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1 Publicação original: artigo Formato: texto integral Fonte: “Educação Ambiental e Ecoturismo”, Ecoturismo no Brasil, Rita Mendonça e Zysman Neiman, Barueri:Editora Manole, 2005 Autora: Rita Mendonça Educação Ambiental e Ecoturismo Introdução Educação Ambiental, termo jovem e antigo ao mesmo tempo, nascido para alimentar nossa esperança de construir um mundo novo, mais harmônico e pacífico, leva- nos a um amplo campo de reflexões que, associando os conceitos às práticas, traz-nos de volta a questões filosóficas essenciais, que sempre fizemos, enquanto seres humanos providos de consciência: quem somos? O que estamos fazendo aqui? Por que fazemos o que fazemos? Ecoturismo, mais jovem ainda, surge como resposta moderna aos profundos desejos de estar em contato com a essência da vida, com os outros seres que compartilham conosco a experiência de vida no planeta Terra. Buscar reconhecer e celebrar nossa identidade de seres vivos. Identificar e também celebrar nossas diferenças, pois somos hábeis, inteligentes e providos da capacidade de ter consciência, o que nos diferencia dos outros seres vivos e nos torna unos, com toda a humanidade. Experiência essencial – a de visitar o mundo selvagem – o ecoturismo também nasce no meio das contradições acumuladas por milênios de civilização, de experiência de transformação da natureza em artefatos. Estes, agora, são chamados de produtos de consumo e são considerados essenciais para a movimentação da economia. Ousar questionar este processo pode ser considerado ingênuo ou fora da realidade. Mas o que é realidade? Trinta anos de experiências em educação ambiental, 10 anos de experiências de ecoturismo, na concepção contemporânea. Quais são os resultados alcançados? Qual sua capacidade de exercer influência sobre a vida cotidiana no mundo de hoje, nos cidadãos de todas as culturas do mundo? Qual sua capacidade de gerar as transformações de que estamos precisando? Continuamos vivendo as contradições: cada vez mais projetos bem estruturados, bem articulados, criativos e compromissados; cada vez mais impactos no ambiente, mais degradação, mais conflitos. Teremos competência para mudar o curso da história? 2 Até o ecoturismo, que se propõe a ser uma atividade econômica voltada para a proteção da natureza e das culturas locais, tem causado tantos impactos, provocado tantas incompreensões, tantas inquietações. Por que? Existe algo que está “da boca pra fora”, que não entra em contato com o que está da pele pra dentro: nosso senso de responsabilidade não atinge as manifestações inconscientes de nossa natureza. Temos condicionamentos, temos hábitos culturais, familiares, individuais. São as prisões que construímos para viver. Será preciso rompê-las, será preciso nos libertarmos delas para nos aproximarmos dos objetivos primeiros da educação ambiental e do ecoturismo. Vivemos um conflito interno entre os nossos desejos conscientes e os que não estão tão conscientes assim, que são dirigidos por nossos condicionamentos e que fazem com que tomemos atitudes que vão no sentido inverso dos nossos desejos. Como tomar consciência das ilusões nas quais estamos mergulhados? Como construir um olhar autônomo sobre o mundo que nos cerca e vislumbrarmos o caminho a seguir? Como a educação pode contribuir para essa abertura de visão? Nos projetos educacionais, estamos habituados a trabalhar com conceitos, teorias, hipóteses, distinções, comparações, “que são instrumentos organizadores das percepções em padrões de consciência lógica denominados explicações. (...), mas eles não despertam novas percepções, novos sentimentos.” (Needleman, 1991:49). Ou seja, não abrem os canais necessários para a internalização de nossos desejos de participar da formação de um mundo mais harmônico e, pelo menos, ambientalmente mais equilibrado. A contradição entre os aspectos intelectuais e emocionais do indivíduo continua, e é rapidamente amenizada pelos inúmeros projetos que não conseguem ultrapassar a barreira, sólida, construída pela tradição educacional baseada na transmissão de conceitos e teorias. ”O alcance dos conceitos não ultrapassa o nível de consciência em que vive o homem.(...) É necessária a ativação de uma energia mental inteiramente nova.