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12/08/2015 4. Linguagem Literária https://servicos.ulbra.br/conteudo/files/disciplinas/990101/conteudo/aula_4.html 1/17 Introdução No capítulo anterior, você aprendeu que a leitura não se restringe à linguagem verbal, pois nós estamos aptos a atribuir significados a qualquer tipo de texto, seja ele visual ou sonoro, apresentado em diferentes modalidades e suportes. Por outro lado, também foi reiterado que os significados não existem, prontos, para serem simplesmente abstraídos de algum lugar, pois são o resultado de nossa interação com os textos, o que está em processo de constante mudança ao longo do tempo. Nesse sentido, a leitura é um processo dinâmico que envolve a interação entre as intenções do autor, asestruturas utilizadas para construir o texto bem como os repertórios do próprio leitor. Uma das primeiras escolhas que um autor deve fazer quando produz um texto diz respeito à sua estrutura mais geral – seu gênero ou sua tipologia – que, frequentemente, encontrase de forma mais ou menos fixa em nossa cultura. Nós costumamos classificar o que lemos em gêneros jornalísticos, acadêmicos, televisivos, informativos, cinematográficos, literários etc, e cada um desses gêneros tem alguns traços característicos, que os distinguem dos demais. Esses traços formam estruturas que se mantêm mais ou menos constantes ao longo do tempo. Assim sendo, é possível descrever os gêneros como estruturas préexistentes das quais o autor se utiliza, inicialmente, para compor seu texto específico e criar seus percursos próprios. No presente capítulo, você entrará em contato com a estrutura de um tipo específico de texto, a saber, o texto literário. Conhecer a estrutura da obra literária pode ajudar a compreender melhor alguns sentidos previstos para serem reconhecidos na obra. Por outro lado, você não deve esquecer que a leitura não se resume simplesmente à “decodificação” dessas características, pois, em última análise, é o leitor que constrói significados específicos em sua interpretação, quando, a partir de seus próprios repertórios culturais e cognitivos, interage com os significados previstos pelo autor bem como com a estrutura da obra. 12/08/2015 4. Linguagem Literária https://servicos.ulbra.br/conteudo/files/disciplinas/990101/conteudo/aula_4.html 2/17 O que é um texto literário? Apesar de aparentemente óbvio, não é muito fácil definir os traços que distinguem um texto literário de outros textos, pois, se olharmos rapidamente para os livros que geralmente são considerados literatura, perceberemos que há uma grande variedade de estilos e temáticas. Na escola, aprendemos nomes de grandes autores, como Machado de Assis, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, entre outros, como bons exemplos de autores literários. Nós também aprendemos que alguns romances e histórias – como os romances açucarados destinados ao público feminino, por exemplo – não são realmente literários, porque estão voltados apenas para o entretenimento fácil e a diversão, afastandose do conceito da literatura enquanto arte. Por outro lado, os manuais de literatura listam as Cartas de viajantes como Pero Vaz de Caminha e os Sermões de Padres como Antônio Vieira como parte da literatura brasileira. Diante dessa heterogeneidade, como definir a literatura? Heterogeneidade literária CARTA DE PERO VAZ DE CAMINHA A MORENINHA, DE JOAQUIM MANUEL DE MACEDO 12/08/2015 4. Linguagem Literária https://servicos.ulbra.br/conteudo/files/disciplinas/990101/conteudo/aula_4.html 3/17 O teórico norteamericano Jonathan Culler sugeriu que definir a literatura é como definir a erva daninha: não existe nada, na essência de uma planta, que a torne uma erva daninha. Nós é que atribuímos o caráter daninho a uma planta, quando ela cresce em um lugar onde achamos que não deveria crescer. Por isso, Terry Eagleton afirma que a literatura não pode ser definida a partir de sua essência (o que ela é), pois nenhum texto possui uma qualidade inerente que permita afirmar que é literário em si. Para definir a literatura, portanto, é necessário entender quais textos são considerados literários ao longo da história e as razões pelas quais isso ocorre, mesmo que, muitas vezes, essas razões acabem mudando ao longo do tempo. Alguns textos foram considerados altamente literários em certos períodos e, depois, acabaram no esquecimento, sendo que outros não foram valorizados na época em que foram escritos, mas foram celebrados mais tarde. – LITERATURA E NÃOLITERATURA A MOÇA TECELÃ Marina Colasanti[1] Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite. E logo sentavase ao tear. 12/08/2015 4. Linguagem Literária https://servicos.ulbra.br/conteudo/files/disciplinas/990101/conteudo/aula_4.html 4/17 Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela ia passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte. Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete que nunca acabava. Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na lançadeira grossos fios cinzentos do algodão mais felpudo. Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos longos rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentála à janela. Mas se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as folhas e espantavam os pássaros, bastava a moça tecer com seus belos fios dourados, para que o sol voltasse a acalmar a natureza. Assim, jogando a lançadeira de um lado para outro e batendo os grandes pentes do tear para frente e para trás, a moça passava os seus dias. Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um lindo peixe, com cuidado de escamas. E eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser comido. Se sede vinha, suave era a lã cor de leite que entremeava o tapete. E à noite, depois de lançar seu fio de escuridão, dormia tranqüila. Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer. Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou em como seria bom ter um marido ao lado. Não esperou o dia seguinte. Com capricho de quem tenta uma coisa nunca conhecida, começou a entremear no tapete as lãs e as cores que lhe dariam companhia. E aos poucos seu desejo foi aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbado, corpo aprumado, sapato engraxado. Estava justamente acabando de entremear o último fio da ponto dos sapatos, quando bateram à porta. Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu de pluma, e foi entrando em sua vida. Aquela noite, deitada no ombro dele, a moça pensou nos lindos filhos que teceria para aumentar ainda mais a sua felicidade. E feliz foi, durante algum tempo. Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os esqueceu. Porque tinha descoberto o poder do tear, em nada mais pensou 12/08/2015 4. Linguagem Literária https://servicos.ulbra.br/conteudo/files/disciplinas/990101/conteudo/aula_4.html 5/17 a não ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar. — Uma casa melhor é necessária — disse para a mulher. E parecia justo, agora que eram dois. Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor de tijolo, fios verdes para os batentes, e pressa para a casa acontecer. Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente. — Para que ter casa, se podemos ter palácio? — perguntou. Sem querer resposta imediatamente ordenou que fosse de pedra com arremates em prata. Dias e dias, semanase meses trabalhou a moça tecendo tetos e portas, e pátios e escadas, e salas e poços. A neve caía lá fora, e ela não tinha tempo para chamar o sol. A noite chegava, e ela não tinha tempo para arrematar o dia. Tecia e entristecia, enquanto sem parar batiam os pentes acompanhando o ritmo da lançadeira. Afinal o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto da mais alta torre. — É para que ninguém saiba do tapete — ele disse. E antes de trancar a porta à chave, advertiu: — Faltam as estrebarias. E não se esqueça dos cavalos! Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o palácio de luxos, os cofres de moedas, as salas de criados. Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer. E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros. E pela primeira vez pensou em como seria bom estar sozinha de novo. Só esperou anoitecer. Levantouse enquanto o marido dormia sonhando com novas exigências. E descalça, para não fazer barulho, subiu a longa escada da torre, sentouse ao tear. Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao contrário, e jogandoa veloz de um lado para o outro, começou a desfazer seu tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins. Depois desteceu os criados e o palácio e todas as maravilhas que continha. E novamente se viu na sua casa pequena e sorriu para o jardim além da janela. A noite acabava quando o marido estranhando a cama dura, acordou, e, espantado, olhou em volta. Não teve tempo de se levantar. Ela já desfazia o 12/08/2015 4. Linguagem Literária https://servicos.ulbra.br/conteudo/files/disciplinas/990101/conteudo/aula_4.html 6/17 desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o nada subiulhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado chapéu. Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi passandoa devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do horizonte. TEXTO NÃOLITERÁRIO: Julie (Powell) & Julia (Child)[2] Poucos gêneros de escrita foram tão enxovalhados quanto os blogs. Nem os poetas marginais dos anos 80, nem a imprensa de oposição dos anos 60, poucas categorias foram tão desacreditadas quanto a dos blogueiros. Os blogs apanham desde que nasceram, no final dos anos 90 nos EUA. E no Brasil, no início dos anos 2000, foram comparados ao gênero mais desqualificado de literatura, o diário adolescente. Numa época em que ninguém mais sabe o que é poesia — e na qual poetrastros não abundam como antigamente — comparar alguém que escreve a um diarista adolescente é a maior humilhação concebível. Portanto, um filme em que, justamente, a heroína é uma blogueira tem lá o seu mérito. Nem que seja o da novidade. E, claro, ela é inicialmente humilhada no próprio filme: sua mãe — como é praxe — questiona seus propósitos, duvida da sua audiência e aconselha que ela desista antes mesmo de começar. Julie Powell, a blogueira em questão, era uma apagada funcionária de baia — numa empresa de telemarketing —, quando decidiu extravasar sua paixão por cozinhar. Abordando um clássico da literatura americana, de Julia Child, propôs a si mesma o desafio de executar uma receita por dia, e divulgar os resultados no blog. Como num conto de fadas na era da internet, seus posts vão chamando a atenção, ela mistura vida pessoal — é evidente —, e, do site 12/08/2015 4. Linguagem Literária https://servicos.ulbra.br/conteudo/files/disciplinas/990101/conteudo/aula_4.html 7/17 da revista eletrônica Salon, ela migra para as páginas do New York Times. Lógico que, na vida real, os maiores detratores dos blogueiros sempre foram os jornalistas de papel, e parece assaz inverossímil que algum repórter fosse chamado para cobrir... um blogger. Mas aconteceu. O blog de Julie Powell virou livro. (E filme...) Em paralelo, é contada a história da mesma Julia Child, que a inspirou. E, ao contrário do que Julie imaginava, Julia teve igualmente suas crises existenciais: não foi de início aceita na escola de culinária Le Cordon Bleu (por ser mulher); foi quase ludibriada por uma de suas colegas (que desejava ter crédito nas receitas sem trabalhar); e lutou bravamente para ver seu livro publicado (não foi aceita "de primeira"). É fato que os blogs caíram de moda, com a ascensão de outras redes como o Facebook e o Twitter (a chamada rede de microblogs), mas o filme ilustra, ainda que simplificadamente, a gênese de uma empreitada autoral na internet. Os blogs talvez sejam um "momento" da Web, mas — como a geração mimeógrafo e os pasquins da ditadura — deixam suas marcas nos corações e mentes daqueles que ganharam (ou perderam) alguma coisa com eles. Historicamente, uma das principais características atribuída à literatura é a ficcionalidade, que está diretamente ligada a outra característica igualmente importante: a criatividade do autor para engendrar mundos possíveis, sendo que estes, de alguma maneira, sempre nos revelam algo sobre a realidade em que estamos envoltos bem como sobre nós mesmos. A história trágica de Édipo Rei, por exemplo, escrita há mais de dois mil anos, jamais ocorreu de fato, mas as várias interpretações que recebeu, ao longo de todos esses anos, têm revelado inúmeras facetas da condição humana. O psicanalista Sigmund Freud, por exemplo, chegou a desmitificar o célebre complexo de Édipo à luz dessa história. Em poucos termos, a capacidade que algumas obras possuem para serem lidas e relidas ao longo dos anos e, mesmo assim, permanecerem 12/08/2015 4. Linguagem Literária https://servicos.ulbra.br/conteudo/files/disciplinas/990101/conteudo/aula_4.html 8/17 atuais, é certamente uma das principais características de uma obra literária. No entanto, se é verdade que a ficção é um traço importante da literatura, por outro lado, não pode ser utilizada como critério absoluto para sua