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Ensaio A Dupla Face do Crime

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Ensaio: A Dupla Face do Crime – Powerless e Powerful 
Introdução: A Lente Desvendadora da Criminologia 
A Criminologia Crítica sempre me pareceu uma ferramenta essencial, um par de 
óculos que desvela a verdade nua e crua do sistema penal. Ela nos força a 
encarar o fato de que a definição do que é "crime" e, mais importante, de quem 
é punido por ele, não é um processo neutro. Pelo contrário, está umbilicalmente 
ligada às complexas teias de poder e à estrutura de classes que governam nossa 
sociedade. 
O controle social formal possui uma mira notoriamente seletiva, focando quase 
obsessivamente na criminalidade mais visível e palpável. É neste ponto que 
emerge uma distinção analítica crucial: os delitos dos Powerless (aqueles 
cometidos por indivíduos à margem) e os delitos dos Powerful (aqueles 
praticados por quem detém o comando econômico ou institucional). Este ensaio 
busca destrinchar essa dicotomia, investigando como os fatores sociais, 
econômicos e institucionais esculpem a prática penal brasileira, revelando, no 
final das contas, um sistema que foi sutilmente desenhado para castigar a 
pobreza enquanto, ironicamente, blinda o capital. 
Desenvolvimento: Seletividade, Punição Implacável e Impunidade 
Conveniente 
Uma Definição em Perspectiva e a Prática Seletiva 
Os crimes imputados aos Powerless são, em geral, aqueles que a mídia e o 
senso comum gostam de chamar de "criminalidade de rua": pequenos furtos, 
roubos, a ponta do iceberg do tráfico de drogas ou crimes passionais. Seus 
protagonistas são figuras facilmente identificáveis em nosso imaginário de 
vulnerabilidade: baixa escolaridade, exclusão socioeconômica e a triste marca 
da marginalização. Lendo Loïc Wacquant (2001), percebo o quanto ele tinha 
razão: o sistema penal, em especial o aparato carcerário, funciona menos como 
uma ferramenta de justiça e mais como um dispositivo de gestão da miséria e 
do excedente de mão de obra, hiperencarcerando as classes subalternas como 
uma alternativa perversa à ausência de políticas sociais decentes. 
Em agudo contraste, os delitos dos Powerful abarcam o que Edwin Sutherland 
chamou de white-collar crime (crime de colarinho branco): fraudes empresariais, 
crimes ambientais de larga escala, corrupção estrutural e ilícitos corporativos. 
Os agentes, aqui, são indivíduos ou corporações que se valem de sua posição 
privilegiada e do acesso a estruturas complexas para cometer atos ilícitos de 
difícil rastreio. Alessandro Baratta (1991) já nos alertava: a seletividade penal 
não é só um problema de aplicação (a posteriori); ela começa na própria origem, 
na definição legal do que deve ou não ser criminalizado (a priori). O foco de medo 
e repressão que a ideologia penal insiste em concentrar no "crime de rua" é, no 
fundo, uma tática de desvio de atenção dos crimes que de fato causam um dano 
estrutural e sistêmico à sociedade. 
A Diferença Brutal na Resposta da Justiça 
A realidade brasileira é um espelho cristalino dessa dicotomia, manifestando-se 
de forma clara e dolorosa. 
Powerless 
O indivíduo que comete um furto famélico ou um roubo simples, desesperado 
por subsistência. A reação institucional é imediata, visível e rigorosa. Prisão em 
flagrante, prisão preventiva como regra e regime fechado na condenação. 
Resultado: Encarceramento em massa (Garland, 2008), focado 
esmagadoramente em jovens, pobres e negros, por crimes patrimoniais menores 
ou tráfico varejista. O sistema esmaga quem não tem poder de defesa. 
Powerful 
A fraude em licitações ou o desvio multimilionário de recursos públicos por altos 
executivos e agentes governamentais. A persecução penal é marcada pela 
complexidade probatória, morosidade e necessidade de grandes equipes 
investigativas. 
Resultado: Agentes com acesso a advogados caríssimos e a uma infinidade de 
recursos (habeas corpus, acordos de colaboração). Quando há condenação, a 
pena privativa de liberdade é frequentemente substituída ou cumprida em 
regimes leves. 
É, como diz Eugenio Zaffaroni (2001), a seletividade da brandura. Enquanto a 
punição do Powerless é um fim em si mesmo, uma porta aberta para a "escola 
do crime" que é o cárcere, a punição do Powerful é vista quase como um erro de 
percurso que deve ser negociado ou evitado, sempre visando a preservação das 
estruturas que permitiram o ilícito. 
Conclusão e Uma Necessária Reflexão 
Ao final dessa análise, a conclusão que se impõe é inevitável: os delitos dos 
Powerful, por mais que sejam percebidos com menor alarme imediato (afinal, 
não é você quem está sendo assaltado na rua), são, inegavelmente, a fonte do 
maior dano social e econômico estrutural. A corrupção sistêmica e os crimes 
ambientais, por exemplo, não roubam uma carteira; eles roubam a saúde 
pública, desviam recursos da educação e, no limite, corroem a própria fundação 
da democracia, perpetuando o ciclo de desigualdade que, por sua vez, alimenta 
a criminalidade do Powerless. 
O sistema penal brasileiro, no entanto, não reage à altura desse dano. Sua 
resposta desproporcional é o testamento da hipocrisia punitiva: o rigor absoluto 
é reservado aos mais vulneráveis, e a flexibilidade é garantida aos mais 
influentes. A insistência em priorizar a repressão ao "crime de rua" e o 
consequente hiperencarceramento não deveriam ser vistos como sinais de 
eficiência, mas sim como o sintoma de um sistema seletivo e funcional à 
manutenção de uma estrutura de dominação. 
O cenário para a segurança pública permanece sombrio enquanto essa 
seletividade for a norma. A segurança pública não pode ser um eufemismo para 
"guerra à pobreza" (Wacquant). O caminho para uma sociedade mais justa e 
segura exige, acima de tudo, o desmonte dessa seletividade penal, equalizando 
o rigor e direcionando os preciosos recursos investigativos para o macro-dano 
causado pelos poderosos. É hora de repensar a função da prisão para a 
criminalidade de subsistência, trocando a repressão simplista pela intervenção 
social de fato.

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