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GOYARD-FABRE. Os princípios filosóficos do direito político moderno (Cap. 1 - A centralização do Poder e o Princípio de Unidade do Estado Moderno)

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OS PRINCIPIOS 
FILOSOFICOS DO 
DIREITO POLITICO 
MODERNO 
Simone Goyard-Fabre 
Traduciio 
IRENE A. r A TERNOT 
Prof. Dr. Marrero Madel Ramos 
Faculdade di! Direito 
Universidade F~e(aJ!fe Minas Gerais 
Martins Fontes 
sao Paulo 2002 
54 OS PRINe/PIOS FILOSOFJCOS DO DJREITO 
fil6sofos e iroprimindo significativamente sua marca na mo-
dernidade jurldico-politica, explicam a centraiiza{:oo do Poder 
110 Estado moderno. Depois, nurn segundo capitulo, nos nos 
deteremos na questao da soberania eSlatai que, "essencia" ou 
"fonna" do Poder do Estado modemo, ao qual confere Slla in-
dependencia e sua onicompett!ncia, continua, ate hoje, no cen-
tro da reflexiio filos6fica sobre 0 dircito politico. 
Capitulo I 
A centralizafQO do Poder e 0 principio 
de unidade do Estado moderno 
A n09aO de Poder politico foi geralmente, na hist6ria, liga-
da a id6ia do comando ditado por aquele ou aqueles que detem 
a autoridade: "Oma multid50 sem chefe nada pode fazer; e nao 
se devem fazer ameat;as antes de se apoderar da autoridade", es-
creveu Maquiavel com impressionantc sintcse 1. Essa concep-
~ao , que assimila 0 Poder politico a uma libido dorninandi, cer-
tamente tern 0 privilegio da perenidade, mas tern tambem 0 
defeito da equivocidadc. De fato, se esul claro que ela poe a 
politica de todos os tempos sob 0 signo da dominat;ao - 0 ato 
de dominar e 0 fato de ser dominado -, ater-se a imagem da 
"Cidade do comando" e deixar de lade a pluratidade das mani-
festac;oes da autoridade dominante que, 16gica e cronologica-
mente, assumiralO formas tao diversificadas que dao a realida-
de do direito pol[tico significados totalmente heterogeneos. A 
fim de chegar a compreensao do poder nas sociedades modcmas, 
convem, por conseguinte, delimitar, entre os inumeravcis fatos 
de domina«ao ou de cOTTIando, os principios especificos pelos 
quais os fil6sotos buscaram esclarecer a natureza da autotida-
de exercida pelo Poder no Estado. 
Aparentemente, cssa pesquisa e banal. Muitos autores, mes-
mo antigos, a fizeram e a consideraram mesmo essenciaL Li-
mitemo-nos aqui a dojs exemplos. Arist6teles, ern A politica, 
distinguia 0 poder que e exercido na Cidadc daquele que e exer-
cido na sociedade domestica: 0 politico nao comanda nem exer-
I. Maquiavel, DiscDur.! su)' la premiere decade de Tile-Live, I, XLIV, 
P\t:iadc, p. 476. 
OS PRINCiPIOS FILOSOF1COS DO DJRElTO 
. , sua Jutoridade a maneira de urn chefe de familia ou de urn 
palriio; seu poder consiste em administrar a justi.;a c, apoiando-
se num conjunto de leis, em dar a cad a wn 0 que lhe cabe . Com 
base nisso, 0 Estagirita, mesmo quando se detinha no exame 
das "Constitui<;oes" do mundo antigo, sempre atribuia ao po-
der politico uma finalidade etiea. Em segundo lugar, rccorde-
mos a distin<;ao estabelecida por Santo Agostinho entre a auto-
ridade de que se prevalece 0 chefe de uma quadri/ha de bandi-
dos e a autoridade politica do chcfe de uma Cidade2; claro, um 
chefe de bandidos nem sempre recorre a violencia, mas imp6e 
a obediencia por sua ascendencia, seja ela [ofya, competencia 
ou carisma; ja a autoridade do chcfe politico e, sem duvida 
algwna, "a faculdade de carrear 0 consenti.mento aJhcio"3, porem 
o importante e que obtenha esse consentimento em nome de 
sua legitimidade, seja e/a teol6gica, tradicionalista ou juridica. 
Essas observay6cs sao bem conhecidas . Mas e preciso no-
tar que, embora ja permitissem a Arist6teles ou a Santo Agos-
tinho sublinhar que a autoridade do Poder na Cidade politica e 
irredutivcl as relay6es de influeucia exercidas por um indivi-
duo sobre outros individuos a fim de obter sua obediencia - 0 
que os psie610gos anglo-saxoes de hoje denominam, com urn 
termo intraduzivel no frances, leadership - , e1as nao indicavam 
em que consiste a especificidade da autorirulde politica . Dada 
essa carencia, 0 conccilo de Poder permaneceu durante muito 
tempo cere ado de um halo de incerteza e de ambigiiidade. Em 
compensayiio, com a filosofia modema, a imprecisao que vela-
va a ideia do Poder se dissipou gradualmentc gra<;as a uma pro-
blematizacao e a uma investigayao novas: em vez de considerar 
a autoridade do Poder no Estado atravcs da relayao de coman-
do com a obedicncia, isto e, ua relayao interpessoal entre os 
governantes c os governados, a indaga<;ao incidiu sobre os prin-
2. Santo AgoSlinho, A Cidadf' de D e.lls, IV, 4. A respcito dessc tema, ver 
A. Sc11iitz, Suint AuguslJn, l'Etat ct la bande de brigands, Droi ls, 1993, nO 16, 
pp. 71·82. AssJnaiemos que Aristoteles, em A politic" , ut ilizava IglialOlCJlle a 
IInagem da quadrilha dc ladr6es e de malfcitores. IV, 4; VI!, 2. 
3. Bertrand de Jouvcnc!, De la souverai/l"' fI?, Librairie de Medicls, 1955, 
p. 3') . 
PRlMEIRA PARTE 57 
cipios imanentes que pennitiram sua emergencia, determina-
ram sua natureza e regeram sua realiza<;ao. De Maquiavel a 
Kelsen, as analises convergem para mostrar que, na csfera do 
Estado, 0 Poder nao po de confundir-se, a nao ser desnaturan-
do-se, com 0 falo de poderes interpessoais. Ele e, no Estado, 
um fen~men~ juridico de organizayiio e de regula~iio que se 
c.aractenza, Ja em sua emergcncia, por sua capacidade norma-
tlva . Como tal , ele se coloca sob 0 signo do humanismo juddi-
co e encama principios ao mesmo tempo fundamentai s e fun-
dadores que sao indispeosaveis ao direito politico modemo. 
