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lha, suachacinade meioséculo;seuir e vir do J e ao AutrequeRimbaud,profetamaiorenãonosentidoque pretendiao sinistroClaudel,vociferouemseudia ver- tiginoso.Agoraelemorreu,e dabatalharestampedaços de coisase um ar úmidosemluz. As horríveiscartas escritasdo asilode Rodeza Remi Parisotsãoum tes- tamentoquealgunsdenósnãoesqueceremos. 60 ~I ~I J ~! I 3. SITUAÇÃO DO ROMANCE Tenhopensadoalgumasvezesse a literaturanão mereciaserconsideraraumaempresadeconquistaver- bal da realidade.Não por razõesde magia,para a qual o nomedas coisas(o nomeverdadeiro,oculto, essequetodoescritorpersegueemboranão o saiba) dá a poss'eda própriacoisa.Nemtampoucodentrode umaconcepçãodaescrituraliteráriasegundoa entendia (e previa)Mallarmé,espéciede aboliçãoda realidade fenomênicanumaprogressivaeternizaçãode essências. Esta idéia da conquistaverbal da realidadeé mais diretae semdúvidamenospoética;nascesobretudoda leiturade tantosromancese também,provavelmente, da necessidadee da ambiçãode escrevê-Ios.Tão logo 61 se transpõea etapada adolescênciaem que se lêem romancesparadesmentircomumtempofictícioos de- sencantosincessantesdo própriotempo,ingressando-se naidadeanalíticaquandoo conteúdodoromanceperde interessejuntamentecomo mecanismoliterárioque o configura,descobre-sequecadalivro realizaa redução aov,erbaldeumpequenofragmentodarealidade,e que a acumulaçãodevolumesemnossabibliotecavai pare- cendocadavezmaiscomum microfilmedo universo; materialmentepequeno,mascomumaprojeçãoemcada leitorquedevolveascoisasa seutamanhomentalpri- mitivo.É assimqueenquantoas artesplásticaspõem novosobjetosno mundo,quadros,catedrais,estátuas, a literaturavaiapoderando-sepaulatinamentedascoisas (o que depoischamamos"temas")e de certaforma as subtrai,rouba-asdo mundo;é assimqueexisteum segundoraptode Helenade Tróia, essequea separa do tempo. Encarandodestamaneiraa literatura,sua"histó- ria" consistirianãotantonaevoluçãodasformasquanto nasdireçõese estratégiade suaempresade conquista. Se se tratade apoderar-sedo mundo,se a linguagem podes'erconcebidacomoumsuperafastamentoquenos utilizahá 5000 anosparaseuimperialismouniversal, as etapasdestapossedelineiam-seatravésdo nasci- mentodosgêneros,cadaum dosquaistemcertosobje- tivos,e a variaçãonaspreferênciastemáticas,quereve- lam a tomadadefinitivade um setore a passagem imediataao quesegue.Destemodo,é fácil reconhecer as grandesofensivascomo aquela,por exemplo,em queo mundocartaginêssucumbeantea linguagemem Salammbô.E aofalarderomancehistóricocabeinclu- sivesugerircomalgumamalíciaqueo quechamamos históriaé a presamaiscertae completada linguagem. As pirâmidesestãoali, é claro,masa coisacomeçaa tersentidoquandoChampolliontravabatalhacontraa pedra,a pedrade Roseta,e faz surgira histórianas evocaçõesdo Livro dosMortos. Por issoa literaturanãoé muitofeliznumdomí- nio de reconstruçãototalquecompetea seualiado,o historiador,e se entregacom maior prazera outros temas;logoseobservaqueprefereaszonasmaisamiu- dadasno tempoe os objetosmaispróximosdo inte- ressehumanoenquantocoisasvivasepessoais.Por isso, 62 vezqueNarcisocontinuasendoa imagemmais cabaldo homem,a literaturaorganiza-seemtornode suaflor falante,e seempenha(estánisso) na batalha maisdifícilecaprichosadesuaconquista:abatalhapelo indivíduohumano,vivo e presente,vocêse eu, aqui, agora,estanoite,amanhã.Os temas,por compreensí- veis razõesestratégicas,tornam-semais imediatosno tempoe no espaço.Já a Ilíada está,nessesentido,mais próximada literaturaatualdo quea Odisséia, ondeo temposedilui e os homenssãoguiadospelosaconteci- mentos,muitotempohaviapassadoanteas portasde Ilion, masa narrativacomeçanumdadomomentoe o transcursoadquireum valor de jornadasrepletasde acontecimentos.Nadasedilui ali, Aquilese Heitorsão a prefiguraçãodo indvíduoquese assumeinteiramente nahora,emsua hora,e jogao seujogo.TambémFaus- to, depois.E bastaráum dia da históriada cidadede Dublin, Irlanda,para quea linguagemse apoderedo senhorLeopoldBloome detodoo seuambiente.Como se, apertandoo tempo,a literaturaexpandisseo ho- mem. Deixandode lado os temas,vale a penaprovar nossaconcepçãodo literáriopelaformacomoevoluem os chamados"gêneros".Interessaaqui observara vi- gênciaespecialdecadagêneroemrelaçãoàsdiferentes épocas,porquenestejogo de substituiçõese renasci- mentos,de modasfulminantese grandesdecadências, ocorrea adequaçãodo literárioa seupropósitoessen- cial.O vastomundo:eisaquiumaqualificaçãoqueco- meçacedono assombrodo homemdiantedo que o envolvee prolonga.Vastoe variado,teatroparauma inacabávelcaçada.Há entãoumapartilhavocacionale dessapartilhasurgemos gêneros:eis o nefelibatae o nomenclador,o arpoadordosconflitosinternos,o que teceas redesdascategorias,o quetranscendeas apa- rências,o que joga com elas;logo é a poesiaou a comédia,o romanceou o tratado.Primeiro (sempre foi igual,veja-sea marchada filosofiaou da ciência) aferra-seaodefora.É precisonomear(porquenomear é apreender).Aí estátudo:essaestrelaesperandoque a chamemosSírio, essasoutrasoferecendo-seaoslapi- dáriosparaqueconstruamasconstelações.O mar,para quelhedigamqueépurpúreo,ounossorio paraquelhe ensinemqueé da cor do leão.Tudo esperaqueo ho- 63 memo conheça.Tudo podeser conhecido.Até o dia emquesurgea dúvidasobrea legitimidadedesseco- nhecimento;entãoa literaturaajudaa revisãopréviae interna,o ajustede instrumentospessoaise verbais.A ingênuaalegriada épicae ao saltoicáricoda lírica se- gueo cautelosopalpardo terrenoimediato,o estudode sea alegriaé possível,seo trampolimajudaráo salto. Poisbem,estalúcidaconsciência,presenteemtoda literaturamoderna,paraa qualnadaé maisimportante do queo homemcomotemadeexploraçãoe conquista, explicao desenvolvimentoe o estadoatualdo romance comoformapreferidade nossotempo.Todavia,aqui me interessadesfazerum mal-entendidoque poderia confundirtudoo quesegue.Atualmentenos curamos dorigorosoconceitoapolíneodopassadoclássico,e nos é fácilobservarassombrasqueprojetamasclarascolu- nasáticase as serenaspaisagensvirgilianas.Nas figu- ras aparentementemaisobjetivasda literaturaantiga descobrimosumasubjetividadequeapsicologiacontem- porâneapõeà luz comtodasuariqueza.Vendoassim ascoisas,poder-se-iasuporqueÉdipo - comoperso- nagemde romance;não quero me ligar academica- menteaoconceitonormativoderomance,é tãocontem- porâneonossoquantoum heróide Mary Webbou de FrançoisMauriac.O mal-entendido,entretanto,estaria emsedeternasfigurasjá dadase nãono processocau- sal que lhes dá nascimento.