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A invisibilidade pública

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Prévia do material em texto

A invisibilidade pública 
 
José Moura Gonçalves Filho 
Professor e pesquisador 
Departamento de Psicologia Social e do Trabalho 
Instituto de Psicologia - Universidade de São Paulo 
A invisibilidade pública (prefácio). 
In: Costa, F. B. da. Homens invisíveis – relatos de uma humilhação social. 
São Paulo: Globo, 2004. 
Há muito o que dizer sobre um pequeno e tremendo conto de Machado de Assis: 
O caso da vara.1 Digamos um pouco, retomando brevemente o argumento e passagens 
da narrativa. Ninguém seja dispensado, porém, da incomparável leitura do próprio 
Machado e seus detalhes. 
O caso da vara. Somos transportados pelo contista aos meados do século XIX e 
para a cidade patriarcal e escravocrata do Rio de Janeiro. Machado de Assis põe-nos 
imediatamente em presença de Damião, um jovem fugitivo: acaba de escapar de um 
seminário onde fora internado sem vocação pelo pai severíssimo e até truculento. 
Para onde iria? Para casa, não; lá estava o pai que o devolveria ao seminário, 
depois de um bom castigo. (...) Para onde iria? Lembrou-se do padrinho, João Carneiro, 
mas o padrinho era um moleirão sem vontade, que por si só não faria cousa útil. 
O rapaz atordoado vislumbra subitamente uma saída: vai pelejar ser acudido por 
uma senhora viúva e que vivia de ensinar escravas jovenzinhas a fazer renda, crivo e 
bordado. 
- Vou pegar-me com Sinhá Rita! Ela manda chamar meu padrinho, diz-lhe que 
quer que eu saia do seminário... Talvez assim... 
Sinhá Rita era uma viúva, querida de João Carneiro; Damião tinha umas idéias 
vagas dessa situação e tratou de a aproveitar. 
A senhora recebe espantada o seminarista desertor, o moço trêmulo. Ouve-lhe a 
queixa. Não quer socorrê-lo, busca dissuadi-lo. O moço, desesperado, ajoelha-se em 
súplicas. 
Sinhá Rita hesitou ainda muito tempo; afinal perguntou-lhe por que não ia ter 
com o padrinho. 
- Meu padrinho? Esse é ainda pior que papai; não me atende, duvido que atenda 
a ninguém... 
- Não atende? interrompeu Sinhá Rita ferida em seus brios. Ora, eu lhe mostro 
se atende ou não... 
 
1
 Contos. São Paulo: Ática, 1987, pp. 49-53. As fontes são diversas; tomo esta seleção de contos 
machadianos estabelecida por Deomira Stefani. 
A invisibilidade pública 
José Moura Gonçalves Filho 
 2 
A viúva ordenará a um moleque que corra e chame já o Sr. João Carneiro. Tudo 
arranjado, a conversa entre Sinhá Rita e Damião vai distender-se. Sinhá Rita, “brava 
como o diabo quando convinha”, todavia é galhofeira e “amiga de rir”. Põe-se a animar 
o rapaz e, apesar da situação, o moço dá em dizer coisas com espírito e até trejeitos. 
Trocam anedotas e risos. 
Damião, inadvertidamente, faz também rir uma das negrinhas que costurava ao 
lado. A menina, esquecida do bordado, vendo e ouvindo o piadista, riu. O riso da 
escrava enfureceu sua senhora. Sinhá Rita empunhou uma vara e ameaçou: 
- Lucrécia, olha a vara! 
A pequena abaixou a cabeça, aparando o golpe, mas o golpe não veio. Era uma 
advertência; se à noitinha a tarefa não estivesse pronta, Lucrécia receberia o castigo do 
costume. Damião olhou para a pequena; era uma negrinha, magricela, um frangalho de 
nada, com uma cicatriz na testa e uma queimadura na mão esquerda. Contava onze anos. 
Damião reparou que tossia, mas para dentro, surdamente, a fim de não interromper a 
conversação. Teve pena da negrinha e resolveu apadrinhá-la, se não acabasse a tarefa. 
Sinhá Rita não lhe negaria o perdão... Demais, ela rira por achar-lhe graça; a culpa era 
sua, se há culpa em ter chiste. 
Este trecho é narrativa de um acontecimento inesperado. Operou-se 
discretamente uma experiência e que convém frisar: Damião viu Lucrécia. Aconteceu 
de temporariamente abandonar a visão costumeira. 
Que faz ver o costume? Uma escrava como outras. No caso, uma escrava em 
falta com sua tarefa. Então, como impõe o costume, uma escrava que se deve advertir e 
eventualmente espancar. 
Quem é o sujeito desta visão? Diríamos: certamente Sinhá Rita! Será resposta 
realmente certeira? Talvez, conquanto seja admitido que o sujeito foi apontado não 
apenas segundo o nome, mas segundo o prenome senhorial: não é Rita quem vê tanto 
quanto é Sinhá. É como senhora e mestra de escravos que Rita está na visão das coisas e 
pessoas. No conto inteiro não há passagem em que a personagem seja apontada senão 
assim: Sinhá Rita. 
Quem vê superiormente não é como qualquer um a ver naturalmente: o senhor 
esforça-se na compostura, não relaxa. A dominação tem sua disciplina. A soberba pede 
o olhar sempre altivo, às vezes até afetado em postiça arrogância, várias vezes o olhar 
de vigiar e que atemoriza. Os olhos de Sinhá chegam a relaxar? Talvez quando dirigidos 
a Damião, nos momentos em que Rita sente a tristeza e aflição do moço, mas nunca 
quando lançados sobre suas aprendizes servis. Em companhia de seus pares, a mulher 
A invisibilidade pública 
José Moura Gonçalves Filho 
 3 
chega a rir. Em comando de suas escravas, impõe-se a senhora que não está para rir e 
nem para deixar rir.2 
O sujeito da visão senhorial, a visão retesada, não é tanto um sujeito pessoal 
quanto um sujeito ligado ao seu estamento e classe, um sujeito social. Um sujeito, por 
assim dizer, automático: alguém de comportamento que se pode antecipar. 
A pequena escrava já sabe o que esperar de sua senhora, está na conta dos 
mecanismos sociais previsíveis. Sinhá ergue a vara, a escrava abaixa a cabeça, 
preparando-se para o golpe, mesmo o golpe que não vem mas, cedo ou tarde, por um 
motivo ou outro, é aguardado. Os escravos, como os seus senhores, são também 
tragados para a cena dos automatismos sociais. 
A humilhação é angústia que os escravos conhecem bem, fincada na base de sua 
submissão instintiva ou maquinal. O escravo sofre várias vezes o golpe físico dos maus 
tratos. Sofre continuamente o golpe moral de uma mensagem: “Inferior! Tu não és um 
de nós, trabalha baixo e sem rir ou olha a vara!”. Desde então, o golpe passa a ser 
esperado mesmo nas circunstâncias em que não vem ostensivamente. O ambiente 
político da dominação começa a agir também nas horas de trégua: age por dentro. Para 
os humilhados, a humilhação é golpe ou é freqüentemente sentida como um golpe 
iminente, sempre a espreitar-lhes, onde quer que estejam, com quem quer que estejam. 
O sentimento de uma pancada torna-se compulsivo: vira pressentimento. 
A humilhação crônica quebra o sentimento de possuir direitos: foi o que 
escreveu Simone Weil depois de longamente trabalhar como operária nas fresas da 
Renault. Corpo e alma ficam amarrados, sempre prevenidos: “lá vem vara!”. 
Correspondendo-se com a tensão de seus senhores, os escravos ficam também sem 
relaxamento. O movimento e a voz ficam interrompidos. O riso, quando vem, fica 
 