. Dir-se-a, cerlamente com razao, que a capacidade norma-
t(va do Poder politico nao era ignorada pelos romanos. Alias, e 
? qu~ atesta ampJamente a obra de Cicero. A Res publica, que 
Imphca urn consensus juriJ', e em sua essencia, assinalava Ci-
cero, intimamente Jigada ao direito; e mesmo inconcebivel fora 
do estabelecimento das leis, 0 qual e sua maJca distintiva: lex 
es~ Civili:s ~~~cierat~s vil1cufum4. Contudo, quando, em De Repu-
Mea, Ciplao ex.pl!ca em que consiste, na Republica 0 cansen-
susjuris5, ele se refere tanto a urn horizonte moral c~mo a uma 
perspectivajuridica. Porque pensa, a exemplo dos cstoicos, que 
"0 muudo e a patria comum dos homens e dos deuses"6 a ideia 
do direito remete, segundo cle, it ideia, universal de Justi ca7. 
E/a . encon~a seu fundamento na natureza8 que, precisarnente, 
define a Ie] natural. Esta, entendida como a lei de ordem eter-
na e imutivel, que Dells colocou no mund09, "quer qu'e nos 
aproxlmemos dos deuses com a alma pura" lD. Do mesmo mo-
4. Cicero, De Republica, § xx.,XH. 
S. /bid., ~ XXv. 
6. Cicero, De legibus, 1, § XXIII ; Dc jinibl/S, ill, XIX. 64 . 
7 Cicero, De /cg ibl/s. 1, § VI. . 
8. Ibid. I, § X. A itleia oao e original de Cicero, que adola (cf. Dejilli-bu:, V, X:xm , 66) a concepyao aristotd iea de C!vepu:mo~ (PU6El lfo/...mXov 
~(j)ov c nao heSHa emcomparar a sociabilidade bwnaoa a condula gregana 
das_ahclhas. (De UffiCIIS, I, XCIV, 157). Isso. alias, nao expritne olllra coisa 
seoao a oOlpresenc;a de Deus 00 mundo. 
9. Cicero, De legibus, I, § VI. 
10. Ibid .. ll, § X. 
58 OS PRlNC/PIOS FILQS6FlCOS DO DlREITD 
do, quando cousidera, como os jurisconsultos da Roma antiga, 
que nao ha Republica sem urn poder supremo (summa potes-
tos) 1 I, do qual emanam as leis da comunidade e do qual depen-
de a forma (status) da Cidade l2, Cicero nao dissocia a capaci-
dade normativa ou reguladora do Poder na Republica do pano 
de fundo metajuridico, marcado ao mesmo tempo por natura-
lismo e por teologismo, no qual se insere. E por essa razao que 
esse Poder da Republica, pertenc;:a ele ao principe ou ao povo, 
esta, como tal, acima das leis por ele estabelecidas: ele e, como 
diz 0 Digesto, solutus fegibus 13 • Quanto ao status reipublicae 
determinado pelo Poder, ele repousa na c1arissima distinyBo 
enunciada pelo Digesto entre 0 que e "publico" e 0 que e "pri-
vado": Publicum jus est quod ad statum rei Romanoe spectat, 
privatum quod ad singulorum ulililatem14 . Ele so se compreen-de, ademais, dentro de uma perspectiva teleol6gica na qual a 
lei natural e divina se revela como 0 imperativo de ordem que 
se imp6e a «urn povo organizado". A capacidade norrnativa do 
Poder e portanto muito real, segundo Cicero, na Republica. 
Mas esta sempre subordinada a transcendencia da lei natural 
que atribui aos magistrados detentores da potencia publica 0 
encargo, ou, com mais exatidao, a missiio de realizar da meUlor 
maneira possivel 0 direito imutavel e eternq do qual ela e 0 
garante divino . 
No direito publico moderno, a capacidade norrnativa do 
Poder e concebida em outras bases: 0 hurnanismo juridico trans-
fonna tao amplamente os horizontes teologico-metafisicos do 
pensamento dos chi.ssicos romanos, geralmente seguidos pelos 
autores medievais, que chega a suplantil-los. Desde 0 seculo XVI 
o humanismo juridico l5 firmou-se com varia<;5es, certamente 
II. Cicero, De Republica, I. & XXXI. 
12. Essa posi.;ao e, alias, <las rna;s cJassicas entre os jurisconsultos ro-
manos. Cf. Papin iano: Lex est ... communis reip/lblicae sponsio, DigeSlo, L3.1 , 
e Caio: Lex est quod populusjubel alque conslifuil, Ins/ilutos, 1.2.27. 
13. Diges/a, 1.3.J L 
14 . Ibid., l.l.l. 
15. Segundo Michel Villey, 0 "humanismo juridico modemo" se define 
como "a tendencia a colocar 0 homern no principio e no fun de tudo". Seize 
PRlMElRA PARTE 59 
diferentes, mas cada vez mais densas. Reteremos aqui tres mo-
mentos importantes na concep<;1io da prodw;ao das nonnas ju-
ridicas pelo Poder do Estado, tres momentos em cujo decorrer se 
firmaram as principios filosOficos que formam, desde enta~, a 
pedra angular do direito politico moderno. 
Marcada num primeiro momenta pelo rcalismo pragmati-
co de Maquiavel, a capacidade nonnativa do Poder, expressao 
do principio de ordem publica, tornou-se, num segundo mo-
mento, inseparavel, no sistema filosOfico-politico de Hobbes, 
de um raci.onalismo calculista destinado a caracterizar 0 Esta-
do-Leviata pela imanencia de um principio de autoridade. Por 
fim, num terceiro momento, a racionalidade politica culminou, 
na epoca da Revoluc;ao Francesa, num humanismo juridico que 
devia condensar 0 poder normativo do Estado num principio 
constitucionlliista, cuja eficiencia continua, ainda hoje, indis-
pensavel. 
