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.- - : " ,'\ , OS PRINCIPIOS FILOSOFICOS DO DIREITO POLITICO MODERNO Simone Goyard-Fabre Traduciio IRENE A. r A TERNOT Prof. Dr. Marrero Madel Ramos Faculdade di! Direito Universidade F~e(aJ!fe Minas Gerais Martins Fontes sao Paulo 2002 54 OS PRINe/PIOS FILOSOFJCOS DO DJREITO fil6sofos e iroprimindo significativamente sua marca na mo- dernidade jurldico-politica, explicam a centraiiza{:oo do Poder 110 Estado moderno. Depois, nurn segundo capitulo, nos nos deteremos na questao da soberania eSlatai que, "essencia" ou "fonna" do Poder do Estado modemo, ao qual confere Slla in- dependencia e sua onicompett!ncia, continua, ate hoje, no cen- tro da reflexiio filos6fica sobre 0 dircito politico. Capitulo I A centralizafQO do Poder e 0 principio de unidade do Estado moderno A n09aO de Poder politico foi geralmente, na hist6ria, liga- da a id6ia do comando ditado por aquele ou aqueles que detem a autoridade: "Oma multid50 sem chefe nada pode fazer; e nao se devem fazer ameat;as antes de se apoderar da autoridade", es- creveu Maquiavel com impressionantc sintcse 1. Essa concep- ~ao , que assimila 0 Poder politico a uma libido dorninandi, cer- tamente tern 0 privilegio da perenidade, mas tern tambem 0 defeito da equivocidadc. De fato, se esul claro que ela poe a politica de todos os tempos sob 0 signo da dominat;ao - 0 ato de dominar e 0 fato de ser dominado -, ater-se a imagem da "Cidade do comando" e deixar de lade a pluratidade das mani- festac;oes da autoridade dominante que, 16gica e cronologica- mente, assumiralO formas tao diversificadas que dao a realida- de do direito pol[tico significados totalmente heterogeneos. A fim de chegar a compreensao do poder nas sociedades modcmas, convem, por conseguinte, delimitar, entre os inumeravcis fatos de domina«ao ou de cOTTIando, os principios especificos pelos quais os fil6sotos buscaram esclarecer a natureza da autotida- de exercida pelo Poder no Estado. Aparentemente, cssa pesquisa e banal. Muitos autores, mes- mo antigos, a fizeram e a consideraram mesmo essenciaL Li- mitemo-nos aqui a dojs exemplos. Arist6teles, ern A politica, distinguia 0 poder que e exercido na Cidadc daquele que e exer- cido na sociedade domestica: 0 politico nao comanda nem exer- I. Maquiavel, DiscDur.! su)' la premiere decade de Tile-Live, I, XLIV, P\t:iadc, p. 476. OS PRINCiPIOS FILOSOF1COS DO DJRElTO . , sua Jutoridade a maneira de urn chefe de familia ou de urn palriio; seu poder consiste em administrar a justi.;a c, apoiando- se num conjunto de leis, em dar a cad a wn 0 que lhe cabe . Com base nisso, 0 Estagirita, mesmo quando se detinha no exame das "Constitui<;oes" do mundo antigo, sempre atribuia ao po- der politico uma finalidade etiea. Em segundo lugar, rccorde- mos a distin<;ao estabelecida por Santo Agostinho entre a auto- ridade de que se prevalece 0 chefe de uma quadri/ha de bandi- dos e a autoridade politica do chcfe de uma Cidade2; claro, um chefe de bandidos nem sempre recorre a violencia, mas imp6e a obediencia por sua ascendencia, seja ela [ofya, competencia ou carisma; ja a autoridade do chcfe politico e, sem duvida algwna, "a faculdade de carrear 0 consenti.mento aJhcio"3, porem o importante e que obtenha esse consentimento em nome de sua legitimidade, seja e/a teol6gica, tradicionalista ou juridica. Essas observay6cs sao bem conhecidas . Mas e preciso no- tar que, embora ja permitissem a Arist6teles ou a Santo Agos- tinho sublinhar que a autoridade do Poder na Cidade politica e irredutivcl as relay6es de influeucia exercidas por um indivi- duo sobre outros individuos a fim de obter sua obediencia - 0 que os psie610gos anglo-saxoes de hoje denominam, com urn termo intraduzivel no frances, leadership - , e1as nao indicavam em que consiste a especificidade da autorirulde politica . Dada essa carencia, 0 conccilo de Poder permaneceu durante muito tempo cere ado de um halo de incerteza e de ambigiiidade. Em compensayiio, com a filosofia modema, a imprecisao que vela- va a ideia do Poder se dissipou gradualmentc gra<;as a uma pro- blematizacao e a uma investigayao novas: em vez de considerar a autoridade do Poder no Estado atravcs da relayao de coman- do com a obedicncia, isto e, ua relayao interpessoal entre os governantes c os governados, a indaga<;ao incidiu sobre os prin- 2. Santo AgoSlinho, A Cidadf' de D e.lls, IV, 4. A respcito dessc tema, ver A. Sc11iitz, Suint AuguslJn, l'Etat ct la bande de brigands, Droi ls, 1993, nO 16, pp. 71·82. AssJnaiemos que Aristoteles, em A politic" , ut ilizava IglialOlCJlle a IInagem da quadrilha dc ladr6es e de malfcitores. IV, 4; VI!, 2. 