É nesseprocesso,exata- mente,ondeestáa diferençaprincipalentrenossano- velísticaealinhadoromancedopassado.Ésquilodá-nos emÉdipo um produtode obscurasintuiçõesmÍticase pessoais;privilégiodepoetaé prescindirdaverdadedis- cursivamenteprocuradae encontrada.Ésquilotambém podeafirmarquenãoprocuramasqueencontra.Édi- po saltaà cenacomosaltamno coraçãode Rilke os versosde suaprimeiraelegiade DuÍno.E setomamos Aquiles,muitomaisprimário,simplese objetivadodo queÉdipo, observa-seem seguidaque se seusmovi- mentospsicológicosocorremcomocoisavista,experi- mentadaou supostapor Homero,masa ênfasedo ro- mancista(nãosemenegaráquea llíada é um esplên- didoromance) estáposta,nãona análisedestesmovi- mentos,masapenasemsuacomprovaçãoesuatradução em atos,em acontecimentos.Eis aquia épicaem sua própriaraiz, e a épicaé a mãede todoromancecomo 64 il I j' 'I cl 'I '.::... \' I ::; Ri 11 sepodeler noscompêndiosescolares."Canta,ohMusa, a cóleradoPélidaAquiles... " Mas o quesecantanão é a cólera,massim suascons,eqüências.No entanto, todoromancesignificativode nossaépocaterminaali ondecomeçao romancistaépico:o queimportaé saber por queAquilesestáagastado,e umavez sabidoisto, por que a causaprovocavacóleraem Aquilese não outrossentimentos.E então,queé a cólera?E, além disso,é precisoencolerizar-se?O homemé cólera?E também,o queesconde,por sobsuasformasaparentes, a cólera? Este repertóriode perguntasconstituia temática essencialdoromancemoderno,emboraimporteestabe- lecerduasetapassucessivasem seu desenvolvimento. De repente,e por causasqueentroncamcomo descré- ditodosideaisépicosdaIdadeMédia,o romancerenas- cedeseusesboçosclássicos,passeiaincertopeloRenas- cimentoondelhe enchemos alforjesde abundantema- teriaidiscursivoe de refugo(a grandezado romance, seuabarcamentoinfinito,é àsvezessuapior miséria), e depoisde emendar-secomCervantese os autoresdo séculoXVII, iniciano XVIII a primeirade suasduas etapasmodernas,quechamareignosiológicaparacon- tinuara comparaçãoquefiz antescom a evoluçãoda filosofia.O romanceenfocaosproblemasdesemprecom umaintençãonovae especial:conhecere apoderar-se do comportamentopsicológicohumano,e narrarisso, exatamenteisso,em vez das conseqüênciasfatuaisde talcomportamento.As perguntasacercadecomoépos- sívela cólerade Aquilescomeçama serrespondidas, e cadaromancerepresentaou tentaumanovacontri- buiçãoao conhecimentodo mundosubjetivo;conheci- mentoimperfeitopor falhasno instrumental(comose verá logo) masqueinteressaao romancistaenquanto operaçãopreliminarde todavolta à narrativapura e simples.Semqueelesprópriosnotemàsvezes,dir-se-ia queno romancistado séculoXVIII e especialmentedo séculoXIX há uma consciênciaenvergonhada,um sentimentodeculpaqueo levaa seexplorarcomopes- soa(Rousseau,o Adolphe deBenjaminConstant)e ex- plorar o mundo de seusheróis (Prévost,Stendhal, Dickens,Balzac) parase assegurarde queo homem camo tal podechegara conhecer-seo bastantepara daí,por projeçãosentimep.tale intelectiva,renovarso- 65 bre basessólidasa empresade conquistaverbal da rea- lidade que os clássicoshaviam tentado com seu livre desembaraço. Esta primeira etapa do romancemoderno é, pois, de tipo manifestamentegnoseológicoe se diria que o espírito de Emanuel Kant a sobrevoacomo exigência de autoconhecimentoprévio. Por felicidade, o roman- cista é essehomemque não se assustacom o número, emborao suspeiteoculto e fora do alcancede suaspa- lavras. Por isso, dentro da etapaque procuro caracteri- zar, à sondagem intensiva da subjetividadehumana, elevadaao primeiro plano e a grandetemado romance com o Romantismo, junta-se logo a análise de como essasubjetividadese derramasobreo contorno do per- sonagem,condiciona e explica seus atos. Assim nasce Emma Bovary que carregaconsigo a província até no afã ridículo e patético de se despronvicianizar.Assim seconfiguraa teoriados Rougon-Macquart, asvidas do- loridas de Oliver Twist e de David Copperfield, a car- reira dos rapazesbalzaquianos que correm a assaltar Paris. Creio poder afirmar que, à margemde suasimen- sas diferençaslocais e pessoais,o romance do século XIX é uma respostamultifacetadaà perguntade como é o homem,uma gigantescateoria do carátere sua pro- jeção na sociedade.O romance antigo ensina-nosque o homem é; nos começosda era cont,emporâneainda- ga como ele é; romancede hoje perguntar-se-áseupor- quêe seu paraquê. Todavia estaúltima etapanos atingee nos envolve, é nosso romance e tudo o que hei de dizer sobre ele tenderáa elucidar sua diferençae o que creio - num sentido extraliterário - seu progressosobre a etapa oito e novecentista.Já no umbral de nossotempoquero fazer o alto necessáriopara colocar estaquestãoprévia: Por que existemromances?Ou melhor: Por que, entre todos os gênerosliterários, nada parecehoje tão signi- ficativo como o romance? Vejo-me forçado a repetir uma noção, que, por causa de seu uso indiscriminado e entusiástico,vai to- mando cada vez mais a duvidosavigência dos lugares- -comuns.