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CORTÁZAR, Julio Situação do Romance

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lha, suachacinade meioséculo;seuir e vir do J e ao
AutrequeRimbaud,profetamaiorenãonosentidoque
pretendiao sinistroClaudel,vociferouemseudia ver-
tiginoso.Agoraelemorreu,e dabatalharestampedaços
de coisase um ar úmidosemluz. As horríveiscartas
escritasdo asilode Rodeza Remi Parisotsãoum tes-
tamentoquealgunsdenósnãoesqueceremos.
60
~I
~I
J
~!
I
3. SITUAÇÃO DO ROMANCE
Tenhopensadoalgumasvezesse a literaturanão
mereciaserconsideraraumaempresadeconquistaver-
bal da realidade.Não por razõesde magia,para a
qual o nomedas coisas(o nomeverdadeiro,oculto,
essequetodoescritorpersegueemboranão o saiba)
dá a poss'eda própriacoisa.Nemtampoucodentrode
umaconcepçãodaescrituraliteráriasegundoa entendia
(e previa)Mallarmé,espéciede aboliçãoda realidade
fenomênicanumaprogressivaeternizaçãode essências.
Esta idéia da conquistaverbal da realidadeé mais
diretae semdúvidamenospoética;nascesobretudoda
leiturade tantosromancese também,provavelmente,
da necessidadee da ambiçãode escrevê-Ios.Tão logo
61
se transpõea etapada adolescênciaem que se lêem
romancesparadesmentircomumtempofictícioos de-
sencantosincessantesdo própriotempo,ingressando-se
naidadeanalíticaquandoo conteúdodoromanceperde
interessejuntamentecomo mecanismoliterárioque o
configura,descobre-sequecadalivro realizaa redução
aov,erbaldeumpequenofragmentodarealidade,e que
a acumulaçãodevolumesemnossabibliotecavai pare-
cendocadavezmaiscomum microfilmedo universo;
materialmentepequeno,mascomumaprojeçãoemcada
leitorquedevolveascoisasa seutamanhomentalpri-
mitivo.É assimqueenquantoas artesplásticaspõem
novosobjetosno mundo,quadros,catedrais,estátuas,
a literaturavaiapoderando-sepaulatinamentedascoisas
(o que depoischamamos"temas")e de certaforma
as subtrai,rouba-asdo mundo;é assimqueexisteum
segundoraptode Helenade Tróia, essequea separa
do tempo.
Encarandodestamaneiraa literatura,sua"histó-
ria" consistirianãotantonaevoluçãodasformasquanto
nasdireçõese estratégiade suaempresade conquista.
Se se tratade apoderar-sedo mundo,se a linguagem
podes'erconcebidacomoumsuperafastamentoquenos
utilizahá 5000 anosparaseuimperialismouniversal,
as etapasdestapossedelineiam-seatravésdo nasci-
mentodosgêneros,cadaum dosquaistemcertosobje-
tivos,e a variaçãonaspreferênciastemáticas,quereve-
lam a tomadadefinitivade um setore a passagem
imediataao quesegue.Destemodo,é fácil reconhecer
as grandesofensivascomo aquela,por exemplo,em
queo mundocartaginêssucumbeantea linguagemem
Salammbô.E aofalarderomancehistóricocabeinclu-
sivesugerircomalgumamalíciaqueo quechamamos
históriaé a presamaiscertae completada linguagem.
As pirâmidesestãoali, é claro,masa coisacomeçaa
tersentidoquandoChampolliontravabatalhacontraa
pedra,a pedrade Roseta,e faz surgira histórianas
evocaçõesdo Livro dosMortos.
Por issoa literaturanãoé muitofeliznumdomí-
nio de reconstruçãototalquecompetea seualiado,o
historiador,e se entregacom maior prazera outros
temas;logoseobservaqueprefereaszonasmaisamiu-
dadasno tempoe os objetosmaispróximosdo inte-
ressehumanoenquantocoisasvivasepessoais.Por isso,
62
vezqueNarcisocontinuasendoa imagemmais
cabaldo homem,a literaturaorganiza-seemtornode
suaflor falante,e seempenha(estánisso) na batalha
maisdifícilecaprichosadesuaconquista:abatalhapelo
indivíduohumano,vivo e presente,vocêse eu, aqui,
agora,estanoite,amanhã.Os temas,por compreensí-
veis razõesestratégicas,tornam-semais imediatosno
tempoe no espaço.Já a Ilíada está,nessesentido,mais
próximada literaturaatualdo quea Odisséia, ondeo
temposedilui e os homenssãoguiadospelosaconteci-
mentos,muitotempohaviapassadoanteas portasde
Ilion, masa narrativacomeçanumdadomomentoe o
transcursoadquireum valor de jornadasrepletasde
acontecimentos.Nadasedilui ali, Aquilese Heitorsão
a prefiguraçãodo indvíduoquese assumeinteiramente
nahora,emsua hora,e jogao seujogo.TambémFaus-
to, depois.E bastaráum dia da históriada cidadede
Dublin, Irlanda,para quea linguagemse apoderedo
senhorLeopoldBloome detodoo seuambiente.Como
se, apertandoo tempo,a literaturaexpandisseo ho-
mem.
Deixandode lado os temas,vale a penaprovar
nossaconcepçãodo literáriopelaformacomoevoluem
os chamados"gêneros".Interessaaqui observara vi-
gênciaespecialdecadagêneroemrelaçãoàsdiferentes
épocas,porquenestejogo de substituiçõese renasci-
mentos,de modasfulminantese grandesdecadências,
ocorrea adequaçãodo literárioa seupropósitoessen-
cial.O vastomundo:eisaquiumaqualificaçãoqueco-
meçacedono assombrodo homemdiantedo que o
envolvee prolonga.Vastoe variado,teatroparauma
inacabávelcaçada.Há entãoumapartilhavocacionale
dessapartilhasurgemos gêneros:eis o nefelibatae o
nomenclador,o arpoadordosconflitosinternos,o que
teceas redesdascategorias,o quetranscendeas apa-
rências,o que joga com elas;logo é a poesiaou a
comédia,o romanceou o tratado.Primeiro (sempre
foi igual,veja-sea marchada filosofiaou da ciência)
aferra-seaodefora.É precisonomear(porquenomear
é apreender).Aí estátudo:essaestrelaesperandoque
a chamemosSírio, essasoutrasoferecendo-seaoslapi-
dáriosparaqueconstruamasconstelações.O mar,para
quelhedigamqueépurpúreo,ounossorio paraquelhe
ensinemqueé da cor do leão.Tudo esperaqueo ho-
63
memo conheça.Tudo podeser conhecido.Até o dia
emquesurgea dúvidasobrea legitimidadedesseco-
nhecimento;entãoa literaturaajudaa revisãopréviae
interna,o ajustede instrumentospessoaise verbais.A
ingênuaalegriada épicae ao saltoicáricoda lírica se-
gueo cautelosopalpardo terrenoimediato,o estudode
sea alegriaé possível,seo trampolimajudaráo salto.