(...).” (Needleman, 1991:49). A experiência de ecoturismo pode fazer isso: abrir oportunidades para emergirem novas formas de pensar, abrir espaços para ações criativas, que possam garantir a todos uma experiência transformadora. O ecoturismo possibilita uma vivência, indo muito além do alcance das explicações. Se ela for positiva, bem elaborada, pode deixar no indivíduo a certeza de que a construção de novas relações com o mundo é possível. 3 Ecoturistas, planejadores, empreendedores, educadores devem se lembrar da imensa oportunidade que têm nas mãos ao possibilitarem o contato das pessoas com o mundo selvagem, do qual vimos nos distanciando há milênios. Esse distanciamento, processado num longo e contínuo processo de substituição das áreas selvagens pelas domesticadas, deixou sobrarem pequenas ilhas destes ambientes originais. Hoje elas são raras e preciosas. E não é só do mundo selvagem de que estamos afastados: nos afastamos de nós mesmos; desconhecemos as possibilidades de assumirmos relações mais interessantes e verdadeiras com os outros. Tudo isso pode – e já temos provas suficientes disso – ser modificado pela prática do ecoturismo. O potencial que a atividade tem de contribuir para a evolução humana é imenso. Só que para realizá-lo é preciso disposição e preparação. Não é pouco o que temos pela frente. Educação Ambiental: começo, meio e fim Começo O termo Educação Ambiental surgiu na ocasião da Primeira Conferência Mundial sobre o Meio Ambiente Humano e Desenvolvimento, que aconteceu em 1972, em Estocolmo, na Suécia. A declaração elaborada nessa reunião representou o início da inclusão das questões ambientais nos relacionamentos entre países industrializados e em desenvolvimento. Aí foram também “lançadas as bases de uma legislação internacional do meio ambiente, onde se uniu a proibição do armamento atômico aos grandes problemas ecológicos, e onde a discriminação racial, o apartheid e o colonialismo foram condenados.” (Acot, 1990: 168). As questões ambientais desde essa época trazem à tona o questionamento da postura que considerava a natureza como meio e não como um fim em si, propondo uma reversão dessa situação. A Educação Ambiental aparece como elemento essencial para “o combate à crise ambiental no mundo, devido à urgência da necessidade do homem reordenar suas prioridades.” (Dias, 1992: 26) Ela deveria levar os assuntos ambientais para o público em geral, promover o treinamento de professores e o desenvolvimento de novos recursos instrucionais e métodos. Diversos encontros internacionais aconteceram desde então, para elaborar os caminhos que essa nova educação deveria trilhar. Um dos encontros mais importantes foi a Conferência Intergovernamental de Educação Ambiental, que aconteceu em Tbilisi, Geórgia, URSS. Nesta conferência, a Educação Ambiental “foi definida como uma 4 dimensão dada ao conteúdo e à prática da educação, orientada para a resolução dos problemas concretos do meio ambiente através de enfoques interdisciplinares, e de uma participação ativa e responsável de cada indivíduo e da coletividade.”(Dias, 1992: 31) A Educação nasce, assim, com a tarefa de ajudar a resolver os problemas ambientais, preparando os indivíduos para uma atuação mais compreensiva e responsável em relação ao mundo em que vive. Tendo em vista a imensa complexidade do mundo moderno, onde as características históricas, culturais, naturais de cada povo ficam submersas pelo desenvolvimento científico e tecnológico, a jovem EA assume um encargodemasiadamente pesado para sua capacidade de ação, tomando para si a questão: como desenvolver uma estratégia educacional capaz de reverter o curso de nossa história atual? Apesar de suas enormes limitações, ela expandiu-se pelo planeta criando nichos de maior consciência, informação e responsabilidades, mas que parecem até hoje não “conversar” com a necessidade que as sociedades modernas têm de dominação dos espaços e dos povos, de apropriação e destruição. A lógica da produção industrial, do consumo desenfreado, da descartabilidade, do individualismo impede que os acenos da EA apareçam no grande cenário das relações políticas, econômicas e sociais entre os países e no interior de cada um deles. Além disso, por conter em si o termo “educação”, e este estar