É esta:o quechamamospoesiaimplica a mais profunda penetraçãono ser de que é capaz o homem. Sedentade s,er,enamoradade ser, a poesiacruza as ca- madas superficiais sem iluminá-Ias de todo, centrando 66 seu foco nas dimensõesprofundas. E então ocorre que como o homemestá fenomenicamenteem relaçãocom suasessênciascomo a massade esferaem relaçãocom seucentro,a poesiaincideno centro,instala-seno plano absolutodo ser,e só a sua irradiação reflexavolta à su- perfície e envolve seu conteúdoem seu luminoso con- tinente.A esferahumanabrilha então porque há uma opulência,uma superabundânciade luz que a embebe. A luz vai, porém,ao centroda esfera,ao centrode cada objeto que a atrai ou a suscita. Por isso, embora tudo possaser motivo de poesia,e tudo espereseupoetapara ser matériade poesia,o homemprecisasemdúvida do romancepara conhecer-see conhecer. Poesia é sumo- -conhecimento,masas relaçõespessoaisdo homemcon- sigo mesmo e do homem com sua circunstâncianão sobrevivema um clima de absoluto; sua escala é por princípio relativa, e se esta folha de papel guarda o mistérioda essênciaque inquietava, a um poeta como Mallarmé, eu necessitodela agora enquantofenômeno, enquantosoma de propriedadesque provavelmentelhe outorgo com meus sentidos: a brancura, a suavidade, o tamanho.O mistério de seu ser chamar-me-átalvez um dia e me arrancaráo poemaque o procure e talvez o encontree nomeie.Mas hoje passeiesta folha pelo rolo de uma máquina, e pus-lhe em cima centenasde manchasde tinta que formam palavras. Isto é já visão de romancista,tarefa de romance, objeto de romance. Digo, então,que a presençainequívocado roman- ce em nosso tempo,se deveao fato de ser ele o instru- mentoverbal necessáriopara a possedo homemcomo pessoa, do homem vivendo e sentindo-seviver. O ro- manceé a mão que sustentaa esferahumanaentre os dedos. move-a e a faz girar, apalpando-a e mostran- do-a. Abarca-a inteiramentepor fora (como já o fazia a narrativaclássica) e procura penetrarna transparên- cia enganosaque lhe concedepouco a pouco uma en- trada e uma topografia.E por isso - digamo-Io desde já para voltar depois em detalhe-, como o romance querchegarao centroda esfera,alcançara esfericidade, e não o pode fazer com seusrecursospróprios (a mão literária, que fica por fora), então apela- já veremos como - para a via poética de acesso.No momento consideremo-Iosozinho e com os recursos narrativos tradicionais,ante o seu propósito básico: o de chegar 67 a compreender(no duplovalordo termo)a totalidade dohomempessoa,dohomemJ ulienSorel,AntoineRo- quentin,Hans Castorp,ClarissaDalloway. Dir-me-ãoque, além da poesia,existemoutros meiosdeconhecimentoantropológico.Mas o teatronão vai alémda exploraçãoda pessoa,e o territóriode sua complexaaçãonotempoenoespaçolheestávedadopor razõesde obrigaçãoestética.E por razõessemelhantes, o contofica restritoà suabásicaexigênciaestrutural, somentecapazderealizar-secomum temae umama- téria previamenteadequadosa essaregraáureaque lhedá belezae perfeição.Toda regraáureaobriga,no entanto,a escolher,separar,avaliar.Todo contoe toda obradeteatroimplicamumsacrifício;paranosmostrar umaformigadevemisolá-Ia,levantá-Iade seuformi- gueiro.O romancese propôsdar-nosa formigae o formigueiro,o homememsuacidade,a açãoe suasúl- timasconseqüências.O à vontadedoromance,suafalta de escrúpulos,seupapode avestruze seushábitosde xexéu,o queemdefinitivotemdeantiliterário,levou-o desde1900atéhoje a partirpelo eixo (belíssimaex- pressão)todaa cristalografialiterária.Profundamente imoraldentroda escalade valoresacadêmicos,o ro- mancesuperatodoo concebívelemmatériade parasi- tismo,simbiose,roubocomagressãoe imposiçãodesua personalidade.Poliédrico,amorfo,crescendocomoo bi- chodotravesseironocontodeHoracioQuiroga,magní- ficodecorageme sempreconceito,levaseuavançoaté nossacondição,aténossosentido.E parasubmetê-Iosà linguagem,lhes sustentao ombroe trata-osde igual paraigual,comocúmplices.Observe-sequejá não há personagensno romancemoderno;há somentecúmpli- ces.Nossoscúmplices,quesãotambémtestemunhase sobema um estradoparadeclararcoisasque- quase sempre- nos condenam;de quandoem quandohá algumquedá testemunhoa favor,e nosajudaa com- preendercommaisclarezaa naturezaexatadasituação humanade nossotempo. Seistoexplicaporqueo romancesupõee procura com seu impurosistemaverbalo impurosistemado homem,seráfácil segui-Ioagoraemsuaevoluçãofor-mal,quemeparecemuitomaissignificativae revelqdo- ra do queo enfoquehistóricodeseustemas,suasesco- lase seusrepresentantes.É tradicional,comefeito,par- 68 tir dasintençõese propósitosdo romancista,paramos- trar logo sua técnicae seuofício. Semme pôr numa rigorosaposiçãoestilística,proponhoque olhemoso romancepelo lado de suarelojoaria,suamaquinaria; comoderrubarumatartarugana areiaparaespiarseu aparelholocomotor.E assim- emlinhasmuitogerais - se verá que o romancemodernocaminhapelos séculosXVIII e XIX semalterarde maneirafunda- mentalsua linguagem,sua estruturaverbal,seusre- cursosde apreensão;o queé compreensívelporquea riquezade temas,o mundoquese oferececomomate- rial para o romancista,é de uma abundânciae uma variedadetãoassombrosas,queo escritorsesentecomo quesobrepujadoemsuaspossibilidades,e seuproblema é sobretudoo de preferir,escolher,narraruma coisa entrecemigualmentenarráveis.O quesecontaimporta sempremaisdo queo comoseconta.O problemaé de excesso,e semelhanteao dos primeirosviajantesna Américaou na África; avança-seem qualquerdireção, aosquatroventos.O passadodeixa-seexumarparade- líciadoromantismomedievalista;o presentedátudo:os costumes,o exotismo,PauloeVirgínia,o bomselvagem, Amália, as doresde Werther,a provínciaqueencan- tará GeorgeSande José María de Pereda,a crítica social,a comédiahumana,o chisteao burguês,a boê- mia,Rodolfo e Mimi, o vigáriode Wakefield,a casa dos mortos,os mistériosde Paris, a guerrae a paz. Cito umasquantase insuficientesreferênciasa títulose conteúdosde romancesfamosos;poderíamoscontinuar assimdurantehoras: Gógol, as irmãs Bronte,Flau- bert... A