1. 0 principio da ordem publica 
no Estado segundo MaquiaveJ 
Quando Maquiavel, "maior do que Crist6vao Colom-
bO,,16, chega as margens do continente que sen) 0 da moderni-
dade politica, nao concebe a nonnatividade do Poder do Es-
tado - ou dos jovens principados - sobre as bases filos6ficas 
da romanidade. 
essais de philnsophie du droit, Dalloz, 1969, pp. 60 S5. Mesmo que nao sig~­
mos M. Villey em lodas as suas analises e eonclus6es, podenlOs adolar, pro-
visoriamenle, a defmis;iio que da do humanismo jUridlCO rnoderno. Seria cee-
tamenle maisjudicioso, a fim de evilar qualquer equivoco sobre 0 selJtido da 
palavra "humanismo", falar de QlIlropologismo Juridico, a fim de contrapo-Jo 
ao naturalismo e ao leologismo juddic05 dos seculos chlssicos. Mas a terma 
nao e feliz; do ponlo de vista fonetico e corre 0 risco de lee urn acento anacr6-
nico, ja que a antropologia juridica pertence precipuamente as pesquisas das 
ciencias humanas do secuJo xx. Portanro, guardaremos l\ expressiio humanis-
rno juridlCO, il qual , cvidenlemcQle, nao damos 0 significado lilerfuio c moral 
que assumiu no seculo XVI. 
16. Leo Strauss, Droilllolurid el histoire, PIon, p. 192. 
60 OS PRINCiPJOS FILOSOFICOS DO DIR£lTO 
Se dermos eredito a Leo Strauss l7 , Marlowe, que atribuiu 
ao florentino a frase taxativa "Sustento que nao hi alltro peca-
do alem da ignorancia", teve lima 6tima idei<l: sua frase nao s6 
define a atitude intelectual de Maquiavel como pennite situar 
em sua ordem propria sua concep.;:ao da politiea e do dire ito 
que a rege. 
A) Servj~o pllblico e normalividade do Poder 710 Estado 
A originalidadc de Maquiavel transparece em 0 principe, 
em que e, acima de tudo, 0 pensador da orao politica. A seu 
ver, 0 Poder nao se define pela ideia, mas pelos procedimentos 
que Ievam a ele e permitem nele se manter. Considerado filo-
soficamente, 0 pensamento politico de Maquiavel implica, des-
de 0 principio, a rejeiQao da ideia do direito natural e, mais am-
plarnente, a recusa da filosofia politica tradicional. Seja esta a 
de Platao, de Arist6teles, de Cicero, ou a que encontfamos nos 
pensadores medievais, ela eai, com todas as inspira<;5es mes-
cladas. na esparrela de um idealismo tao Ll1util quanto falaeio-
so. 0 florentino, rico de sua experiencia, op6e-lhe uma busca 
realista, que leva esscncialmente em conta, no universo em que 
vivem os homens, nao tanto as situa.;:oes cotidianas, afinal 
banais e ponco significativas, mas "os casos extremos". Essas 
situa.<;oes-limite funcionam como reveladoras daquilo que, 
Duma humanidade em que rugem as paixoes, c gerador de me-
do e de morte . Nao tendo examinado os medos e os males que 
atonncntam os homens, as filosofias cI{lssicas se equivocaram 
ao associar a ideia da "lei natural" a perfeicao humana. Por 
causa desse erro de postutayao, as filosofias classicas se extra-
viaram, pensa Maquiavel, em caminhos que nao levam a lugar 
algum e que, de todo modo, s6 indicaram aos homens 0 senso 
dos deveres OU, 0 que vem a dar no mesmo, s6 Ihes falaram dos 
direitos derivados desses deveres. t nisso que elas permanece-
ram, irredutivelmente, "pre-modernas". 0 projeto politico de 
17. Ibid. 
PRlMElRA PARTE 61 
Maquiavcl e, portanto, embasado numa vontade de mptura com 
os pressupostos idealistas e as especula<;6es ut6picas da filoso-
fia cl<i.ssica: e inutil dissertar sobre "0 melhof regime", cujos 
contomos nunca farao compreender em que consiste a natureza 
do Poder politico; essa natureza s6 S0 cxprime atraves dos em-
preendi.mentos que 0 chamam e que ele provoca. 
Assim, Maquiavel nao concebe outra organiza<;ao politica 
alem da qne sc preocupa em primciro lugar com 0 "servi<;o 
publico". Acima de tudo, nao a pensa de acordo com a figura 
hipotetica de seu dever-ser; encontra-a na realidadc concreta 
do Poder e de suas manifestayoes, segundo "a verdade efetiva 
da COiS3", mesmo que esta esteja oculta em reconditos compli-
eados e por vezes cheios de sombras. E preciso insistir nisso. A 
natureza do Poder nao se revela nas rcpubli<.:as imagimlrias 
esculpidas pelo idealismo: 0 Poder nao e 0 do fil6sofo, cuja 
sabedoria faria descer na CAverna dos homens a inteligibihda-
de diarnantina do Ceu das ideias. A natureza do Poder tamponco 
se revel a Huma politica baseada no teologismo: 0 Poder nao e 
na Cidade terrestre, mesmo quando se fala de "plenos pode-
res", a imagem da potencia transcendental de Deus. Aos othos 
de Maquiavel, 0 fraeasso pnitico do "fiI6sofo-rei" eo desmem-
bramento da Respub/ica christiana significam que a ideahdade 
do Poder do Estado e ulna quimera de visionario. Em compeu-
53<;80, sua "efetividade" - a verita effectuale de sua maneira de 
existir - manifcsta suas caracteristicas e deixa perceber seus 
ptincipios. Pode-se, portanto. considerar 0 De Principatibus urn 
"espelho dos principes", em conformidade com 0 sentido que 
entao se dava a essa expressao. Mas pareee sobretl.ldo que Ma-
quiavel "seguiu urn caminho em que ninguem antes dele havia 
pisado. Compau 0 que conseguiu com 0 descobrimento dos 
mares e terras desconhecidos; apresenta-se como 0 Colombo 
do !nundo moral e poJitico" I 8. 
Entretanto, ainda que as perspectivas inovadoras do rea lis-
010 de Maquiavel e a inten.;:ao praxioI6gica que gujam sua pes-
18. Leo SITaUSS e Joseph Cropsey, Histflire de fa philosophie po/ilique 
(1963), trad. fr., PUF. 1994, p. 331. 