definição, pois muitos textos literários aproveitam acontecimentos históricos em sua estrutura narrativa. Além disso, também o critério da criatividade é complexo e controvertido, pois, muitas vezes, é difícil chegar a um consenso sobre essa questão. Muitos autores hoje consagrados não foram considerados criativos à sua época. Talvez uma boa maneira para resumir a discussão sobre o conceito de literatura é afirmar que se trata de um uso específico da linguagem, com finalidade artística. Ou seja, em última análise, literatura é a arte da palavra, não obstante as controvérsias que persistem sempre que se procura julgar uma obra como artística ou não artística. Os textos literários produzidos ao longo da história ocidental variam muito quanto à forma e às temáticas. Por isso, na Teoria da Literatura, costumam ser divididos, ainda hoje, de acordo com uma tipologia sugerida pelo filósofo Aristóteles, que os classificava em Textos Épicos, Textos Líricos e Textos Dramáticos. Para simplificar um pouco, nós podemos considerar como épicos os textos literários que seguem uma estrutura narrativa, ou seja, aqueles textos regidos por sequências de ações que acontecem em um determinado tempo e espaço. Os textos líricos têm sido considerados como aqueles escritos a partir de versos que valorizam a musicalidade das palavras, ao mesmo tempo em que abordam temáticas mais subjetivas e intimistas. Já os textos dramáticos, por sua vez,são textos narrativos produzidos para serem encenados, por atores, no palco. – Como ler a poesia lírica? Retrato Cecília Meirelles Eu não tinha este rosto de hoje, assim calmo, assim triste, assim magro, nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo. Eu não tinha estas mãos sem força, tão paradas e frias e mortas; 12/08/2015 4. Linguagem Literária https://servicos.ulbra.br/conteudo/files/disciplinas/990101/conteudo/aula_4.html 9/17 eu não tinha este coração que nem se mostra. Eu não dei por esta mudança, tão simples, tão certa, tão fácil: Em que espelho ficou perdida a minha face? O traço mais importante dos textos que nós chamamos de poesia ou de poesia lírica é, sem dúvida, a sonoridade. O próprio conceito “lírico” provém de “lira”, pois, na Antiguidade, os poemas não eram feitos para serem recitados sem o acompanhamento deste ou de outros instrumentos musicais, a exemplo do que acontece, ainda hoje, com as letras das canções populares. Bons compositores são aqueles capazes de criar não apenas melodias, arranjos e ritmos musicais, mas também letras dotadas de musicalidade e ritmo. Observe os quatro primeiros versos do famoso poeta português Luis de Camões: O amor é o fogo que arde sem se ver; É ferida que dói e não se sente; É um contentamento descontente; É dor que desatina sem doer Você certamente já ouviu a belíssima melodia que acompanha esses versos, na composição do grupo Legião Urbana. Essa melodia, geralmente cantada pelo próprio compositor ou por algum intérprete, está inserida em um arranjo musical que envolve vários instrumentos, alguns melódicos e outros de percussão, o que produz um forte efeito estéticomusical, a cada vez que a ouvimos. No entanto, quando foi escrito, no século XVI, esse poema era apreciado apenas pelos efeitos de musicalidade do próprio texto, que independem dos instrumentos e da melodia que o acompanham hoje na voz de Renato Russo. Mas como reconhecer esses efeitos textuais? Inicialmente, chama atenção o fato de todos os versos respeitarem rigorosamente uma métrica que divide cada um deles em 10 sílabas poéticas (os encontros vocálicos contam como uma única sílaba). Além disso, as últimas sílabas do primeiro e do quarto verso são idênticas, assim como as últimas sílabas do segundo e terceiro verso. Esse fenômeno é chamado de rima. Os recursos da métrica e da rima conferem ritmo e musicalidade aos versos, que é 12/08/2015 4. Linguagem Literária https://servicos.ulbra.br/conteudo/files/disciplinas/990101/conteudo/aula_4.html 10/17 realçada devido à repetição de alguns sons, como, por exemplo, sons fricativos (fogo que arde sem se ver) e a vogal e (fogo que arde sem se ver). Outro aspecto típico do lirismo é, além da temática intimista do amor, o uso intenso de figuras de linguagem, principalmente a metáfora. Aqui, o amor é descrito visualmente, através do fogo e da ferida. Mas também é descrito a partir de sensações opostas, como a dor