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A SABEDORIA DO DESERTO Ditos dos Padres do Deserto do século IV THOMAS MERTON Tradução dos Verba Seniorum por THOMAS MERTON Tradução HÉLIO DE MELLO FILHO Revisão técnica e da tradução MARIANA BARROSO S. CAMARGO Martins Fontes São Paulo 2004Esta obra foi publicada originalmente em inglês com título THE WISDOM OF THE DESERT ÍNDICE por New Directions Publishing Corporation. N. York. Copyright © 1960 by the Abbey of Gethsemani. Inc. Copyright © 2004. Livraria Martins Fontes Editora Ltda., São para a presente edição. edição agosto de 2004 Tradução HÉLIO DE MELLO FILHO Revisão técnica e da tradução Mariana Barroso S. Camargo Acompanhamento editorial Nota do autor VII Luzia Aparecida dos Santos Revisões gráficas A sabedoria do deserto 1 Solange Martins Alguns ditos dos Padres do Deserto 27 Margaret Presser Dinarte Zorzanelli da Silva Produção gráfica Geraldo Alves Paginação/Fotolitos Studio 3 Desenvolvimento Editorial Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) A Sabedoria do deserto ditos dos Padres do Deserto do século IV / tradução dos Verba Seniorum por Thomas Merton tradução Hélio de Mello Filho revisão técnica e da tradução Mariana Barroso S. Camargo. São Paulo : Martins 2004. Título original: The wisdom of the desert : savings from the Desert Fathers of the fourth century. ISBN 85-336-2022-5 1. Padres do Deserto Citações, máximas, etc 2. Vida espiritual Cristianismo máximas, etc. 3. Vida religiosa e monás- tica Citações, máximas, etc. I. Título. 04-4698 CDD-271.009015 Índices para catálogo sistemático: 1. Padres do Deserto : Século 4 : Citações : Cristianismo 271.009015 Todos direitos desta edição para Brasil reservados à Livraria Martins Fontes Editora Ltda. Rua Conselheiro Ramalho, 330 01325-000 São Paulo SP Brasil Tel. Fax (11) 3105.6867 e-mail: http://www.martinsfontes.com.brNOTA DO AUTOR E sta coletânea de ditos dos Verba Seniorum não preten- de de modo algum ser um trabalho de pesquisa erudi- ta. Ao contrário, trata-se da edição livre e informal de his- tórias colhidas aqui e ali de diversas versões originais em latim, sem qualquer ordem ou identificação de fontes espe- cíficas. Este livro visa unicamente ao interesse e à edifica- ção do leitor. Em outras palavras, percebi que, como monge do século XX, deveria me sentir bastante livre para desfru- tar O privilégio que tiveram monges dos primeiros tem- pos, qual seja, a elaboração de uma coletânea própria, sem sistema, ordem ou finalidade específica, com O único VIITHOMAS MERTON objetivo de reunir as histórias e, com elas, deleitar-me junto aos amigos. Foi assim que livros como este surgiram ori- ginalmente. A SABEDORIA Quando a primeira versão deste trabalho foi concluí- da, passei-a ao meu amigo Victor Hammer, que imprimiu DO DESERTO uma edição limitada belíssima em sua prensa manual, em Lexington, no Kentucky. Depois disso, decidiu-se por au- ALGUNS DITOS DOS PADRES mentar um pouco a coletânea e reescrever a introdução DO DESERTO para que a New Directions pudesse publicar uma edição maior. O resultado foi este livro e espero ter mantido O as- pecto espontâneo, informal e pessoal da primeira versão. Essa informalidade, longe de detratar a sabedoria das his- tórias, irá garantir a autenticidade que sempre tiveram e mantê-las frescas e vivas, em toda sua concretude e ime- diatismo. Que aqueles que necessitam e se deleitam com esses apotegmas sintam-se motivados, pelo gosto da água pura, a seguir O córrego até sua nascente. VIIIA SABEDORIA DO DESERTO N século IV d.C., desertos do Egito, Palestina, Arábia e Pérsia foram habitados por uma raça de homens que deixou como rastro uma estranha repu- tação. Foram primeiros eremitas cristãos, indiví- duos que abandonaram as cidades do mundo pagão para viver sozinhos. Por que fizeram isso? As razões são muitas e variadas, mas podem ser sintetizadas em apenas uma: a busca pela "salvação". E O que era sal- vação? Com certeza, nada que pudesse ser encontra- do na mera conformidade exterior aos costumes e re- gras de um grupo social. Naquele tempo, homens 3THOMAS MERTON A SABEDORIA DO DESERTO haviam adquirido uma consciência aguda da quali- so, em que a cristandade é acusada por todos OS la- dade estritamente