Poisbem,estalúcidaconsciência,presenteemtoda
literaturamoderna,paraa qualnadaé maisimportante
do queo homemcomotemadeexploraçãoe conquista,
explicao desenvolvimentoe o estadoatualdo romance
comoformapreferidade nossotempo.Todavia,aqui
me interessadesfazerum mal-entendidoque poderia
confundirtudoo quesegue.Atualmentenos curamos
dorigorosoconceitoapolíneodopassadoclássico,e nos
é fácilobservarassombrasqueprojetamasclarascolu-
nasáticase as serenaspaisagensvirgilianas.Nas figu-
ras aparentementemaisobjetivasda literaturaantiga
descobrimosumasubjetividadequeapsicologiacontem-
porâneapõeà luz comtodasuariqueza.Vendoassim
ascoisas,poder-se-iasuporqueÉdipo - comoperso-
nagemde romance;não quero me ligar academica-
menteaoconceitonormativoderomance,é tãocontem-
porâneonossoquantoum heróide Mary Webbou de
FrançoisMauriac.O mal-entendido,entretanto,estaria
emsedeternasfigurasjá dadase nãono processocau-
sal que lhes dá nascimento.É nesseprocesso,exata-
mente,ondeestáa diferençaprincipalentrenossano-
velísticaealinhadoromancedopassado.Ésquilodá-nos
emÉdipo um produtode obscurasintuiçõesmÍticase
pessoais;privilégiodepoetaé prescindirdaverdadedis-
cursivamenteprocuradae encontrada.Ésquilotambém
podeafirmarquenãoprocuramasqueencontra.Édi-
po saltaà cenacomosaltamno coraçãode Rilke os
versosde suaprimeiraelegiade DuÍno.E setomamos
Aquiles,muitomaisprimário,simplese objetivadodo
queÉdipo, observa-seem seguidaque se seusmovi-
mentospsicológicosocorremcomocoisavista,experi-
mentadaou supostapor Homero,masa ênfasedo ro-
mancista(nãosemenegaráquea llíada é um esplên-
didoromance) estáposta,nãona análisedestesmovi-
mentos,masapenasemsuacomprovaçãoesuatradução
em atos,em acontecimentos.Eis aquia épicaem sua
própriaraiz, e a épicaé a mãede todoromancecomo
64
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11
sepodeler noscompêndiosescolares."Canta,ohMusa,
a cóleradoPélidaAquiles... " Mas o quesecantanão
é a cólera,massim suascons,eqüências.No entanto,
todoromancesignificativode nossaépocaterminaali
ondecomeçao romancistaépico:o queimportaé saber
por queAquilesestáagastado,e umavez sabidoisto,
por que a causaprovocavacóleraem Aquilese não
outrossentimentos.E então,queé a cólera?E, além
disso,é precisoencolerizar-se?O homemé cólera?E
também,o queesconde,por sobsuasformasaparentes,
a cólera?
Este repertóriode perguntasconstituia temática
essencialdoromancemoderno,emboraimporteestabe-
lecerduasetapassucessivasem seu desenvolvimento.
De repente,e por causasqueentroncamcomo descré-
ditodosideaisépicosdaIdadeMédia,o romancerenas-
cedeseusesboçosclássicos,passeiaincertopeloRenas-
cimentoondelhe enchemos alforjesde abundantema-
teriaidiscursivoe de refugo(a grandezado romance,
seuabarcamentoinfinito,é àsvezessuapior miséria),
e depoisde emendar-secomCervantese os autoresdo
séculoXVII, iniciano XVIII a primeirade suasduas
etapasmodernas,quechamareignosiológicaparacon-
tinuara comparaçãoquefiz antescom a evoluçãoda
filosofia.O romanceenfocaosproblemasdesemprecom
umaintençãonovae especial:conhecere apoderar-se
do comportamentopsicológicohumano,e narrarisso,
exatamenteisso,em vez das conseqüênciasfatuaisde
talcomportamento.As perguntasacercadecomoépos-
sívela cólerade Aquilescomeçama serrespondidas,
e cadaromancerepresentaou tentaumanovacontri-
buiçãoao conhecimentodo mundosubjetivo;conheci-
mentoimperfeitopor falhasno instrumental(comose
verá logo) masqueinteressaao romancistaenquanto
operaçãopreliminarde todavolta à narrativapura e
simples.Semqueelesprópriosnotemàsvezes,dir-se-ia
queno romancistado séculoXVIII e especialmentedo
séculoXIX há uma consciênciaenvergonhada,um
sentimentodeculpaqueo levaa seexplorarcomopes-
soa(Rousseau,o Adolphe deBenjaminConstant)e ex-
plorar o mundo de seusheróis (Prévost,Stendhal,
Dickens,Balzac) parase assegurarde queo homem
camo tal podechegara conhecer-seo bastantepara
daí,por projeçãosentimep.tale intelectiva,renovarso-
65
bre basessólidasa empresade conquistaverbal da rea-
lidade que os clássicoshaviam tentado com seu livre
desembaraço.
Esta primeira etapa do romancemoderno é, pois,
de tipo manifestamentegnoseológicoe se diria que o
espírito de Emanuel Kant a sobrevoacomo exigência
de autoconhecimentoprévio. Por felicidade, o roman-
cista é essehomemque não se assustacom o número,
emborao suspeiteoculto e fora do alcancede suaspa-
lavras. Por isso, dentro da etapaque procuro caracteri-
zar, à sondagem intensiva da subjetividadehumana,
elevadaao primeiro plano e a grandetemado romance
com o Romantismo, junta-se logo a análise de como
essasubjetividadese derramasobreo contorno do per-
sonagem,condiciona e explica seus atos. Assim nasce
Emma Bovary que carregaconsigo a província até no
afã ridículo e patético de se despronvicianizar.Assim
seconfiguraa teoriados Rougon-Macquart, asvidas do-
loridas de Oliver Twist e de David Copperfield, a car-
reira dos rapazesbalzaquianos que correm a assaltar
Paris. Creio poder afirmar que, à margemde suasimen-
sas diferençaslocais e pessoais,o romance do século
XIX é uma respostamultifacetadaà perguntade como
é o homem,uma gigantescateoria do carátere sua pro-
jeção na sociedade.O romance antigo ensina-nosque
o homem é; nos começosda era cont,emporâneainda-
ga como ele é; romancede hoje perguntar-se-áseupor-
quêe seu paraquê.
Todavia estaúltima etapanos atingee nos envolve,
é nosso romance e tudo o que hei de dizer sobre ele
tenderáa elucidar sua diferençae o que creio - num
sentido extraliterário - seu progressosobre a etapa
oito e novecentista.Já no umbral de nossotempoquero
fazer o alto necessáriopara colocar estaquestãoprévia:
Por que existemromances?Ou melhor: Por que, entre
todos os gênerosliterários, nada parecehoje tão signi-
ficativo como o romance?
Vejo-me forçado a repetir uma noção, que, por
causa de seu uso indiscriminado e entusiástico,vai to-
mando cada vez mais a duvidosavigência dos lugares-
-comuns.É esta:o quechamamospoesiaimplica a mais
profunda penetraçãono ser de que é capaz o homem.