62 OS PRINC/PIOS FILOSOFICOS DO DlREITO 
quisa constituam, mesmo como as comentadores tern assinala-
do, a base sobre a gual comecara a se edificar, principal mente 
com Hobbes, 0 direito politico modemo,nao se pode calar a 
ambivalencia que paira no discurso do florentino. Se e verdade 
que no "planeta" do qual Maquiavel eo te6rico, 0 "Principe do 
Inferno"19 e senhor da a«ao politica, e preciso insistir de modo 
mUlto especial nos procedimentos do acesso ao Poder enos 
meios praticos para nele se manter. No entanto - talvez contra 
qualquer expectativa, mas, "tal como 0 navegador em busca de 
aguas e terras desconhecidas"2o, encontramo-nos numa rota 
inexplorada - ha lugar nos intersticios do discurso maquiaveli-
co para 0 esbo~o de urna concepcao institucional na qual se ali-
nhava a capacidade normativa do Poder. 
A normatividade do Poder se exprime na maneira que 0 
Estado tern - seja ele principado ou republica - de adotar novas 
leis para atender as dificuldades da situacao. A coisa e irdua, 
por vezes ate impossivel, em razao do peso dos costumes. A 
tarefa se mostra sempre problematica: ainda que a inovaC30 
illevitavelmente perturbe a tradicao, ela deve nao obstante COD-
sistir no estabelecimento de regras novas que nao abalem de-
masiado as condicoes estabelecidas21 . Como guer que seja, 
isso e necessario: "Um principe recem-estabelecido numa Cida-
de ou numa provincia conquistada deve renovar tudO."22 Sem 
duvida procedera mais por caleulo interessado do que por vir-
tude generosa; ou ainda s6 avan<;anl por tentativas e erros, sem 
buscar as razoes suficientes das nonnas novas que estabelece. 
Mas 0 importante e que, no Estado do qual Maguiavel tra<;a 
pela primeira vez um bosquejo que, sem ser nitido e univoco, 
J 9. Joa Cornelle, "La plani:te Mal:hiavel: Ie Prillet; d'Enfer". in L ·EIt1I 
baroque, Vrin, 1985, pp. 44 5S . 
20. Maquiavel, DiSCOllrs SflY lu premiere decade de Tile-Live, PrefaClo, 
p.377. 
21. Ibid., liv. m, cap_ XXXV, p. 696; Le Prince, V" p. 305; "E preciso 
pensar que nao lui coisa mais penosa de se tratar, mais duvidosa de se conse-
gllir, nem mais perigosa de se maoejar do que se aventurar a int(oduzir novas 
imtitUl<;oes." 
22. Maquiavel, Discollrs ... , Jjv. I, cap. X,'XVI, p. 441. 
PRlMElRA PARTE 63 
possui caracteristicas ja modemas23 , as novas leis do principe 
formam uma estrutumjuridica que se parece muito com os ele-
mentos constitucionais pelos quais definimos hoje a ordem es-
tata!. H. na primeira frase do Principe, Maquiavel declara que 
essas leis, por "seu comando sobre os homens", caracterizam 
"todos os Estados"24 . Ao dcscrever a a~ao poHtiea na qual 0 uso 
caleulado da for«a e d.a aSlucia detennina a estrategia do ho-
mem de Estado e detennina seu exito, ele pretende mostrar que 
o poder de Estado nao e apenas expressao de potencia e de 
oportunismo. Muito pelo contnlrio, para dado povo, em seu 
territ6rio e Dum tempo detenninado, e preciso que 0 Poder se 
organize de tal modo, que seja canalizado e controlado. Ma-
quiavel, seguramente, se Iimita a mencionar e a descrever, com 
o apoio de exemplos historicos, os meios pelos quais se mani-
festa a ayao do Poder do Estado ; nao elabora uma teoria siste-
matica da pnitica politica. Nao obstante, os mecanismos do 
Poder aos quais recorre a praxis do chefe de urn Estado para 
mante-Io ou desenvolve-lo, bem como para ganhar LIma batalha 
contra a adversidade, contem principios gerais que Maquiavel 
considera, implicitamente, 0 cixo fundamental de urna concep-
plo institucionaI da politica. Que 0 "principado civil" veaha "do 
povo ou dos grandes, segundo uma ou outra parte tenha ocasjao 
para isso"25, ele impoe a todos os cidadaos urn corpo de regras 
23 . Convem aqui dar maior aten~:io ao vocabulano. Alexandre Passerin 
d'Entrevcs observa com muita justc:z.a que lradllzir por E.Had() os tenoos 
[,olis , Res publica. Civilas ou Regnum, ulilizado~ pelos autores classicos, e 
uma traduc;ao complacente que nao e I?ertinente (La notion de I 'Elal, Oxford, 
1967; trad. /T., Sirey, 1969, pp. 37-9). E preciso aguaroor os meados do sceulo 
XUl para que a filosofia polilica, pondo cnfase menos na uOldadc da comuni-
dade crista (a re~publica christialla) do que na pluralidade das comunidades 
dlferencladas nascidas de sua fragmcntacao (as civitates e os regnal, reconhe-
~a a cada uma delas a individualidade >ociopolitica de uma commllnr/ll5 per-
fee/a el sibi sujJicielLf, "aquela que", diz A. Passerin d'Enh-eves, "malS se apro~ 
xima, na hnguagem medieval, da no~ao moderna do ESlado", ja que se pode 
~ncontrar neJa um principlO de unidade e de aulo-sufieiencia . Contudo, ~o­
mente com a Reoascen<;a e que aparcec a palavra ESlado "que fomece 0 iimbi~ 
to cOllceitual para uma siruaciio nova". 
24. Maqlliavel, I.e Prince, l. p. 290. 
25.1bid., IX, p. 317. 