3. Bertrand de Jouvcnc!, De la souverai/l"' fI?, Librairie de Medicls, 1955, p. 3') . PRlMEIRA PARTE 57 cipios imanentes que pennitiram sua emergencia, determina- ram sua natureza e regeram sua realiza<;ao. De Maquiavel a Kelsen, as analises convergem para mostrar que, na csfera do Estado, 0 Poder nao po de confundir-se, a nao ser desnaturan- do-se, com 0 falo de poderes interpessoais. Ele e, no Estado, um fen~men~ juridico de organizayiio e de regula~iio que se c.aractenza, Ja em sua emergcncia, por sua capacidade norma- tlva . Como tal , ele se coloca sob 0 signo do humanismo juddi- co e encama principios ao mesmo tempo fundamentai s e fun- dadores que sao indispeosaveis ao direito politico modemo. . Dir-se-a, cerlamente com razao, que a capacidade norma- t(va do Poder politico nao era ignorada pelos romanos. Alias, e ? qu~ atesta ampJamente a obra de Cicero. A Res publica, que Imphca urn consensus juriJ', e em sua essencia, assinalava Ci- cero, intimamente Jigada ao direito; e mesmo inconcebivel fora do estabelecimento das leis, 0 qual e sua maJca distintiva: lex es~ Civili:s ~~~cierat~s vil1cufum4. Contudo, quando, em De Repu- Mea, Ciplao ex.pl!ca em que consiste, na Republica 0 cansen- susjuris5, ele se refere tanto a urn horizonte moral c~mo a uma perspectivajuridica. Porque pensa, a exemplo dos cstoicos, que "0 muudo e a patria comum dos homens e dos deuses"6 a ideia do direito remete, segundo cle, it ideia, universal de Justi ca7. E/a . encon~a seu fundamento na natureza8 que, precisarnente, define a Ie] natural. Esta, entendida como a lei de ordem eter- na e imutivel, que Dells colocou no mund09, "quer qu'e nos aproxlmemos dos deuses com a alma pura" lD. Do mesmo mo- 4. Cicero, De Republica, § xx.,XH. S. /bid., ~ XXv. 6. Cicero, De legibus, 1, § XXIII ; Dc jinibl/S, ill, XIX. 64 . 7 Cicero, De /cg ibl/s. 1, § VI. . 8. Ibid. I, § X. A itleia oao e original de Cicero, que adola (cf. Dejilli-bu:, V, X:xm , 66) a concepyao aristotd iea de C!vepu:mo~ (PU6El lfo/...mXov ~(j)ov c nao heSHa emcomparar a sociabilidade bwnaoa a condula gregana das_ahclhas. (De UffiCIIS, I, XCIV, 157). Isso. alias, nao expritne olllra coisa seoao a oOlpresenc;a de Deus 00 mundo. 9. Cicero, De legibus, I, § VI. 10. Ibid .. ll, § X. 58 OS PRlNC/PIOS FILQS6FlCOS DO DlREITD do, quando cousidera, como os jurisconsultos da Roma antiga, que nao ha Republica sem urn poder supremo (summa potes- tos) 1 I, do qual emanam as leis da comunidade e do qual depen- de a forma (status) da Cidade l2, Cicero nao dissocia a capaci- dade normativa ou reguladora do Poder na Republica do pano de fundo metajuridico, marcado ao mesmo tempo por natura- lismo e por teologismo, no qual se insere. E por essa razao que esse Poder da Republica, pertenc;:a ele ao principe ou ao povo, esta, como tal, acima das leis por ele estabelecidas: ele e, como diz 0 Digesto, solutus fegibus 13 • Quanto ao status reipublicae determinado pelo Poder, ele repousa na c1arissima distinyBo enunciada pelo Digesto entre 0 que e "publico" e 0 que e "pri- vado": Publicum jus est quod ad statum rei Romanoe spectat, privatum quod ad singulorum ulililatem14 . Ele so se compreen-de, ademais, dentro de uma perspectiva teleol6gica na qual a lei natural e divina se revela como 0 imperativo de ordem que se imp6e a «urn povo organizado". A capacidade norrnativa do Poder e portanto muito real, segundo Cicero, na Republica. Mas esta sempre subordinada a transcendencia da lei natural que atribui aos magistrados detentores da potencia publica 0 encargo, ou, com mais exatidao, a missiio de realizar da meUlor maneira possivel 0 direito imutavel e eternq do qual ela e 0 garante divino . No direito publico moderno, a capacidade norrnativa do Poder e concebida em outras bases: 0 hurnanismo juridico trans- fonna tao amplamente os horizontes teologico-metafisicos do pensamento dos chi.ssicos romanos, geralmente seguidos pelos autores medievais, que chega a suplantil-los. Desde 0 seculo XVI o humanismo juridico l5 firmou-se com varia<;5es, certamente II. Cicero, De Republica, I. & XXXI. 12. Essa posi.;ao e, alias, <las rna;s cJassicas entre os jurisconsultos ro- manos. Cf. Papin iano: Lex est ... communis reip/lblicae sponsio, DigeSlo, L3.1 , e Caio: Lex est quod populusjubel alque conslifuil, Ins/ilutos, 1.2.27. 13. Diges/a, 1.3.J L 14 . Ibid., l.l.l. 15. Segundo Michel Villey, 0 "humanismo juridico modemo" se define como "a tendencia a colocar 0 homern no principio e no fun de tudo". Seize PRlMElRA PARTE 59 diferentes, mas cada vez mais densas. Reteremos aqui tres mo- mentos importantes na concep<;1io da prodw;ao das nonnas ju- ridicas pelo Poder do Estado, tres momentos em cujo decorrer se firmaram as principios filosOficos que formam, desde enta~, a pedra angular do direito politico moderno. Marcada num primeiro momenta pelo rcalismo pragmati- co de Maquiavel, a capacidade nonnativa do Poder, expressao do principio de ordem publica, tornou-se, num segundo mo- mento, inseparavel, no sistema filosOfico-politico de Hobbes, de um raci.onalismo calculista destinado a caracterizar 0 Esta- do-Leviata pela imanencia de um principio de autoridade. Por fim, num terceiro momento, a racionalidade politica culminou, na epoca da Revoluc;ao Francesa, num humanismo juridico que devia condensar 0 poder normativo do Estado num principio constitucionlliista, cuja eficiencia continua, ainda hoje, indis- pensavel. 1. 