profundamente arraigado no universo escolar, os projetos tendem a obedecer à mesma dinâmica, baseada nas explicações e no acúmulo de informações, o que raramente consegue romper a barreira dos condicionamentos e criar posicionamentos realmente novos. Meio A lógica de apropriação dos espaços, dos recursos, dos outros povos, de dominação e de destruição não começou a se desenvolver há tão pouco tempo, com a Revolução Industrial, como se costuma pensar. Se retomarmos nosso histórico, veremos que no mundo ocidental, a ascensão e queda de cada civilização que nos antecedeu estão marcadas por essa mesma lógica. A região do Crescente Fértil, a chamada Mesopotâmia, que marca o surgimento da primeira grande civilização ocidental, há quase 7 mil anos, era ocupada por exuberante floresta, hoje deserto. No curso de nossa história, à medida que os recursos naturais iam se acabando, as civilizações começavam a apresentar sinais de esgotamento e declínio, e buscavam perpetuar-se expandindo suas fronteiras, apropriando-se de novos recursos e de novos 5 povos. Problemas ambientais e “ambientalistas” preocupados com os destinos de suas terras, sempre existiram. A grande diferença é que hoje o planeta já foi inteiramente tocado. As opções tecnológicas dos últimos séculos são mais agressivas e com potencial destruidor muitíssimo maior. A população humana cresceu e seus territórios estão muito próximos ou sobrepostos, algumas vezes. A degradação ambiental está cada vez mais intensa. Sabemos que os problemas ambientais não estão isolados: há degradação nas relações sociais e também na esfera individual. As relações do indivíduo consigo mesmo estão desequilibradas e igualmente problemáticas. Tudo isso é parte de um mesmo problema. Se as relações com a natureza de cada povo são instituídas em sua cultura ao mesmo tempo em que são estruturadas as relações sociais e as individuais, faz sentido pensar que o inverso obedece a mesma lógica. Não conseguiremos retomar o equilíbrio em nossas relações ambientais se não reformularmos nossas relações internas, de cada indivíduo consigo mesmo e com os seus concidadãos. Afinal, são os modos de vida humanos individuais e coletivos que estão em progressiva deterioração. “Não é justo separar a ação sobre a psique daquela sobre o socius e o ambiente. A recusa a olhar de frente as degradações desses três domínios (o ambiental, o social e o subjetivo), tal como isto é alimentado pela mídia, confina num empreendimento de infantilização da opinião e de neutralização destrutiva da democracia.” (Guattari, 1991:24). “(...)para onde quer que nos voltemos, reencontramos esse mesmo paradoxo lancinante: de um lado, o desenvolvimento contínuo de novos meios técnico-científicos potencialmente capazes de resolver as problemáticas ecológicas dominantes e determinar o reequilíbrio das atividades socialmente úteis sobre a superfície do planeta e, de outro lado, a incapacidade das forças sociais organizadas e das formações subjetivas constituídas de se apropriar desses meios para torná-los operativos.” (Guattari, 1991: 12) Fim É, portanto, um erro pensar que os problemas ambientais podem ser resolvidos em separado. Se a Educação Ambiental se detiver apenas nestas questões dificilmente atingirá os problemas que pretende resolver. Para tanto ela precisa direcionar-se a modificar as bases culturais nas quais nossa sociedade foi moldada. Se nossa situação atual vem sendo gestada por um longo percurso histórico, não será do dia para a noite que conseguiremos revertê-la. As mudanças serão lentas e 6 gradativas. Mas há muitas coisas que estão a nosso alcance e que poderiam ser aplicadas de imediato. No entanto, nossos hábitos e nossa pressa nos impedem de incorporá-las. Parar para refletir e analisar nossa ação sobre o mundo é hoje fundamental para encontrarmos saídas eficazes para os nossos problemas. Parando para pensar Atualmente, com o mundo todo interligado e com uma enorme disponibilidade de informações de todos os tipos, podemos dizer que a destruição da natureza, embora deixando alguns indignados, é aceita na maior parte de nossas atividades. Nossa relação com a natureza é caracterizada por uma percepção dos elementos em separado, o que inclui que nos vemos separados dela. A natureza é vista como recurso, algo