Sedentade s,er,enamoradade ser, a poesiacruza as ca-
madas superficiais sem iluminá-Ias de todo, centrando
66
seu foco nas dimensõesprofundas. E então ocorre que
como o homemestá fenomenicamenteem relaçãocom
suasessênciascomo a massade esferaem relaçãocom
seucentro,a poesiaincideno centro,instala-seno plano
absolutodo ser,e só a sua irradiação reflexavolta à su-
perfície e envolve seu conteúdoem seu luminoso con-
tinente.A esferahumanabrilha então porque há uma
opulência,uma superabundânciade luz que a embebe.
A luz vai, porém,ao centroda esfera,ao centrode cada
objeto que a atrai ou a suscita. Por isso, embora tudo
possaser motivo de poesia,e tudo espereseupoetapara
ser matériade poesia,o homemprecisasemdúvida do
romancepara conhecer-see conhecer. Poesia é sumo-
-conhecimento,masas relaçõespessoaisdo homemcon-
sigo mesmo e do homem com sua circunstâncianão
sobrevivema um clima de absoluto; sua escala é por
princípio relativa, e se esta folha de papel guarda o
mistérioda essênciaque inquietava, a um poeta como
Mallarmé, eu necessitodela agora enquantofenômeno,
enquantosoma de propriedadesque provavelmentelhe
outorgo com meus sentidos: a brancura, a suavidade,
o tamanho.O mistério de seu ser chamar-me-átalvez
um dia e me arrancaráo poemaque o procure e talvez
o encontree nomeie.Mas hoje passeiesta folha pelo
rolo de uma máquina, e pus-lhe em cima centenasde
manchasde tinta que formam palavras. Isto é já visão
de romancista,tarefa de romance, objeto de romance.
Digo, então,que a presençainequívocado roman-
ce em nosso tempo,se deveao fato de ser ele o instru-
mentoverbal necessáriopara a possedo homemcomo
pessoa, do homem vivendo e sentindo-seviver. O ro-
manceé a mão que sustentaa esferahumanaentre os
dedos. move-a e a faz girar, apalpando-a e mostran-
do-a. Abarca-a inteiramentepor fora (como já o fazia
a narrativaclássica) e procura penetrarna transparên-
cia enganosaque lhe concedepouco a pouco uma en-
trada e uma topografia.E por isso - digamo-Io desde
já para voltar depois em detalhe-, como o romance
querchegarao centroda esfera,alcançara esfericidade,
e não o pode fazer com seusrecursospróprios (a mão
literária, que fica por fora), então apela- já veremos
como - para a via poética de acesso.No momento
consideremo-Iosozinho e com os recursos narrativos
tradicionais,ante o seu propósito básico: o de chegar
67
a compreender(no duplovalordo termo)a totalidade
dohomempessoa,dohomemJ ulienSorel,AntoineRo-
quentin,Hans Castorp,ClarissaDalloway.
Dir-me-ãoque, além da poesia,existemoutros
meiosdeconhecimentoantropológico.Mas o teatronão
vai alémda exploraçãoda pessoa,e o territóriode sua
complexaaçãonotempoenoespaçolheestávedadopor
razõesde obrigaçãoestética.E por razõessemelhantes,
o contofica restritoà suabásicaexigênciaestrutural,
somentecapazderealizar-secomum temae umama-
téria previamenteadequadosa essaregraáureaque
lhedá belezae perfeição.Toda regraáureaobriga,no
entanto,a escolher,separar,avaliar.Todo contoe toda
obradeteatroimplicamumsacrifício;paranosmostrar
umaformigadevemisolá-Ia,levantá-Iade seuformi-
gueiro.O romancese propôsdar-nosa formigae o
formigueiro,o homememsuacidade,a açãoe suasúl-
timasconseqüências.O à vontadedoromance,suafalta
de escrúpulos,seupapode avestruze seushábitosde
xexéu,o queemdefinitivotemdeantiliterário,levou-o
desde1900atéhoje a partirpelo eixo (belíssimaex-
pressão)todaa cristalografialiterária.Profundamente
imoraldentroda escalade valoresacadêmicos,o ro-
mancesuperatodoo concebívelemmatériade parasi-
tismo,simbiose,roubocomagressãoe imposiçãodesua
personalidade.Poliédrico,amorfo,crescendocomoo bi-
chodotravesseironocontodeHoracioQuiroga,magní-
ficodecorageme sempreconceito,levaseuavançoaté
nossacondição,aténossosentido.E parasubmetê-Iosà
linguagem,lhes sustentao ombroe trata-osde igual
paraigual,comocúmplices.Observe-sequejá não há
personagensno romancemoderno;há somentecúmpli-
ces.Nossoscúmplices,quesãotambémtestemunhase
sobema um estradoparadeclararcoisasque- quase
sempre- nos condenam;de quandoem quandohá
algumquedá testemunhoa favor,e nosajudaa com-
preendercommaisclarezaa naturezaexatadasituação
humanade nossotempo.
Seistoexplicaporqueo romancesupõee procura
com seu impurosistemaverbalo impurosistemado
homem,seráfácil segui-Ioagoraemsuaevoluçãofor-mal,quemeparecemuitomaissignificativae revelqdo-
ra do queo enfoquehistóricodeseustemas,suasesco-
lase seusrepresentantes.É tradicional,comefeito,par-
68
tir dasintençõese propósitosdo romancista,paramos-
trar logo sua técnicae seuofício. Semme pôr numa
rigorosaposiçãoestilística,proponhoque olhemoso
romancepelo lado de suarelojoaria,suamaquinaria;
comoderrubarumatartarugana areiaparaespiarseu
aparelholocomotor.E assim- emlinhasmuitogerais
- se verá que o romancemodernocaminhapelos
séculosXVIII e XIX semalterarde maneirafunda-
mentalsua linguagem,sua estruturaverbal,seusre-
cursosde apreensão;o queé compreensívelporquea
riquezade temas,o mundoquese oferececomomate-
rial para o romancista,é de uma abundânciae uma
variedadetãoassombrosas,queo escritorsesentecomo
quesobrepujadoemsuaspossibilidades,e seuproblema
é sobretudoo de preferir,escolher,narraruma coisa
entrecemigualmentenarráveis.O quesecontaimporta
sempremaisdo queo comoseconta.O problemaé de
excesso,e semelhanteao dos primeirosviajantesna
Américaou na África; avança-seem qualquerdireção,
aosquatroventos.O passadodeixa-seexumarparade-
líciadoromantismomedievalista;o presentedátudo:os
costumes,o exotismo,PauloeVirgínia,o bomselvagem,
Amália, as doresde Werther,a provínciaqueencan-
tará GeorgeSande José María de Pereda,a crítica
social,a comédiahumana,o chisteao burguês,a boê-
mia,Rodolfo e Mimi, o vigáriode Wakefield,a casa
dos mortos,os mistériosde Paris, a guerrae a paz.