0 principio da ordem publica no Estado segundo MaquiaveJ Quando Maquiavel, "maior do que Crist6vao Colom- bO,,16, chega as margens do continente que sen) 0 da moderni- dade politica, nao concebe a nonnatividade do Poder do Es- tado - ou dos jovens principados - sobre as bases filos6ficas da romanidade. essais de philnsophie du droit, Dalloz, 1969, pp. 60 S5. Mesmo que nao sig~ mos M. Villey em lodas as suas analises e eonclus6es, podenlOs adolar, pro- visoriamenle, a defmis;iio que da do humanismo jUridlCO rnoderno. Seria cee- tamenle maisjudicioso, a fim de evilar qualquer equivoco sobre 0 selJtido da palavra "humanismo", falar de QlIlropologismo Juridico, a fim de contrapo-Jo ao naturalismo e ao leologismo juddic05 dos seculos chlssicos. Mas a terma nao e feliz; do ponlo de vista fonetico e corre 0 risco de lee urn acento anacr6- nico, ja que a antropologia juridica pertence precipuamente as pesquisas das ciencias humanas do secuJo xx. Portanro, guardaremos l\ expressiio humanis- rno juridlCO, il qual , cvidenlemcQle, nao damos 0 significado lilerfuio c moral que assumiu no seculo XVI. 16. Leo Strauss, Droilllolurid el histoire, PIon, p. 192. 60 OS PRINCiPJOS FILOSOFICOS DO DIR£lTO Se dermos eredito a Leo Strauss l7 , Marlowe, que atribuiu ao florentino a frase taxativa "Sustento que nao hi alltro peca- do alem da ignorancia", teve lima 6tima idei<l: sua frase nao s6 define a atitude intelectual de Maquiavel como pennite situar em sua ordem propria sua concep.;:ao da politiea e do dire ito que a rege. A) Servj~o pllblico e normalividade do Poder 710 Estado A originalidadc de Maquiavel transparece em 0 principe, em que e, acima de tudo, 0 pensador da orao politica. A seu ver, 0 Poder nao se define pela ideia, mas pelos procedimentos que Ievam a ele e permitem nele se manter. Considerado filo- soficamente, 0 pensamento politico de Maquiavel implica, des- de 0 principio, a rejeiQao da ideia do direito natural e, mais am- plarnente, a recusa da filosofia politica tradicional. Seja esta a de Platao, de Arist6teles, de Cicero, ou a que encontfamos nos pensadores medievais, ela eai, com todas as inspira<;5es mes- cladas. na esparrela de um idealismo tao Ll1util quanto falaeio- so. 0 florentino, rico de sua experiencia, op6e-lhe uma busca realista, que leva esscncialmente em conta, no universo em que vivem os homens, nao tanto as situa.;:oes cotidianas, afinal banais e ponco significativas, mas "os casos extremos". Essas situa.<;oes-limite funcionam como reveladoras daquilo que, Duma humanidade em que rugem as paixoes, c gerador de me- do e de morte . Nao tendo examinado os medos e os males que atonncntam os homens, as filosofias cI{lssicas se equivocaram ao associar a ideia da "lei natural" a perfeicao humana. Por causa desse erro de postutayao, as filosofias classicas se extra- viaram, pensa Maquiavel, em caminhos que nao levam a lugar algum e que, de todo modo, s6 indicaram aos homens 0 senso dos deveres OU, 0 que vem a dar no mesmo, s6 Ihes falaram dos direitos derivados desses deveres. t nisso que elas permanece- ram, irredutivelmente, "pre-modernas". 0 projeto politico de 17. Ibid. PRlMElRA PARTE 61 Maquiavcl e, portanto, embasado numa vontade de mptura com os pressupostos idealistas e as especula<;6es ut6picas da filoso- fia cl<i.ssica: e inutil dissertar sobre "0 melhof regime", cujos contomos nunca farao compreender em que consiste a natureza do Poder politico; essa natureza s6 S0 cxprime atraves dos em- preendi.mentos que 0 chamam e que ele provoca. Assim, Maquiavel nao concebe outra organiza<;ao politica alem da qne sc preocupa em primciro lugar com 0 "servi<;o publico". Acima de tudo, nao a pensa de acordo com a figura hipotetica de seu dever-ser; encontra-a na realidadc concreta do Poder e de suas manifestayoes, segundo "a verdade efetiva da COiS3", mesmo que esta esteja oculta em reconditos compli- eados e por vezes cheios de sombras. E preciso insistir nisso. A natureza do Poder nao se revela nas rcpubli<.:as imagimlrias esculpidas pelo idealismo: 0 Poder nao e 0 do fil6sofo, cuja sabedoria faria descer na CAverna dos homens a inteligibihda- de diarnantina do Ceu das ideias. A natureza do Poder tamponco se revel a Huma politica baseada no teologismo: 0 Poder nao e na Cidade terrestre, mesmo quando se fala de "plenos pode- res", a imagem da potencia transcendental de Deus. Aos othos de Maquiavel, 0 fraeasso pnitico do "fiI6sofo-rei" eo desmem- bramento da Respub/ica christiana significam que a ideahdade do Poder do Estado e ulna quimera de visionario. Em compeu- 53<;80, sua "efetividade" - a verita effectuale de sua maneira de existir - manifcsta suas caracteristicas e deixa perceber seus ptincipios. Pode-se, portanto. considerar 0 De Principatibus urn "espelho dos principes", em conformidade com 0 sentido que entao se dava a essa expressao. Mas pareee sobretl.ldo que Ma- quiavel "seguiu urn caminho em que ninguem antes dele havia pisado. Compau 0 que conseguiu com 0 descobrimento dos mares e terras desconhecidos; apresenta-se como 0 Colombo do !nundo moral e poJitico" I 8. Entretanto, ainda que as perspectivas inovadoras do rea lis- 010 de Maquiavel e a inten.;:ao praxioI6gica que gujam sua pes- 18. Leo SITaUSS e Joseph Cropsey, Histflire de fa philosophie po/ilique (1963), trad. fr., PUF. 1994, p. 331. 