individual da "salvação". A socieda- dos de pregar O negativismo e O retraimento de não de que significava a sociedade pagã, limitada pelos ter meios efetivos para lidar com OS problemas da sua horizontes e perspectivas da vida "neste mundo" era época. Mas não sejamos muito superficiais. Os Padres considerada por eles um naufrágio do qual cada indi- do Deserto lidaram com "problemas de sua época", víduo por si só deveria nadar para salvar a própria na medida em que pertenciam à vanguarda de seu vida. Não precisamos nos deter aqui e discutir a justi- tempo, e abriram O caminho para O desenvolvimento ça dessa visão, O que importa é considerá-la como um de um novo homem e uma nova sociedade. Repre- fato. Esses homens acreditavam que deixar alguém à sentam que filósofos sociais modernos (Jaspers, deriva, sujeitando-se passivamente aos dogmas e va- Mumford) chamam de O surgimento do "homem axial", lores do que conheciam como sociedade, era um de- precursor do homem personalista moderno. Os sécu- sastre puro e simples. O fato de que O imperador era los XVIII e XIX, com seu individualismo pragmático, agora cristão e que O "mundo" começava a enxergar degradaram e corromperam a herança psicológica do a cruz como símbolo de poder temporal apenas re- homem axial devida aos Padres do Deserto e a outros forçava a resolução deles. religiosos contemplativos e prepararam O caminho para Essa resolução pode nos parecer muito mais es- a grande regressão à mentalidade de rebanho que pre- tranha do que é, uma fuga paradoxal do mundo no valece hoje em dia. momento em que este havia atingido O ápice em ter- A fuga desses homens para O deserto não teve um mos de dimensão (quase escrevi frenesi) e se tornado caráter puramente negativo ou individualista. Eles não oficialmente cristão. Esses homens devem ter pensado, se rebelaram contra a sociedade. É verdade que eram como alguns raros pensadores modernos (Berdiaeff em certa medida "anarquistas", e não seria errado con- é um deles), que não faz sentido a existência de algo siderá-los sob essa perspectiva. Tratava-se de homens como um "estado cristão". Eles parecem ter duvidado que não acreditavam em ser controlados e comanda- de que cristianismo e política pudessem se misturar a dos passivamente por um estado decadente, e que ponto de constituírem uma sociedade cristã plena. Em acreditavam na existência de uma vida não atrelada à outras palavras, para eles, a única sociedade cristã era aceitação submissa dos valores aceitos e convencio- espiritual e extramundana: Corpo Místico de Cristo. nais. Contudo, não pretendiam se colocar acima da Trata-se com certeza de visões extremas e é quase um sociedade. Não a rejeitavam com orgulho e desdém, escândalo lembrar delas em um tempo como nos- como se fossem superiores aos outros homens. Pelo 4 5THOMAS MERTON A SABEDORIA DO DESERTO contrário, uma das razões pelas quais fugiram do menos no início, no tempo da sabedoria primitiva) a "mundo" foi que OS homens estavam divididos entre se envolver em controvérsias teológicas. A fuga aos aqueles que atingiam O sucesso e impunham seus de- horizontes áridos do deserto significava também uma sejos aos outros e aqueles que tinham de ceder e acei- recusa ao contentamento com a verborragia técnica, de tar a imposição. Os Padres do Deserto recusavam-se a argumentos e conceitos. ser comandados, mas não tinham nenhum desejo de Estamos falando exclusivamente de eremitas. Tam- comandar. Tampouco fugiram da sociedade humana bém havia cenobitas no deserto, centenas, milhares O fato de fornecerem "conselhos" uns aos outros deles, vivendo O "cotidiano" em mosteiros enormes, evidenciava uma característica eminentemente social. como O fundado por São Pacômio em Tabena. Essas Buscavam uma sociedade em que todos OS homens comunidades tinham uma ordem social, uma discipli- fossem realmente iguais e a única autoridade abaixo na quase militar. Contudo, O espírito ainda era em gran- de Deus fosse a autoridade carismática da sabedoria, de parte de personalismo e liberdade, porque mesmo da experiência e do amor. Claro que aceitavam a au- OS cenobitas sabiam que suas regras eram apenas toridade benevolente e hierárquica dos bispos, que, uma estrutura externa, como uma armação de