Cito umasquantase insuficientesreferênciasa títulose
conteúdosde romancesfamosos;poderíamoscontinuar
assimdurantehoras: Gógol, as irmãs Bronte,Flau-
bert... A variedadede intençõese temasé infinita;
porémo instrumento,a linguagemquesuportacadaum
dest·esinúmerosromances,é essencialmenteo mesmo:
é umalinguagemreflexiva,que empregatécnicasra-
cionaispara expressare traduziros sentimentos,que
funcionacomoum produtoconscientedo romancista,
umprodutodevigília,delucidez.Sea técnicade cada
um diferenciae distingueplanose acentuaçõesdentro
destalinguagem,sua basecontinuasendoa mesma:
baseestéticadeajusteentreo queseexpõeesuaformu-
laçãoverbalmaisadequada,incluindoe aperfeiçoando
todosos recursosda literaturapara criar as ilusões
verbaisdo romance,a recriaçãoda paisagem,o senti-
mentoe aspaixõespor meiodeum cuidadosométodo
69
racional.Convenhamosem chamarestéticaesta lin-
guagemdo romancedosséculosXVIII e XIX, e assi-
nalemossinteticamentesuascaracterísticascapitais:ra-
cionalidade,mediaçãoderivadada visãoracionaldo
mundoou, no casoderomancistasquejá iniciamuma
visãomais intuitivae simpáticado mundo,mediação
verbalocasionadapeloempregodeumalinguagemque
nãosepresta- por suaestrutura- a expressaressa
visão. Um último traço: prodigiosodesenvolvimento
técnicodalinguagem:comonapinturado Renascimen-
to, estudo,aplicaçãodas mais sutisartimanhastécni-
cas para privilegiara profundidade,a perspectiva,a
core a linha.
Assim,pormaissutilquesejaa indagaçãopsicoló-
gica- e pensono Adolphe de Constant,e em todo
Stendhal-, trata-sena realidadede umadissecação
anímica;o quesequerécompreender,entender,revelar,
e inclusivecatalogar.Balzac,e maistardeGeorgeMe-
redith, realizamsutilíssimasaproximaçõesaos movi-
mentosmaissecretosda almahumana.Porémsuain-
tençãofinal é racionalizaressesmovimentos,e por isso
os tratamcomumalinguagemquecorrespondea essa
visãoe a essaintenção.Sãoos romancistasdo conheci-
mento;contamexplicando,ou (os melhoresdeles)ex-
plicam contando. E cito de novo Stendhal.Por isso,
quandono meiodestanovelísticasurgemaspáginasde
certasobrascomoHyperion e Aurélia; quando,simul-
taneamentemasemseuterritórioisoladoefosco,ospoe-
tasalemãese franceseslançamumaprimeirainvestida
contraa linguagemde uso estético,aspirandoa uma
palavraque expresseuma esferadistintade visão,o
romancedá sinaisde inquietação,afastae indaga,ini-
cia tímidosensaiosde apropriação,e entraem nosso
séculocomevidentesmanifestaçõesde inquietaçãofor-
mal,deansiedadequea levaráa darpor fim um passo
de incalculávelimportância;a incorporaçãoda lingua-
gemde raiz poética,a linguagemde expressãoimedia-
ta dasintuições.
Isto,porém,sópodiaocorrerquandoo romancista,
afastando-sedoestudodomundoedohomem,daobser-
vaçãovoluntáriadascoisase dosfatos,sesentissesub-
metidopor outromundoqueesperavaserdito e apre-
endido;o da visãopura,o contactoimediatoe nunca
analítico;o que,precisamente,haviaroçadoNervalcom
70
a prosado séculoanterior,e quea maisaltapoesiada
Europapropunhacomoobjetivoe sofrimentodo ho-
mem.
Pelaprimeiravezedemaneiraexplícita,o romance
r,enunciaa utilizarvalorespoéticoscomomerosador-
nos e complementosda prosa (conformefaziamum
WalterScottou um HenriqueSienkiewicz),e admite
umfatofundamental:quea linguagemderaiz estética
nãoé aptaparaexpressarvalorespoéticos,e aomesmo
tempoqueessesvalores,comsuaformadiretade ex-
pressão,representamo vislumbremaisprofundodesse
âmbitototalde conquistapelo qual se interessao ro-
mance:o que cabechamaro coraçãoda esfera.Ao
ingressarem nossotempo,o romanceinclina-separa
a realidadeimediata,o queestámaisaquémde toda
descriçãoe só admiteser apreendidona imagemde
raiz poéticaque a perseguee revela.Algunsroman-
cistasreconhecemquepesse fundo inacessívelpara
suaspinçasdialéticasjoga-seo jogo do mistériohu-
mano,o suportede suasobjetivaçõesposteriores.E
entãoseprecipitampelocaminhopoético,arremessam
pelaamuradaa linguagemmediadora,substituema fór-
mulapelo ensalmo,a descriçãopela visão,a ciência
pelamagia.
Mas eleé o romance,a coisaimpura,o monstro
demuitaspatase muitosolhos.Tudo ali vale,tudose
aproveitae confunde.É o romance,não a poesia.E
aindaque (olhandoa coisapelooutrolado) estaevo-
lução importanum avançoda poesiasobrea prosa,
nãoé menoscertoqueo romancenãosedeixaliquidar
comotal, porquea maioriade seusobjetivoscontinua
à margemdosobjetivospoéticos,é materialdiscursivo
e apreensívelsomentepor via racional.O romanceé
narração,o queporuminstantesepareceuquaseesque-
oer, deixando-sesubstituirpela apresentaçãoestática
própriado poema.O romanceé ação; e alémdissoé
compromisso,transação,aliançade elementosdíspares
quepermitama submissãode um mundoigualmente
transacional,heterogêneoe ativo.O importanteé que
o avançoda poesiasobr.eo romancequecoloretodo
nossotempo,significouumfuro emprofundidadecomo
nenhumanarrativado períodoestéticotinha podido
atingirpor limitaçãoinstrumental.O golpede estado
quedá a poesiano próprioterritórioda prosaficcional
71
(da qualhaviasidoatéentão.meroadornoe comple-
mento)revelaemtodasuaviolênciamagníficaas am-
biçõesdenossotempoe seuslucros.O séculoseinicia
como impactoda filosofiabergsoniana,e suacorres-
pondênciainstantâneana obradeMarcelProustprova
até que pontoo romanceesperavae requeriaas di-
mensõesdaintuiçãopura,o passoadiantequefossefiel
a essaintenção.Aqui queroassinalar,paraevitaram-
bigüidades,quea irrupçãoda poesiano romancenão
supôsnecessariamentea adoçãode formasverbaispoe-
máticas,nemsequerissoquetãovagamentesechamava
emcertotempo"prosapoética",ou o denominado"es-
.tilo artista"à maneirados Goncourt.O que contaé
a atitudepoéticano romancista(que justamentenão
tinhamos Goncourt,tão finos esteticamente);o que
contaé a negativaemmediatizar,embelezar,fazerlite-
ratura.Esta atitudepodechegara formasextremas,à
quasetotal substituiçãodo contopelo conto;exemplo
admirável,Naissancede I'Odysséede Jean Giono; a
entregaao livre jogo dasassociações,comoem tantos
capítulosde Ulysses;o aproveitamentoda fórmulacom
valor simultaneamenteaforísticoe mágico,comoLes
EnfantsTerriblesde Cocteaue Le Diableau Corpsde
Radiguet;ou à salmodiacomovalor de poemain ex-
tenso,que atuapor acumulaçãoe fisga-nospor can-
saço(frasequenaesferadapoesiatemumsentidopro-
fundíssimo):valhamcomoexemplotantosromancesde
Gabriel D'Annunzio (Le Vergini delleRocce, e um
contocomoNotturno),parteda obradeGabrielMiró,
e nossoDon SegundoSombra,cadaum comsua ma-
neiraespecialdemordera matériapoética.