62 OS PRINC/PIOS FILOSOFICOS DO DlREITO quisa constituam, mesmo como as comentadores tern assinala- do, a base sobre a gual comecara a se edificar, principal mente com Hobbes, 0 direito politico modemo,nao se pode calar a ambivalencia que paira no discurso do florentino. Se e verdade que no "planeta" do qual Maquiavel eo te6rico, 0 "Principe do Inferno"19 e senhor da a«ao politica, e preciso insistir de modo mUlto especial nos procedimentos do acesso ao Poder enos meios praticos para nele se manter. No entanto - talvez contra qualquer expectativa, mas, "tal como 0 navegador em busca de aguas e terras desconhecidas"2o, encontramo-nos numa rota inexplorada - ha lugar nos intersticios do discurso maquiaveli- co para 0 esbo~o de urna concepcao institucional na qual se ali- nhava a capacidade normativa do Poder. A normatividade do Poder se exprime na maneira que 0 Estado tern - seja ele principado ou republica - de adotar novas leis para atender as dificuldades da situacao. A coisa e irdua, por vezes ate impossivel, em razao do peso dos costumes. A tarefa se mostra sempre problematica: ainda que a inovaC30 illevitavelmente perturbe a tradicao, ela deve nao obstante COD- sistir no estabelecimento de regras novas que nao abalem de- masiado as condicoes estabelecidas21 . Como guer que seja, isso e necessario: "Um principe recem-estabelecido numa Cida- de ou numa provincia conquistada deve renovar tudO."22 Sem duvida procedera mais por caleulo interessado do que por vir- tude generosa; ou ainda s6 avan<;anl por tentativas e erros, sem buscar as razoes suficientes das nonnas novas que estabelece. Mas 0 importante e que, no Estado do qual Maguiavel tra<;a pela primeira vez um bosquejo que, sem ser nitido e univoco, J 9. Joa Cornelle, "La plani:te Mal:hiavel: Ie Prillet; d'Enfer". in L ·EIt1I baroque, Vrin, 1985, pp. 44 5S . 20. Maquiavel, DiSCOllrs SflY lu premiere decade de Tile-Live, PrefaClo, p.377. 21. Ibid., liv. m, cap_ XXXV, p. 696; Le Prince, V" p. 305; "E preciso pensar que nao lui coisa mais penosa de se tratar, mais duvidosa de se conse- gllir, nem mais perigosa de se maoejar do que se aventurar a int(oduzir novas imtitUl<;oes." 22. Maquiavel, Discollrs ... , Jjv. I, cap. X,'XVI, p. 441. PRlMElRA PARTE 63 possui caracteristicas ja modemas23 , as novas leis do principe formam uma estrutumjuridica que se parece muito com os ele- mentos constitucionais pelos quais definimos hoje a ordem es- tata!. H. na primeira frase do Principe, Maquiavel declara que essas leis, por "seu comando sobre os homens", caracterizam "todos os Estados"24 . Ao dcscrever a a~ao poHtiea na qual 0 uso caleulado da for«a e d.a aSlucia detennina a estrategia do ho- mem de Estado e detennina seu exito, ele pretende mostrar que o poder de Estado nao e apenas expressao de potencia e de oportunismo. Muito pelo contnlrio, para dado povo, em seu territ6rio e Dum tempo detenninado, e preciso que 0 Poder se organize de tal modo, que seja canalizado e controlado. Ma- quiavel, seguramente, se Iimita a mencionar e a descrever, com o apoio de exemplos historicos, os meios pelos quais se mani- festa a ayao do Poder do Estado ; nao elabora uma teoria siste- matica da pnitica politica. Nao obstante, os mecanismos do Poder aos quais recorre a praxis do chefe de urn Estado para mante-Io ou desenvolve-lo, bem como para ganhar LIma batalha contra a adversidade, contem principios gerais que Maquiavel considera, implicitamente, 0 cixo fundamental de urna concep- plo institucionaI da politica. Que 0 "principado civil" veaha "do povo ou dos grandes, segundo uma ou outra parte tenha ocasjao para isso"25, ele impoe a todos os cidadaos urn corpo de regras 23 . Convem aqui dar maior aten~:io ao vocabulano. Alexandre Passerin d'Entrevcs observa com muita justc:z.a que lradllzir por E.Had() os tenoos [,olis , Res publica. Civilas ou Regnum, ulilizado~ pelos autores classicos, e uma traduc;ao complacente que nao e I?ertinente (La notion de I 'Elal, Oxford, 1967; trad. /T., Sirey, 1969, pp. 37-9). E preciso aguaroor os meados do sceulo XUl para que a filosofia polilica, pondo cnfase menos na uOldadc da comuni- dade crista (a re~publica christialla) do que na pluralidade das comunidades dlferencladas nascidas de sua fragmcntacao (as civitates e os regnal, reconhe- ~a a cada uma delas a individualidade >ociopolitica de uma commllnr/ll5 per- fee/a el sibi sujJicielLf, "aquela que", diz A. Passerin d'Enh-eves, "malS se apro~ xima, na hnguagem medieval, da no~ao moderna do ESlado", ja que se pode ~ncontrar neJa um principlO de unidade e de aulo-sufieiencia . Contudo, ~o mente com a Reoascen<;a e que aparcec a palavra ESlado "que fomece 0 iimbi~ to cOllceitual para uma siruaciio nova". 24. Maqlliavel, I.e Prince, l. p. 290. 25.1bid., IX, p. 317. OS PRJII/CiplOS FILOs6FICOS DO DIREITO e de leis: nao e dessa maneira, perguuta 0 florentino, que 0 rei- no de Fran~a "/:. urn dos mais bern ordenados e govemados de que se teoha conhecimento em nosso tempo. E nele se en con- tram infinitas boas institui~6es, das quais depende a liberdade e seguran<;a do rei"26. Alias, observa ele, a autoridade do Poder num Estado vem do fato de os estatutos e os reguJamentos que ele ali estabeleceu terem preeminencia sobre os usos e costu- mes exislentes, Contrariamente ao que afirmavam os pensadores medie- vais, sempre apegados a regra consuetudimiria, Maguiavel con- sidera que a forya do Poder consiste menos no respeito dos cos- tumes por quc se pautam os povos do que no recorso a sua pro- pria capacidade legisladora: 0 Estado e criador do direito da comunidade civil. 