variedadede intençõese temasé infinita; porémo instrumento,a linguagemquesuportacadaum dest·esinúmerosromances,é essencialmenteo mesmo: é umalinguagemreflexiva,que empregatécnicasra- cionaispara expressare traduziros sentimentos,que funcionacomoum produtoconscientedo romancista, umprodutodevigília,delucidez.Sea técnicade cada um diferenciae distingueplanose acentuaçõesdentro destalinguagem,sua basecontinuasendoa mesma: baseestéticadeajusteentreo queseexpõeesuaformu- laçãoverbalmaisadequada,incluindoe aperfeiçoando todosos recursosda literaturapara criar as ilusões verbaisdo romance,a recriaçãoda paisagem,o senti- mentoe aspaixõespor meiodeum cuidadosométodo 69 racional.Convenhamosem chamarestéticaesta lin- guagemdo romancedosséculosXVIII e XIX, e assi- nalemossinteticamentesuascaracterísticascapitais:ra- cionalidade,mediaçãoderivadada visãoracionaldo mundoou, no casoderomancistasquejá iniciamuma visãomais intuitivae simpáticado mundo,mediação verbalocasionadapeloempregodeumalinguagemque nãosepresta- por suaestrutura- a expressaressa visão. Um último traço: prodigiosodesenvolvimento técnicodalinguagem:comonapinturado Renascimen- to, estudo,aplicaçãodas mais sutisartimanhastécni- cas para privilegiara profundidade,a perspectiva,a core a linha. Assim,pormaissutilquesejaa indagaçãopsicoló- gica- e pensono Adolphe de Constant,e em todo Stendhal-, trata-sena realidadede umadissecação anímica;o quesequerécompreender,entender,revelar, e inclusivecatalogar.Balzac,e maistardeGeorgeMe- redith, realizamsutilíssimasaproximaçõesaos movi- mentosmaissecretosda almahumana.Porémsuain- tençãofinal é racionalizaressesmovimentos,e por isso os tratamcomumalinguagemquecorrespondea essa visãoe a essaintenção.Sãoos romancistasdo conheci- mento;contamexplicando,ou (os melhoresdeles)ex- plicam contando. E cito de novo Stendhal.Por isso, quandono meiodestanovelísticasurgemaspáginasde certasobrascomoHyperion e Aurélia; quando,simul- taneamentemasemseuterritórioisoladoefosco,ospoe- tasalemãese franceseslançamumaprimeirainvestida contraa linguagemde uso estético,aspirandoa uma palavraque expresseuma esferadistintade visão,o romancedá sinaisde inquietação,afastae indaga,ini- cia tímidosensaiosde apropriação,e entraem nosso séculocomevidentesmanifestaçõesde inquietaçãofor- mal,deansiedadequea levaráa darpor fim um passo de incalculávelimportância;a incorporaçãoda lingua- gemde raiz poética,a linguagemde expressãoimedia- ta dasintuições. Isto,porém,sópodiaocorrerquandoo romancista, afastando-sedoestudodomundoedohomem,daobser- vaçãovoluntáriadascoisase dosfatos,sesentissesub- metidopor outromundoqueesperavaserdito e apre- endido;o da visãopura,o contactoimediatoe nunca analítico;o que,precisamente,haviaroçadoNervalcom 70 a prosado séculoanterior,e quea maisaltapoesiada Europapropunhacomoobjetivoe sofrimentodo ho- mem. Pelaprimeiravezedemaneiraexplícita,o romance r,enunciaa utilizarvalorespoéticoscomomerosador- nos e complementosda prosa (conformefaziamum WalterScottou um HenriqueSienkiewicz),e admite umfatofundamental:quea linguagemderaiz estética nãoé aptaparaexpressarvalorespoéticos,e aomesmo tempoqueessesvalores,comsuaformadiretade ex- pressão,representamo vislumbremaisprofundodesse âmbitototalde conquistapelo qual se interessao ro- mance:o que cabechamaro coraçãoda esfera.Ao ingressarem nossotempo,o romanceinclina-separa a realidadeimediata,o queestámaisaquémde toda descriçãoe só admiteser apreendidona imagemde raiz poéticaque a perseguee revela.Algunsroman- cistasreconhecemquepesse fundo inacessívelpara suaspinçasdialéticasjoga-seo jogo do mistériohu- mano,o suportede suasobjetivaçõesposteriores.E entãoseprecipitampelocaminhopoético,arremessam pelaamuradaa linguagemmediadora,substituema fór- mulapelo ensalmo,a descriçãopela visão,a ciência pelamagia. Mas eleé o romance,a coisaimpura,o monstro demuitaspatase muitosolhos.Tudo ali vale,tudose aproveitae confunde.É o romance,não a poesia.E aindaque (olhandoa coisapelooutrolado) estaevo- lução importanum avançoda poesiasobrea prosa, nãoé menoscertoqueo romancenãosedeixaliquidar comotal, porquea maioriade seusobjetivoscontinua à margemdosobjetivospoéticos,é materialdiscursivo e apreensívelsomentepor via racional.O romanceé narração,o queporuminstantesepareceuquaseesque- oer, deixando-sesubstituirpela apresentaçãoestática própriado poema.O romanceé ação; e alémdissoé compromisso,transação,aliançade elementosdíspares quepermitama submissãode um mundoigualmente transacional,heterogêneoe ativo.O importanteé que o avançoda poesiasobr.eo romancequecoloretodo nossotempo,significouumfuro emprofundidadecomo nenhumanarrativado períodoestéticotinha podido atingirpor limitaçãoinstrumental.O golpede estado quedá a poesiano próprioterritórioda prosaficcional 71 (da qualhaviasidoatéentão.meroadornoe comple- mento)revelaemtodasuaviolênciamagníficaas am- biçõesdenossotempoe seuslucros.O séculoseinicia como impactoda filosofiabergsoniana,e suacorres- pondênciainstantâneana obradeMarcelProustprova até que pontoo romanceesperavae requeriaas di- mensõesdaintuiçãopura,o passoadiantequefossefiel a essaintenção.Aqui queroassinalar,paraevitaram- bigüidades,quea irrupçãoda poesiano romancenão supôsnecessariamentea adoçãode formasverbaispoe- máticas,nemsequerissoquetãovagamentesechamava emcertotempo"prosapoética",ou o denominado"es- .tilo artista"à maneirados Goncourt.O que contaé a atitudepoéticano romancista(que justamentenão tinhamos Goncourt,tão finos esteticamente);o que contaé a negativaemmediatizar,embelezar,fazerlite- ratura.Esta atitudepodechegara formasextremas,à quasetotal substituiçãodo contopelo conto;exemplo admirável,Naissancede I'Odysséede Jean Giono; a entregaao livre jogo dasassociações,comoem tantos capítulosde Ulysses;o aproveitamentoda fórmulacom valor