2
 O que proponho nesta nota o leitor possivelmente só me concederá pelo conhecimento sem omissões de 
todo o conto. É que talvez seja de observar o que se passa com Sinhá Rita nas vezes em que buscou 
alegrar o rapaz consternado. Não chega à franqueza da compaixão. Recorre às anedotas, tergiversando e 
consolando levemente, mas não parecendo realmente compreender o infortúnio do rapaz. Nunca se 
propõe ir ter diretamente com o pai de Damião: “Não, replicou ela abanando a cabeça; não me meto em 
negócios de sua família que mal conheço; e então seu pai, que dizem que é zangado!”. 
Menos a simpatia ou o protesto contra um pai arbitrário e contra a opressão, o que move a senhora é 
sobretudo o brio ofendido: a hipótese de não ver atendidos um pedido ou um mando seu. De ninguém 
parece admitir contestação ou ordens contrariadas: os subalternos mas também os iguais, os dependentes 
mas também o admirador. João Carneiro ou Damião, ainda menos Lucrécia e a outras, com ninguém 
Sinhá Rita parece sem máscaras.Intransigente, no máximo galhofeira, só cede se o orgulho a fizer ceder, 
tudo confirmando o seu senhorio e a tolerância de outros senhores. 
A senhora é sempre aprumada como aprumados são outros senhores. Quando perdem o prumo, 
senhores coléricos ou senhores moleirões, é somente porque a paixão de serem senhores traz a ira ou o 
medo que confirmam o seu desejo e seu compromisso com o mandonismo. 
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 4 
incompleto, vem obstruído. O riso gutural e contido, que serve ainda hoje para a 
simpática caricatura do preto velho, é índice de escravidão. 
Sinhá Rita vê a escrava. Damião viu Lucrécia. Excedeu a visão costumeira. 
Furou e atravessou a percepção dominante. Olhou para a mocinha. Viu que era uma 
menina, uma negrinha magricela e que levava uma cicatriz na testa e uma queimadura 
na mão esquerda: “Damião reparou que tossia, mas para dentro, surdamente, a fim de 
não interromper a conversação”. Quando abrem-se os olhos, é dom da visão alargada 
também comover, mobilizar. Olhos libertos liberam iniciativas imprevistas: Damião 
teve pena de Lucrécia, resolveu não esquecê-la e estar a seu lado se não acabasse a 
tarefa. 
O rapaz viveu uma ruptura na roda fechada da máquina social. Viu o que não 
supunha estar ali para ser visto. Que lhe terá permitido esta liberdade? Ao menos três 
respostas parecem autorizadas pelo conto machadiano. 
Antes de nada, é preciso responder: a iniciativa de Damião não é primeira. Foi 
Lucrécia quem, antes dele, pôs-se a mirá-lo e escutá-lo, pondo em pausa o trabalho 
forçado, chegando a rir do que viu e ouviu. A menina de onze anos foi a primeira a estar 
fora da ordem. A liberdade de Damião começou na liberdade de Lucrécia. E não é assim 
que as coisas se dão também historicamente? Não é verdade que a iniciativa por 
defender os apagados sempre dependeu deles e de sua aparição, seu movimento para o 
centro da cena iluminada? Movimento às vezes discreto e espontâneo como o 
movimento de Lucrécia, noutras vezes contundente e até organizado. 
Outra resposta. Damião está em apuros e não está garantido. Mas está algo 
esperançoso quanto ao favor de Sinhá e quanto a sua libertação. E o contentamento por 
algemas destravadas, mesmo não garantido, deixa generosos os contentes, que ficam 
pródigos em desejar todos os algemados liberados. O que, então, parece fomentar a 
ousada liberdade de ombrear com uma escrava é a liberdade ela mesma, o anseio disso. 
A inusitada solidariedade com os escravos vem da contente esperança de nós todos 
livres. Isso dá o que pensar: os oprimidos, para contarem com a solidariedade dos 
outros, dependem que estes não passem seus dias a enganar-se sobre sua liberdade. Não 
é mais livre quem manda do que quem obedece: somos irmãos na mesma miséria e uma 
saída pede que todos lamentem suas armaduras de classe e a tristeza de não vivermos 
numa comunidade de troca, conversa e mútuo enriquecimento. 
Finalmente, para onde as duas respostas anteriores nos encaminham: houve 
súbita consonância entre o caso de Damião e o caso de Lucrécia, o que a narrativa 
cuidará para deixar cada vez mais claro. Damião, quanto a seu pai, está para Sinhá Rita 
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 5 
assim como Lucrécia, quanto a Sinhá Rita, está para Damião. Damião sob ameaças do 
pai, Lucrécia sob ameaças de Sinhá. Damião dependendo de Sinhá Rita, Lucrécia 
dependendo de Damião. Entretanto, apenas por certa medida há parentesco entre os 
dois: Damião conta no mundo pelo lado senhorial; Lucrécia, pelo lado servil. O rapaz 
logrará superar sua classe? Veremos o que Machado de Assis nos irá reservar. 
Torçamos por Damião e Lucrécia! 
Chega João Carneiro. Empalidece ao encontrar Damião: repreende o seminarista 
rebelde e anuncia um castigo. Sinhá Rita reage em favor do jovem e insiste: não voltará 
ao seminário e o padrinho que fale ao pai do afilhado! Dividido entre o compadre 
violento e a viúva peremptória, desejando melhor fosse que o afilhado estivesse morto, 
João Carneiro curva-se ao comando de Sinhá Rita e sai. 
No começo da noite, aparece um escravo do padrinho, com uma carta para Sinhá 
Rita: “o pai ficou furioso e quis quebrar tudo; bradou que não, senhor, que o peralta 
havia de ir para o seminário, ou então metia-o no Aljube3 ou na presiganga4. João 
Carneiro havia com dificuldade conseguido que o compadre não resolvesse logo. No dia 
seguinte voltaria à empreitada, mas a carta mal escondia um tom derrotista. 
Sinhá Rita responde na folha da mesma carta: “Joãozinho, ou você salva o moço, 
ou nunca mais nos vemos.” Voltando-se para o seminarista, asseverou que agora era 
com ela: 
- Hão de ver para quanto presto! Não, que eu não sou de brincadeiras! 
Damião consternado. Mais que nunca precisava da senhora; estava nas mãos 
dela livrá-lo. Neste instante, o desfecho do conto esclarece decisivamente o seu título: 
Era a hora de recolher os trabalhos. Sinhá Rita examinou-os; todas as 
discípulas tinham concluído a tarefa. Só Lucrécia estava ainda à almofada, meneando os 
bilros, já sem ver; Sinhá Rita chegou-se a ela, viu que a tarefa não estava acabada, ficou 
furiosa, e agarrou-a por uma orelha. 
- Ah! malandra! 
- Nhanhã, nhanhã! pelo amor de Deus! por Nossa Senhora que está no céu. 
- Malandra! Nossa Senhora não protege vadias! 
Lucrécia fez um esforço, soltou-se das mãos da senhora, e fugiu para dentro; a 
senhora foi atrás e agarrou-a. 
- Anda cá! 
- Minha senhora, me perdoe! tossia a negrinha. 
- Não perdôo, não. Onde está a vara? 
E tornaram ambas à sala, uma presa pela orelha, debatendo-se, chorando e 
pedindo; a outra dizendo que não, que a havia de castigar. 
- Onde está a vara? 
 
3
 Cárcere para padres. 
4
 Navio que recolhia e mantinha prisioneiros em alto-mar. 
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 6 
A vara estava à cabeceira da marquesa, do outro lado da sala. Sinhá Rita, não 
querendo soltar a pequena, bradou ao seminarista: 
- Sr. Damião, dê-me aquela vara, faz favor?5 
Damião ficou frio... Cruel instante! Uma nuvem passou-lhe pelos olhos. Sim, 
tinha jurado apadrinhar a pequena, que por causa dele, atrasara o trabalho... 
- Dê-me a vara, Sr. Damião! 
Damião chegou a caminhar na direção da marquesa. A negrinha pediu-lhe 
então por tudo o que houvesse mais sagrado, pela mãe, pelo pai, por Nosso Senhor... 
- Me acuda, meu sinhô moço! 
Estamos no grau dramático mais elevado de todo o conto. O suspense é enorme 
e de incrível beleza. Não há mais o que suspeitar: houve comunicação de dois dramas, o 
drama da escrava e o drama de um senhor moço. Lucrécia e Damião entraram em 
desacostumada aproximação. Ambos dependem de uma intercessão em seu favor, 
contra uma força despótica. Uma brecha rara: recuse-se Damião a entregar a vara, ouça 
o apelo da escrava e, numa sala fluminense, haverá reviravolta, ficará ali 
temporariamente suspensa uma ordem inteira de dominação, vingará simples mas 
notável um protesto local contra o peso e engrenagem de uma cidade inteira. 
Sinhá Rita, com a cara em fogo e os olhos esbugalhados, instava pela vara, sem 
largar a negrinha, agora presa de um acesso de tosse. Damião sentiu-se compungido; 
mas ele precisava tanto sair do seminário! Chegou à marquesa, pegou na vara e 
entregou-a a Sinhá Rita. 
O desenlace é de um chocante anticlímax e de um realismo acachapante. A 
ordem da vara foi mantida. Só conta o drama dos senhores. Desapareceu o drama de 
Lucrécia: sumiu, devolvido à invisibilidade de antes e sempre. 
Num quadro de instituições e molas sociais assentado sobre a desigualdade 
política, que atitude senão conformista nos poderia caracterizar? Uma classe com sua 
segurança pública e psicológica baseada em prestígios senhoriais, gente que se habituou 
ao privilégio, gente napraxe da ação por interesse privado. Que visão pode em nós 
abrir-se, para que iniciativas estaremos livres quando compomos número e força com 
patrões, patroas e patrõezinhos? 
O caso da vara. De tudo que se tem a dizer sem fim sobre o conto profundo, 
quis enfatizar um ponto, o seu jogo de luz e sombras, que é matéria também deste livro 
que o leitor tem nas mãos e que não é ficção. A distribuição da luz e das sombras sobre 
objetos, ambientes e corpos, não é coisa que deveríamos tomar meramente como coisa 
física, o corriqueiro espetáculo de como o sol ou a lâmpada faz figurar certos lados, 
deixando outros sob penumbra, arquitetando o que vai brilhar e o que ficará escuro. A 
 