0 poder politico e tun poder normativo e 0 Estado se delineia como urn fenomeno jurfdico. E por isso que, ao passo que 0 pensamento politico medieval, alento aos es- quemas do regime feudal , confl.lndia ll1ais ou menos, entre 0 senhor e seus vassaJos, 0 que e "pllblico" e 0 que e "privado", Maquiavel reencontra e reativa a distin~ao feita por Arist6teles e Cicero entre a autoridade publica do principe e a autoridade domestica do pai de familia ou do dono da easa. Nao se deixa- ra de objetar aqui que Maquiavel fica a tal ponto reticente dian- tc de uma eventual teoriza93o das estrutw'as juridicas do Poder estatal que nem sequcr fala da soberania do Estado, cmbora a reconhecesse como summa potestas. E verdade que DaO cuida, mesmo que a idCia de regula<;:ao da vida pliblica esteja onipre- sente em slla obra, de escrever um novo de legiblls . Mas reeo- nhece que 0 "principe novo" encarna num Estado, hie et Ilunc, o poder de editar regras organizaeionais e maximas de coman- do. A primazia da ordem assim estabelecida e tal que, sob um rei ou nurna republica, todos os suditos devem obediencia as regras do direito assim "formulado". Portanto, nao so Maquia- vel avan<;a pOl' um caminho novo ao associar a n0930 de "poder publico" ao seu conceito de Estado, mas tambem e-Ihe impos- 26 Ibid., XIX. p. 346. PRJMEIRA PARTE 65 sivel pensar 0 Estado independentemente do sistema regu/ador que e a propria expressao do Poder. Contudo, no discurso maquiave/ico, nada revela melhor a ambivalencia da jovem 00930 de Estado do que a Ilesilay30 en- tre a enfase dada explicitamente a a~iio politica e a importan- cia atribuida, ainda que implicitamente, a inslitucionalizafGo do Poder. Sem duvida, essa indecisao pel'manece no fundo ocullo da obra. Entretanto, se uma teoria da instilui<;:30 continua sendo o nao-dito que 0 pensamento maquiavelico guarda em seu cer- ne, ela se deixa decifrar filosoficamcnte. De fato , embora a obra politica de Maquiavel, compreen- dida do augulo filosOfico , signifique a rejei<;:ao dos hOl'izontes idealistas do pensamento politico antigo, indica de modo muilo particular a fragmenta<;ao do universalismo ligado ao ecume- nismo uuilano da respublica christiana. 0 principe c os Dis- curso.\' ensinam, de modo unissono, que 0 pluralismo e 0 rei a- tivismo se insinuarn na esfera especifica fonnada, dai por diante, pel os "principados" novos. Ademais , como 0 aparelho institu-cional elaborado em cada \.Ima dclas por urn Poder cuja preo- cupa<;:3o primordial e pcrdurar21, a autoridade do Estado nao poderia ser estabelecida de uma vez pOl' tOMS; as regras de a9ao que ela estabelece segnem os conlomos dos acontecimen- tos ; adaptam-se e rcnovam-se ao sab~r das "coisas humallas" 2~ e dos antagonismos que ocorrem na realidade politica. Em conseqi.iencia, Maquiave1 substitui 0 eSlatismo da;; instituiyoes medievais, reputadas como fonnadas com quase-perfeicao jei. que eram a imagem da Cidade de Deus, por uma dinamica juri- dico-politica necessaria dependente do movimento historico. Nos primordios da modemidade, uma das grandcs ideias filo- sOfie as de Maquiavel e que nao e a transcendencia das ideias que leva a realizaQao do direito politico; COniO 0 Poder e coisa humana, 0 Estado nao tern de buscar suas raizes no "outro mun- 27. Ibid., lj, p. 290. 28. Maquiavel,A IIIandl'ligorlJ, III ato, cena 2, e DisCQuJ's" .• liv. I , XI, ill lille. p. 414 . 66 OS PRINe/PIOS FlLOSOFlCOS DO DlRElTO do", inteligivel ou divino; tern, aqui meSl)1O, a historia como principia, como eadinho e como horizonte29• Assim se desfazem, no proprio eerne do "trabalho da obra", todos os pontos de referencia tradicionais que, no ambito dua- lista do pensamento e do real, hnham servido ate entao para definir a poJitica por sua rela~ao com 0 ceu inteligiveJ ou com a ordem natural e divina do Immdo. Portanto, temos boas ra- zoes para dizer que 0 florentino abre a via de uma compreen- sao moderna do direito politico, na medida em que 0 humanis- rno que 0 conduz se reporta a experiencia e a hist6ria. Nao obs- tante, nos labirintos da obra, as coisas nao sao simples: ousado precursor das vias da modernidadc, Maquiavel so avan<;a, con- tudo, em seu novo "plancta" sob a manto tla ambigiiidade: tendo optado por expor os mcios usados pelo Poder do Estado na ac;ao, ele fica muito discreto - quase sigiloso - sobre a necessaria regulay30 normativa cuja necessidade irreprimivel ele captou. B) Os imperativos organizacionais do Estado moderno Apesar da imprccisao e das hesita<;oes do discurso de Ma- quiavel, um fenomeno de maquiaveliza<;ao do direito poHtico iria m arc ar, como urn ponto sem retorno, a marcha da com- preensao do Poder. Para captar os principios a partir dos quais a filosofia concebera desde entao 0 Poder no Estado modemo, fa<;amos 0 balanc;o das grandes lDudanC;as que Maquiavel intra- duziu nos conceitos enos procedimentos politicos. Separando os horizontes do jusnaturalismo cosmol6gico da filosofia aIistotelica e estoica e dando um adeus definitivo ao idealismo metafisico e teologico, Maquiavel reconheceu as ra[zes seculares) antropol6gicas e historicas do Poder: assim se abre, sobre urn lundo de realismo, a carreira do hurnanismo ju- ridico-politico. No espa<;o publico que sera a do mundo mo- 29. Maquiavcl, Discours ... , )iv. J1. pre facIo, p. 510. EvidcDtementc, isso nno quer dizer que Maquiavel seja 0 prchidio dos historici~mO& do sCculo XIX. A 1100;ii.O de "senso da Hisloria" e inleiramenle ignorada por ele. PRlMElRA PARTE 67 demo, cabe ao homem e somente a ele construir c conduzir a politica do Estado. E quase ccrto que, nessa revoluc;ao episte- mologica, Maquiavel lenha sido influenciado pelo direito ro- mano; seu conhecimento do Digesto e dos lnstitutos, sua fami- Jiariclade com Tito Livio e com a historia de Roma transparecem em numerosas paginas e ele proprio confessa que sua "Ionga experiencia das coisas modernas" deve muito a sua "leitura continua dos antigos"Jo. Mas quando declara que, no novo Es- tado, os que tern 0 encargo de governar devem imitar "a antiga virtude", isso quer dizer que devem reinventa-Ia e adapta-Ia aos parametros exigidos por uma politica dirigida pelas novas ins- tituic;oes. De fato, para alem de sua erudicao, Maquiavel COffi- preendeu nao apenas que 0 Poder nada tinha a pedir a Deus31 , mas que, na sua laicidade intrinseca, nao podia ser assimilado nem ao carisma de um chefe, fosse ele Anibal ou Cesar Borgia, nem a for~a material de uma comunidade. Alias, no humanis- mo juridico-politico que ele inaugura, 0 que the importa nao e dirimir a questao de sabcr se 0 Poder e (ou deve ser) 0 de urn monarca ou de um pavo (0 principe e as Discursos nao se apresentam como os dais termos de uma alternativa entre os quais e preciso op tar) , mas fazer entender que jamais havera Poder politico sem um conjunto de regras destinadas a estabe- lecer suas estruturas baslcas, fixar suas Iinhas organizacionais e ate preyer suas diversas modalidades de controle. 0 Principe, fundador de uma ordem lnteiramente nova, tern a seu cargo fazer de seu "principado novo" urn sistemajuridico, isto e, urn corpo de ordena<;oes e de leis sobre 0 qual se edi ficarn sua pra- lica politica; assim tambcm, uma Republica e impossive! e in- concebivel sem urn corpo de regras de direito destinado a esta- beleccr e a manter a ordem publica. As Historias florentinas revelam, como llum espelho, os maleficios das carencias orga- 30. Maquiavcl, Le Prince, Dedicaloria a Louren.;o de M6dicis, p. 289. 3 J. Se J. R. Strayer pode falar de lima La'icizalion ofFrcnch and English Socie ty iD the Thirteenth Century, Speculum, 1940, XV, pp. 76-86, trata-se ai apenas de sinais pcecuTSores ainda tirnidos. Maquiavcl foi quem deu corajosa- mente 0 passo. OS PRlNCiPlOS FILOSOFICOS DO OIREITO Ilizacionais da vida publica e, portanto, 0 custo humane exor- bitante e dramatico da desordem oum Estado. Compreende-se, por conseguinte, a importancia das consi- derayoes antropo16gicas na obra de Maquiavel. A maldade e a inveja dos homens, 0 delirio das paix6es, 0 mal semprc presen- te na sombra do mellor bem, as foryas do desejo e do egoismo, a inaptidiio para fazer 0 bem sem ser fon;ado a isso etc. sao ele- mentos que esclarecem a natureza ja politica do ato que pare- ee, contudo, seT somente 0 fl.lndador da politica: esse ato esta- belece um vinculum juris cuja for({a obrig~t6ria e altamente significativa do ponto de vista filos6fico. E que, de fato, no Estado moderno, 0 dominio do Poder se exerce sobre a neces- sidade natural e sobre 0 acaso que regem a vida dos homens, sem 0 que a anomia e anarquia. Assirn se explica que a astllcia seja 0 recurso cardeal dos que governam, nao 56 potque torna a forc;a jnvisivel (foi esse 0 casu de Brutus fingindo a louew-a)J2, mas sobretudo porque canaliza a fowa grac;as iJ eoe~ao que doma a neccssidade para encaminhar-se para a liberdade: foi assim, alias, que Roma outrom cortou "as raizes de suas quere- las"33. Desse modo, aqueles que governam estao em condi<;6es de cnfrentar a imprevisibilidade veiculadapelo tempo da hist6- ria . Conjurar a necessidade natural e 0 aeaso hist6rico constitui urn criterio decisivo da modemidade do direito politico in statu nascendi. E nisso que a virtu prepara sua capacidade normati- va: irnpedindo que afortllna empregl1e, "a eada volta do sol", toda a extcnsiio de Slla for<;a, ela assegura 0 dominio sem 0 qual l1ao existe 0 Poder do Estado. A arte de governar e incol1cebf- vel sem recorrer ao principio da onlem pLlblica. Embora sublinhe a imanencia do principio de onlem no pr6prio ftmago do Poder, Maquiavel ainda nao sabe, entretanto, confenr-Ihe a clareza de uma maxima de 16gica juridica. Se- gundo eJe, esse principio se exprime em dois niveis. Num pri- meiro nivel, comanda a preocupa<;ao com 0 exito quc acotnpa- nha a a<;<1o do momento e, ja que detennina, como tal, uma es- 32. Maquiavel, Discours ... , liv. 111, IT, p. 611. 33 . !bid., liv. I, VI. p. 395. PRIM£IRA PARtE 69 trategia colocada sob 0 signo da utilidade e cia eficacia, nao se eleva acima da oportunidadc34 Entendamos que de permite ao principe recorrer, sc for preciso, a meios extraorrunarios a fim de manter a redea curta a mediocridade humana. Numsegundo nivel, mais profundo, ensina (e essa, de modo todo especial, a li<;5.o magistral da Republica romana) que 0 sentido do direito politico esta, no Estado, para alem da personalid.clde dos politi- cos que nele atuam: "Gra<;as a exeelencia de sua Constituiy30 e de suas leis , ' a Cjdade' nao tern necessidade de basear sua salva({ao na virtude de urn homcm SO .")5 Se e verdade que 0 Poder sc preocupa acima de ludo com as tecnicas do exi.to - em momento algum Maquiavel duvida que essa e a missao princi- pal do "principe novo" na Italia agitada do Cinquecento - ele e, na sua natureza proftmda, questao de institui({iio e de direito. Tudo se passa, pOltanto, como se, no entrecho da obra maquia- veJica, se entremeassem dois discursos aparentemente desco- nexos. Urn primeiro discurso, explicito, participa de seu realis- rno pcssimista. Ensina a necessidade de domar os homens, d . . 