que está à nossa disposição para todo tipo de uso: desde o direto, nas extrações, até os indiretos, nas apreciações da paisagem e no gozo do ar puro e do silêncio. Os sentidos de pertinência, de respeito, de interdependência, de complementaridade, de diversidade não são valorizados e muitas vezes considerados “fora da realidade”. “Ninguém busca a compreensão de si e do real quando tem a plena convicção de estar de posse do controle calculado de toda a realidade” (Unger, 2001: 29). No fundo nosso comportamento é determinado pelos nossos hábitos civilizacionais. Nos apegamos aos nossos hábitos esquecendo-nos de sua transitoriedade intrínseca. “Estes hábitos civilizacionais têm tal peso que os confundimos com a própria realidade e não nos damos conta de que são construções datadas historicamente. Nesta desmemoria, tornamo-nos servos de nossas próprias representações – esquecemos que esquecemos” Unger, 2001: 41). O desequilíbrio psico-sócio-ambiental atual nada mais é que o reflexo de nossa própria maneira de pensar e ver o mundo. Por termos conquistado todo o planeta, podemos dizer que cada paisagem da Terra é o reflexo de nossa atuação sobre ela. E se nossa atuação é definida por nosso pensar, cada paisagem reflete a relação que temos com o mundo que nos cerca. Se a paisagem das cidades é feia, somos nós que autorizamos que ela ficasse assim. Nosso desequilíbrio externo reflete o interno. Nossas ações não serão eficazes se não atuarmos em todos os níveis em que emergem os problemas. “Sem uma reapropriação de nossa verdadeira humanidade, continuaremos a devastar o planeta, sujeitos a uma busca insaciável de segurança e controle” (Unger, 2001: 43). Para tanto seria preciso renunciar à postura de mestre e senhores do universo, que dissimula a evidência de nossa finitude. Por tentarmos afirmar nosso poder sobre tudo, 7 acabamos nos isolando e rompendo “o diálogo com a natureza” e perdendo “a referência da Terra como abrigo” (Unger, 2001: 46). A dessacralização da natureza e a proposta de um relacionamento sujeito-objeto elimina as possibilidades de um diálogo entre seres humanos e natureza pois não pode haver diálogo entre um sujeito e um objeto. No entanto, “essa não é a única expressão possível da identidade do homem” (Unger, 2001: 99). Por que persistimos neste modelo civilizacional, mesmo sabendo que nos empenhamos em nossa própria destruição? Ou ainda, como identificar as brechas por onde as propostas modificadoras poderiam atuar? “A sensibilidade poética, o sentimento do sagrado, a capacidade de colocar-se à escuta da natureza, correspondem às dimensões do ser humano que não dependem do saber acadêmico e não se expressam de ummodo único, podendo eclodir tanto na palavra erudita quando na linguagem do povo simples” (Unger, 2001: 66). Estas são dimensões próprias dos seres humanos, mesmo quando negadas. Estamos questionando a dimensão na qual estamos acostumados a pensar. Precisamos alcançar um novo patamar de pensamento. Um novo sentir/pensar/olhar/agir? Considerando-se as múltiplas facetas da questão ambiental, é necessário revermos qual a verdadeira missão da educação ambiental. Se ela veio para alimentar nossa esperança de construir um mundo novo, mais harmônico e pacífico, ela precisa ajudar os indivíduos a compreender a realidade em suas múltiplas dimensões, preparando-os para serem livres para criar caminhos realmente novos. Se ela surgiu como um dos instrumentos para viabilizar um desenvolvimento sustentável, ela deve considerar que os problemas a ele relativos “caracterizam-se, entre ouras coisas, por sua complexidade. Essa complexidade deve ser transmitida e compreendida, ainda que isso não seja fácil nem, necessariamente, agradável. A simplificação de problemas complexos, muito freqüente hoje em dia, não é apenas uma manobra fraudulenta na medida em que dá uma falsa representação da realidade, mas também um ato de irresponsabilidade de parte daqueles que compreendem os problemas.” (UNESCO, 1999) Alguns caminhos amplamente adotados, tais como ações para a proteção das florestas, o reaproveitamento de materiais, economia de matérias primas e energia, a 8 reciclagem, apesar de absolutamente fundamentais, eles não são suficientes para engendrar os processos de profunda transformação de