5
 Note-se a primeira e única vez em que, no conto, Damião é chamado senhor: quando Sinhá solicita que 
lhe passe a vara para surrar a escravinha. 
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iluminação é coisa também social. O que vemos e o que deixamos de ver, o regime de 
nossa atenção, é decidido segundo o modo como fomos colocados em companhia dos 
outros, segundo o modo como também nos colocamos e como eventualmente nos 
recolocamos em companhia. 
Variando o modo como caímos na cidade e voltamos a cair, como nos pomos e 
como nos recompomos em sociedade, de pé ou de joelhos, prostrados ou revoltados, 
quietos e inquietos, nossa atenção só vem ver o que é para ser oficialmente visto, vem 
só ver e ouvir o que está autorizado ou vem reparar nas coisas e nos seres das margens e 
de meia-luz. 
O caso da vara: o autor não escreveu O caso de Damião e, antes que o leitor 
pudesse estar advertido, antes de ninguém saber, o título já anunciava o deslocamento 
que se iria produzir na repartição da luz: o foco do conto girou para Lucrécia. A 
escravinha obscura veio para a clareira, apareceu, riu, tossiu, suplicou. Quando 
devolvida à escuridão dos escravos, que leitor tão tapado poderá esquecê-la e não 
enxergá-la mais? 
Um espírito incomodado escreveu a narrativa, delicado e perspicaz. Um espírito 
desconcertante. Se o título também não foi O caso de Lucrécia, talvez seja porque o 
autor nos quis trazer para a encruzilhada, entre Damião e Lucrécia, e interpelar-nos 
todos pela voz dominante de Sinhá Rita: passai-me a vara! Entre senhores e escravos, 
que realmente faríamos? 
Em Machado de Assis, como aprendemos a reconhecer com Alfredo Bosi6, o 
justificado pessimismo e a contundente ironia refletem a força da dominação e das 
máscaras a nos guiar ou arrastar, todavia instauram também uma consciência limite, 
uma consciência agonística e de difícil realização, uma consciência libertária que vê 
rostos sob caras duras ou amarradas. O conto amargo alimenta paradoxalmente algum 
ânimo utopista, pode despertar a amizade pelos oprimidos, desafiando e açulando a 
coragem. 
O desfecho do conto, em alguma medida, é digno dos desfechos brechtianos. 
Diferente do teatro de Bertolt Brecht, não termina sem resultado, suspenso um instante 
antes da solução. O caso da vara culmina numa solução previsível e sem catarse. 
Contudo, num modo como depois ficará célebre a dramaturgia do teatrólogo marxista, 
também Machado de Assis não se permitiu resolver pela ficção o que ainda não 
 
6
 Machado de Assis - O enigma do olhar. São Paulo: Ática, 1999. 
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 8 
resolvemos na realidade. Damião entrega a vara. Nós ainda, de fato, não deixamos de 
entregá-la. Mas não somos incitados a imaginarmo-nos sem entregá-la? 
Quem dirá que o conto é inofensivo e que, depois dele, somos perfeitamente os 
mesmos? A imaginação é sempre adiantada relativamente às ações que juntos ainda não 
praticamos e tantas vezes inibimos. Mas não poderá inspirá-las e não poderá desinibir-
nos? A imaginação machadiana recolheu-se antes que pudesse avançar sobre quimeras. 
O escritor mulato devia este respeito a quem não pode viver de saídas só imaginárias e 
pueris. Mas, assim, não fez ver mais numa sociedade de luzes tão mal distribuídas? Não 
contribuiu para exceder nosso medo de uma sociedade igualitária? 
Damião entregou a vara. Um outro rapaz, Fernando Braga da Costa, neste seu 
livro, esforça-se por quebrá-la. Não o deixemos sozinho. Apliquemos nosso pensamento 
e trabalho no desejo de uma sociedade sem patrões. 
* 
Este livro é derivado da pesquisa de um psicólogo entre cidadãos que em São 
Paulo assumem diariamente a tarefa de garis num campus universitário. Um ou dois, às 
vezes três dias toda semana e durante quase oito anos, assumindo pessoalmente a 
mesma tarefa, Fernando ligou-se a Bresser, Josias, Ismael, Lafaiete, Machado, Queluz, 
Raul, Severino, Tiago, Tuim. Estes e ainda outros vão todos se apresentar por episódios. 
Menciono os nomes de alguns para respeitar que o psicólogo esteve perto deles, o 
bastante para justamente apresentá-los pelo nome e não sobretudo como “garis”. Os 
nomes foram escolhidos por eles: não correspondem aos verdadeiros nomes, evitando o 
caso de o que se vai revelar chegasse a algum tipo de retaliação por cima. Mas são 
nomes próprios e não palavras gerais. Se Fernando encontra razões para várias vezes 
pronunciar-se sobre garis, foi porque antes passou pela comunicação com um, depois 
outro, cada um singular e rico, alcançados como Josias ou Ismael e não valendo como 
exemplar de um tipo social. 
Fernando esteve e persiste, hoje ainda, perto deles. Sempre se pode estar mais 
perto: o que compromisso com os outros pede mais e mais. Fernando não quer sua 
experiência como modelo máximo de proximidade. Que outros e ele mesmo 
aproximem-se ainda mais! O que moveu o rapaz foi o desejo simples de não estar muito 
afastado daqueles sobre quem iria escrever. Não se fantasiou. Se vestiu o uniforme de 
garis e assumiu a varredura, não foi para fingir, o que seria ridículo e desrespeitoso. Foi 
A invisibilidade pública 
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apenas para ver e ouvir melhor. O que foi escrito neste livro manifesta uma proximidade 
que não é máxima mas está longe de ser superficial e sou testemunha do quanto agiu por 
dentro e fez crescer um cidadão e um psicólogo. 
Não se enganem os leitores: esta pesquisa, cuja experiência e formação tive a 
alegria e a missão de estimular e acompanhar, não pretende pontificar sobre garis e 
sobre a psicologia do oprimido. As idéias estão aí para a discussão sempre maior e para 
alimento de ações. São idéias que se pretendem apuradas por vivência e estudo, mas não 
pretendem esgotar e sim chamar o debate e a colaboração de mais gente, pesquisadores 
e trabalhadores. São idéias que conheceram sua prova e querem ser outra vez devolvidas 
à prova e aos outros. Não é assim a pesquisa enraizada e que merece consideração? Um 
livro vem de esforços que começam antes dele e vai para novos esforços: o decisivo é 
que neste esforço partilhado e sem acabar, tornemo-nos capazes de pensar e de fundar 
cidade mais compatível com a dignidade de seus cidadãos. 
O que este livro foi capaz de revelar dependeu dos cidadãos revelados. Foi 
resultado do que o autor pretendeu pensar com eles. E Fernando ainda pretende ajudá-
los mas não sem antes ele mesmo, aproximando-se, ter sentido a ajuda dos que pretende 
ajudar. Que estas linhas possam contribuir para o destino livre de cidadãos que 
trabalham sob varas. Em todo caso, o que me parece garantido é que contribuem para a 
ação de psicólogos sociais. 
O caminho da investigação deu na atenção para a invisibilidade pública. 
Invisibilidade pública é expressão que resume diversas manifestações de um sofrimento 
político: a humilhação social, um sofrimento longamente aturado e ruminado por gente 
das classes pobres. Um sofrimento que, no caso brasileiro e várias gerações atrás, 
começou por golpes de espoliação e servidão que caíram pesadossobre nativos e 
africanos, depois sobre imigrantes baixo-assalariados: a violação da terra, a perda de 
bens, a ofensa contra crenças, ritos e festas, o trabalho forçado, a dominação nos 
engenhos ou depois nas fazendas e nas fábricas. 
A violência material e simbólica – quando não deixou simplesmente sem 
herança ou memória os descendentes de índios e negros escravizados ou os 
descendentes de europeus e asiáticos proletarizados, quando não desabrigou o corpo e 
esvaziou a alma – feriu e marcou indelevelmente o espírito mais resistente. A opressão 
no campo e na cidade refreou os gestos, alienou o trabalho, impediu a ação e o governo, 
inibiu o riso e a voz, desmoralizou as religiões e as idéias dos oprimidos. Infestou o 
sentimento, a imaginação e a lembrança dos pobres por mensagens senhoriais ou 
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patronais, mensagens de comando e desprezo. São golpes ainda agora desferidos, sob 
novas formas e menos evidentes. 
A humilhação social é sofrimento ancestral e repetido. Para roceiros, mineiros 
ou operários, também para uma multidão de pequenos servidores, para os 
subempregados e para os desempregados, é sofrimento que o trabalhador vai amargar 
sozinho e, cedo ou tarde, vai também dividir com outros trabalhadores. A dor dos 
subordinados, repartida entre familiares, compadres e amigos, vai também naturalmente 
mover conversas com os vizinhos no bairro e com companheiros de classe nos 
intervalos do trabalho controlado. O sofrimento, quem sabe, virá também polarizar 
reuniões e discussões mais robustas, instauradas por movimentos coletivos que se 
encorpam e assumem sentido deliberadamente político. 
Às vezes, portanto, reunidos como cidadãos, juntos e muito conscientemente é 
que os trabalhadores virão denunciar e enfrentar a humilhação no trabalho e na cidade. 
Virão juntos interrogá-la, buscando interpretar a desigualdade e suas determinações: 
contarão histórias, buscando com êxito e fracasso narrar, traduzir e pensar a dominação. 
Não teremos ainda em mente, no Brasil, lutas travadas por cidadãos das classes 
populares e que, para lembrar palavras de Eder Sader, entraram em cena pública como 
novos protagonistas? Apareceram. Foi durante as recentes décadas de 60 a 80 e até 
meados dos 90. Para quem os quisesse ver e ouvir, apareceram. Para quem nunca 
conversasse com eles, para quem se houvesse habituado a tomá-los apenas como 
empregados mudos e serviçais, não apenas apareceram: impuseram-se como gente que 
fala, pensa e opina, gente que age e traz inesperado desconcerto. 
Eram mulheres dos Clubes de Mães na periferia sul de São Paulo e que 
ergueram panelas vazias e bandeiras contra a carestia. Eram agentes dos movimentos 
por saúde na zona leste. Eram operários fundadores de comissões de fábrica e de um 
novo sindicalismo no ABC paulista.7 O elenco pode prosseguir e transbordava o estado 
de São Paulo. Eram cidadãos cuja ação incluía e ultrapassava reivindicações 
econômicas: sem adiamento, desde já ensaiavam formas comunitárias ou horizontais de 
participação e uma consciência fraterna ou socialista, em diversos e nos melhores casos 
sem ranços autoritários ou maniqueístas mas segundo uma sensibilidade modelada pelo 
coração e mente dos humildes. 
Traços tenazes da cultura popular, nela combinados com tanto encanto, o 
pensamento concreto e o pensamento religioso, encontraram nestes ambientes algum 
 