Por certoapresençado irracionaliluminouem
todosostemposo romance;masagora,nastrêsprimei-
rasdécadasdenossoséculo,encontramo-nosantesuma
deliberadasubmissãodo romancistaàs ordensque o
podemconduzira umanovametafísica,nãojá ingênua
comoa inicial, e a umagnoseologia,não já analítica
masdecontacto.O expressionismogermânico,o surrea-
lismofrancês(ondenãohá fronteirasentreo romance
e o poema,ondeo conto,por exemplo,unee anulao
queantesconstituíagênerosprolixamentedemarcados)
avançamporessasterrasemqueo tempodosonhoatin-
gevalidezverbalcomimportâncianão menordo que
o tempodevigília.Da empresasinfônicaqueé Ulysses,
72
especlede mostruáriotécnico,depreendem-sepor in.
fluênciaou coincidênciaos muitosramosdesteimpulso
comum.Ê precisopensarque,de 1910a 1930,os ro-
mancistascujaobranosparecehojevivae significativa
sãoprecisamenteos quelevamao extremo,deumaou
outramaneira,estatendênciaa concedero primeiro
planoa umaatmosferaou a umaintençãomanifesta-
menteirracional.J oyce,Proust,Gide- tãolúcido,tão
"artista",maso pai de Lafcadio,deNathanael,deMi-
cheleMénalque-; D. H. Lawrence,cujaPlumedSer-
penté magiaritualpura;Kafka; WilliamFaulkner,o
homemquebuscaa metafísicada guerrade 14 com
olhosdealucinado,quedeslumbroua adolescênciados
homensdeminhageraçãocemumcontotraduzidopela
Revistade Occidente:"Todos os aviadoresmortos";
ThomasMann,quepõesuadialéticaa serviçodeuma
dançamacabra,A MontanhaMágica, indagaçãoda
mortea partirdaprópriamorte;Fedin,como caleidos-
cópiodeAs Cidadese os Anos, talveza últimaconse-
qüênciacoerenteda filiaçãodostoievskianana Rús·sia;
HermannBroch, já no limite da SegundaGuerra,e
Virgínia Woolf, flor perfeitadestaárvorepoéticado
romance,sua últimaThule, a provarefinadade sua
grandezae tambémde suafraqueza.
Nesteinventáriodegrandesnomester-se-ánotado
a ausênciadeHenryJames,Mauriac,Galsworthy,Hux-
ley, Conrad,Montherlant,Forster,Cholokhov,Stein-
beck,CharlesMorgan.Estãoausentesporqueestesmag-
níficosromancistassãocontinuadoresda linhatradicio-
nal,romancistasà maneiraemqueseentendiao termo
no séculopassado.Vivemnossotempo,deleparticipam
e o padecemprofundamente;nadatêmde passadistas;
massuaatitudeliteráriaé a de continuadores.Sãono
romanceatualo queé PaulValéryna poesiafrancesa,
ou aonnarde Maillol nasartesplásticas.Sãotambém
provasluminosasde queo romanceestálongede ha-
veresgotadoseusobjetivostradicionais,suacaptaçãoe
aindaexplicaçãoestéticadomundo.
Na vastaproduçãoficcionalde nossotempo,a
linha de raiz e métodopoéticosrepresentaum·salto
solitárioa cargode uns poucosnos quaiso sentido
especialde suaexperiênciae suavisãodá-sesimulta-
neamentecomonecessidadenarrativa(por issosãoro-
mancistas)e suspensãode todocompromissoformale
73
de todu correlatoobjetivo(por isso são poetas).O
que uma obra como a de Virginia WooU pode ter
contribuídopara a consciênciade nossotempo,está
emlhe ter mostradoa "poucorealidade"da realidade
entendidaprosaicamente,e a presençaavassaladorada
realidadeinformee inominável,a superfícieigual,mas
nuncarepetidado marhumano,cujasondasdãonome
ao seumaisbeloromance.
Em geralcabesituarentre1915e 1935a zona
de desenvolvimentoe influênciadestalinha; porém
os resultadosformaisde tãobrilhanteheterodoxiapro-
longam-seatéhoje,de modoqueme parecepossível
assentarcomofatoindubitávelquea prosatradicional
do romance(cujaslimitaçõesassinalamos)já nãopode
merecera menorconfiançase pretendesuperarsua
funçãodescritivadefenômenos,seprocurasairdo que
por necessidadeé: um órgãoexpressivodo conheci-
mentoracional.O queimportaé mostrarmaisumavez
queno romancenão há fundo e forma; o fundo da
forma,é a forma.Prova-oo fato de quea linguagem
de raiz poéticanão se prestapara a reflexão,para a
descriçãoobjetiva,cujasformasnaturaisestãona prosa
discursiva.
(Talv·eza herançamaisimportantequenos deixa
estalinha de poesiano romanceresidana claracons-
ciênciade umaaboliçãode fronteirasfalsas,de cate-
goriasretóricas.Já nãoexisteromanceoupoema:exis-
temsituaçõesquesevêeme seresolvememsuaesfera
verbalprópria. Creio que HermannBroch e Henry
Miller representamhoje o lado maisavançadodesta
linha de libertaçãototal.)
Tocamosagorao tempoquenoscircunda.Desde
1930eramvisíveisossinaisdeinquietaçãono romance,
os saltosà direitae à esquerdatraduzindo-seemobras
tão distintas,mastão iguaisna inquietação,comoas
primeirasde AndréMalrauxe certaescola"dura" nos
E.U.A. Já na posseda extremapossibilidadeverbal
quelhesdavao romancede raiz poética;livrespara
aprofundara liquidaçãofinal dosgêneros,inclusiveda
próprialiteraturacomorecriação(no duplosentidodo
termo),é visívelem escritoresde todasas filiaçõese
lugaresqueseuinteressese voltaparaalgodiferente,
queparecemfartosda experiênciaverballibertadora;
quasediria queestãofartosde escrevere deverescre-
74
ver as coisasquese escrevem;e queo fazempor seu
lado paraapressara morteda literaturacomotal. Se
aplicamosa fórmuladeJean-PaulSartre:"O prosador
- digamoso romancista- é umhomemqueescolheu
um certomododeaçãosecundária",observaremosque
a cóleradestesjovensde 1930em dianteé precisa-
mentea de não encontrarna literaturamaisdo que
umaaçãosecundária,quasediria vicária;desdequea
eleslhesinteressaa açãoemsi; não a perguntasobre
o quê do homem,masa manifestaçãoativado próprio
homem.O grandeparadoxoé quea culturae a vocação
os atirana linguagemcomoas mariposasna chama.