que estamos precisando. Além destas, é necessário o desenvolvimento de outras estratégias que ajudem as pessoas a irem além, a pensar diferente, a modificar a estrutura de pensamento à qual estamos condicionados, formatados. A desfazer a nebulosa barreira sujeito-objeto, sob a qual estamos acostumados a nos relacionar com o mundo. É evidente que, dada a complexidade das questões humanas e se consideramos que nosso modo de vida atual levou alguns milênios para se constituir, temos que aceitar que as mudanças deverão ser lentas e gradativas. Elas são, de qualquer forma, inevitáveis. Ao mesmo tempo, podemos pensar que somos capazes de fazer muito mais do que temos feito. Ainda agimos condicionados a um mesmo modo de pensar, repetimos comportamentos já existentes há mais de dois mil anos atrás. Então, não seria essa a verdadeira missão da EA? Encontrar os caminhos para levar os indivíduos a novas maneiras de pensar? A livrarem-se de seus condicionamentos familiares, históricos, culturais? Senão, como pensar uma nova sociedade? Como sair desse círculo vicioso? Como solucionar os problemas ambientais ou mesmo atenuar os seus efeitos? Einstein dizia que não podemos resolver um problema permanecendo no mesmo nível de consciência em que o problema foi gerado. Para tratar dos problemas ambientais temos que alcançar uma nova perspectiva. “Para criarmos uma sociedade sustentável precisamos de psiques sustentáveis” Mitchell Thomashow É interessante pensar que, ao ser proposto o termo Educação Ambiental, o significado original da palavra Educação ficou perdido em um tempo distante em que a palavra foi criada. Do latin, educar vem de ex-duco, ou seja, conduzir para fora. O educador é aquele que auxilia o educando a expressar seu interior no mundo em que vive. Considera que o indivíduo não está vazio, mas contém em si a sabedoria do mundo. Todo saber vem dessa expressão. Então educar já tem em si o componente ambiental. Seria redundante uma educação ambiental, se os sistemas de ensino não tivessem se esquecido de sua origem e de seus propósitos. Cada ser humano é um microcosmos. Cada um pode realizar uma transformação integral. Se a EA tem indicado que a ação de cada um deve ser local e sua abrangência deve ser progressiva, no nível individual a transformação deve ser plena, abrangendo a totalidade do indivíduo, ou seja, as suas instâncias internas e externas, atuando em suas relações consigo mesmo, com os outros, e aí sim, com o mundo em que vive. A idéia de 9 que cada um faz a sua parte fica insuficiente. A junção das partes não forma o todo que se deseja. É preciso uma atuação integral em cada um. Ainda que possa parecer fantasioso, ousamos dizer que as visitas à Natureza, dependendo de como forem conduzidas, têm o potencial de atuar nesse nível em que, acreditamos, a educação deve se reportar: à busca da apreensão do todo. Se o ecoturismo for sinônimo dessas visitas, de forma organizada, então ele tem o potencial para realizar essa mudança! O ecoturismo e a emergência de novos sentimentos/pensamentos/ações O ecoturismo surgiu muito recentemente como atividade estruturada, que torna acessível a um número crescente de pessoas a visita a áreas naturais selvagens e a povos tradicionais que sobrevivem apesar da intensa pressão que o mundo “civilizado” exerce sobre eles. A demanda para esse tipo de atividade tem crescido de forma impressionante desde a década de 1990. Esse crescimento da demanda pelas visitas à natureza pode estar revelando (conscientemente ou não) um questionamento do nosso modo de vida e uma busca de transformação de nossas relações com o mundo natural e social. Justamente as transformações que motivam a Educação Ambiental! Uma área natural é organizada de forma radicalmente diferente dos ambientes criados pelos seres humanos. Se a busca é do contato com as matérias primas de que precisamos pra viver, ou da harmonia ou da paz, estamos buscando na natureza selvagem aquilo que não encontramos no ambiente urbano e industrializado. É um reconhecimento das deficiências de nossa proposta cultural. É uma reflexão ativa em direção a um ideal. Seja qual for a motivação específica do visitante da natureza, ela pode ser observada e interpretada. A seguir, propomos algumas hipóteses. Os motivos que estão