simultaneamenteaforísticoe mágico,comoLes EnfantsTerriblesde Cocteaue Le Diableau Corpsde Radiguet;ou à salmodiacomovalor de poemain ex- tenso,que atuapor acumulaçãoe fisga-nospor can- saço(frasequenaesferadapoesiatemumsentidopro- fundíssimo):valhamcomoexemplotantosromancesde Gabriel D'Annunzio (Le Vergini delleRocce, e um contocomoNotturno),parteda obradeGabrielMiró, e nossoDon SegundoSombra,cadaum comsua ma- neiraespecialdemordera matériapoética. Por certoapresençado irracionaliluminouem todosostemposo romance;masagora,nastrêsprimei- rasdécadasdenossoséculo,encontramo-nosantesuma deliberadasubmissãodo romancistaàs ordensque o podemconduzira umanovametafísica,nãojá ingênua comoa inicial, e a umagnoseologia,não já analítica masdecontacto.O expressionismogermânico,o surrea- lismofrancês(ondenãohá fronteirasentreo romance e o poema,ondeo conto,por exemplo,unee anulao queantesconstituíagênerosprolixamentedemarcados) avançamporessasterrasemqueo tempodosonhoatin- gevalidezverbalcomimportâncianão menordo que o tempodevigília.Da empresasinfônicaqueé Ulysses, 72 especlede mostruáriotécnico,depreendem-sepor in. fluênciaou coincidênciaos muitosramosdesteimpulso comum.Ê precisopensarque,de 1910a 1930,os ro- mancistascujaobranosparecehojevivae significativa sãoprecisamenteos quelevamao extremo,deumaou outramaneira,estatendênciaa concedero primeiro planoa umaatmosferaou a umaintençãomanifesta- menteirracional.J oyce,Proust,Gide- tãolúcido,tão "artista",maso pai de Lafcadio,deNathanael,deMi- cheleMénalque-; D. H. Lawrence,cujaPlumedSer- penté magiaritualpura;Kafka; WilliamFaulkner,o homemquebuscaa metafísicada guerrade 14 com olhosdealucinado,quedeslumbroua adolescênciados homensdeminhageraçãocemumcontotraduzidopela Revistade Occidente:"Todos os aviadoresmortos"; ThomasMann,quepõesuadialéticaa serviçodeuma dançamacabra,A MontanhaMágica, indagaçãoda mortea partirdaprópriamorte;Fedin,como caleidos- cópiodeAs Cidadese os Anos, talveza últimaconse- qüênciacoerenteda filiaçãodostoievskianana Rús·sia; HermannBroch, já no limite da SegundaGuerra,e Virgínia Woolf, flor perfeitadestaárvorepoéticado romance,sua últimaThule, a provarefinadade sua grandezae tambémde suafraqueza. Nesteinventáriodegrandesnomester-se-ánotado a ausênciadeHenryJames,Mauriac,Galsworthy,Hux- ley, Conrad,Montherlant,Forster,Cholokhov,Stein- beck,CharlesMorgan.Estãoausentesporqueestesmag- níficosromancistassãocontinuadoresda linhatradicio- nal,romancistasà maneiraemqueseentendiao termo no séculopassado.Vivemnossotempo,deleparticipam e o padecemprofundamente;nadatêmde passadistas; massuaatitudeliteráriaé a de continuadores.Sãono romanceatualo queé PaulValéryna poesiafrancesa, ou aonnarde Maillol nasartesplásticas.Sãotambém provasluminosasde queo romanceestálongede ha- veresgotadoseusobjetivostradicionais,suacaptaçãoe aindaexplicaçãoestéticadomundo. Na vastaproduçãoficcionalde nossotempo,a linha de raiz e métodopoéticosrepresentaum·salto solitárioa cargode uns poucosnos quaiso sentido especialde suaexperiênciae suavisãodá-sesimulta- neamentecomonecessidadenarrativa(por issosãoro- mancistas)e suspensãode todocompromissoformale 73 de todu correlatoobjetivo(por isso são poetas).O que uma obra como a de Virginia WooU pode ter contribuídopara a consciênciade nossotempo,está emlhe ter mostradoa "poucorealidade"da realidade entendidaprosaicamente,e a presençaavassaladorada realidadeinformee inominável,a superfícieigual,mas nuncarepetidado marhumano,cujasondasdãonome ao seumaisbeloromance. Em geralcabesituarentre1915e 1935a zona de desenvolvimentoe influênciadestalinha; porém os resultadosformaisde tãobrilhanteheterodoxiapro- longam-seatéhoje,de modoqueme parecepossível assentarcomofatoindubitávelquea prosatradicional do romance(cujaslimitaçõesassinalamos)já nãopode merecera menorconfiançase pretendesuperarsua funçãodescritivadefenômenos,seprocurasairdo que por necessidadeé: um órgãoexpressivodo conheci- mentoracional.O queimportaé mostrarmaisumavez queno romancenão há fundo e forma; o fundo da forma,é a forma.Prova-oo fato de quea linguagem de raiz poéticanão se prestapara a reflexão,para a descriçãoobjetiva,cujasformasnaturaisestãona prosa discursiva. (Talv·eza herançamaisimportantequenos deixa estalinha de poesiano romanceresidana claracons- ciênciade umaaboliçãode fronteirasfalsas,de cate- goriasretóricas.Já nãoexisteromanceoupoema:exis- temsituaçõesquesevêeme seresolvememsuaesfera verbalprópria. Creio que HermannBroch e Henry Miller representamhoje o lado maisavançadodesta linha de libertaçãototal.) Tocamosagorao tempoquenoscircunda.Desde 1930eramvisíveisossinaisdeinquietaçãono romance, os saltosà direitae à esquerdatraduzindo-seemobras tão distintas,mastão iguaisna inquietação,comoas primeirasde AndréMalrauxe certaescola"dura" nos E.U.A. Já na posseda extremapossibilidadeverbal quelhesdavao romancede raiz poética;livrespara aprofundara liquidaçãofinal dosgêneros,inclusiveda próprialiteraturacomorecriação(no duplosentidodo termo),é visívelem escritoresde todasas filiaçõese lugaresqueseuinteressese voltaparaalgodiferente, queparecemfartosda experiênciaverballibertadora; quasediria queestãofartosde escrevere deverescre- 74 ver as coisasquese escrevem;e queo fazempor seu lado paraapressara morteda literaturacomotal. Se aplicamosa fórmuladeJean-PaulSartre:"O prosador - digamoso romancista- é umhomemqueescolheu um certomododeaçãosecundária",observaremosque a cóleradestesjovensde 1930em dianteé precisa- mentea de não encontrarna literaturamaisdo que umaaçãosecundária,quasediria vicária;desdequea eleslhesinteressaa açãoemsi; não a perguntasobre o quê do homem,masa manifestaçãoativado próprio homem.O grandeparadoxoé quea culturae a vocação os atirana linguagemcomoas mariposasna chama. Escrevemardendo,e seuslivros são sempreo