Escrevemardendo,e seuslivros são sempreo ersatz
dealgumato,dealgumacertezapelaqualseangustiam.
Suponhoque o leitor conheceo livro de René-
-Marill Albéressobrea rebeliãodosescritoresatuais1;
estelúcidoensaioacercade algunsescritoresfranceses
- Malraux,Bernanos,Camus,Sartre,Aragone outros
- livra-mede todaprolixidadeao consideraro ro-
mancequeeles,juntocomseussemelhantesde outros
países,representamhoje.Usarei,à maneirade chave,
umafórmulaque acreditoeficaz.Dir-se-iaque o ro-
mance,nos primeirostrintaanosdo século,desenvol-
veu e lançou a fundo o que poderíamosdenominar
a ação das formas; seusêxitosmáximosforamformais,
deramcomoresultadoa extensão,liberdadee riqueza
quaseinfinitasda linguagem;e não porqueseuobje-
tivofossea formaemsi mesma,masporquesuasfina-
lidadessó poderiamser atingidasmediantea audaz
libertaçãodas formas,e daí a batalhade Ulysses, a
empresaintuitivo-analíticade Proust,o inusitadoexpe-
rimentosurr·ealista,o fuzilamentopelascostasde Des-
cartes.Mas é inegávelqueestaconquistade umalin-
guagemlegítimainfluiu sobreseusatores,e que em
boapartede suaobraos êxitosvalemcomoproduto
formal,estãoindissoluvelmenteamalgamadosà lingua-
gemquepermitiuatingi-Ios.Existe aí uma açãodas
formas;mas o romanceque continua,e cuja subida
à cenaocorreua partirde 1930,sepropõeexatamente
o contrário:integrae corporificaas formas da ação.
Os toughwriters dosEstadosUnidos,o grupoexisten-
cialistaeuropeu,os solitárioscomoMalrauxe Graham
(I) La Révoltedes Écrivains d'aujourd'hui (Corrêa, 1949).
75
Greene,preenchemas ramificaçõese as modalidades
destanovelísticaa contragosto,estaespéciederesigna-
çãoemescrever- açãosecundária- queencobrea
nostalgiae o desejodeumaaçãoimediatae diretaque
revelee construapor fim o homemverdadeiroem seu
verdadeiromundo.Num estudosobreo que é litera-
tura,Sartr,eafirmacomtoda clareza:"A literaturaé,
por essência,a subjetividadede umasociedadeemre-
voluçãopermanente.Numa sociedade(que tivesseul-
trapassadoesseestadodecoisas),a literaturasuperaria
a antinomiadapalavrae da ação".A gentesepergun-
ta, estáclaro, se, superara antinomiapalavra-ação,
não acabariacoma próprialiteratura,sobretudocom
o romanoe,quetemseualimentocentralnessafricção
e nessedesacordo.Mas no fundo- parecempensar
estesrebeldes- a liquidaçãodo romancebemvaleria
seupreço,se lembramosqueos romancessãoescritos
e lidospar duasrazões:paraescaparde certarealida-
de, ou paraseopora ela,mostrando-atal comoé ou
deveriaser. O romancehedonistaou o romancede
intençãosocialdeixariamambosde ter sentidoao ces-
sar o queSartrechama"sociedadeemrevoluçãoper-
manente":oprimeiro,porqueo hedonismoretarnaria
aosgênerosquelhe sãonaturais,as artesemprimeiro
lugar;o segundo,porquea sociedadefuncionariaefi-
cazmentee não dariaao romancistaalémdo temado
indivíduo.Todavia, emboratudo isso seja bastante
ocioso,interessa-mevê-Io de soslaioporquerevelao
desprezoparacomo romance,quesubjaznosromances
de nossosúltimosanos.Desprezotantomaisraivoso
quantoo romancistaestácondenadoa sê-Io.Como o
pobreheróideSomersetMaugham,vivefazendocenas
paraacabarvoltandoao ladodessaamantequesimul-
taneamentegostariade matare nãoperder.
A plataformade lançamentodestesromancistas
estáno desejovisíveldeestabeleoercontatodiretocom
a problemáticaatualdo homemnumplanode fatos,
departicipaçãoevidaimediata.Tende-sea afastartoda
buscade essênciasquenão se vinculemao comporta-
mento,à condição,ao destinodo homem,e o queé
mais,ao destinosociale coletivodo homem.Embora
se pesquiseaessencialidadede ser·essolitáriose indi-
viduais(os heróisde GrahamGreene,por exemplo),
ao romancistainteressamsobretudoos conflitosquese
76
produzemna zonade atrito,quandoa solidãosetorna
companhia,quandoo solitárioentrana cidade,quando·
o assassinocomeçaa convivercomseuassassinadona
vida moral.Como umatácitahomenagemao que foi
alcançadopela novelísticadas trêsprimeirasdécadas,
pareoedar por assenteque a via poéticafez o seu,
desentranhouas raÍzesda condutapessoal.Todoseles
partemdaíemdiante,queremtratarcomo Homofaber,
coma açãodohomem,comseubatalhardiário.E nada
é mais reveladordestecaminhoque o itineráriode
AndréMalraux,desdea provado indivíduoqueexpõe
um romancecomoLa Voie Royale,atéo progressivo
ingressonaconfrontaçãoqueanunciaLes Conquérants,
quesejogacomLa ConditionHumainee adquiredi-
mensãohistóricacomL'Espoir.Ê aquiquedesejoacres-
centaroutrafórmula,reveladorapor vir de quemvem;
em1945disseAndréBreton:"Ê precisoqueo homem
se passe,com armase bagagens,parao lado do ho-
mem".Nestafrasenãoháilusãoalguma,mashá,como
em Malraux, esperança,emboracaiba pensarque a
esperançapodeser a últimadas ilusõeshumanas.O
importanteestáemnãoconfundiraquio avançopara
o homemquetraduzestacorrente,com essasformas
quese costumamenglobarsob a denominaçãode "li-
teraturasocial", e que consistemgrossomodo em
apoiarumaconvicçãopréviacomummaterialficcional
quea documente,ilustree propugne.Romancistasco-
mo Greene,Malrauxe Albert Camusjamaistentaram
convenceralguémpor via persuasiva;suaobranão dá
nadapor resolvido,senãoque é o próprioproblema
mostrando-see debatendo-se.E comoessaproblema-
ticidadeemplenaaçãoé precisamentea angústiae a
batalhado homempor sua liberdade,da dúvidado
homemanteas encruzilhadasde uma liberdadesem
decálogosinfalíveis,ocorrequeem tornodestemovi-
mentoque nada nos impedechamarde existencial
agrupam-seos homens(romancistase leitores)para
quemnenhumpoderé aceitávelquandose trata do
homemcomopessoae comoconduta;para quem-
segundotãobemo viu FranciscoAyala- tododomí-
nio impostopor umhomemsobreoutroé umausurpa-
ção. O homemé uma naturezaignóbil,parecedizer
Jean-PaulSartre;maso homempodesalvar-sepor sua
ação,queé maisdo queele,e porquea açãoqueo
77
homemesperado homemdevecomportarsua ética,
uma praxis confundidae manifestadana ética,uma
éticadando-se,não em decálogos,mas em fatosque
só por abstraçãopermitamdeduziros decálogos.E
Camus,quesemelhantea Malrauxcaminhaprogressi-
vamenteda negaçãoaltivaà confrontaçãoe por fim
à reunião,diz istotãobememsuascartasa umamigo
alemão:"Continuoacreditandoque estemundonão
temsentidosuperior.Todaviaseiquehá algoneleque
temsentido,e é o homem,porqueé o únicoser que
exige,essesentido".Frasequeseaprofundaaindamais
em La Peste,ondese fala de "aquelesa quemlhes
bastao homem,e seupobree terrívelamor".