levando as pessoas a essas visitas podem estar relacionados a: *Necessidade de recurso A idéia de natureza como sinônimo de recurso, isto é, aquilo que tem uma utilidade, pode despertar o interesse tanto daqueles que desejam se envolver em atividades que a protejam quanto por aqueles que desejam conhecê-la antes que acabe, já que seu fim parece iminente. Outros podem deixar-se levar pela curiosidade pelo desconhecido, pelo desejo de superar o medo pelos lugares inóspitos alcançando-os. Outros ainda satisfazem-se em poder chegar a lugares raros e de difícil acesso, preenchendo-se com as aventuras que a 10 atividade pode proporcionar. Esse tipo de necessidade está fortemente relacionado a uma relação distanciada com a natureza e a uma postura de dominação, mais voltada ao desejo de testemunhar sua existência do que de desenvolver um novo relacionamento com ela. É talvez a necessidade mais assumida, mais difundida e o argumento mais utilizado para justificar e valorizar a proteção da natureza e das atividades ecoturísticas, tanto pelos órgãos oficiais quanto pelas ações ambientalistas e das operadoras de turismo. Obviamente que a natureza precisa ser modificada e utilizada pelas culturas humanas. O problema está em que a relação de uso tem sido a única ou a principal relação com ela. Nas sociedades modernas como um todo, a natureza é vista como um recurso, mesmo quando dirigida a processos de proteção. A necessidade de recurso pode ser ampliada, para encontrar outras necessidades, mais profundas. Necessidade de beleza Apesar de vivermos em um mundo utilitarista, prático e “objetivo”, todos nós temos uma profunda necessidade de contato com o belo. Algo inexplicável, mas quando ocorre esse contato percebemos um preenchimento, uma satisfação, uma descoberta. Em ambientes artificializados o mundo interior de cada um nem sempre nosfica acessível. Somos, em um determinado nível, estranhos a nós mesmos, e o contato com a natureza pode ajudar-nos a nos conhecermos. Em toda a história da humanidade a noção de beleza está, de uma forma ou de outra, relacionada à natureza. Toda criação humana inspira-se na beleza da natureza. Há um encantamento pela natureza, seja por artistas como para grandes cientistas. Para os visitantes de hoje, o mundo natural preservado significa tudo o que é diametralmente oposto à sua experiência urbana. Ali ele pode experienciar a harmonia, apenas ao observar, ao estar. Se ele quer descobrir os sentimentos de paz e tranqüilidade é no ambiente natural que ele vai encontrar as referências mais profundas. Livre da dicotomia entre o limpo e o sujo, a natureza oferece o contato com a pureza: aquilo que não foi contaminado pela ação humana. A natureza inspira-nos para a construção de artefatos, obras de arte e de relações humanas mais belas. Grande parte das pessoas que se iniciam nas visitas à natureza está buscando aquilo que se tornou um privilégio para o cidadão das grandes cidades: o contato com a beleza e com a inspiração dela decorrente. Reclamar pela beleza é também protestar contra a feiúra. Por que não podemos viver com paz e beleza? Por que considera-las fora da realidade se as pessoas estão expressando a necessidade profunda que tem delas. Os empreendedores do 11 ecoturismo precisam oferecer aos seus clientes aquilo que estão buscando: o contato com o belo que é, também, no nosso caso, o contato com o novo. Pois para apreciar a beleza é preciso levá-la consigo. E nem todos a carregam em sua bagagem. Então, é preciso exercitar a capacidade de percebê-la. O exercício de ampliação da capacidade de perceber e apreciar a beleza, ou seja, de ampliar a experiência, deve ser oferecido e procurado por todos os envolvidos com as visitas. Necessidade de sentido O contato com o mundo selvagem estimula as reflexões sobre o sentido da vida. O exercício físico aliado ao contato com os elementos naturais estimulam os cérebros dos indivíduos a formular perguntas e respostas sobre suas inquietações mais profundas, sobre o significado de suas ações, das dos outros, e tantos outros questionamentos que, quando encontrado o indício de resposta, pode consolidar a experiência de paz e harmonia que todos buscam em suas vidas urbanas. Por que insistimos em manter um sistema inadequado para a quase totalidade