OS PRJII/CiplOS FILOs6FICOS DO DIREITO 
e de leis: nao e dessa maneira, perguuta 0 florentino, que 0 rei-
no de Fran~a "/:. urn dos mais bern ordenados e govemados de 
que se teoha conhecimento em nosso tempo. E nele se en con-
tram infinitas boas institui~6es, das quais depende a liberdade 
e seguran<;a do rei"26. Alias, observa ele, a autoridade do Poder 
num Estado vem do fato de os estatutos e os reguJamentos que 
ele ali estabeleceu terem preeminencia sobre os usos e costu-
mes exislentes, 
Contrariamente ao que afirmavam os pensadores medie-
vais, sempre apegados a regra consuetudimiria, Maguiavel con-
sidera que a forya do Poder consiste menos no respeito dos cos-
tumes por quc se pautam os povos do que no recorso a sua pro-
pria capacidade legisladora: 0 Estado e criador do direito da 
comunidade civil. 0 poder politico e tun poder normativo e 0 
Estado se delineia como urn fenomeno jurfdico. E por isso que, 
ao passo que 0 pensamento politico medieval, alento aos es-
quemas do regime feudal , confl.lndia ll1ais ou menos, entre 0 
senhor e seus vassaJos, 0 que e "pllblico" e 0 que e "privado", 
Maquiavel reencontra e reativa a distin~ao feita por Arist6teles 
e Cicero entre a autoridade publica do principe e a autoridade 
domestica do pai de familia ou do dono da easa. Nao se deixa-
ra de objetar aqui que Maquiavel fica a tal ponto reticente dian-
tc de uma eventual teoriza93o das estrutw'as juridicas do Poder 
estatal que nem sequcr fala da soberania do Estado, cmbora a 
reconhecesse como summa potestas. E verdade que DaO cuida, 
mesmo que a idCia de regula<;:ao da vida pliblica esteja onipre-
sente em slla obra, de escrever um novo de legiblls . Mas reeo-
nhece que 0 "principe novo" encarna num Estado, hie et Ilunc, 
o poder de editar regras organizaeionais e maximas de coman-
do. A primazia da ordem assim estabelecida e tal que, sob um 
rei ou nurna republica, todos os suditos devem obediencia as 
regras do direito assim "formulado". Portanto, nao so Maquia-
vel avan<;a pOl' um caminho novo ao associar a n0930 de "poder 
publico" ao seu conceito de Estado, mas tambem e-Ihe impos-
26 Ibid., XIX. p. 346. 
PRJMEIRA PARTE 65 
sivel pensar 0 Estado independentemente do sistema regu/ador 
que e a propria expressao do Poder. 
Contudo, no discurso maquiave/ico, nada revela melhor a 
ambivalencia da jovem 00930 de Estado do que a Ilesilay30 en-
tre a enfase dada explicitamente a a~iio politica e a importan-
cia atribuida, ainda que implicitamente, a inslitucionalizafGo do 
Poder. Sem duvida, essa indecisao pel'manece no fundo ocullo 
da obra. Entretanto, se uma teoria da instilui<;:30 continua sendo 
o nao-dito que 0 pensamento maquiavelico guarda em seu cer-
ne, ela se deixa decifrar filosoficamcnte. 
De fato , embora a obra politica de Maquiavel, compreen-
dida do augulo filosOfico , signifique a rejei<;:ao dos hOl'izontes 
idealistas do pensamento politico antigo, indica de modo muilo 
particular a fragmenta<;ao do universalismo ligado ao ecume-
nismo uuilano da respublica christiana. 0 principe c os Dis-
curso.\' ensinam, de modo unissono, que 0 pluralismo e 0 rei a-
tivismo se insinuarn na esfera especifica fonnada, dai por diante, 
pel os "principados" novos. Ademais , como 0 aparelho institu-cional elaborado em cada \.Ima dclas por urn Poder cuja preo-
cupa<;:3o primordial e pcrdurar21, a autoridade do Estado nao 
poderia ser estabelecida de uma vez pOl' tOMS; as regras de 
a9ao que ela estabelece segnem os conlomos dos acontecimen-
tos ; adaptam-se e rcnovam-se ao sab~r das "coisas humallas" 2~ 
e dos antagonismos que ocorrem na realidade politica. Em 
conseqi.iencia, Maquiave1 substitui 0 eSlatismo da;; instituiyoes 
medievais, reputadas como fonnadas com quase-perfeicao jei. 
que eram a imagem da Cidade de Deus, por uma dinamica juri-
dico-politica necessaria dependente do movimento historico. 
Nos primordios da modemidade, uma das grandcs ideias filo-
sOfie as de Maquiavel e que nao e a transcendencia das ideias 
que leva a realizaQao do direito politico; COniO 0 Poder e coisa 
humana, 0 Estado nao tern de buscar suas raizes no "outro mun-
27. Ibid., lj, p. 290. 
28. Maquiavel,A IIIandl'ligorlJ, III ato, cena 2, e DisCQuJ's" .• liv. I , XI, ill 
lille. p. 414 . 
66 OS PRINe/PIOS FlLOSOFlCOS DO DlRElTO 
do", inteligivel ou divino; tern, aqui meSl)1O, a historia como 
principia, como eadinho e como horizonte29• 
Assim se desfazem, no proprio eerne do "trabalho da obra", 
todos os pontos de referencia tradicionais que, no ambito dua-
lista do pensamento e do real, hnham servido ate entao para 
definir a poJitica por sua rela~ao com 0 ceu inteligiveJ ou com 
a ordem natural e divina do Immdo. Portanto, temos boas ra-
zoes para dizer que 0 florentino abre a via de uma compreen-
sao moderna do direito politico, na medida em que 0 humanis-
rno que 0 conduz se reporta a experiencia e a hist6ria. Nao obs-
tante, nos labirintos da obra, as coisas nao sao simples: ousado 
precursor das vias da modernidadc, Maquiavel so avan<;a, con-
tudo, em seu novo "plancta" sob a manto tla ambigiiidade: tendo 
optado por expor os mcios usados pelo Poder do Estado na ac;ao, 
ele fica muito discreto - quase sigiloso - sobre a necessaria 
regulay30 normativa cuja necessidade irreprimivel ele captou. 
B) Os imperativos organizacionais do Estado moderno 
Apesar da imprccisao e das hesita<;oes do discurso de Ma-
quiavel, um fenomeno de maquiaveliza<;ao do direito poHtico 
iria m arc ar, como urn ponto sem retorno, a marcha da com-
preensao do Poder. Para captar os principios a partir dos quais 
a filosofia concebera desde entao 0 Poder no Estado modemo, 
fa<;amos 0 balanc;o das grandes lDudanC;as que Maquiavel intra-
duziu nos conceitos enos procedimentos politicos. 
Separando os horizontes do jusnaturalismo cosmol6gico 
da filosofia aIistotelica e estoica e dando um adeus definitivo 
ao idealismo metafisico e teologico, Maquiavel reconheceu as 
ra[zes seculares) antropol6gicas e historicas do Poder: assim se 
abre, sobre urn lundo de realismo, a carreira do hurnanismo ju-
ridico-politico. No espa<;o publico que sera a do mundo mo-
29. Maquiavcl, Discours ... , )iv. J1. pre facIo, p. 510. EvidcDtementc, isso 
nno quer dizer que Maquiavel seja 0 prchidio dos historici~mO& do sCculo XIX. 