P.ermito-meinsistirem que estasituaçãodo ho-
memenquantohomem,quemarcaa maisinquietano-
velísticadestesdias,nadatema ver como "romance
social"entendidacomocomplementoliteráriode uma
dialéticapolítica,históricaou sociológica.Por issopro-
vocatantaindignaçãonaquelesq,Ueescrevemou apre-
ciamo romancecomoumaprovaa posterioride algo,
umpróou umcontraemrelaçãoa umestadodecoisas,
sendoqueesteromanceé aocontrárioo próprioestado
decoisas,o problemacoexistindocomsuaanálise,sua
experiênciae suaelucidação.O romancesocialcami-
nha atrásdo avançoteórico.O romanceexistencial
(peçoperdãopor estesdoistermostãoequívocos)en-
tranhasuaprópriateoria,em certamedidaa cria e a
anulade uma só vez porquesuasintençõessão sua
açãoe representaçãopuras.Dir-se-áque o romance
existencialistaveio atrásda correspondenteexploração
filosófica,maso que fez esteromancefoi mostrare
expressaro existencialem suasprópriassituações,em
sua circunstância;quer dizer, mostrara angústia,o
combate,a liberaçãoou a rendiçãodo homema partir
da situaçãoemsie coma únicalinguagemquepodia
expressá-Ia:a do romance,que procuradesdetanto
temposerdecertomodoa situaçãoemsi, a experiência
davidae seusentidono graumaisimediato.O próprio
Kierkegaard,socorrendo-sede símbolose narrativas,
entreviajá o que um Sartredesenvolvehoje com o
desdobramentosimultâneode seustratados,seu ro-
mancee seu teatro;a experiênciado personagemde
La Nauséesó sepodeapreendermedianteumasitua-
ção comoa sua, e uma situaçãocomo a sua só se
78
podecomunicarao leitormedianteum romance.Ora,
comoestetipo de romancenão se prestaà indução,
tãocaraaosamigosda literatura"social",estesúltimos
acusam-nade individualismo(grandecensurade algu-
masbocas)e de quepretendeisolaro homemde sua
circunstância.O romancesocialprivilegiaa indução
porqueestábaseadanela;o soldadode SemNovida-
des no Front tipifica todosos soldadosdo mundo;
Roubachof,o heróideO Zeroe o InfinitodeKoestler,
valepor todosos anti-stalinistassubmetidosa situações
semelhantesà sua; ao contrário,Garine,o chefede
Les Conquérantsde Malraux,é somenteGarine,um
homemdiantede si mesmo;e, no entanto,eu afirmo
queGarineé tambémqualquerum de nós,masnão
porumacômodainduçãoquenospõea seulado,mas
cadavez queum de nós repetepessoalmente,dentro
de suasituaçãohumanaindividual,o processopara a
autoconsciênciaqueempreendeGarine.Naturalmente,
no estadoatualda sociedade,os homenscapazesdesta
confrontaçãosãopoucos,e as vias docentese persua-
sivasdo romancecomintençãosocialrevelam-semais
eficazesnumsentidopolítico.De minhaparte- e em
matériade romancesnãocaheesmiuçar,porqueé ma-
tériaentranhadamentehumana- minhaescolhaestá
feita:pensocomAndréGideque"o mundoserásalvo
por uns poucos",e acrescentoque essespoucosnão
estarãoinstaladosno poder,nem ditarãoda cátedra
as fórmulasda salvação.Serãoapenasindivíduosque
- à maneirade um Gandhi,por exemplo,embora
não necessariamentecomoum Gandhi - mostrarão
semensinoalgumumaliberdadeatingidana luta pes-
soal.Não seráum ensinoo seu,masumapresença,
um testemunho.E um dia, distantÍssimo,os tomens
começarãoa ter vergonhade si mesmos.O climados
romancesexistenciaisé já o clima dessavergonha.
Quero dizer nesteponto que a nov,elísticade
grandetensãoexistencial,de compromissocomo ima-
nentehumano,é a que apontacom maisclarezade
interrogaçãodenossotempo.Repitoqueseo romance
clássiconarrouo mundodo homem,se o romancedo
séculopassadoperguntou-segnoseologicamenteo como
do mundodo homem,estacorrentequenos envolve
hojeprocuraa respostaparao porquêe parao para
quê do mundodo homem.
79
Paralelamentea seu curso caminhamoutras linhas
novelísticas dignas de consideração porque represen-
tam, não exatamenteposições antagônicas,mas antes
a apreensãode aspectoscorrelativos do homem con-
temporâneo.Uma dessa~linhas pareceocorrer na obra
dos romancistasitalianos que, acabado o grande iso-
lamentodo fascismo,interessamhoje ao mundo inteiro.
Todavia o ramo mais significativo (não faço questão
de qualidade, mas de peculiaridade) parece-meser a
dos tough writers dos Estados Unidos, os escritores
"duros" criados na escola de Hemingway (alguém
poderia dizer que, mais do que escola, isso foi um re-
formatório), romancistas como J ames Cain, Dashiell
Hammette Raymond Chandler. Parto da observação
de que nenhum destesromancistasé um grande escri-
tor; como sê-Io, se todos eles representamuma forma
extrema e violentÍssima desse repúdio consciente ou
inconscienteda literatura que assinalamosantes?Neles
se faz intensa a necessidadesempre adiada de atirar
a linguagem à margem.A abundânciado insulto, da
obscenidadeverbal, do uso crescentedo slang, são ma-
nifestaçõesdestedesprezopara com a palavra enquanto
eufemismodo pensamentoe do sentimento.Tudo su-
porta aqui um processo de envilecimentodeliberadO';
esteescritor faz com o idiüma o que seus heróis com
as mulheres;é que ambostêm a suspeitade sua traiçãõ.