da população do planeta? Por que nos apegamos àquilo a que estamos acostumados? Qual o sentido disso? O contato com a natureza pode fazer emergir questões profundas e complexas, mas também indícios de caminhos. E clareza e disposição para os que se aventuram a voltar para casa com novos sentimentos, pensamentos e atitudes. Acreditamos que o crescimento exponencial da demanda ecoturística esteja relacionado a, pelo menos, estas três necessidades humanas essenciais: de recurso, de beleza e de sentido. O sentido de educar e a experiência ecoturística Se educar significa encaminhar o indivíduo a conectar seu mundo interior ao exterior, como é que isso pode ser feito a partir da experiência com a natureza? Será possível mudar nossa relação com o mundo a partir das visitas à natureza? Nossa experiência tem mostrado que sim. No entanto, isso não é automático. Nosso distanciamento em relação à nossa fonte de vida é brutal e muito antigo. Resgatar esse vínculo na experiência da visita requer esforço e habilidade. Estas visitas têm o potencial de promover a ativação de uma energia mental inteiramente nova. A Educação Ambiental nas atividades ecoturísticas não podem se restringir a reproduzir as estratégias educacionais formais, que enquadram o conhecimento 12 e inibem as experiências e as expressões criativas. Não se pode criar permanecendo dentro dos mesmos esquemas de sempre. A Natureza como educadora é extremamente experiente e eficiente. Mas como ouvir suas lições? Como ouvir o que ela tem a nos dizer? Como conhecer o que ela sente por nós? Segundo Edgar Morin, em sua obra “Os sete saberes necessários para a educação do futuro”, a construção de uma nova sociedade precisa de uma educação que oriente para uma percepção mais ampla da realidade. Que reconheça formas não racionais de aprendizagem e que saiba lidar com a imprevisibilidade da vida. Para alcançar essa educação, todos precisam ser educados ou re-educados. A começar pelos educadores e todos os profissionais envolvidos com ecoturismo. Se é algo novo, então é novo para todos os setores da sociedade. Trilhas, montanhas, rios e mares: caminhos! Se todos, de uma maneira ou de outra, estão à procura de mais beleza, mais harmonia e mais sentido em suas vidas, então estas necessidades precisam ser atendidas. Mas como? Em primeiro lugar é preciso desenvolver uma postura de escuta. Para ouvir é preciso silenciar. Para silenciar é preciso esquecer-se, pelo menos um pouquinho, de si mesmo. Esquecer-se dos hábitos de se afirmar, de competir, de exibir. Até mesmo de falar. Não é exagero conduzir a esse comportamento quando em uma caminhada, ou nos momentos preparatórios para a realização dos esportes de natureza. Visitar a natureza não é ouvir os pássaros, o vento, as águas? A postura de escuta é essencial de ser desenvolvida por aqueles que se interessam pelos esportes de natureza. Em uma mesma atividade, uma pessoa pode manter o padrão mental de dominação e controle da natureza, ou pode romper com ele, concentrando-se em superar seus próprios limites e condicionamentos. E observar o que sente. Pois não são os sentimentos que dão origem aos pensamentos? E estes às ações? Estamos tocando na essência dos problemas de nosso tempo. Qual a vantagem em superar os limites, pode perguntar alguém que não esteja familiarizado com a atividade. A vantagem está em ampliar o conhecimento que cada um tem de si mesmo. Mas isso de nada valerá se essa intensa e importante experiência não for digerida, internalizada e, finalmente transportada para a vida cotidiana. 13 No arvorismo, o indivíduo pode ir além da experiência em si e contemplar enquanto pratica. Exercitar o trânsito entre o mundo interior e o exterior. Imaginar-se um pássaro, uma aranha, algo além das limitações humanas. Nossa origem não está na copa das árvores? É uma experiência que pode nos levar a uma retrospectiva de nossa própria história biológica. Sair momentaneamente de nosso estado atual. No surf, o praticante sai da zona de conforto e prepara-se para o inesperado. Não se pode prever quanto tempo você vai ficar debaixo d´água. O surf não causa impacto direto e promove uma intensa integração com o fluxo da água. É a onda que o permite vencê-la. A experiência pode levar à percepção de nossa pequenez. A