7
 Sader, E. Quando Novos Personagens Entraram em Cena. São Paulo: Paz e Terra, 1988. 
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José Moura Gonçalves Filho 
 11 
lugar propício de reaparição. O pensamento de quem empenha corpo e mãos no trabalho 
diário (e é por isso afeito às coisas como elas são) em trama com o pensamento de quem 
reza e conta com graças providenciais (e é por isso afeito ao milagroso). O pensamento 
que vem de um regime de linguagem inclinado a retirar do mundo sensível todas as suas 
figuras; de outro, a linguagem que tem gosto de em tudo encontrar não só a coisa mas a 
coisa animada. O pensamento realista e mágico. O pensamento que sabe o que é sofrer e 
o que é ressuscitar. O pensamento atraído pela natureza, ligado aos vizinhos e ao 
sobrenatural.8 
Hoje, tempo político de vacas magras, depois de tantas operações burguesas e 
que vieram neutralizar ou desmontar várias daquelas iniciativas populares, algumas 
todavia insistem e retiram de lá ou de agora o seu impulso. Impulso notável mesmo que 
constantemente atacado ou incompreendido. Pensemos no impulso atual do movimento 
dos trabalhadores sem terra ou das cooperativas populares de trabalho. 
Quem tenha se engajado naquelas ou nessas lutas e tenha se unido ombro a 
ombro aos seus protagonistas, quem os tenha muitas vezes visitado, para apoiá-los e 
para colaborar, quem tenha querido vê-los e ouvi-los de perto, quem tenha tomado parte 
em seus grupos e reuniões, não guardará testemunho de tanta coisa inesquecível? 
Neste livro, o leitor encontrará muitos casos de não esquecer mais. Verdade que 
Fernando uniu-se a trabalhadores que não formam um grupo politicamente organizado. 
Mas muito do que a gente não esquece de cidadãos das classes pobres vem antes das 
organizações e precisa informá-las. É triste quando a organização cai forçada e de fora, 
roubando a naturalidade e a originalidade. 
* 
 
8
 Sobre esta combinação de praticidade e entusiasmo, enraizamento e transcendência, recomendo sete 
entre indispensáveis textos brasileiros que podem conduzir a outros mais. Três de Alfredo Bosi: “Cultura 
brasileira e culturas brasileiras” [In: Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992], 
“Plural, mas não caótico” [In: Cultura brasileira – temas e situações. Bosi, A. (org.) São Paulo: Ática, 
1987], “Homenagem a mestre Xidieh” [In: Literatura e resistência. São Paulo: Companhia das Letras, 
2002]. Três de Ecléa Bosi: “Apontamento sobre a cultura das classes pobres” [In: O tempo vivo da 
memória – ensaios de Psicologia Social. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003], “Cultura de massa, cultura 
popular, cultura operária” [In: Cultura de massa e cultura popular. Petrópolis: Vozes, 2000, cap. II], 
“Cultura e desenraizamento” [In: Cultura brasileira – temas e situações. Bosi, A. (org.) São Paulo: 
Ática, 1987]. E de Oswaldo Elias Xidieh: Semana Santa Cabocla. São Paulo: Instituto de Estudos 
Brasileiros / USP, 1972]. 
A invisibilidade pública 
José Moura Gonçalves Filho 
 12 
Índios expostos à espoliação agrária. Negros expostos ao racismo. Roceiros sem 
terra, expostos a trabalhar para só comer. Cidadãos pobres expostos ao emprego 
proletário, ao desemprego e à indigência. Velhos expostos a ficarem para trás no 
trabalho acelerado. Mulheres detidas por seus pais, irmãos e maridos, por seus 
professores e chefes. Amantes expostos à vigilância e à proibição, quando o amor 
aconteceu fora da ordem erótica oficial. Loucos desmoralizados pelas ciências, cassados 
pelos tribunais, invalidados pelos manicômios. Tantos expostos à desonra e ao 
desrespeito cultural. Uma comunidade política parece reuni-los todos: exposição ao 
sofrimento da dominação. 
O fato político, a dominação, é também psicológico: não pode deixar de ser 
traumático e internaliza-se com extraordinária energia. Uma força incoercível toma 
conta do espírito humilhado e carrega a pessoa inteira. Há quem precise supor que o 
fenômeno fosse individual e que não deveria ser valorizado. Seria coisa exagerada nesse 
ou naquele cidadão muito suscetível. Mas o fenômeno é de tal modo corriqueiro, 
acertando ora um, ora outro, alegado por tantos, que é impossível duvidar de uma 
determinação psicossocial bem larga para o sofrimento geral. 
O mal abrangente obriga considerar que, nesta hora em que a humilhação 
desatou-se em alguém, houve reediçãode um sangramento antigo e que não estancou: a 
dor chega do passado, corre para o presente, insinua-se nas hierarquias iníquas, nos 
espaços segregados, pode também voltar nos encontros e ambientes mais insuspeitos. 
O trabalho e a grande cidade organizados sobre divisão entre superiores e 
inferiores podem funcionar. Mas este funcionamento traz desgosto. E cair no desgosto 
disso não é coisa que se devia reduzir a um desgosto individual. O funcionamento dá em 
ganhos econômicos de produtividade, fato sempre brandido por quem deseja justificar a 
dominação. 
Contam vozes e experiências dissonantes, demonstrando que soluções 
cooperativas de trabalho e que a participação de todos e cada um nos assuntos de 
pequenas cidades são também soluções econômicas: dão em renda limitada mas em 
trabalho e cidade mais felizes. 
A divisão burguesa do trabalho e da cidade, dando inegavelmente em renda 
crescente, dá amiúde em amargura de trabalhadores e cidadãos, mesmo quando não 
assombrados por renda nacional mal dividida, recessão, desemprego e corrupção. Há 
quem não tenha notícia daquelas vozes, quem não tenha vivido aquelas experiências. 
Todavia, no trabalho, quem nunca foi atilado pelo sentimento de que poderíamos estar 
A invisibilidade pública 
José Moura Gonçalves Filho 
 13 
reunidos não para funcionar, mas para trabalhar juntos e conversar, para governar o 
trabalho sem que ninguém governasse ninguém? 
A humilhação marca a personalidade por imagens e palavras ligadas a 
mensagens de rebaixamento. São mensagens arremessadas em cena pública: a escola, o 
trabalho, a cidade. São gestos ou frases dos outros que penetram e não abandonam o 
corpo e a alma do rebaixado: o adulto e o idoso, já antes o jovem ou a criança, vão 
como que diminuir, vão guardar a estranha e perturbadora lembrança de quem a eles se 
dirigiu como quem se tenha dirigido ao inferior. 
As mensagens da dominação são inquietantes: vão desarrumar a percepção e a 
fantasia, a memória e a linguagem, o sono e o sonho. As lembranças da dominação são 
intrigantes: vão interpelar e exigir a percepção e a fantasia, a memória e a linguagem, o 
sono e o sonho, antes mesmo do dominado cair na conta do que o inquieta. Chegada a 
hora da consciência e da interrogação, a hora de pensar, o oprimido não pode evitar a 
perplexidade: por que fui tratado assim? 
Sofrimentos políticos não são enfrentados apenas psicologicamente, uma vez 
que são políticos. Mas não é bastante que sofrimentos políticos sejam politicamente 
enfrentados, uma vez que são sofrimentos. Digamos melhor: enfrentá-los politicamente 
inclui também enfrentá-los psicologicamente. A cura da humilhação social pede 
remédio por dois lados. Exige a participação no governo do trabalho e da cidade. E 
exige um trabalho interior, uma espécie de digestão, um trabalho que não é apenas 
pensar e não é solitário: é pensar sentindo e em companhia de alguém que aceite 
pensarmos juntos. Isto tende para o que Hannah Arendt descreveu como o ato de julgar. 
O julgamento de uma experiência acontece no meio dos outros. Implica pensar 
pela própria cabeça e também conversar: o pensamento solitário tornando-se cada vez 
mais uma comunicação. Pensar pela própria cabeça é pensar nunca passivamente: 
inclinar-se para esta passividade é inclinar-se para o preconceito; e adotar passivamente 
a opinião dos outros é trocar preconceito por preconceito. A comunicação, outra coisa 
que não a troca de preconceitos, é pensamento que conversa com o pensamento dos 
outros: exige falar do meu lugar mas também imaginando-me no lugar dos outros. 
Pensar sem sair do lugar, o meu lugar ou o lugar de classe, é pensar por interesse e é 
julgar mal. Julgar é pensar desinteressadamente: o impulso disso só vem quando 
interpelo os outros e recebo a interpelação dos outros.9 
 