andai- todavia, estavam muito distantes e opinavam pouco mes que OS ajudaria a construir as próprias vidas com sobre O que acontecia no deserto, até a grande con- Deus. Os eremitas, por sua vez, eram sob todos trovérsia origenista no final do século IV. aspectos mais livres. Não tinham nada a que se "con- O que OS Padres queriam acima de tudo era en- formar" exceto à vontade secreta, oculta e inescrutá- contrar a si mesmos em Cristo. E para isso, tinham de vel de Deus, que devia diferir notavelmente entre uma rejeitar completamente O "falso eu", formal, fabricado cela e outra! É bastante significativo que O primeiro sob a coerção social no "mundo". Buscavam um cami- desses Verba (número 3) é aquele em que a autorida- nho que levasse a Deus e que não estivesse traçado, de de Santo Antão é citada de acordo com O princí- que pudesse ser escolhido livremente, que não fosse pio básico da vida no deserto, qual seja, que Deus é predeterminado por outros de antemão. Buscavam um a autoridade e que além de Sua vontade manifesta há Deus que pudessem encontrar por si mesmos, e não poucos princípios, ou nenhum: "Portanto, ao perce- um Deus "recebido" em um formato fixo e estereoti- ber em sua alma qualquer desejo em acordo com pado. Não que rejeitassem as fórmulas dogmáticas da Deus, realize-o e assim manterá seu coração a salvo." fé cristã: eles as aceitavam e as adotavam em sua feição Claro que tal caminho só poderia ser percorrido mais simples e elementar. Porém, demoraram (pelo por alguém muito atento e sensível aos sinais de um 6 7THOMAS MERTON A SABEDORIA DO DESERTO lugar ermo, sem trilhas. O eremita tinha de ser madu- tregue, a Deus por intermédio de O fruto des- ro em sua fé, humilde, desapegado de si mesmo de se processo era quies: "descanso". Não O descanso do forma atroz em todos OS sentidos. Os cataclismos es- corpo, nem mesmo a estabilização do espírito exalta- pirituais que às vezes arrebatavam alguns dos visio- do em um ponto ou ápice de luz. Os Padres do De- nários soberbos demonstram as ameaças da vida soli- serto não eram, em sua maioria, Os que tária como OSSOS embranquecendo na areia. O Pa- eram deixaram atrás de si algumas histórias engano- dre do Deserto não podia ser um iluminista. Não po- sas e esquisitas que confundem a questão essencial. O dia se arriscar ao apego ao ego, ou aos perigos do "descanso" que esses homens buscavam era simples- êxtase da vontade própria. Não podia reter a mais mente a sanidade e O equilíbrio de um ser que não ne- leve identificação com seu eu superficial, transitório e cessitava mais olhar para si mesmo pois era levado autoconstruído. Deveria se deixar levar pela realida- pela perfeição da liberdade que possuía. Aonde? A de interna e oculta de um eu transcendente, misterio- qualquer lugar que O Amor ou O Divino Espírito con- so, não totalmente conhecido e entregue a Cristo. O siderasse apropriado. O descanso era, portanto, uma Padre do Deserto deveria morrer para OS valores da espécie de lugar-nenhum e não-intencionalidade que existência transitória como O fez Cristo na cruz, e le- perderam toda a preocupação com O "eu" falso e li- vantar-se dos mortos com Ele, sob a luz de uma sabe- mitado. Em paz, na posse de um "nada" sublime, O es- doria completamente nova. Portanto, uma vida de sa- pírito mantinha-se, em segredo, acima do "tudo" sem crifícios, que tinha início após uma ruptura explícita se preocupar em saber O que possuía. que separava O monge do mundo. Uma vida em per- Agora, OS Padres não estavam nem mesmo preo- manente "compunção", que O ensinava a lamentar a cupados O bastante com a natureza do descanso para loucura do apego a valores irreais. Uma vida de soli- falarem dele nesses termos, exceto muito raramente, dão e trabalho, pobreza e jejum, caridade e oração, como Santo Antão, quando observou que "a oração que removesse O antigo ego superficial e permitisse O do monge não é perfeita até que não perceba mais surgimento gradual do eu verdadeiro e secreto, no qual em si mesmo O fato de estar orando". E isso foi dito O crente e Cristo fossem "um único Espírito". casualmente, de passagem. De resto, mantinham-se Por fim, O termo próximo de toda essa luta era "a afastados de tudo que fosse altivo, esotérico, teórico