pessoa domina a onda ou domina suas emoções e seus limites? Nos esportes do ar tais como asa delta ou pára-quedas: é a natureza quem conduz e acolhe. Quem pratica pode perceber que está à mercê dela. A integração tem que acontecer a todo momento. É preciso estar muito presente, muito atento, muito concentrado. Preparando-se para um rappel, como cada um se relaciona com os compassos de espera? É importante dar atenção a todos os momentos. Não se deixa de viver enquanto se espera. Por que não apreciar todo o processo? A expressão “dominar” precisa ser compreendida: num rafting, o grupo domina o rio ou interagiu satisfatoriamente com ele? Quem pode alterar seus limites são os seres humanos. O rio é sempre o rio. Caminhar, movimentar-se no ambiente selvagem nos prepara para conviver com o imprevisível. O que é que pode ser previsto no decorrer de todo um dia? Observar a imprevisibilidade dos fenômenos. Uma experiência que nos prepara para perceber que conviver com a imprevisibilidade da vida significa abrir mãoda necessidade de controle. Não há como controlar o fluxo das infinitas redes de conexões entre os inúmeros elementos que compõem o nosso planeta. Numa experiência intensa com a natureza surge a pergunta: qual o sentido mesmo de desejar controlá-la? Ou ainda: será que sabemos o por quê daquilo que fazemos? A expressão de uma questão como esta pode atuar no núcleo de onde emergem os sentimentos, modificando-os, então. O sentimento que conduz à necessidade de dominação pode ser substituído por outros, mais compatíveis com a dinâmica própria do mundo natural, que nos envolve, tais como a aceitação, a inclusão. Incluir-se, sentir-se incluído no mundo natural pode levar ao abandono do desejo de dominação. Pela experiência! 14 No contato com a vida selvagem podemos perceber tudo o que temos de semelhante e tudo o que temos de diferente. Nos ajuda a discernir com clareza a presença humana das demais. Perceber-se unido e separado ao mesmo tempo. Observar nossa dupla identidade: biológica e cultural. Conhecer melhor nosso próprio corpo. Observar a origem de nossos pensamentos e sentimentos: ambientes mais abertos, litorâneos, promovem determinadas sensações e sentimentos, ao passo que ambientes de montanha nos conduzem a outras dimensões de nossa natureza. Ambientes de cavernas, o contato com a água, são tantos e tão diversificados ambientes – tão mais numerosos que os urbanos ou rurais – que podemos nos dar conta das infinitas possibilidades de nosso corpo e, principalmente de nossas mentes. Podemos nos dar conta de nossa própria humanidade. Sermos menos estranhos a nós mesmos. A experiência de ecoturismo pode ser uma das mais ricas em potencialidades para realizar profundamente os propósitos primeiros da educação: ativar uma energia mental totalmente nova e fazer experimentar, a partir da abertura de possibilidade e estímulo à criatividade e à afetividade – de novos sentimentos capazes de fazer germinar novos pensamentos e, assim, novas possibilidades de compatibilização e harmonização da presença humana sobre o planeta. Bibliografia Acot, Pascal, História da Ecologia, Editora Campus, Rio de Janeiro, 1990 Cascino, Fabio, Educação Ambiental-princípios, história, formação de professores, Editora Senac, 1999. Cornell, Joseph, Brincar e Ap´render com a Natureza, Eds Senac/Melhoramentos, São Paulo, 1997 D´Ambrosio, Ubiratan, Transdisciplinaridade, Editora Palas Athena, 1997 Dias, Genebaldo Freire, Educação Ambiental- princípios e práticas, Editora Gaia, São Paulo, 1992 15 Guattari, Felix, As três ecologias, PAPIRUS, Campinas, 1991. Morin, Edgar, A cabeça bem-feita- repensar a reforma, reformar o pensamento, Editora Bertrandbrasil, 2000 1 Morin, Edgar, Os sete saberes necessários à Educação do Futuro, Eds Cortez/Unesco, São Paulo, 2000 Needleman, Jacob, O coração da filosofia, Editora Palas Athena, São Paulo, 1991 UNESCO, Educação para um futuro sustentável: uma visão transdisciplinar para ações compartilhadas, “Conferência internacional sobre o meio ambiente e sociedade: educação e conscientização pública para a sustentabilidade”, Brasília, Ed. IBAMA, 1999 Unger, Nancy Mangabeira, Da foz à nascente-o recado do rio, Eds Cortez/Unicamp, São Paulo, 2001
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