Não se pode matar a linguagem,mas cabe reduzi-Ia à
pior das escravidões.E então o tough writer nega-sea
descrever (porque isso dá vantagem à linguagem) e
utiliza apenas o neoessáriopara representaras situa-
ções. Não contentecom isto, recusa-sea empregaras
grandesconquistas verbais do romance psicológico, e
escolhe uma ação romanesca da pele para fora. Os
personagensde Hammett não pensam nunca verbal-
mente: atuam. Não sei se se notou que suas melhores
obras - The GIOlSsKey, The Maltese Falcon, Red
Harvest - são ação pura, creio que o primeiro caso
de livros onde em vão se buscará a menor reflexão, o
mais primário pensamento,a mais leve anotaçãode um
gestointerior, de um sentimento,de um impulso. E o
que é mais assombroso,alguns destes livros (como
também os de Chandler) estão escritos em primeira
pessoa, a pessoa confidencial por excelênciaem toda
literatura. Estes romances, além disso, pertencemaos
80
chamadospoliciais. Mas simultaneamenterepresentam
uma reação total contra o gênero,de que apenasguar-
dam a estnitura à base de um mistério a resolver.Rü-
ger Caillois estudoua fisionomia especialdestesdeteti-
ves de Hammett, quasedelinqüenteseles próprios, en-
frentando os criminosos com armas semelhantes,com
a mentira, a traição e a violência. Aqui também o
romancepolicial baixa de suasalturasestéticas- desde
Conan Doyle a Van Dine - para situar-senum plano
de turva e direta humanidade.O paradoxo é que a
linguagem, rebaixada na mesma proporção, vinga-se
dos Hammett e dos Chandler; há momentosem seus
romancesem que a ação narrada está tão absoluta-
menterealizadacomo ação, que se converteno virtuo-
sismodo trapezistaou do equilibrista; estiliza-se,desu-
maniza-se,como as lutas de murros das películas ian-
ques, que são o cúmulo da irrealidade por excessode
realismo. Não há ação sem titubeias de qualquer or-
dem; o que é mais, não há ação sempremeditaçãoou,
pelo menos, sem reflexão.No cinema não v,emosnem
ouvimos pensar; porém os rostos e os gestüspensam
em voz alta, isso corre por conta dos atores.Aqui não
há sequerisso; o romancechegoua seu ponto extremo;
querendo eliminar intermediários verbais e psicológi-
cos, dá-nos fatos puros; mas ocorre que não há fatos
puros; vê-seque o desejoestá,nãO'em dizer o fato, mas
em encarná-Io, incorporar-se e incorporar-nos à situa-
ção. Entre a coisa e nós há um mínimo de linguagem,
apenasO'necessáriopara mostrá-Ia. O curioso é que a
narração de um fato, reduzida à representaçãopura
do fato, obriga um Hammett a decompô-Ia como os
muitos quadros que formam um só movimentoquando
se recompõem na tela cinematográfica.Fugindo do
luxo verbal, das atenuaçõese das sugestõesem que
abunda a técnica do romance,cai-se no luxo da ação;
vemosum personagemchegar-a uma casa,tocar a cam-
painha, esperar, ajeitar a gravata, conversar com o
porteiro, entrar numa sala cujas paredes e mobiliário
são registradoscomo num inventário. O personagem
põe sua mão direita no bolso direito da jaqueta, tira
um maço de cigarros, escolheum, leva-o à boca, tira
seu isqueiro, faz com que funcione, acendeo cigarro,
aspira o fumo, expele-olentamentepelo nariz. .. Não
81
exagero;leia-se, como prova, Farewell, my Lovel)', de
Raymond Chandler.
Esta novelística(que cito, é claro, em suasformas
extremas) respondeclaramentea uma reação contra o
romancepsicológico,e a um obscuro desígniode com-
partilhar o presentedo homem, de coexistir com seu
leitor num grau que jamais teve anteso romance. Tal
coexistênciasupõe o afastamentoda "literatura" en-
quanto esta representeuma fuga ou um ensino; supõe
a busca de uma linguagemque seja o homem em vez
de - meramente - expressá-Io. Isto pode parecer
demasiadamenteintuitivo, mas tudo o que foi dito mais
acima evidencia que as linguagens "literárias" estão
liquidadas como tais (ao menos nos romances repre-
sentativos,já que os doutores Cronin continuam por
seulado e gozamde muito boa saúde); liquidadasquan-
do são infiéis ou insuficientespara a necessidadede
imediatismohumano; é este imediatismoo que leva o
romancista a afundar na linguagem (e daí sai a obra
de um Henry Miner, por exemplo) ou a reduzi-Ia
ressentidamentea uma estrita enunciaçãoobjetiva (e
esteé Raymond Chandler); em ambosos casos o que
se procura é aderir; não importa se a obra de Albert
Camus é mais importantedo que a de Dashiell Ham-
mett, se o homem ao qual adere uma narrativa como
L'Étranger é mais significativopara nossosdias do que
o homem cujo turvo itinerário explora The Maltese
Falcon. Ao contrário o que me pareceimportanteé que
ambos, Mersault e Sam Spade, sejam nós, sejam ime-
diatismo.Não como contemporâneos,mas como teste-
munhasde uma condição,de uma humilhação,de uma
sempre esperada libertação. No romance do século
XIX, os heróis e seus leitores participavam de uma
cultura, mas não compartilhavamseusdestinosde ma-
neira entranhada;romances eram lidos como fuga ou
forma de ilusão, jamais como forma de encontroou de
antecipação:eram escritoscomo nostalgiada Arcádia,
como pintura social crítica ou utopia com fins didáticos;
agora são escritos ou lidos para confrontar-se hoje e
aqui; com todo o vago, nebuloso e contraditório que
possa caber nestes termos. Não em vão a frase de
Donne sobre o dobrar dos sinos adquiriu entre nós tão
grande valor simbólico. Não em vão o melhor indivi-
dualismo de nosso tempo contémuma aguda consciên-
82
cia dos restantesindividualismos,e se quer livre de todo
egoísmoe de todo isolamento.René Daumal escreveu
esta frase maravilhosa: "Sozinhos, depois de acabar
com a ilusão de não estar sozinhos, não somos já os
únicos que estamossozinhos". Por isso o guilhotinado
de L'Étranger, o sórdido jogador de The Glass Key, os
bailarinosde They ShootHorses, don't They?, o menino
imerso em vitrÍolo de Bringhton Rock incluem-nosem
tão grandemedida; sua culpa é a nossa, e não que o
saibamosatravés do autor, mas o vivemos. Tanto o
vivemosque cada um dessesromancesnos adoece,faz-
-nos cair em nós mesmos,em nossaculpa. Creio que o
romancequehoje importaé o que não foge à indagação
dessaculpa; creio tambémque s,eufuturo já se anuncia
atravésde obras em que a treva se espessapara que a
luz, a pequena luz que treme nelas, brilhe melhor e
seja reconhecida.Em plena noite, esse lume chega a
iluminar o rosto de quem a leva consigo e protege-a
com a mão.
83