9
 A Vida do Espírito. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995, p. 369-382. 
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José Moura Gonçalves Filho 
 14 
As visões parecem desembaçar, porque vão passando por vários olhos que 
trocaram seus pontos de vista. Começo respondendo pelo que vejo e passo para o que 
vêem os outros. O mesmo mundo mas visões diversas do mesmo mundo.Vou rondando 
experiências minhas e experiências dos outros. São experiências todas difíceis de 
manjar: a gente começa só esboçando, tocando sem agarrar. Minha experiência não 
coincide com a experiência do outro. Tampouco a experiência que suponho, 
imaginando-me em lugar alheio, repete a experiência de quem está lá. O encontro e o 
desencontro do que dizemos e ouvimos, do que testemunhamos e do que imaginamos 
em nome dos outros, a conversa: isso leva para experiências compartilhadas e que 
fazem sentido, um sentido que parece então pegarmos com as duas mãos. 
Este trabalho interior, conjugando sentimento, pensamento e companhia, é 
trabalho que lembra o que Freud chamou elaboração psíquica, sobretudo quando a 
concebeu como um trabalho em presença de mais um outro humano. A este respeito, 
chamo atenção para o que descobriu e chamou transferência. 
A amargura vivida com alguém, aqui e agora, pode devolver para o que foi 
vivido antes e ficou sem digestão. Transferência. É quando sofremos demais. Um 
sofrimento que a situação atual admite e que, todavia, parece desproporcional, parece 
exagerado. Mas não há exagero nisso. É ofensivo e falso sugerir que o que amargamos 
ali não está ali. É igualmente falso sugerir que está perfeitamente ali. Está ali e está 
antes dali: comunica-se com um golpe atual e comunica-se com golpes atrás, os 
primeiros golpes, os golpes originários. 
O sofrimento transferencial é sofrimento sobrecarregado. É o sofrimento 
revivido e misturado ao que agora vivemos de novo. Não é sofrimento que está no 
presente e tampouco está no passado. Está no intervalo do passado e do presente, na 
mistura entre agora e antes. O tempo da transferência é o tempo em que realmente 
vivemos, é o tempo da vida humana. É ilusão localizarmo-nos perfeitamente no presente 
ou no passado. Vivemos numa tensão entre o passado e o presente que é como uma 
alavanca para o tempo seguinte, para o futuro, o futuro em que desejamos ver redimida 
nossa amargura. O futuro é o que continuamente antecipamos quando colaboramos e 
conversamos de igual para igual, digerindo amarguras com os outros. Transferência é o 
motor da elaboração psíquica. E o futuro é o destino da transferência. 
Quem melhor que os psicanalistas, desde Freud, para nos ensinarem como 
acompanhar e aproveitar transferências? Pena que raramente sejam encontrados em 
reuniões populares. Cidadãos das classes pobres felizmente não esperam por ninguém 
para começar a digestão de humilhações: dedicam-se a isto de maneira que muitas vezes 
A invisibilidade pública 
José Moura Gonçalves Filho 
 15 
faria gosto a um psicanalista. Psicólogos e psicanalistas que chegaram para colaborar e 
durar, desde que livres de mandonismo e tiques tecnocráticos, alguma cura trouxeram: 
melhor cura quando descobriam que eles mesmos eram ali curados pelos outros. 
Que se passa entre escritores e escritoras, dos muito antigos aos modernos, entre 
dramaturgos ou romancistas, filósofos ou cientistas, que se passa entre pintores ou 
cineastas, que tenham sido todos mordidos pelo enigma da desigualdade política? 
Mesmo onde a humilhação social não tenha sido expressamente nomeada, não sei de 
texto algum ou arte que não tenha contribuído para o assunto, contanto seja notável que 
ali um autor reagiu. A contribuição é mais do que evidente no caso de autores e autoras 
que se tenham deixado abalar e tenham lucidamente sentido a exigência de interrogar o 
assunto, especialmente quando não lhes interessou amortecer o impacto da dominação e 
tampouco compor argumentos para os soberbos. Ninguém esquece a obra abalada e que 
não deixou sem protesto ou ironia aaltivez dos vencedores e o servilismo dos vencidos. 
Quem se viu aproximado de gente humilhada, nunca terá impressões gerais: terá 
uma impressão concreta. E uma impressão concreta da humilhação nunca é 
simplesmente a impressão do golpe mas a impressão do golpe já engolido e mais ou 
menos digerido. É o golpe já mais ou menos interpretado e enfrentado. Não existe a 
humilhação, não como existem os humilhados. E não existem, rigorosamente falando, 
os humilhados: existem experiências de humilhação, curtidas em carne e espírito. 
Está além da nossa imaginação o que as frases do humilhado dão a sentir e a 
pensar. E se o ouvimos não em conversa rápida, se lhe passamos a palavra em situação 
que sua voz possa discorrer, possa dizer muitas coisas e não apenas o que presumimos 
ou suportamos ouvir, vem sempre uma lição, uma lição sobre a humilhação e a 
indicação de algum remédio. Quem deseje atinar com a dor de cidadãos rebaixados, 
precisa demorar-se entre eles, precisa repetir e prolongar as visitas, prolongar a prosa. 
Pode chegar à amizade que é como uma cura para a nossa ignorância e para nossa 
arrogância. 
* 
A humilhação age como golpe externo, um golpe público, mas que vai para 
dentro e segue agindo por dentro: um impulso invasor, desenfreado, uma angústia. A 
humilhação, este fato externo-interno, caracteriza assiduamente a psicologia do oprimido: 
afeto vertiginoso, estonteante, afeto sem nome. Como chamá-lo? Um susto? Medo? 
A invisibilidade pública 
José Moura Gonçalves Filho 
 16 
Pavor? Uma tristeza? Melancolia? Um ódio? Solidão? Isolamento? Vergonha? O 
sentimento de estar invisível? As expressões da angústia política podem variar: são 
lágrimas, a gagueira, o emudecimento, os olhos baixos ou que não param de piscar, o 
corpo endurecido, o corpo agitado, o protesto confuso, a ação violenta e até o crime. 
Certa vez, foi em Vila Joanisa, vi crianças pobres partindo em cima das bexigas 
de gás que surgiam no fim de uma encenação que lhes havia sido preparada. A peça: Os 
saltimbancos. No último ato, encarnando animais finalmente livres da domesticação, os 
atores abriam caixotes de jornal em que as bexigas estavam presas: o palco enchia-se de 
cores e movimento. Convidaram as crianças a entrarem no palco e participarem da ação. 
Nem meia palavra de convocação foi necessária. Se arrependimento matasse! As 
crianças despencaram no palco: chutavam e furavam os caixotes com sofreguidão, 
estouravam as bexigas, berravam, pisavam furiosamente por cima de quem fosse. Foi 
um Deus nos acuda! Houve ator e atriz pálidos, logo despidos de seus personagens; 
alguns ficaram exasperados: precisavam gritar e empurrar para livrar crianças menores 
debaixo de um bando de outras que sem parar caiam grandalhonas por cima das 
pequeninas. O espetáculo ficou sem conclusão, estragado, atores e público atônitos, 
crianças chorando. Violência? Sim. Mas sem explicação? 
Conversamos longamente e o mistério se foi desvendando. Vai faltar-me espaço 
para a descrição da conversa em que se engajaram elenco e platéia, depois de calmos 
nós todos. Admirei aqueles artistas que, a despeito do incidente, compreendiam e 
queriam compreender tudo. As crianças desculpavam-se pelo que sem querer haviam 
feito. Eram logo perdoadas, mas não dispensadas de pensarem o desastre. 
Resumo as conclusões. Uma mistura de excitação e privação havia arrastado 
meninos e meninas. Atacaram o que era belo e bom, sentido como belo e bom, mas 
também sentido como raro e inacessível. Quando imaginariam a fruição da coisa assim 
tão de perto? Aquele cenário encantado em que se havia tornado o altar de uma igreja 
do bairro, tudo pelo engenho e arte daquela gente talentosa que os veio visitar e 
presentear com espetáculo! Os artistas ali, a meio palmo, enriquecendo as alminhas 
desvalidas que nunca sonharam entrar em teatro! O enredo falava de subordinação dos 
bichos e emancipação: o público era de crianças que, sem compreender, já sofriam tudo 
isso tão bem! Foi demais: o convite à liberdade virou acesso descontrolado. 
O mais curioso: finda a conversa esclarecedora, celebrou-se o infortúnio que nos 
ajudou a melhor estimar as necessidades humanas! A violência dos oprimidos pode 
enganar: no mais das vezes é resposta desajeitada, mas inadiável, contra o que não se 
pode agüentar mais e em favor do irresistível anseio sempre frustrado. Contra-violência, 
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 17 
isto sim, é o nome certo dessas ações loucas que parecem apenas violência. E que se 
comutam em revelação quando há conversa. Muita coisa que, com o medo e a 
leviandade dos forasteiros refinados ou dos encastelados, facilmente apontamos como 
violência dos pobres, é na verdade o sinal de que são gente e gente aviltada. Deviam ser 
ouvidos. São só temidos e incriminados. 
Quando partiu de muito atrás e volta a disparar, a humilhação é flecha que acerta 
cedo e fundo a personalidade. Machuca o humilhado depois de já haver machucado seus 
ascendentes, sua família, seu grupo de raiz, sua classe, às vezes um povo inteiro. Nunca 
é meramente a dor de um indivíduo, porque a dor é nele a dor já dividida entre ele e 
seus irmãos de destino. 
E é dor que embota: dói antes que se possa atinar com o golpe, antes mesmo que 
possamos julgar o motivo da flechada e de onde partiu. O problema costuma preceder o 
seu reconhecimento mais consciente, ainda mais o reconhecimento de que a dor é dor 
política, é dor comungada pelos dominados. 
Em Psicanálise, o nome para afetos inomináveis é sempre o mesmo: angústia, o 
mais desqualificado dos afetos, moeda dos afetos traumáticos, tal como Jean 
Laplanche10 soube tão especialmente caracterizá-la. O mais abstrato e o mais humano 
dos afetos, a angústia representa a ressonância em nós de um enigma intersubjetivo, um 
enigma que veio dos outros e no meio dos outros. Veio um inexplicável olhar ou 
palavra, um indecifrável recado verbal ou não-verbal, alcançou o sujeito e invadiu, 
agora governando de dentro como fosse uma força física, uma pressão a todo vapor, 
uma energia desorientada, uma aflição em cadeia: um impulso cujo sentido perdido a 
pessoa sente não poder mais achar. Fica um ressentimento difícil de interpretar e digerir. 
Uma angústia, outra vez Jean Laplanche, tem seu ponto de partida em 
mensageiros humanos e ultrapassa a aptidão tradutiva dos seus destinatários – o 
destinatário sofre a mensagem sem poder traduzi-la. Há mais: freqüentemente as 
mensagens enigmáticas, que angustiam e confundem o destinatário, são enigmáticas 
para seus próprios mensageiros. É este o caso para a mensagem de desigualdade 
política, fulcro da humilhação social. Quem recebe o comando despótico e se põe a 
obedecer irrefletidamente, saberia dizer o que lhe põe tão automaticamente em 
subserviência? Quem comanda sobranceiramente os pobres, com brutalidade ou 
educadamente, saberia dizer o que lhe põe tão naturalmente na licença disso? Onde 
 