ersatz dealgumato,dealgumacertezapelaqualseangustiam. Suponhoque o leitor conheceo livro de René- -Marill Albéressobrea rebeliãodosescritoresatuais1; estelúcidoensaioacercade algunsescritoresfranceses - Malraux,Bernanos,Camus,Sartre,Aragone outros - livra-mede todaprolixidadeao consideraro ro- mancequeeles,juntocomseussemelhantesde outros países,representamhoje.Usarei,à maneirade chave, umafórmulaque acreditoeficaz.Dir-se-iaque o ro- mance,nos primeirostrintaanosdo século,desenvol- veu e lançou a fundo o que poderíamosdenominar a ação das formas; seusêxitosmáximosforamformais, deramcomoresultadoa extensão,liberdadee riqueza quaseinfinitasda linguagem;e não porqueseuobje- tivofossea formaemsi mesma,masporquesuasfina- lidadessó poderiamser atingidasmediantea audaz libertaçãodas formas,e daí a batalhade Ulysses, a empresaintuitivo-analíticade Proust,o inusitadoexpe- rimentosurr·ealista,o fuzilamentopelascostasde Des- cartes.Mas é inegávelqueestaconquistade umalin- guagemlegítimainfluiu sobreseusatores,e que em boapartede suaobraos êxitosvalemcomoproduto formal,estãoindissoluvelmenteamalgamadosà lingua- gemquepermitiuatingi-Ios.Existe aí uma açãodas formas;mas o romanceque continua,e cuja subida à cenaocorreua partirde 1930,sepropõeexatamente o contrário:integrae corporificaas formas da ação. Os toughwriters dosEstadosUnidos,o grupoexisten- cialistaeuropeu,os solitárioscomoMalrauxe Graham (I) La Révoltedes Écrivains d'aujourd'hui (Corrêa, 1949). 75 Greene,preenchemas ramificaçõese as modalidades destanovelísticaa contragosto,estaespéciederesigna- çãoemescrever- açãosecundária- queencobrea nostalgiae o desejodeumaaçãoimediatae diretaque revelee construapor fim o homemverdadeiroem seu verdadeiromundo.Num estudosobreo que é litera- tura,Sartr,eafirmacomtoda clareza:"A literaturaé, por essência,a subjetividadede umasociedadeemre- voluçãopermanente.Numa sociedade(que tivesseul- trapassadoesseestadodecoisas),a literaturasuperaria a antinomiadapalavrae da ação".A gentesepergun- ta, estáclaro, se, superara antinomiapalavra-ação, não acabariacoma próprialiteratura,sobretudocom o romanoe,quetemseualimentocentralnessafricção e nessedesacordo.Mas no fundo- parecempensar estesrebeldes- a liquidaçãodo romancebemvaleria seupreço,se lembramosqueos romancessãoescritos e lidospar duasrazões:paraescaparde certarealida- de, ou paraseopora ela,mostrando-atal comoé ou deveriaser. O romancehedonistaou o romancede intençãosocialdeixariamambosde ter sentidoao ces- sar o queSartrechama"sociedadeemrevoluçãoper- manente":oprimeiro,porqueo hedonismoretarnaria aosgênerosquelhe sãonaturais,as artesemprimeiro lugar;o segundo,porquea sociedadefuncionariaefi- cazmentee não dariaao romancistaalémdo temado indivíduo.Todavia, emboratudo isso seja bastante ocioso,interessa-mevê-Io de soslaioporquerevelao desprezoparacomo romance,quesubjaznosromances de nossosúltimosanos.Desprezotantomaisraivoso quantoo romancistaestácondenadoa sê-Io.Como o pobreheróideSomersetMaugham,vivefazendocenas paraacabarvoltandoao ladodessaamantequesimul- taneamentegostariade matare nãoperder. A plataformade lançamentodestesromancistas estáno desejovisíveldeestabeleoercontatodiretocom a problemáticaatualdo homemnumplanode fatos, departicipaçãoevidaimediata.Tende-sea afastartoda buscade essênciasquenão se vinculemao comporta- mento,à condição,ao destinodo homem,e o queé mais,ao destinosociale coletivodo homem.Embora se pesquiseaessencialidadede ser·essolitáriose indi- viduais(os heróisde GrahamGreene,por exemplo), ao romancistainteressamsobretudoos conflitosquese 76 produzemna zonade atrito,quandoa solidãosetorna companhia,quandoo solitárioentrana cidade,quando· o assassinocomeçaa convivercomseuassassinadona vida moral.Como umatácitahomenagemao que foi alcançadopela novelísticadas trêsprimeirasdécadas, pareoedar por assenteque a via poéticafez o seu, desentranhouas raÍzesda condutapessoal.Todoseles partemdaíemdiante,queremtratarcomo Homofaber, coma açãodohomem,comseubatalhardiário.E nada é mais reveladordestecaminhoque o itineráriode AndréMalraux,desdea provado indivíduoqueexpõe um romancecomoLa Voie Royale,atéo progressivo ingressonaconfrontaçãoqueanunciaLes Conquérants, quesejogacomLa ConditionHumainee adquiredi- mensãohistóricacomL'Espoir.Ê aquiquedesejoacres- centaroutrafórmula,reveladorapor vir de quemvem; em1945disseAndréBreton:"Ê precisoqueo homem se passe,com armase bagagens,parao lado do ho- mem".Nestafrasenãoháilusãoalguma,mashá,como em Malraux, esperança,emboracaiba pensarque a esperançapodeser a últimadas ilusõeshumanas.O importanteestáemnãoconfundiraquio avançopara o homemquetraduzestacorrente,com essasformas quese costumamenglobarsob a denominaçãode "li- teraturasocial", e que consistemgrossomodo em apoiarumaconvicçãopréviacomummaterialficcional quea documente,ilustree propugne.Romancistasco- mo Greene,Malrauxe Albert Camusjamaistentaram convenceralguémpor via persuasiva;suaobranão dá nadapor resolvido,senãoque é o próprioproblema mostrando-see debatendo-se.E comoessaproblema- ticidadeemplenaaçãoé precisamentea angústiae a batalhado homempor sua liberdade,da dúvidado homemanteas encruzilhadasde uma liberdadesem decálogosinfalíveis,ocorrequeem tornodestemovi- mentoque nada nos impedechamarde existencial agrupam-seos homens(romancistase leitores)para quemnenhumpoderé aceitávelquandose trata do homemcomopessoae comoconduta;para quem- segundotãobemo viu FranciscoAyala- tododomí- nio impostopor umhomemsobreoutroé umausurpa- ção. O homemé uma naturezaignóbil,parecedizer Jean-PaulSartre;maso homempodesalvar-sepor sua ação,queé maisdo queele,e porquea açãoqueo 77 homemesperado homemdevecomportarsua ética, uma praxis confundidae manifestadana ética,uma éticadando-se,não em decálogos,mas em fatosque só por abstraçãopermitamdeduziros