pureza do coração" a visão nítida e desobstruída do ou de difícil compreensão, ou seja, recusavam-se a verdadeiro estado das coisas, a compreensão intuitiva falar sobre essas coisas. Na verdade, não se dispu- da própria realidade interna como ancorada, ou en- nham muito a falar sobre nada, nem mesmo sobre as 8 9THOMAS MERTON A SABEDORIA DO DESERTO verdades da fé cristã, O que explica a característica la- apenas uma alteração radical de padrões e costu- cônica dos ditos. mes. As palavras e OS exemplos dos Padres do Deser- Portanto, em muitos aspectos, OS Padres do De- to têm participado tanto da tradição monástica que O serto tinham muito em comum com OS iogues india- tempo OS tornou para nós, e não somos nos e com OS monges zen-budistas da China e do Ja- mais capazes de discernir sua admirável originalida- pão. Se fosse necessário achá-los nos Estados Unidos de. Nós OS enterramos, por assim dizer, em nossas ro- do século XX, teríamos de procurar em lugares insóli- tinas e dessa maneira nos isolamos com segurança de tos e remotos. Infelizmente, são seres raros. Com cer- qualquer choque espiritual da falta de convencionali- teza não vicejam nas calçadas da esquina da rua 42 dade deles. Mesmo assim, minha esperança ao sele- com a Broadway. Talvez fosse possível encontrar ho- cionar e editar suas "palavras" é ter conseguido apre- mens dessa espécie entre OS índios Pueblo ou Navajo, sentá-las sob uma nova luz e manifestar novamente mas esses casos seriam inteiramente diferentes. Have- seu frescor. ria a simplicidade e a sabedoria primitivas, mas arrai- Os Padres do Deserto foram pioneiros, não ti- gadas em uma sociedade primitiva. No caso dos Pa- nham nada a dar seguimento a não ser O exemplo de dres do Deserto, a ruptura explícita com O contexto alguns dos profetas, como São João Batista, Elias, Eli- social aceito e convencional ocorria para fugir e mer- seu e OS Apóstolos, que também serviram de mode- gulhar em um vazio aparentemente irracional. los. De resto, adotavam uma vida "angélica" e seguiam Embora seja possível argumentar que homens OS caminhos inexplorados dos espíritos como OS Padres do Deserto possam ser encontrados Suas celas eram como a fornalha de Babilônia, na qual, em alguns de nossos mosteiros de religiosos contem- em meio às chamas, encontravam-se com Cristo. plativos, eu não iria tão longe. No nosso caso, trata-se Eles não almejavam a aprovação de seus contem- de homens que deixam a sociedade do "mundo" para porâneos, tampouco buscavam provocar qualquer re- entrar em um outro tipo de sociedade, a da família de provação porque as opiniões dos outros passaram a religiosos. Trocam conceitos, valores e ritos de uma não ter mais importância. Não tinham nenhuma dou- sociedade pelos da outra. E considerando que hoje já trina de liberdade estabelecida, mas de fato tornaram- temos séculos de monasticismo, é necessário analisar se livres pagando O preço da liberdade. O fato sob outra ótica. As "normas" sociais da família De qualquer maneira, depuravam para si uma sa- monástica também tendem a ser convencionais, e vi- bedoria muito prática e despretensiosa, ao mesmo tem- ver sob essas regras não representa um salto no vazio po atemporal e primitiva, e que nos permite reabrir 10 11THOMAS MERTON A SABEDORIA DO DESERTO as fontes que foram poluídas ou bloqueadas pela re- Os ditos dos Padres do Deserto são recolhidos de cusa mental e espiritual acumulada da nossa barbárie uma coleção clássica, OS Verba Seniorum, da Patrologia tecnológica. Nossa época necessita desesperadamen- latina de Migne (volume 73). Os Verba distinguem-se te desse tipo de simplicidade, necessita recuperar algo de outras obras escritas dos Padres do Deserto pela ple- da experiência refletida nessas linhas. O termo a ser na falta de artifícios literários, por sua simplicidade total enfatizado é experiência. As poucas frases curtas reu- e honesta. As Vidas dos Padres são muito mais grandi- nidas neste livro têm pouco ou nenhum valor como loqüentes, dramáticas, estilizadas. Abundam em even- informação apenas. Seria inútil folhear estas páginas tos maravilhosos e milagres. São fortemente marcadas casualmente e observar que Padres disseram isto pelas personalidades literárias que as