e o contentamento. Atualmente, os poemas e as boas canções não seguem, necessariamente, esquemas rítmicos tão rígidos. Na própria composição de Renato Russo, algumas estrofes são feitas com versos livres, o que não significa, contudo, que não tenham ritmo e sonoridade. O que ocorre é que, nesses casos, o poeta/compositor faz uso de sua liberdade para criar novos ritmos e novas sonoridades, para além daqueles já cristalizados pela forma poética tradicional. Os dois primeiros versos da composição de Renato Russo não são simétricos, mas, mesmo assim, possuem ritmo e sonoridade: – Monte Castelo, de Renato Russo (LETRA E MÚSICA) Ainda que eu falasse A língua dos homens E falasse a língua dos anjos, Sem amor eu nada seria. É só o amor! É só o amor Que conhece o que é verdade. O amor é bom, não quer o mal, Não sente inveja ou se envaidece. 12/08/2015 4. Linguagem Literária https://servicos.ulbra.br/conteudo/files/disciplinas/990101/conteudo/aula_4.html 11/17 Leitura de poemas hipertextuais e hipermidiáticos. Diferente do que ocorre na poesia, cuja estrutura textual é construída principalmente através do ritmo, da musicalidade e do poder sugestivo das figuras de linguagem, a narrativa possui uma estrutura construída a partir de uma ou várias sequências de ações. Essa estrutura é geralmente chamada de enredo, trama, história, entre outros. Narrativas mais curtas, como as crônicas e 12/08/2015 4. Linguagem Literária https://servicos.ulbra.br/conteudo/files/disciplinas/990101/conteudo/aula_4.html 12/17 os contos, por exemplo, possuem poucas sequências narrativas. Novelas e romances, por outro lado, são construídas a partir de vários feixes de ações, que se entrelaçam de modo muitas vezes complexo e surpreendente. De forma didática e simplificada, é possível dizer que a leitura de uma narrativa literária segue dois planos paralelos: no primeiro plano, o leitor precisa compreender o enredo da história, a partir de seu começo, meio e fim. Para tanto, é necessário, primeiro, conhecer as personagens que realizam as ações do enredo, bem como o espaço e o tempo em que essas ações são realizadas. Além disso, o leitor também precisa se perguntar pelo narrador da história. Um assassinato cometido pelo próprio narrador – isso ocorre, por exemplo, no famoso conto Gato Negro, de Edgar Allan Poe, na história Diário do Farol, de João Ubaldo Ribeiro, entre outros – é muito diferente de um crime contado em terceira pessoa, por um narrador que não se caracteriza como uma das personagens do enredo – por exemplo, o famoso livro O crime do Padre Amaro, do escritor português Eça de Queirós. Fragmento do conto Feliz Aniversário, de Clarice Lispector, abaixo: A família foi pouco a pouco chegando. Os que vieram de Olaria estavam muito bem vestidos porque a visita significava ao mesmo tempo um passeio a Copacabana. A nora de Olaria apareceu de azulmarinho, com enfeite de paetês e um drapeado disfarçando a barriga sem cinta. O marido não veio por razões óbvias: não queria ver os irmãos. Mas mandara sua mulher para que nem todos os laços fossem cortados — e esta vinha com o seu melhor vestido para mostrar que não precisava de nenhum deles, acompanhada dos três filhos: duas meninas já de peito nascendo, infantilizadas em babados corde rosa e anáguas engomadas, e o menino acovardado pelo terno novo e pela gravata.Tendo Zilda — a filha com quem a aniversariante morava — disposto cadeiras unidas ao longo das paredes, como numa festa em que se vai dançar, a nora de Olaria, depois de cumprimentar com cara fechada aos de casa, aboletouse numa das cadeiras e emudeceu, a boca em bico, mantendo sua posição de ultrajada. “Vim para não deixar de vir”, dissera ela a Zilda, e em seguida sentarase ofendida. As duas mocinhas de corderosa e o menino, amarelos e de cabelo penteado, não sabiam bem que atitude tomar e ficaram de pé ao lado da mãe, impressionados com seu vestido azulmarinho e com os paetês. Depois veio a nora de Ipanema com dois netos e a babá. O marido viria depois. E como Zilda — a única mulher entre os seis irmãos homens e a única que, estava decidido já havia anos, tinha espaço e tempo para alojar a 12/08/2015 4. Linguagem Literária https://servicos.ulbra.br/conteudo/files/disciplinas/990101/conteudo/aula_4.html 13/17 aniversariante — e como Zilda estava na cozinha a ultimar com a empregada os croquetes e sanduíches, ficaram: a nora de Olaria empertigada com seus filhos de coração inquieto ao lado; a nora de Ipanema na fila oposta das cadeiras fingindoocuparse com o bebê para não encarar a concunhada de Olaria; a babá ociosa e uniformizada, com a boca aberta. E à cabeceira da mesa grande a aniversariante que fazia hoje oitenta e nove anos. Zilda, a dona da casa, arrumara a mesa cedo, encheraa de guardanapos de papel colorido e copos de papelão alusivos à data, espalhara balões sungados pelo teto em alguns dos quais estava escrito “Happy Birthday!”, em outros “Feliz Aniversário!” No centro havia disposto o enorme bolo açucarado. Para adiantar o expediente, enfeitara a mesa logo depois do almoço, encostara as cadeiras à parede, mandara os meninos brincar no vizinho para não desarrumar a mesa. No segundo plano da leitura, é importante lembrar que uma narrativa literária se diferencia de qualquer outro tipo de história – um caso de assassinato relatado em jornais ou em revistas, por exemplo – devido ao seu aspecto artístico e ficcional. Isso quer dizer que, na literatura, qualquer elemento estrutural da narrativa – ações, tempo, espaço, personagens, narrador – adquire um caráter aberto, metafórico, sugestivo, interpelando o leitor para que enxergue mais do que apenas o plano linear da história propriamente dita. No conto "Siestas", do argentino Julio Cortázar, por exemplo, o tempo adquire um caráter metafórico a partir da “hora da sesta”, um hábito cultivado pela personagem principal Wanda. O pesquisador Ubiratan Paiva de Oliveira nos explica que, nesse conto, a hora da sesta é uma metáfora do mundo de sonhos que esse momento pode muitas vezes suscitar. Além disso, nesse mesmo conto, também os espaços adquirem significado metafórico, pois a personagem Wanda transita entre a casa de suas tias repressoras e a casa da amiga Teresita. O primeiro espaço lhe causa pesadelos e pode ser lido como metáfora da repressão, falta de sonho, falta de alegria; já o segundo espaço adquire significados como a liberdade, a criatividade, a alegria. O elemento estrutural mais carregado de possibilidades interpretativas, em grande parte das narrativas literárias, é a personagem. Muitas vezes, a personagem principal também é narrador da própria história. Geralmente, quando isso acontece, o leitor é como que captado para o campo de visão da personagem, tornandose uma espécie de cúmplice de seus conflitos. Isso ocorre, por exemplo, no livro Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar. Ao narrar sobre seus desejos incestuosos pela irmã, o personagem André acaba 12/08/2015 4. Linguagem Literária https://servicos.ulbra.br/conteudo/files/disciplinas/990101/conteudo/aula_4.html 14/17 conquistando, senão a aprovação, pelo menos a simpatia do leitor ao longo da história. Mas muitas histórias representam a personagem a partir de um foco distante, em terceira pessoa. Podemos exemplificar retomando o livro O crime do Padre Amaro: nele, a personagem Amaro está sendo representada, por um narrador desconhecido, como um símbolo da corrupção eclesiástica. Para resumir, em uma leitura literária, devese perguntar pelos sentidos metafóricos que cada personagem pode adquirir a partir das ações que realiza ao longo do enredo. Para finalizar esta seção, é importante ressaltar que, assim como a poesia, também a narrativa tem se modificado constantemente a partir dos últimos anos, devido à influência de várias mídias, como o cinema, a televisão e, hoje, a internet. Uma das principais consequências da migração das narrativas para a internet é que, no ambiente digital, as histórias podem se desdobrar através de diferentes plataformas de mídia (do livro para a televisão, histórias em quadrinhos, jogos interativos, youtube etc...), formando um universo narrativo muito amplo e complexo, que abarca diversas plataformas. Os pesquisadores Glaucio Aranha & Alfred ShollFranco nos explicam que esse fenômeno é chamado de transmídia. Eles também esclarecem que, apesar de ser possível ler cada história isoladamente, se quiser compreender essa grande narrativa transmídia, o leitor será desafiado a explorar diferentes ambientes dentro do ciberespaço. Em termos literários, talvez as narrativas criadas dentro desse universo estejam nos desafiando a interpretar os vários aspectos da cultura digital em que nós estamos hoje estamos inexoravelmente imersos. – Leitura de uma narrativa transmídia PESQUISE NA INTERNET O FRAGMENTO DA HQ O ALIENISTA, ADAPTADO DO CONTO HOMÔNIMO DE MACHADO DE ASSIS. RECAPITULANDO O capítulo 4 aborda questões relativas à linguagem literária e nãoliterária, mostrando, especialmente, que textos literários possuem linguagem específica, repleta de figuras. Assim, a leitura não se resume simplesmente à “decodificação” dessas características, pois, é o leitor que constrói significados específicos em sua interpretação. EXERCÍCIOS 1. Marque a alternativa correta. 