A 1100;ii.O de "senso da Hisloria" e inleiramenle ignorada por ele. 
PRlMElRA PARTE 67 
demo, cabe ao homem e somente a ele construir c conduzir a 
politica do Estado. E quase ccrto que, nessa revoluc;ao episte-
mologica, Maquiavel lenha sido influenciado pelo direito ro-
mano; seu conhecimento do Digesto e dos lnstitutos, sua fami-
Jiariclade com Tito Livio e com a historia de Roma transparecem 
em numerosas paginas e ele proprio confessa que sua "Ionga 
experiencia das coisas modernas" deve muito a sua "leitura 
continua dos antigos"Jo. Mas quando declara que, no novo Es-
tado, os que tern 0 encargo de governar devem imitar "a antiga 
virtude", isso quer dizer que devem reinventa-Ia e adapta-Ia aos 
parametros exigidos por uma politica dirigida pelas novas ins-
tituic;oes. De fato, para alem de sua erudicao, Maquiavel COffi-
preendeu nao apenas que 0 Poder nada tinha a pedir a Deus31 , 
mas que, na sua laicidade intrinseca, nao podia ser assimilado 
nem ao carisma de um chefe, fosse ele Anibal ou Cesar Borgia, 
nem a for~a material de uma comunidade. Alias, no humanis-
mo juridico-politico que ele inaugura, 0 que the importa nao e 
dirimir a questao de sabcr se 0 Poder e (ou deve ser) 0 de urn 
monarca ou de um pavo (0 principe e as Discursos nao se 
apresentam como os dais termos de uma alternativa entre os 
quais e preciso op tar) , mas fazer entender que jamais havera 
Poder politico sem um conjunto de regras destinadas a estabe-
lecer suas estruturas baslcas, fixar suas Iinhas organizacionais 
e ate preyer suas diversas modalidades de controle. 0 Principe, 
fundador de uma ordem lnteiramente nova, tern a seu cargo 
fazer de seu "principado novo" urn sistemajuridico, isto e, urn 
corpo de ordena<;oes e de leis sobre 0 qual se edi ficarn sua pra-
lica politica; assim tambcm, uma Republica e impossive! e in-
concebivel sem urn corpo de regras de direito destinado a esta-
beleccr e a manter a ordem publica. As Historias florentinas 
revelam, como llum espelho, os maleficios das carencias orga-
30. Maquiavcl, Le Prince, Dedicaloria a Louren.;o de M6dicis, p. 289. 
3 J. Se J. R. Strayer pode falar de lima La'icizalion ofFrcnch and English 
Socie ty iD the Thirteenth Century, Speculum, 1940, XV, pp. 76-86, trata-se ai 
apenas de sinais pcecuTSores ainda tirnidos. Maquiavcl foi quem deu corajosa-
mente 0 passo. 
OS PRlNCiPlOS FILOSOFICOS DO OIREITO 
Ilizacionais da vida publica e, portanto, 0 custo humane exor-
bitante e dramatico da desordem oum Estado. 
Compreende-se, por conseguinte, a importancia das consi-
derayoes antropo16gicas na obra de Maquiavel. A maldade e a 
inveja dos homens, 0 delirio das paix6es, 0 mal semprc presen-
te na sombra do mellor bem, as foryas do desejo e do egoismo, 
a inaptidiio para fazer 0 bem sem ser fon;ado a isso etc. sao ele-
mentos que esclarecem a natureza ja politica do ato que pare-
ee, contudo, seT somente 0 fl.lndador da politica: esse ato esta-
belece um vinculum juris cuja for({a obrig~t6ria e altamente 
significativa do ponto de vista filos6fico. E que, de fato, no 
Estado moderno, 0 dominio do Poder se exerce sobre a neces-
sidade natural e sobre 0 acaso que regem a vida dos homens, 
sem 0 que a anomia e anarquia. Assirn se explica que a astllcia 
seja 0 recurso cardeal dos que governam, nao 56 potque torna 
a forc;a jnvisivel (foi esse 0 casu de Brutus fingindo a louew-a)J2, 
mas sobretudo porque canaliza a fowa grac;as iJ eoe~ao que 
doma a neccssidade para encaminhar-se para a liberdade: foi 
assim, alias, que Roma outrom cortou "as raizes de suas quere-
las"33. Desse modo, aqueles que governam estao em condi<;6es 
de cnfrentar a imprevisibilidade veiculadapelo tempo da hist6-
ria . Conjurar a necessidade natural e 0 aeaso hist6rico constitui 
urn criterio decisivo da modemidade do direito politico in statu 
nascendi. E nisso que a virtu prepara sua capacidade normati-
va: irnpedindo que afortllna empregl1e, "a eada volta do sol", 
toda a extcnsiio de Slla for<;a, ela assegura 0 dominio sem 0 qual 
l1ao existe 0 Poder do Estado. A arte de governar e incol1cebf-
vel sem recorrer ao principio da onlem pLlblica. 
Embora sublinhe a imanencia do principio de onlem no 
pr6prio ftmago do Poder, Maquiavel ainda nao sabe, entretanto, 
confenr-Ihe a clareza de uma maxima de 16gica juridica. Se-
gundo eJe, esse principio se exprime em dois niveis. Num pri-
meiro nivel, comanda a preocupa<;ao com 0 exito quc acotnpa-
nha a a<;<1o do momento e, ja que detennina, como tal, uma es-
32. Maquiavel, Discours ... , liv. 111, IT, p. 611. 
33 . !bid., liv. I, VI. p. 395. 
PRIM£IRA PARtE 69 
trategia colocada sob 0 signo da utilidade e cia eficacia, nao se 
eleva acima da oportunidadc34 Entendamos que de permite ao 
principe recorrer, sc for preciso, a meios extraorrunarios a fim 
de manter a redea curta a mediocridade humana. Numsegundo 
nivel, mais profundo, ensina (e essa, de modo todo especial, a 
li<;5.o magistral da Republica romana) que 0 sentido do direito 
politico esta, no Estado, para alem da personalid.clde dos politi-
cos que nele atuam: "Gra<;as a exeelencia de sua Constituiy30 
e de suas leis , ' a Cjdade' nao tern necessidade de basear sua 
salva({ao na virtude de urn homcm SO .")5 Se e verdade que 0 
Poder sc preocupa acima de ludo com as tecnicas do exi.to - em 
momento algum Maquiavel duvida que essa e a missao princi-
pal do "principe novo" na Italia agitada do Cinquecento - ele e, 
na sua natureza proftmda, questao de institui({iio e de direito. 