36 mesmo que para isso os govemantes evessem usar CIUlsmo . Contudo, Maquiavel nao e 0 porta-voz de um cesarismo cruel, intransigente e cego. Eo advogado da "ordem publica", que e importante fazer triunfar sobre os intercsses e as paixoes. Da mesma forma, um segundo discurso, implicito, esta como que escrito nas margens de Tito Livio. Contem a inrui({ao forte , ainda que jamais conccitualizada e teorizada, segundo a qual a potencia do ESlado requer as estruturas de urn direito publico eujas normas sejam coercivas: as "boas leis" sao tao import3n- tes quanto as "boas ann as"; 0 direito e a for<;a devem cooperar e se compor, razao pel a qual e necessario ao principc "saber bern lidar com a fera eo homem". Fichte e Cassirer serao sen- siveis ao aspeeto institucional puramente leigo que da fei({ao 34. M. Mer\ealJ-Ponry, Signes. p. 275 . '\5 . MaquiaveJ, His!om;sflorentlnes , Iiv. IV, I, p. ! 1 19 36. MaqUlavel , D,scours . . , liv. J, lX, p. 405. Leo Strauss ale chama 0 norentino de leacher vf evil, em Thoughts 011 Macchinvelli. Glencoe, Illinois. 1958, p 9. 70 OS PRJNCiPIO.') F/LOS6F/COS DO DIRElTO juddica a politica segundo MaquiaveJ - uma politica da Terra que signi fica que compete aos homcns aruar e que terao, em definitivo, 0 destin~ que merecem37 . Certamente e sobre 0 horizonte sombrio dos primeiros albores da Renascen<;a que se destaca a figura original de Ma- quiavel: 0 ferro e 0 veneno reinam na Italia do Cinquecento; a Reforma de Lutero e a "guerra dos camponeses" ensangiien- tam a Alemanha desde 0 come<;o do seculo XVI; na Fran<;a de Francisco leo tempo das guerras; na Jnglaterra, grassa a mise- ria, diante da qual Thomas More protesta e reage ... Mas, mes- mo sendo sempre possivel, com Rousseau ou com Leo Strauss, expor a quesUlo de saber "como ler Maquiavel", e certo que uma compreensao hist6rica de sua obra pennanece inteiramen- te insuficiente. Para alem da aventura historica dos homens, filosoficamente ele e, como diz E. Cassirer, "0 primeiro pensa- dor que teve uma representa<;ao completa do que significa 0 Es- tado"38. Julguemo-lo hennetico ou esclarecedor, insolente ou fecundo, negro ou dourado, importa reconhecer que ele saJien- ta com uma for<;a extraordimiria a energia criadora do Poder e que, abrindo com essa idCia iconoclasta os caminhos do huma- njsmo jwidico-politico, sirua-se "a beira do mundo modemo"39. Maquiavel, compreendido ou incompreendido, suscitou nu- merosissimas resistencias e criticas virulentas40. Ocone que, depois dele, nao se podia pensar 0 direito politico como antes dele. Sua doutrina serviu de breviano secreto aos condutores do Poder, mesmo aqueJes que, oficialmente, a denunciavam. Sera preciso evocar 0 implacavel Cromwell, os "despotas esclareci- dos", 0 proprio Rousseau que via em 0 principe "0 livro dos republicanos"? NapoJeiio e Mussolini nao escondiarn sua admi- 37. A respeilo desse ponto, cf. EmstCassirer, The mylh of the State (1946), caps. X e Xf, em tracJ. fr., Galhmard, 1993, pp. 164-80 e 181-93. 38. Ernst Cassirer, op. cit., p. [33 . 39. Ibid., p. 140. 40. Limilemo-nos a cHar aqui La Grant 'monayrhie de France, do Ar- cebispo Claude de Seyssel (15[9) e, sobretudo, 0 Anti-Mach/ave! ou Discours wr les moyel!.~ de bicn gouvemer el dc marn/enir en bonne paL'C un royaume ou alllre prinelpaure, de Innocent Gemillct (1576). PRJMEIRA PARTE 71 ra-;:ao pelo florentino. Na vcrdade, para al6m do uso dado por certos chefes de Estado as leses, mais ou menos bern com- preendidas, de Maquiavel , parece-nos muito mais interessante observar que autores como Manzoni e Clausewitz no seculo XIX depois, mais perto de nos, James Burnham e Merleau-Ponty: souberam ver na obra do florentino, tao abundante quanto per- turbadora, a ideia modema da preerninencia do Estado secular, de sua Constitui<;ao e de suas leis. Contudo, coube a Thomas Hobbes edificar, peya por peGa, dessa vez como filosofia sistematica, a estatua do Poder41 co- mo potencia normativa num Estado cuja catedraJ impressio- nante 0 homem constTuiu racionalmente. l. 0 principio de autoridade no Estado-Leviata de Hobbes o historiador das ideias pode fiear espantado e irritado ao mesmo tempo quando Ie, sob a pena de Thomas Hobbes, que a filosofia poIilica oaseeu com 0 De Cive42 . Espanta-se com que, de Platao a Jean Bodin ou de Aristoteles a Maquiavel, ncnhu- rna das obras filosOficas de Santo Agostinho, Santo Tomas ou Marsilio de Padua, mere9a, na opiniao de Hobbes, ser cons ide- rada em sua dimensiio pol[tica e com que nenbum dos glosado- res, legistas ou jurisconsuJtos tenha sabido, nas escolas de di- reito de BoJonha, Padua, Salamanca, Bourges ou Orleans, lant;ar a menor clareza sobre os principios e as engrenagens da politi- ca . Assim, nenhwn £116sofo, nenhumjurista teria compreendido, ate 0 seculo XVTl, que a poJitica nao pode prescindir da postu- la<;ao fundamental nem do horizonte conceitual da filosofia? A pretensao do fi16sofo de Malmesbury de inaugurar a "filosofia politica" pode portanto irritar na medida em que tacha de in- 41 . Leo Strauss qualifiea mesmo Hobbes de "primeiro filosofo do Podd', Droil ,wltlrel e/ hi.lloire, PIon, p. 208. 