10
 Um livro em que o autor orienta sobre grande parte de sua obra: Novos Fundamentos para a 
Psicanálise [São Paulo: Martins Fontes, 1992]. Coleções de estudos amadurecidíssimos: La révolution 
copernicienne inachevée [Paris: Aubier, 1992] e Entre séduction et inspiration: l’homme [Paris: PUF, 
1999]. 
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 18 
começou todo este desequilíbrio político, onde foi que começou a imaginária 
superioridade destes senhores impunes e a imaginária inferioridade destes servos 
compulsivos? Quando foi que tudo isto tornou-se tão sólido? Como foi e por que foi? 
Quem estará preparado para perguntas tão urgentes, mas que estão entre as mais 
difíceis de responder? O fenômeno mesmo, a dominação, é dos mais difíceis de decifrar. 
A luta por cancelar a dominação passa por também pensar o seu fundamento. Mas 
haverá propriamenterazão na dominação? O fenômeno violento não é movido por 
desejos e interesses que nos levam sobretudo a insólitas “racionalizações”, afinal nunca 
sendo possível justificar o absurdo “direito” de violar direitos alheios? Não é 
considerável a margem de desrazão ou irracionalidade por trás da dominação? Não é 
apenas a liberdade, o direito de agir e falar, o que faz jus aos humanos? E não caberia 
apenas reconhecer e perscrutar nosso desejo de dominar pessoas mas para discutir e 
infirmar nossa licenciosidade? 
Não é sem cabimento e sem exemplo a situação em que, a despeito do desejo, a 
ninguém fosse consentido pôr-se acima ou abaixo de alguém. O desejo apareceria mas 
ficaria sem apoio social, ficaria sem fiadores. Não foi esse o caminho histórico 
prevalente. Em todo caso, desta vez não experiências populares mais ou menos bem 
sucedidas, evoquemos parcimoniosamente os estudos de um só antropólogo: Pierre 
Clastres11. Trazem o exemplo de situações assim: sociedades indígenas fundadas sobre a 
igualdade política. Não só. Pierre Clastres é insuperável na demonstração de que razões 
demográficas (o crescimento da população) ou mesmo econômicas (desigual obtenção 
de riquezas pelo trabalho) não conduzem imediata e necessariamente à dominação, 
senão em grupos politicamente já inclinados para isso. O começo de tudo é político e 
limita os efeitos do crescimento populacional ou da disparidade de riquezas. 
O que precisamente decide que contingências demográficas ou econômicas 
formem-se como desigualdade entre pessoas é a admissão prévia, já antes em curso, do 
 
11
 A Sociedade contra o Estado [São Paulo: Cosac & Naify, 2003] e Arqueologia da violência [São Paulo: 
Cosac & Naify, 2004]. Os textos de Pierre Clastres conheceram a recepção polêmica. A recusa deles, 
inclusive entre leitores de Marx, não faltou. Os contra-argumentos, começando fortes, muitas vezes só 
puderam perfazer-se sobre a acusação de que o autor fosse pueril (injusto e baixo argumento), 
simpatizante do igualitarismo totalitário (falso argumento e que o próprio Clastres cuidou de retrucar) ou, 
mais seriamente, metafísico (argumento talvez incompleto, senão outra vez injusto quando o crítico 
apressa-se em decidir que as idéias avançaram sobre os fatos, terminando por dispensá-los). Penso que 
um caso de recusa séria encontra-se em José Arthur Giannotti [Trabalho e Reflexão – Ensaios para uma 
dialética da sociabilidade. São Paulo: Brasiliense, 1983, capítulo III]. O leitor habituado à suspeita não 
deveria contudo furtar-se ao exame amigo e também sério: considere a apresentação concisa e densa de 
Pierre Clastres por Bento Prado Júnior [“Prefácio”. In: Clastres, P. Arqueologia da violência, op. cit., pp. 
7-12] e considere a crítica (sem recusa) de Claude Lefort [“Dialogando com Pierre Clastres”. In: Desafios 
da Escrita Política. São Paulo: Discurso Editorial, 1999]. 
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 19 
mando de alguns sobre outros. Caso contrário, para a população muito numerosa, fica 
decidido que seja reorganizada em populações menores, compatíveis com governo 
praticado por todos e por cada um. O grande número não leva inelutavelmente uma 
comunidade igualitária a descaracterizar-se: vai preferir pequenos reagrupamentos em 
lugar de entregar-se ao governo geral de um monarca ou de uma oligarquia. E quando 
trabalhadores, embora dependendo uns dos outros, obtiveram bens desigualmente? Em 
sociedades que afirmam a igualdade, são lembrados que ninguém enriquece sozinho: a 
riqueza excedente assume valor social mais que individual, não se torna ocasião 
especial para acumulação privada, sobretudo não se torna pretexto para o surgimento de 
senhores ricos, dispensados de trabalhar e em condições de aliciar o servilismo dos 
pobres. Para quem, enriquecido, não possa dispor de trabalhadores sob seu controle, não 
possa safar-se de seguir trabalhando, porque ninguém pode controlar ninguém e livrar-
se de colaborar, os lucros ficam sem outra valia senão serem repartidos. 
É certo que uma solução para a sociedade burguesa e que a altere noutra, uma 
sociedade igualitária, não se faz por espelhamento em civilizações que, como as 
consideradas por Pierre Clastres, não se formaram no grau de multiplicações que é o 
nosso: a multiplicação de antagonismos públicos, polarizados pelo antagonismo entre 
duas classes (patrões e assalariados); multiplicação do trabalho, sua infindável 
especialização e sua inédita fragmentação; multiplicação dos rendimentos do trabalho 
industrial e das necessidades que veio ao mesmo tempo produzir e atender 
desigualmente; multiplicação da tecnologia, acompanhada e permitida pela 
multiplicação da inteligência puramente matemática e do cálculo, ambos finalmente 
aplicados sobre quase todos os setores da vida social; a multiplicação das relações de 
mercado e da burocracia, dando em sociedade de consumidores anônimos e inclusive 
em indústria de cultura; a multiplicação das relações pecuniárias e por interesse. 
As sociedades examinadas por Pierre Clastres (sequer incluindo nações 
indígenas que conviveram com alguma forma de escravidão, por exemplo Maias, Incas 
e Astecas) não são espelho nosso e nem talvez de nosso futuro. Aliviam nossa 
imaginação estrangulada: a vida do outro, se não pode valer como modelo, traz idéias de 
vivermos nossa vida diferentemente. Qualquer que seja a distância entre nós e eles, o 
que mais importa é que aqueles índios, melhor do que nós, parecem manter sensível um 
fato, uma tese prática que nos concerne a todos: a igualdade ou a dominação, quando 
vingaram, cumpriram desejos. Desejos que, associados e coletivamente abonados, 
transformam-se em impulsos políticos. Somos, então, devolvidos ao desafio profundo: 
desejamos afirmar politicamente a igualdade ou seguir reafirmando a desigualdade? 
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 20 
Igualdade não é categoria sobretudo econômica ou cultural: é categoria política. 
Verdade que, em seu elemento, disparidades econômicas tendem a cair. E o encontro de 
culturas tende a uma troca de influências e não ao prestígio unilateral.12-13 Igualdade não 
é identidade ou equação, eu e o outro juntos como eu e o retrato de mim. Não a 
supressão de diferenças, igualdade implica certamente a supressão da dominação. Conta 
quando reunimo-nos no igual direito de agir e falar, no direito de governar cidade e 
trabalho, ninguém no direito de governar alguém.14 
Os iguais são os diversos que se reúnem para a participação, para trocar pontos 
de vista e iniciativas. Fora da igualdade, rosto e voz ficam sem onde espraiar-se. 
Igualdade é aparição de vários rostos e diversas vozes. Inversamente, gente singular só 
aparece onde, de igual para igual, cada um vê e é visto, fala e ouve. Igualdade e 
pluralidade exigem-se mutuamente. 
A pessoa pede casa, um abrigo contra intrusões ou contra devassa, pede família 
ou um grupo íntimo. Sua singularidade vibra entre amigos chegados, afeiçoa-se ao 
quarto e ao silêncio, precisa de um recolhimento de onde tira sua profundidade. Mas a 
pessoa quer também o mundo, quer marcar por um estilo próprio o jeito de trabalhar e 
de ser cidadão. No trabalho e na cidade, por sua vez, a personalidade pode assumir uma 
 