Tudo se passa, pOltanto, como se, no entrecho da obra maquia-
veJica, se entremeassem dois discursos aparentemente desco-
nexos. Urn primeiro discurso, explicito, participa de seu realis-
rno pcssimista. Ensina a necessidade de domar os homens, 
d . . 36 mesmo que para isso os govemantes evessem usar CIUlsmo . 
Contudo, Maquiavel nao e 0 porta-voz de um cesarismo cruel, 
intransigente e cego. Eo advogado da "ordem publica", que e 
importante fazer triunfar sobre os intercsses e as paixoes. Da 
mesma forma, um segundo discurso, implicito, esta como que 
escrito nas margens de Tito Livio. Contem a inrui({ao forte , 
ainda que jamais conccitualizada e teorizada, segundo a qual a 
potencia do ESlado requer as estruturas de urn direito publico 
eujas normas sejam coercivas: as "boas leis" sao tao import3n-
tes quanto as "boas ann as"; 0 direito e a for<;a devem cooperar 
e se compor, razao pel a qual e necessario ao principc "saber 
bern lidar com a fera eo homem". Fichte e Cassirer serao sen-
siveis ao aspeeto institucional puramente leigo que da fei({ao 
34. M. Mer\ealJ-Ponry, Signes. p. 275 . 
'\5 . MaquiaveJ, His!om;sflorentlnes , Iiv. IV, I, p. ! 1 19 
36. MaqUlavel , D,scours . . , liv. J, lX, p. 405. Leo Strauss ale chama 0 
norentino de leacher vf evil, em Thoughts 011 Macchinvelli. Glencoe, Illinois. 
1958, p 9. 
70 OS PRJNCiPIO.') F/LOS6F/COS DO DIRElTO 
juddica a politica segundo MaquiaveJ - uma politica da Terra 
que signi fica que compete aos homcns aruar e que terao, em 
definitivo, 0 destin~ que merecem37 . 
Certamente e sobre 0 horizonte sombrio dos primeiros 
albores da Renascen<;a que se destaca a figura original de Ma-
quiavel: 0 ferro e 0 veneno reinam na Italia do Cinquecento; a 
Reforma de Lutero e a "guerra dos camponeses" ensangiien-
tam a Alemanha desde 0 come<;o do seculo XVI; na Fran<;a de 
Francisco leo tempo das guerras; na Jnglaterra, grassa a mise-
ria, diante da qual Thomas More protesta e reage ... Mas, mes-
mo sendo sempre possivel, com Rousseau ou com Leo Strauss, 
expor a quesUlo de saber "como ler Maquiavel", e certo que 
uma compreensao hist6rica de sua obra pennanece inteiramen-
te insuficiente. Para alem da aventura historica dos homens, 
filosoficamente ele e, como diz E. Cassirer, "0 primeiro pensa-
dor que teve uma representa<;ao completa do que significa 0 Es-
tado"38. Julguemo-lo hennetico ou esclarecedor, insolente ou 
fecundo, negro ou dourado, importa reconhecer que ele saJien-
ta com uma for<;a extraordimiria a energia criadora do Poder e 
que, abrindo com essa idCia iconoclasta os caminhos do huma-
njsmo jwidico-politico, sirua-se "a beira do mundo modemo"39. 
Maquiavel, compreendido ou incompreendido, suscitou nu-
merosissimas resistencias e criticas virulentas40. Ocone que, 
depois dele, nao se podia pensar 0 direito politico como antes 
dele. Sua doutrina serviu de breviano secreto aos condutores do 
Poder, mesmo aqueJes que, oficialmente, a denunciavam. Sera 
preciso evocar 0 implacavel Cromwell, os "despotas esclareci-
dos", 0 proprio Rousseau que via em 0 principe "0 livro dos 
republicanos"? NapoJeiio e Mussolini nao escondiarn sua admi-
37. A respeilo desse ponto, cf. EmstCassirer, The mylh of the State (1946), 
caps. X e Xf, em tracJ. fr., Galhmard, 1993, pp. 164-80 e 181-93. 
38. Ernst Cassirer, op. cit., p. [33 . 
39. Ibid., p. 140. 
40. Limilemo-nos a cHar aqui La Grant 'monayrhie de France, do Ar-
cebispo Claude de Seyssel (15[9) e, sobretudo, 0 Anti-Mach/ave! ou Discours 
wr les moyel!.~ de bicn gouvemer el dc marn/enir en bonne paL'C un royaume 
ou alllre prinelpaure, de Innocent Gemillct (1576). 
PRJMEIRA PARTE 71 
ra-;:ao pelo florentino. Na vcrdade, para al6m do uso dado por 
certos chefes de Estado as leses, mais ou menos bern com-
preendidas, de Maquiavel , parece-nos muito mais interessante 
observar que autores como Manzoni e Clausewitz no seculo XIX 
depois, mais perto de nos, James Burnham e Merleau-Ponty: 
souberam ver na obra do florentino, tao abundante quanto per-
turbadora, a ideia modema da preerninencia do Estado secular, 
de sua Constitui<;ao e de suas leis. 
Contudo, coube a Thomas Hobbes edificar, peya por peGa, 
dessa vez como filosofia sistematica, a estatua do Poder41 co-
mo potencia normativa num Estado cuja catedraJ impressio-
nante 0 homem constTuiu racionalmente. 
l. 0 principio de autoridade no Estado-Leviata de Hobbes 
o historiador das ideias pode fiear espantado e irritado ao 
mesmo tempo quando Ie, sob a pena de Thomas Hobbes, que a 
filosofia poIilica oaseeu com 0 De Cive42 . Espanta-se com que, 
de Platao a Jean Bodin ou de Aristoteles a Maquiavel, ncnhu-
rna das obras filosOficas de Santo Agostinho, Santo Tomas ou 
Marsilio de Padua, mere9a, na opiniao de Hobbes, ser cons ide-
rada em sua dimensiio pol[tica e com que nenbum dos glosado-
res, legistas ou jurisconsuJtos tenha sabido, nas escolas de di-
reito de BoJonha, Padua, Salamanca, Bourges ou Orleans, lant;ar 
a menor clareza sobre os principios e as engrenagens da politi-
ca . Assim, nenhwn £116sofo, nenhumjurista teria compreendido, 
ate 0 seculo XVTl, que a poJitica nao pode prescindir da postu-
la<;ao fundamental nem do horizonte conceitual da filosofia? A 
pretensao do fi16sofo de Malmesbury de inaugurar a "filosofia 
politica" pode portanto irritar na medida em que tacha de in-
41 . Leo Strauss qualifiea mesmo Hobbes de "primeiro filosofo do Podd', 
Droil ,wltlrel e/ hi.lloire, PIon, p. 208. 
