguem a descrição e a comparação entre diferentes realidades urbanas. Na segunda etapa, de Análise e Síntese, os alunos, em pequenos grupos, produzirão um meme geográfico ou uma charge digital que represente uma das contradições observadas, acompanhado de um pequeno texto explicativo que utilize conceitos geográficos-chave. Por fim, na etapa de Socialização e Discussão, as produções serão compartilhadas em um muralvirtual, e o professor mediará um debate síncrono, partindo dos trabalhos dos alunos para aprofundar os conceitos e vinculá-los aos processos teóricos discutidos no currículo. CONSIDERAÇÕES FINAIS A análise do Currículo Mínimo de Geografia para o 1º ano do Ensino Médio do Rio de Janeiro revela um documento com sólida fundamentação teórica, comprometido com uma Geografia escolar que seja instrumento de leitura crítica da realidade. Sua ênfase nas categorias da Geografia Crítica e na relação sociedade-natureza representa um avanço inegável. Contudo, a transposição didática fica incompleta. A falta de orientações mais concretas para o planejamento, a superficialidade no trato com o livro didático e, sobretudo, a proposta de trabalho de campo descolada da realidade material das escolas são deficiências que podem transformar a proposta em letra morta. O currículo parece, por vezes, ser mais um documento para geógrafos do que para professores, pressupondo um domínio teórico-metodológico e condições ideais de trabalho que raramente se concretizam. A atividade proposta, "Geografando a Cidade", demonstra que é possível, com criatividade e uso de tecnologias acessíveis, superar parte dessas barreiras. Ela permite uma espécie de "trabalho de campo virtual", adaptando o princípio epistemológico da observação da paisagem para o ambiente online. Dessa forma, busca-se efetivar os princípios do próprio currículo, formando estudantes capazes de não apenas navegar no espaço virtual do Google Earth, mas, principalmente, de decifrar as camadas de significados, conflitos e histórias que compõem o espaço geográfico real em que estão inseridos. Conclui-se, portanto, que o grande desafio não está na qualidade da teoria curricular, mas na criação de pontes mais sólidas e realistas entre essa teoria e a prática docente cotidiana. BIBLIOGRAFIA CHEVALLARD, Yves. La transposición didáctica: del saber sabio al saber enseñado. Buenos Aires: Aique Grupo Editor, 1991. RIO DE JANEIRO (Estado). Secretaria de Estado de Educação. Currículo Mínimo: Geografia – 1º Ano do Ensino Médio. Rio de Janeiro: SEEDUC, 2012. Disponível em: https://graduacao.cederj.edu.br/mod/resource/view.php?id=96041. Acesso em: 23 out. 2023. SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. 4. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006. CASTROGIOVANNI, A. C. et al. (Orgs.). Ensino de Geografia: práticas e textualizações no cotidiano. 9. ed. Porto Alegre: Mediação, 2010.