42. "Se a Fislca e uma co\sa inleiramente nova, a filosofill poliliea 0 e nintla bem mais. Ela nao eo mais anliga do que minha obra Do cidadiJo" De en/pore, Eristola dedieatOria, tcad. Deslutr de T(acy; cf. iguaImenle'Le- viathal1, cap. lX, lrad. F. Tricaud, Sirey, t971 , p. 80. 72 as PRINcjPIOS FILos6ncos DO DTR.ElTO hmtilismo e considera vas todas as obras, no entanto vigorosas, dos seculos passados. Nao seria mais por wn orglliho desmedido do que por heroismo inteleetual que Hobbes se arroga a quali- dade de fundador em materia de filosofia politiea? S6 a leitura atenta do corpus fi/os6fico hobbesiano peroli- te dar adeus a esse espanto irritado. Hobbes, diferentemente de Maquiavel, nao e embaixador nem jurista: e fil6sofo. Avan- <;ando com passo firme no terreno em que, desde Grotius e Des- cartes, firmam-se com nitidez cada vez maior as caracteristieas distintivas do eontinente modcrno do pensamento, cujas mar- gens Maquiavel entrevira, Hobbes dirige a todos os autores que o precede ram a critica contundentc de terem sempre eonsidera- do a politiea uma questiio de arte e de pratica. Ora, como, Ila 16- giea intema do sistema filos6fico de Hobbes: a politiea nao pode ser pensada independentemente da philosophia prima, 0 Poder, pedra angular da politica como sempre foi reeonhccido, deve ser encarado como wna questfio te6rica e de principio. Em outras pa- lavras, 0 que Hobbes inventa em seu procedimento filosMico e a prohlemalizariio leorica do politica. A) A probiematiza9QO teorica do Estado Para Hobbes, erigir a estatua do Estado-Leviata nao e urn empreendimento pragmatico e siro especu!ativo. Alem disso, quando Hobbes reconhece 0 poder do Estado como a fonte de todas as norm as da experiencia politica, nao e porqueuma conslata~ao empirica , e sUn urn raciocinio rigoroso 0 eonduz a tal conclusao. A fei<;ao racionalista do pensamcnto de Hobbes aparenta-se assim rna is com os esquemas discursivos da filoso- fia francesa do seClll0 XVlI do que com as tendencias empiris- tas da filosofia inglesa: nao que Hobbes ignore a importancia da Common La....,.43 que, na Inglaterra , converte 0 direito, ate e inclusive 0 direito politico, no produto do costume e da juris- 43. A Dialogue belWeen a Philosopher alrd a Student oj tltt< Common Law of Ellgland, publicado postumamCllle crn 1681, foi sem duvida redigido em 1664 ou 1665, cf. eUl"iio de Tlillio Ascarelli , Dalloz, 1966. PRlMElRA PARTE 73 prudencia; mas, diante do modelo institncional da Fran<;3 de Rlchelleu, ele pensa que a fOI"<;a do Poder reside na arquiletllra racional de sua legisJa~ao positiva. Entre os modelos ingles e frances, a epistemologia hobbesiana, em sua ambi<;ao teorista, nao hesita: 0 Jegalismo centralizador da Fran~a exprime as poteneias do raeional. Hobbes proeuranl portanto, explicando como elas estruturam 0 Poder, sistematizar seu significado coneeitual e sua capaeidade organizadora. Assim, a "filosofia politica" sera uma "ciencia politiea". ' Como a problematica do Poder consistc, desde entao, em se perguntar quais sao as razoes de principio, ao mesmo tempo fundamentais e organizacionais, da autoridade do Poder no Estado, Hobbes renova a indagayao ciceroniana que se rereria outrora it ratio juris, it ratio legis e it ratio decidendi. Abre 0 ca~inho para 0 trabalho de reflcxao critica que reena, segundo a vIa especulativa, as raizes primordiais do Poder. Par essa razao, bem meihor do que Maquiavel, ele enun~ia 0 que Leo Strauss chama de uma "questao fundamental": esta nao e nem a questao empirica da origem da ordem politica nem a questao ontologica de sua essencia. Hobbes formula a questao essen- cial que toea ao que hoi de mais profundo, portanto, de funda- mental, na realidade politica que 0 Estado e. No sentido mais forte do termo, e 0 principio - 0 principio primeiro - do Poder que sua nova filosofia politica pretende por em evidencia44 . Hobbes mostra assim que, no espayo ptlblico em que os ho- mens sao chamados a evoluir se nao querem se parecer com Jobos, 0 Podcr, simbolizado pe)o Leviata, e uma figura da arte racional. Isso, bem entendido, foi muitas vezes salientado pelos eomentadores. Mas observou-se menos que, no mecanis- mo universal postulado pela filosofia de Hobbes, as proprieda- des llonnativas do Poder do Estado resu)tam da maneira pela 44. Como diz com muita clarc2a Robert Cummings coo Hllman Natw'e wId His/OJy: A SII/dy oflhe. Deve/opmenL of Liberal Political Thoughl (Chicago, 1969. vol. 2, p. 16), cHado por Hannah Arend! COl Juger. Sur 10 philesopllle poillique de K~nT, trad. fr., Le Seuil, 1995, p. 43: "0 objeto cia filosofia poli- llc", modema. ' \naugurada par Hobbes ' , !laO t a Cidade au slia polilica , mas a rel~,:io entre filosofia e politica ."
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