12
 Ecléa Bosi [“Cultura e desenraizamento”, op. cit., p.16]: 
Quando duas culturas se defrontam, não como predador e presa, mas como diferentes formas de 
existir, uma é para a outra como uma revelação. Mas essa experiência raramente acontece fora dos 
pólos submissão-domínio. A cultura dominada perde os meios materiais de expressar sua 
originalidade. 
13
 Simone Weil [A condição operária e outros estudos sobre a opressão. Bosi, E. (org.) Rio: Paz e Terra, 
1996, pp. 411-412]: 
O ser humano tem uma raiz por sua participação real,ativa e natural na existência de uma 
coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro. (...) 
As trocas de influências entre meios muito diferentes não são menos indispensáveis que o enraizamento 
no ambiente natural. Mas um determinado meio deve receber uma influência exterior não como uma 
importação, mas como um estimulante que tome sua própria vida mais intensa. As importações 
exteriores só devem alimentar depois de serem digeridas. E os indivíduos que formam o meio, só 
através dele as devem receber. Quando um pintor de real valor vai a um museu, confirma sua 
originalidade. Deve acontecer o mesmo com as várias populações do globo terrestre e os diferentes 
meios sociais. 
Há desenraizamento todas as vezes em que há conquista militar, e , nesse sentido, a conquista é quase 
sempre um mal. O desenraizamento é mínimo quando os conquistadores são imigrantes que se 
instalam no país conquistado, se misturam à população e se radicam a si próprios. (...) Mas quando o 
conquistador permanece estranho ao território de que se apoderou, o desenraizamento é uma doença 
quase mortal para as populações submetidas. (...) 
Mesmo sem conquista militar, o poder do dinheiro e a dominação econômica podem impor uma 
influência estrangeira a ponto de provocar a doença do desenraizamento. 
(...) O dinheiro destrói as raízes por onde vai penetrando, substituindo todos os motivos pelo desejo de 
ganhar. Vence sem dificuldade os outros motivos porque pede um esforço de atenção muito menor. 
Nada mais claro e simples que uma cifra. 
14
 Arendt, H. A condição humana. Rio: Forense Universitária, 1993. 
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perceptibilidade e uma realidade que não vêm no isolamento caseiro. A área pública, 
onde circulem os direitos de falar e ser visto e os deveres de ouvir e ver, é região de 
aparição que devolve a pessoa mais inteira e nítida para sua própria casa.15 
Pesam sobre as classes pobres, em nossa sociedade, o trabalho simplificado e o 
trabalho simples. Admitimos uma organização do trabalho complexo que isolou, num 
extremo, o comando puro; noutro, a mais pura subordinação. Entre os extremos, 
combinações que não vencem a dissociação principal entre chefes e operários. 
Atividades complexas são fragmentadas em atividades demais elementares e 
desqualificadas, exigindo pouca ou nenhuma instrução técnica ou escolar. E quanto ao 
trabalho simples (varrer, lavar, embalar lixo, fazer camas), aquelas tarefas 
indispensáveis mas necessariamente muito simples? Ao invés de as assumirmos todos, 
tornou-se hábito nosso reservá-las também aos pobres. 
Numa sociedade livre, devemos apenas admitir trabalhos complexos. Nossa 
imaginação política precisaria avivar-se. A divisão social do trabalho não apoiaria a 
fratura do trabalho complexo. Por sua vez, tarefas irremediavelmente simples, estas 
deviam ser socialmente generalizadas, um dever de todos e de cada um, a não ser 
quando tivessem sido integradas a uma rede de operações e ações enriquecedoras. Ouvi 
falar de uma cooperativa de reciclagem em São Paulo: os que recolhem lixos e limpam 
o galpão são os que, por meio de cursos e assessoria de técnicos, também conhecem 
aspectos físico-químicos e ecológicos das operações de reciclagem, tomam parte nestas 
operações, são donos do negócio, quase tudo é julgado e deliberado em reuniões. 
* 
Uma experiência e uma obra foi que me valeram decisivamente a consideração 
do problema político e psicológico: humilhação social. A experiência: trabalho e 
convivência com jovens e adultos da periferia sul de São Paulo e que assumiram a tarefa 
dos Centros de Juventude na Vila Joanisa. Eram três pequenos grupos de joanisenses 
ligados a comunidades cristãs populares, sobretudo mulheres que se haviam decidido 
pelo cuidado às crianças do bairro. A obra: textos de Simone Weil apresentados aos 
 
15
 Neste parágrafo, resumo demais. O leitor exigente considere Hannah Arendt, A condição Humana, op. 
cit., especialmente os capítulos II e V. 
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brasileiros por Ecléa Bosi e em que a humilhação é sondada como o mais radical dos 
sofrimentos proletários.16 
Limito-me a recordar pontos que abordei acima ou que desfiei melhor noutras 
ocasiões. Aconteceu de Fernando ligar seu trabalho a vários deles. Em particular, o 
ponto que se lhe tornou central e que desdobrou, agarrando-o como se agarra um touro 
em rodeio: a invisibilidade pública. De alguns deles, outros trataram melhor do que nós. 
Humilhação pega por muito lados: quando queremos determinar o problema, 
inevitável que precisemos acertá-lo também por muitos lados. Varia a noção de 
humilhação, dependendo dos autores que o psicólogo social vai retomar. E a teoria 
precisa ser sempre balizada pela palavra de depoentes que respondem em primeira 
pessoa pelo sofrimento. 
Das relações com depoentes e com a filosofia política (especialmente com o 
pensamento de Hannah Arendt), é possível propor a humilhação como um fenômeno 
público que acarreta impedimento da ação e da palavra. Ação e palavra superam o 
âmbito da força, das interações mecânicas ou bem adaptadas e fundam cidadania, a 
reunião plural e igualitária: situação que põe o cidadão além de sua casa e orienta para a 
cidade, para outros cidadãos, fazendo superar a idiotia, a concentração em interesses 
privados. 
O fato de que um homem agiu significa que instaurou o inesperado. Abriu um 
caminho novo. Começou o que ninguém entrevia de coisa alguma que tivesse ocorrido 
antes. Uma ação salva de existir no que nos foi impingido. Toda iniciativa sai de certas 
condições, foi preparada. Mas as condições e a preparação, que influíram numa 
iniciativa, não dariam por si mesmas em iniciativa sem um iniciador que tirasse proveito 
delas. Quem age, mostra sua originalidade e chama atenção: a ação revela um sujeito.17 
Quem age, precisa falar. Precisa frisar que a ação faz diferença. Diz Hannah 
Arendt: sem o discurso, a ação ficaria sem o ator; o agente do ato só aparece quando é, 
ao mesmo tempo, o autor de palavras. Quem põe, propõe, anuncia uma pretensão. As 
palavras acompanham a ação ou as ações são, elas mesmas, palavras. O que ninguém 
viveu tem frequentemente seu primeiro lugar em palavras. A utopia, foi o que ouvi de 
Ricardo Rizzo, começa como linguagem. 
Agir é iniciar e, finalmente, é realizar, perfazer, acabar, constituir um poder.18 O 
iniciador, para realizações, depende de outros iniciadores. O poder de uma iniciativa 
 
16
 Weil, S. Op. cit. 
17
 Arendt, H. Op. cit., pp. 188-193. 
18
 Arendt, H. Op. cit., pp. 211-219. 
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depende de adesão. Uma ação começa em alguém mas só se completa com os outros. E 
outra vez as palavras: a adesão dos outros, a organização de um poder é o que, na 
comunidade igualitária, buscamos por meio de argumentação, nunca de modo violento. 
Ficar fora de agir e falar: exclusão política. Todo cuidado é pouco quando 
dizemos “os excluídos” para nos referirmos aos dominados. Os excluídos da ação e da 
palavra foram retirados de um âmbito de experiência do qual também se retiraram os 
dominadores. Se é verdade que o servo não fala, não é verdade que fala o seu senhor: 
este também não fala, dá ordens em voz neutra ou estridente. Se não agiu o servo, não 
agiu também o seu senhor mas forçou; no limite, empurrou: foi coerção, não foi ação. 
Alguém não está no círculo dos que se olham e conversam: humilhação. Ocorre 
que o soberbo está também fora disso. Alguém compõe grupo ou uma classe inteira que 
ficou fora: humilhação social. Ocorre que os senhores compõem grupos ou classe em 
que também não se encontram propriamente como cidadãos:são sócios ou comparsas, 
vivem uns temendo os outros, não são amigos, era o que já nos queria alertar Etienne de 
La Boétie19. 
A inimizade entre humanos depende, para sua elaboração e cancelamento, da 
amizade entre humanos: o remédio para a pancada política é também político. E é entre 
os “excluídos” ou perto deles que mais são vislumbradas as fórmulas do remédio: os 
que sofrem são várias vezes mais lúcidos do que os que sofrem sem saber que sofrem. 
O rebaixamento político é fato sinistro, feito de pontos cegos: há sempre nele 
uma margem de ignorância por mais que procuremos justificá-lo. Já insistimos nisso. 
Ninguém chega a entender perfeitamente, alguns fingem que o fato é razoável: quem 
precisa negar o mal, para ficar tranqüilo nos seus favores, não pode deixar de trabalhar 
mentalmente, sem esmorecer. Precisa despistar, saltar a coisa ou continuamente repetir 
idéias que querem distorcer o mal em bem, quando seria mais simples ou saudável a 
decisão de não mais compactuar com a desigualdade. 
Das relações com depoentes e com pesquisadores da sociedade burguesa (penso 
especialmente em Marx e nos que não o ignoraram), é possível propor a humilhação 
hoje vinculada à formação do trabalho assalariado, mais precisamente, vinculada à 
forma baixa do trabalho assalariado, o trabalho alienado, desqualificado. O mundo que 
não hesita reduzir trabalhadores à condição de operários é já um mundo ancestralmente 
habituado à desigualdade; o senhor e o servo precedem o patrão e o operário. Houve 
refiguração moderno-industrial da servidão, muitas vezes logrando acobertá-la. 
 