42. "Se a Fislca e uma co\sa inleiramente nova, a filosofill poliliea 0 e 
nintla bem mais. Ela nao eo mais anliga do que minha obra Do cidadiJo" De 
en/pore, Eristola dedieatOria, tcad. Deslutr de T(acy; cf. iguaImenle'Le-
viathal1, cap. lX, lrad. F. Tricaud, Sirey, t971 , p. 80. 
72 as PRINcjPIOS FILos6ncos DO DTR.ElTO 
hmtilismo e considera vas todas as obras, no entanto vigorosas, 
dos seculos passados. Nao seria mais por wn orglliho desmedido 
do que por heroismo inteleetual que Hobbes se arroga a quali-
dade de fundador em materia de filosofia politiea? 
S6 a leitura atenta do corpus fi/os6fico hobbesiano peroli-
te dar adeus a esse espanto irritado. Hobbes, diferentemente de 
Maquiavel, nao e embaixador nem jurista: e fil6sofo. Avan-
<;ando com passo firme no terreno em que, desde Grotius e Des-
cartes, firmam-se com nitidez cada vez maior as caracteristieas 
distintivas do eontinente modcrno do pensamento, cujas mar-
gens Maquiavel entrevira, Hobbes dirige a todos os autores que 
o precede ram a critica contundentc de terem sempre eonsidera-
do a politiea uma questiio de arte e de pratica. Ora, como, Ila 16-
giea intema do sistema filos6fico de Hobbes: a politiea nao pode 
ser pensada independentemente da philosophia prima, 0 Poder, 
pedra angular da politica como sempre foi reeonhccido, deve ser 
encarado como wna questfio te6rica e de principio. Em outras pa-
lavras, 0 que Hobbes inventa em seu procedimento filosMico e 
a prohlemalizariio leorica do politica. 
A) A probiematiza9QO teorica do Estado 
Para Hobbes, erigir a estatua do Estado-Leviata nao e urn 
empreendimento pragmatico e siro especu!ativo. Alem disso, 
quando Hobbes reconhece 0 poder do Estado como a fonte de 
todas as norm as da experiencia politica, nao e porqueuma 
conslata~ao empirica , e sUn urn raciocinio rigoroso 0 eonduz a 
tal conclusao. A fei<;ao racionalista do pensamcnto de Hobbes 
aparenta-se assim rna is com os esquemas discursivos da filoso-
fia francesa do seClll0 XVlI do que com as tendencias empiris-
tas da filosofia inglesa: nao que Hobbes ignore a importancia 
da Common La....,.43 que, na Inglaterra , converte 0 direito, ate e 
inclusive 0 direito politico, no produto do costume e da juris-
43. A Dialogue belWeen a Philosopher alrd a Student oj tltt< Common 
Law of Ellgland, publicado postumamCllle crn 1681, foi sem duvida redigido 
em 1664 ou 1665, cf. eUl"iio de Tlillio Ascarelli , Dalloz, 1966. 
PRlMElRA PARTE 73 
prudencia; mas, diante do modelo institncional da Fran<;3 de 
Rlchelleu, ele pensa que a fOI"<;a do Poder reside na arquiletllra 
racional de sua legisJa~ao positiva. Entre os modelos ingles e 
frances, a epistemologia hobbesiana, em sua ambi<;ao teorista, 
nao hesita: 0 Jegalismo centralizador da Fran~a exprime as 
poteneias do raeional. Hobbes proeuranl portanto, explicando 
como elas estruturam 0 Poder, sistematizar seu significado 
coneeitual e sua capaeidade organizadora. Assim, a "filosofia 
politica" sera uma "ciencia politiea". ' 
Como a problematica do Poder consistc, desde entao, em 
se perguntar quais sao as razoes de principio, ao mesmo tempo 
fundamentais e organizacionais, da autoridade do Poder no 
Estado, Hobbes renova a indagayao ciceroniana que se rereria 
outrora it ratio juris, it ratio legis e it ratio decidendi. Abre 0 
ca~inho para 0 trabalho de reflcxao critica que reena, segundo 
a vIa especulativa, as raizes primordiais do Poder. Par essa 
razao, bem meihor do que Maquiavel, ele enun~ia 0 que Leo 
Strauss chama de uma "questao fundamental": esta nao e nem 
a questao empirica da origem da ordem politica nem a questao 
ontologica de sua essencia. Hobbes formula a questao essen-
cial que toea ao que hoi de mais profundo, portanto, de funda-
mental, na realidade politica que 0 Estado e. No sentido mais 
forte do termo, e 0 principio - 0 principio primeiro - do Poder 
que sua nova filosofia politica pretende por em evidencia44 . 
Hobbes mostra assim que, no espayo ptlblico em que os ho-
mens sao chamados a evoluir se nao querem se parecer com 
Jobos, 0 Podcr, simbolizado pe)o Leviata, e uma figura da arte 
racional. Isso, bem entendido, foi muitas vezes salientado 
pelos eomentadores. Mas observou-se menos que, no mecanis-
mo universal postulado pela filosofia de Hobbes, as proprieda-
des llonnativas do Poder do Estado resu)tam da maneira pela 
44. Como diz com muita clarc2a Robert Cummings coo Hllman Natw'e 
wId His/OJy: A SII/dy oflhe. Deve/opmenL of Liberal Political Thoughl (Chicago, 
1969. vol. 2, p. 16), cHado por Hannah Arend! COl Juger. Sur 10 philesopllle 
poillique de K~nT, trad. fr., Le Seuil, 1995, p. 43: "0 objeto cia filosofia poli-
llc", modema. ' \naugurada par Hobbes ' , !laO t a Cidade au slia polilica , mas a 
rel~,:io entre filosofia e politica ."

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