12/08/2015 4. Linguagem Literária https://servicos.ulbra.br/conteudo/files/disciplinas/990101/conteudo/aula_4.html 15/17 a) A leitura é um processo dinâmico que ocorre entre as intenções do autor, asestruturas utilizadas para construir o texto be b) A leitura é um processo que estático que ocorre entre o autor e o leitor exclusivamente. c) A leitura é um processo natural, sem a intervenção direta do autor. d) A leitura acontece a partir das intenções do autor e orepertório do leitor. e) A leitura é um processo dinâmico que ocorre entre a relação do leitor com o texto. 2. Costumamos classificar o que lemos em gêneros jornalísticos, acadêmicos, televisivos, informativos, cinematográficos, literários etc, e cada um desses gêneros possui traços característicos, os quais os distinguem dos demais. Nessa perspectiva, gênero constituise em: a) Tipos de textos. b) Textos que o autor utiliza para compor outros textos específicos. c) Estruturas préexistentes, que o autor utiliza, inicialmente, para compor seu texto específico e criar percursos próprios. d) Estruturas fixas que permitem a criação de novos textos. e) Estruturas que permanecem constantes para que o autor crie caminhos próprios. 3. O texto literário varia quanto à forma e à temática. Assim, o texto literário pode ser dividido, de acordo com uma tipologia sugerida pelo filósofo Aristóteles, em: a) Poesia e prosa. b) Texto clássico e texto moderno. c) Texto literário e nãoliterário. d) Texto épico, lírico e dramático. e) Texto verbal e texto visual. 12/08/2015 4. Linguagem Literária https://servicos.ulbra.br/conteudo/files/disciplinas/990101/conteudo/aula_4.html 16/17 4. Assinale a alternativa que não contém uma informação correta a respeito do conteúdo do capítulo IV. a) A estrutura textual do poema é construída principalmente através do ritmo, da musicalidade e do poder sugestivo das figuras de linguagem. b) A narrativa possui uma estrutura construída a partir de somente uma sequência de ações. c) A estrutura da narrativa é geralmente chamada de enredo, trama, história. d) A crônica e o conto, considerados narrativas mais curtas, possuem poucas sequências narrativas. e) Novelas e romances são construídos a partir de vários feixes de ações, que se entrelaçam de modo muitas vezes complexo e surpreendente. 5. Assinale a alternativa que preenche corretamente as lacunas da seguinte afirmação: o elemento ____ mais carregado de possibilidades interpretativas, em grande parte das narrativas literárias, é ____. a) Estrutural; o tempo. b) Literário; a personagem. c) Temporal; o espaço. d) Narrativo; o foco narrativo. e) Estrutural; a personagem. GABARITO 1. A 2. C 3. D 4. B E 12/08/2015 4. Linguagem Literária https://servicos.ulbra.br/conteudo/files/disciplinas/990101/conteudo/aula_4.html17/17 ANTONIO, Jorge Luiz. Poesia digital: teoria, história, antologias. São Paulo: Navegar Editora, 2010. ECO, Umberto. A história da beleza. Rio de Janeiro: Record, 2004. KIRCHOF, Edgar Roberto (org.). Novos Horizontes para a Teoria da Literatura e das Mídias: Concretismo, Ciberliteratura e Intermidialidade. Canoas: Ed. da ULBRA, 2012. KOCH, Ingedore Villaça; TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Coerência e Ensino. In: A Coerência Textual. São Paulo: Contexto, 2006. p.101110. RAMOS, Paulo. A leitura dos quadrinhos. São Paulo: Contexto, 2009. [1] Marina Colasanti (1938) nasceu em Asmara, Etiópia; morou 11 anos na Itália e desde então vive no Brasil. Publicou vários livros de contos, crônicas, poemas e histórias infantis. Recebeu o Prêmio Jabuti com Eu sei, mas não deviae também por Rota de Colisão. Casada com o escritor e poeta Affonso Romano de Sant'Anna. (Do livro Doze Reis e a Moça no Labirinto do Vento, Global Editora: Rio de Janeiro, 2000.) [2] FONTE: www.digestivocultural.com
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