19
 Discurso da servidão voluntária. São Paulo: Brasiliense, 1982. 
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A desigualdade corresponde a um fato histórico-político mais velho que o 
capitalismo e nele renovado. Fomos precedidos por sociedades que admitiram soluções 
pela monarquia, pela oligarquia, pelo escravismo, pela servidão. O poder ficou 
confundido com a força de alguns, a força de comandar e coagir, a força que se tornou 
força econômica e força armada. Nas sociedades de trabalho assalariado, revigorou-se 
como força de contratar ou demitir. Pessoas que socialmente caminharam para o 
governo de outras pessoas e nisso encontraram segurança, renda e prestígio instituídos: 
eis os superiores de sempre. Na sociedade capitalista, eis os patrões e os gerentes. 
Das relações com depoentes e com a psicanálise (penso especialmente em Jean 
Laplanche), é possível propor a humilhação como uma modalidade de angústia 
vinculada ao impacto das mensagens públicas de rebaixamento. Estas mensagens, como 
toda mensagem enigmática, inscrevem-se no rebaixado como fonte de processos 
primários (aqueles processos que Freud ensinou acompanhar por transferência; e que 
desvendou como deslocamento e condensação de lembranças, imagens ou palavras, 
cedo inquietando e intrigando já as crianças). 
Se pensamos em Simone Weil, propomos a humilhação como efeito de 
desenraizamento: impedimento político da cultura de nascimento, da participação e das 
trocas culturais. 
Se lembramos os estudos de Marcel Mauss sobre o dom, tal como interpretados 
por Claude Lefort, podemos retomar a idéia de que os humanos confirmam sua 
humanidade quando incluídos em comunidades onde há troca de dons. Humilhação, 
nesta perspectiva, designa o estado de quem perdeu a percepção social de si próprio 
como de um doador. Humilhado é quem tende a não ser percebido como possuidor de 
bens e capacidades a ofertar. Não é tanto quem necessita algo quanto quem necessita 
dar algo, dar-se a si mesmo: no entanto, foi publicamente congelado na figura do 
carente, alguém de quem cabe nos ocuparmos e que estaria impedido, ele próprio, de 
ocupar-se de alguém. O carente é visado como quem em tudo depende de nós, nestas 
horas reiteradas em que alienamos nossa própria carência e ignoramos o que recebemos 
dele. O subalterno é detido na figura de quem depende do seu superior que, por sua vez, 
fica entretido na ilusão de não depender de nada e ninguém. 
Se pensamos em Emmanuel Lévinas, pensamos o humilhado como quem, em 
companhia de outrem, experimentou um bloqueio do rosto. Perdeu altura humana, ficou 
invisível. Ficou bizarramente conhecido por quem nele fixou os olhos como na máscara 
de um indivíduo abaixo. 
Simone Weil observava que há um poder que é imanente à chegada de alguém: 
A invisibilidade pública 
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 25 
poder que acompanha uma pessoa e que só é suficientemente sentido por outras pessoas. 
Um poder que, no humilhado, fica drasticamente diminuído, senão desfeito. Na rua, a 
passagem por um poste não é por ninguém sentida do mesmo modo que a passagem por 
alguém. No quarto, não estou na mesma situação sozinho e quando alguém está comigo. 
Há algo que torna alguém, mesmo sem pretender, capaz de influir sobre outros 
humanos, sobre a percepção, sentimento e movimento dos outros. 
A companhia de alguém é sentida como uma influência capaz de transpor a já 
preciosa companhia de coisas, plantas ou bichos. Há certas experiências que não 
chegamos a alcançar senão em companhia de gente. Antropólogos, psicanalistas ou 
psicólogos sociais não cansam de frisar certas experiências para as quais nascemos mais 
ou menos preparados mas que, fora da companhia dos outros, fora sobretudo de uma 
comunidade com outros humanos, não germinam. São experiências às vezes notáveis 
entre os diversos seres vivos, mas que nas comunidades humanas assumem um impulso 
incomparável. Limitemo-nos a mencionar algumas poucas. Brincar e rir. Apreciar a 
aparência das coisas, zelar por certas coisas não porque sejam necessárias ou úteis mas 
porque são bonitas. Trabalhar não apenas como quem obtém alimentos ou utensílios 
mas também como quem faz cultura. Agir e falar. A cidadania. A percepção singular, a 
percepção de pessoa não a percepção de um tipo ou exemplar da espécie. 
Os humanos vivem de receber influências assim e vivem de assim influenciar 
outros humanos. Justamente, esse poder é o que fica como que interrompido, diminuído 
ou desmanchado para alguém que, ali, conta como alguém em situação social e crônica 
de inferioridade. Nas situações compulsórias de comando e subordinação, a influência 
de alguém, que só é suficientemente sentida por outro alguém, pode deixar de ser 
sentida. 
A invisibilidade compõe não tanto os sofrimentos gerais, sofrimentos de todos 
nós, quanto aqueles que estão no centro da alma operária. Não deveríamos 
simplesmente vinculá-los aos males gerais de uma sociedade de massas, em que todo 
rosto é amortecido e vira máscara indiferente. Não haveria aí também, no núcleo de 
tudo, um conflito propriamente político, um conflito de classes? A sociedade de massas 
não é, afinal, a filha exagerada da sociedade de patrões e operários? Não é a sociedade 
em que condições e conflitos que se aprofundaram na fábrica burguesa, desde então 
assumiram também a cidade toda? Somos disso persuadidos neste livro. 
* 
A invisibilidade pública 
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 26 
Não são poucos os que ativamente enfrentaram charadas e punhaladas da 
humilhação social: cidadãos das classes populares, artistas, religiosos, professores, 
servidores públicos, assistentes sociais, antropólogos, gente de profissão ou militância 
variada. Começando por quem começar, observo que a iniciativa por destacar o 
problema acaba encontrando amizade e colaboração de estudantes e de pesquisadores 
debutantes. São moças e moços. Entre eles conta este que lhes vai escrever adiante: 
Fernando Braga da Costa. 
Que poderia dizer a respeito desses jovens? Outra vez: não são poucos. Nem 
muitíssimos. O que parece movê-los é a alegria. Jovens nem sempre são os jovens: a 
sociedade de classes opera cedo a sua disciplina, a segregação, a indiferença e o silêncioentre ricos e pobres, entre superiores e inferiores, torna logo tristes e sisudos os jovens. 
Um pedido de definição para juventude, palavra gasta e muito banalizada, 
ousaria atendê-lo com Emmanuel Lévinas: diria que é seguir vulnerável aos outros e no 
gosto de conversar com eles. A juventude chega a um extremo da alegria quando 
seguimos vulneráveis à passagem de gente que, na cidade, habituamo-nos a não mais 
sentir passar. Mário de Andrade: “E então parar e puxar conversa com gente chamada 
baixa e ignorante! (...) Fique sabendo duma coisa, se não sabe ainda: é com essa gente 
que se aprende a sentir e não com a inteligência e a erudição livresca.”20 
As conversas, quando vêm, voltam e tornam a voltar, esticando a troca de 
opiniões, não são coisa anódina: vencem a comunicação protocolar, alteram os 
interlocutores e seu sentimento do mundo, alargam descobertas da cidade, podem 
inspirar afeição e até ações cívicas. Podem instaurar uma forma de amizade que Hannah 
Arendt asseverou como a mais importante das virtudes políticas: amizade que não 
depende de intimidade (embora possa prepará-la) e é mais que respeito a opiniões 
alheias. Amizade que, íntima ou não, faz reconhecer que um ponto-de-vista tornou-se 
tanto mais verdadeiro quanto mais provou pontos-de-vista que não são o meu. 
A pensadora alemã chega a consagrar o entendimento político da verdade: 
verdade como resultado crescente e nunca terminado do diálogo entre cidadãos. É como 
terra de que juntos nos aproximamos sem nunca colonizar derradeiramente. A verdade 
imanta acordos ou desacordos entre as primeiras opiniões cruzadas. Conduz, sem parar, 
a um ponto cada vez maior e mais complexo, porque alcança, reúne e supera pontos de 
vista particulares. 
 
20
 Carlos e Mário – correspondência completa entre Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade. 
Rio: Bem-te-vi, 2002, Carta 2, p. 48. 
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A conversa abre portas para um lugar de pensar que ninguém ocupava antes de 
conversar; lugar em que não ingressamos no isolamento e que pede desprendimento do 
lugar familiar. A passagem para o lugar de pensar pede deslocamento: na sociedade de 
classes, para os que por nascimento caíram do lado dominante, a comunicação com 
cidadãos das classes populares pede muitos deslocamentos, pede várias vezes o 
deslocamento para bem longe de casa. Pede deslocamentos que dão em descolamento, 
descolamento de classe, e culminam num outro ponto de vista: literalmente, culminam 
num outro ponto no mundo de onde nossa visão vai ver o que não via antes. 
Olhar a opressão perto dos oprimidos, perto o bastante para estimar o que se vê 
do lugar deles. Estimar o que os outros vêem nunca será coincidir com os olhos deles. A 
compreensão mais segura vai sempre depender de ouvi-los. Não pede adesão irrefletida 
às opiniões do oprimido, mas alguma passagem para o lugar onde forma suas opiniões. 
Desde então, pede dali formar minhas opiniões, dali desse lugar que não é o meu, não é 
o lugar do outro, mas um lugar intermediário, feito de quem saiu do seu e foi sentar-se 
em lugar estranho, ao lado de um nativo. Sentar ao lado traz conversa entre cidadãos e o 
gosto pela opinião dos outros. E o fim de conversa é começo de outras. Nem sempre os 
nativos, para falar, precisam que nos sentemos ao lado deles: mas nós, para ouvi-los, 
precisamos sempre.

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