decálogos.E Camus,quesemelhantea Malrauxcaminhaprogressi- vamenteda negaçãoaltivaà confrontaçãoe por fim à reunião,diz istotãobememsuascartasa umamigo alemão:"Continuoacreditandoque estemundonão temsentidosuperior.Todaviaseiquehá algoneleque temsentido,e é o homem,porqueé o únicoser que exige,essesentido".Frasequeseaprofundaaindamais em La Peste,ondese fala de "aquelesa quemlhes bastao homem,e seupobree terrívelamor". P.ermito-meinsistirem que estasituaçãodo ho- memenquantohomem,quemarcaa maisinquietano- velísticadestesdias,nadatema ver como "romance social"entendidacomocomplementoliteráriode uma dialéticapolítica,históricaou sociológica.Por issopro- vocatantaindignaçãonaquelesq,Ueescrevemou apre- ciamo romancecomoumaprovaa posterioride algo, umpróou umcontraemrelaçãoa umestadodecoisas, sendoqueesteromanceé aocontrárioo próprioestado decoisas,o problemacoexistindocomsuaanálise,sua experiênciae suaelucidação.O romancesocialcami- nha atrásdo avançoteórico.O romanceexistencial (peçoperdãopor estesdoistermostãoequívocos)en- tranhasuaprópriateoria,em certamedidaa cria e a anulade uma só vez porquesuasintençõessão sua açãoe representaçãopuras.Dir-se-áque o romance existencialistaveio atrásda correspondenteexploração filosófica,maso que fez esteromancefoi mostrare expressaro existencialem suasprópriassituações,em sua circunstância;quer dizer, mostrara angústia,o combate,a liberaçãoou a rendiçãodo homema partir da situaçãoemsie coma únicalinguagemquepodia expressá-Ia:a do romance,que procuradesdetanto temposerdecertomodoa situaçãoemsi, a experiência davidae seusentidono graumaisimediato.O próprio Kierkegaard,socorrendo-sede símbolose narrativas, entreviajá o que um Sartredesenvolvehoje com o desdobramentosimultâneode seustratados,seu ro- mancee seu teatro;a experiênciado personagemde La Nauséesó sepodeapreendermedianteumasitua- ção comoa sua, e uma situaçãocomo a sua só se 78 podecomunicarao leitormedianteum romance.Ora, comoestetipo de romancenão se prestaà indução, tãocaraaosamigosda literatura"social",estesúltimos acusam-nade individualismo(grandecensurade algu- masbocas)e de quepretendeisolaro homemde sua circunstância.O romancesocialprivilegiaa indução porqueestábaseadanela;o soldadode SemNovida- des no Front tipifica todosos soldadosdo mundo; Roubachof,o heróideO Zeroe o InfinitodeKoestler, valepor todosos anti-stalinistassubmetidosa situações semelhantesà sua; ao contrário,Garine,o chefede Les Conquérantsde Malraux,é somenteGarine,um homemdiantede si mesmo;e, no entanto,eu afirmo queGarineé tambémqualquerum de nós,masnão porumacômodainduçãoquenospõea seulado,mas cadavez queum de nós repetepessoalmente,dentro de suasituaçãohumanaindividual,o processopara a autoconsciênciaqueempreendeGarine.Naturalmente, no estadoatualda sociedade,os homenscapazesdesta confrontaçãosãopoucos,e as vias docentese persua- sivasdo romancecomintençãosocialrevelam-semais eficazesnumsentidopolítico.De minhaparte- e em matériade romancesnãocaheesmiuçar,porqueé ma- tériaentranhadamentehumana- minhaescolhaestá feita:pensocomAndréGideque"o mundoserásalvo por uns poucos",e acrescentoque essespoucosnão estarãoinstaladosno poder,nem ditarãoda cátedra as fórmulasda salvação.Serãoapenasindivíduosque - à maneirade um Gandhi,por exemplo,embora não necessariamentecomoum Gandhi - mostrarão semensinoalgumumaliberdadeatingidana luta pes- soal.Não seráum ensinoo seu,masumapresença, um testemunho.E um dia, distantÍssimo,os tomens começarãoa ter vergonhade si mesmos.O climados romancesexistenciaisé já o clima dessavergonha. Quero dizer nesteponto que a nov,elísticade grandetensãoexistencial,de compromissocomo ima- nentehumano,é a que apontacom maisclarezade interrogaçãodenossotempo.Repitoqueseo romance clássiconarrouo mundodo homem,se o romancedo séculopassadoperguntou-segnoseologicamenteo como do mundodo homem,estacorrentequenos envolve hojeprocuraa respostaparao porquêe parao para quê do mundodo homem. 79 Paralelamentea seu curso caminhamoutras linhas novelísticas dignas de consideração porque represen- tam, não exatamenteposições antagônicas,mas antes a apreensãode aspectoscorrelativos do homem con- temporâneo.Uma dessa~linhas pareceocorrer na obra dos romancistasitalianos que, acabado o grande iso- lamentodo fascismo,interessamhoje ao mundo inteiro. Todavia o ramo mais significativo (não faço questão de qualidade, mas de peculiaridade) parece-meser a dos tough writers dos Estados Unidos, os escritores "duros" criados na escola de Hemingway (alguém poderia dizer que, mais do que escola, isso foi um re- formatório), romancistas como J ames Cain, Dashiell Hammette Raymond Chandler. Parto da observação de que nenhum destesromancistasé um grande escri- tor; como sê-Io, se todos eles representamuma forma extrema e violentÍssima desse repúdio consciente ou inconscienteda literatura que assinalamosantes?Neles se faz intensa a necessidadesempre adiada de atirar a linguagem à margem.A abundânciado insulto, da obscenidadeverbal, do uso crescentedo slang, são ma- nifestaçõesdestedesprezopara com a palavra enquanto eufemismodo pensamentoe do sentimento.Tudo su- porta aqui um processo de envilecimentodeliberadO'; esteescritor faz com o idiüma o que seus heróis com as mulheres;é que ambostêm a suspeitade sua traiçãõ. Não se pode matar a linguagem,mas cabe reduzi-Ia à pior das escravidões.E então o tough writer nega-sea descrever (porque isso dá vantagem à linguagem) e utiliza apenas o neoessáriopara representaras situa- ções. Não contentecom isto, recusa-sea empregaras grandesconquistas verbais do romance psicológico, e escolhe uma ação romanesca da pele para fora. Os personagensde Hammett não pensam nunca verbal- mente: atuam. Não sei se se notou que suas melhores obras - The GIOlSsKey, The Maltese Falcon, Red Harvest - são ação pura, creio que o primeiro caso de livros onde em vão se buscará a menor reflexão, o mais primário pensamento,a mais leve anotaçãode um gestointerior, de um sentimento,de um impulso. E o que é mais assombroso,alguns destes livros (como também os de Chandler) estão escritos em primeira pessoa, a pessoa confidencial por excelênciaem toda literatura. Estes romances, além disso, pertencemaos 80 chamadospoliciais. Mas simultaneamenterepresentam uma reação total contra o gênero,de que apenasguar- dam a estnitura à base de um mistério a resolver.Rü- ger Caillois estudoua fisionomia especialdestesdeteti- ves de Hammett, quasedelinqüenteseles próprios, en- frentando os criminosos com armas semelhantes,com a mentira, a traição e a violência. Aqui também o romancepolicial baixa de suasalturasestéticas- desde Conan Doyle a Van Dine - para situar-senum plano de turva e direta humanidade.O paradoxo é que a linguagem, rebaixada na mesma proporção, vinga-se dos Hammett e dos Chandler; há momentosem seus romancesem que a ação narrada está tão absoluta- menterealizadacomo ação, que se converteno virtuo- sismodo trapezistaou do equilibrista; estiliza-se,desu- maniza-se,como as lutas de murros das películas ian- ques, que são o cúmulo da irrealidade por excessode realismo. Não há ação sem titubeias de qualquer or- dem; o que é mais, não há ação sempremeditaçãoou, pelo menos, sem reflexão.No cinema não v,emosnem ouvimos pensar; porém os rostos e os gestüspensam em voz alta, isso corre por conta dos atores.Aqui não há sequerisso; o romancechegoua seu ponto extremo; querendo eliminar intermediários verbais e psicológi- cos, dá-nos fatos puros; mas ocorre que não há fatos puros; vê-seque o desejoestá,nãO'em dizer o fato, mas em encarná-Io, incorporar-se e incorporar-nos à situa- ção. Entre a coisa e nós há um mínimo de linguagem, apenasO'necessáriopara mostrá-Ia. O curioso é que a narração de um fato, reduzida à representaçãopura do fato, obriga um Hammett a decompô-Ia como os muitos quadros que formam um só movimentoquando se recompõem na tela cinematográfica.Fugindo do luxo verbal, das atenuaçõese das sugestõesem que abunda a técnica do romance,cai-se no luxo da ação; vemosum personagemchegar-a uma casa,tocar a cam- painha, esperar, ajeitar a gravata, conversar com o porteiro, entrar numa sala cujas paredes e mobiliário são registradoscomo num inventário. O personagem põe sua mão direita no bolso direito da jaqueta, tira um maço de cigarros, escolheum, leva-o à boca, tira seu isqueiro, faz com que funcione, acendeo cigarro, aspira o fumo, expele-olentamentepelo nariz. .. Não 81 exagero;leia-se, como prova, Farewell, my Lovel)', de Raymond Chandler. Esta novelística(que cito, é claro, em suasformas extremas) respondeclaramentea uma reação contra o romancepsicológico,e a um obscuro desígniode com- partilhar o presentedo homem, de coexistir com seu leitor num grau que jamais teve anteso romance. Tal coexistênciasupõe o afastamentoda "literatura" en- quanto esta representeuma fuga ou um ensino; supõe a busca de uma linguagemque seja o homem em vez de - meramente - expressá-Io. Isto pode parecer demasiadamenteintuitivo, mas tudo o que foi dito mais acima evidencia que as linguagens "literárias" estão liquidadas como tais (ao menos nos romances repre- sentativos,já que os doutores Cronin continuam por seulado e gozamde muito boa saúde); liquidadasquan- do são infiéis ou insuficientespara a necessidadede imediatismohumano; é este imediatismoo que leva o romancista a afundar na linguagem (e daí sai a obra de um Henry Miner, por exemplo) ou a reduzi-Ia ressentidamentea uma estrita enunciaçãoobjetiva (e esteé Raymond Chandler); em ambosos casos o que se procura é aderir; não importa se a obra de Albert Camus é mais importantedo que a de Dashiell Ham- mett, se o homem ao qual adere uma narrativa como L'Étranger é mais significativopara nossosdias do que o homem cujo turvo itinerário explora The Maltese Falcon. Ao contrário o que me pareceimportanteé que ambos, Mersault e Sam Spade, sejam nós, sejam ime- diatismo.Não como contemporâneos,mas como teste- munhasde uma condição,de uma humilhação,de uma sempre esperada libertação. No romance do século XIX, os heróis e seus leitores participavam de uma cultura, mas não compartilhavamseusdestinosde ma- neira entranhada;romances eram lidos como fuga ou forma de ilusão, jamais como forma de encontroou de antecipação:eram escritoscomo nostalgiada Arcádia, como pintura social crítica ou utopia com fins didáticos; agora são escritos ou lidos para confrontar-se hoje e aqui; com todo o vago, nebuloso e contraditório que possa caber nestes termos. Não em vão a frase de Donne sobre o dobrar dos sinos adquiriu entre nós tão grande valor simbólico. Não em vão o melhor indivi- dualismo de nosso tempo contémuma aguda consciên- 82 cia dos restantesindividualismos,e se quer livre de todo egoísmoe de todo isolamento.René Daumal escreveu esta frase maravilhosa: "Sozinhos, depois de acabar com a ilusão de não estar sozinhos, não somos já os únicos que estamossozinhos". Por isso o guilhotinado de L'Étranger, o sórdido jogador de The Glass Key, os bailarinosde They ShootHorses, don't They?, o menino imerso em vitrÍolo de Bringhton Rock incluem-nosem tão grandemedida; sua culpa é a nossa, e não que o saibamosatravés do autor, mas o vivemos. Tanto o vivemosque cada um dessesromancesnos adoece,faz- -nos cair em nós mesmos,em nossaculpa. Creio que o romancequehoje importaé o que não foge à indagação dessaculpa; creio tambémque s,eufuturo já se anuncia atravésde obras em que a treva se espessapara que a luz, a pequena luz que treme nelas, brilhe melhor e seja reconhecida.Em plena noite, esse lume chega a iluminar o rosto de quem a leva consigo e protege-a com a mão. 83