protagonizaram. ou aquilo. Qual a vantagem em saber simplesmente Os Verba, por outro lado, são relatos elementares e des- que essas coisas foram ditas algum dia? O importante é que foram vividas. Que emanam de uma experiên- pretensiosos disseminados boca a boca na tradição cóp- cia nos níveis mais profundos da vida. Que represen- tica, antes de serem estabelecidos pelo registro escrito tam uma descoberta do homem, ao final de uma jor- em siríaco, grego e latim. nada interna e espiritual muito mais essencial e infini- Sempre claros e concretos, sempre remetendo à tamente mais importante que a jornada até a lua. experiência do homem formado pela solidão, estes O que ganhamos por viajar até a lua se não for- provérbios e contos almejavam ser respostas simples mos capazes de cruzar O abismo que nos separa de a questões simples. Aqueles que iam ao deserto em nós mesmos? Esta é a mais importante das viagens de busca da "salvação" pediam aos anciãos uma "pala- descoberta, e sua falta torna todo O resto não apenas vra" que ajudasse a encontrá-la um verbum salu- inútil, mas também desastroso. Uma prova: gran- tis, "palavra de salvação". As respostas não preten- des viajantes e colonizadores da Renascença foram, diam ser prescrições gerais e universais. Ao contrário, em sua grande maioria, homens que talvez fossem eram chaves originalmente concretas e exatas para capazes de fazer O que fizeram justamente porque es- portas específicas que deveriam ser cruzadas, em de- tavam alienados de si mesmos. Ao subjugar mundos terminados momentos e por determinados indivíduos. primitivos, eles apenas impuseram, com a força de Apenas posteriormente, após muita repetição e muita canhões, sua própria confusão e alienação. Exceções citação, as respostas começaram a ser consideradas magníficas, como frei Bartolomeu de las Casas, São moeda comum. Para entender melhor estes ditos, pre- Francisco Xavier ou padre Mateus Ricci, apenas com- cisamos levar em conta sua característica prática e, provam a regra. poder-se-ia dizer, existencial. Mas na época em que 12 13THOMAS MERTON A SABEDORIA DO DESERTO São Bento em sua Regra prescreveu a leitura freqüen- soas humildes, caladas, sensíveis, donas de um pro- te e em alta das "Palavras dos Padres" antes das fundo conhecimento da natureza humana e suficien- Completas, ditos já haviam se tornado uma doutri- te compreensão das coisas de Deus para perceber na monástica tradicional. que sabiam muito pouco a Seu respeito. Portanto, não Os Padres eram homens humildes e calados, e não se dispunham a proferir longos discursos sobre a es- tinham muito a dizer. Respondiam às perguntas com sência divina, ou mesmo falar sobre O significado mís- poucas palavras, iam direto ao ponto. Ao invés de for- tico das Escrituras. Se esses homens falavam pouco necerem um princípio abstrato, preferiam contar uma sobre Deus, é porque sabiam que, quando alguém história concreta. Essa brevidade, plena de conteúdo, chegava a algum ponto próximo à Sua morada, O si- alivia. Há mais luz e satisfação nestes ditos lacônicos lêncio era muito mais significativo que um monte de do que em muitos tratados ascéticos extensos, fartos palavras. O fato de Egito, naquela época, fervilhar de detalhes de como ascender de um grau a outro da com controvérsias religiosas e intelectuais era uma vida espiritual. As palavras dos Padres nunca são teó- razão a mais para que mantivessem suas bocas fe- ricas na acepção moderna do termo. Nunca são abs- chadas. Havia neoplatônicos, OS gnósticos, os es- tratas. Tratam de coisas concretas e dos trabalhos ro- tóicos e OS pitagóricos. Havia diversos grupos vocais tineiros da vida de um monge do século IV, mas O que de cristãos ortodoxos e heréticos. Havia OS arianos, a transmitem serve da mesma maneira a um pensador quem monges do deserto resistiam veementemen- do século XX. As realidades essenciais da vida inte- te. Havia origenistas, e alguns dos monges eram rior estão presentes nelas: fé, humildade, caridade, seguidores fiéis e devotados a Orígenes. Em meio a submissão, discrição, abnegação. No entanto, expres- todo esse barulho, O deserto não tinha outra contribui- sar O senso comum não é a menor qualidade das "pa- ção a dar a não ser um silêncio discreto e desapegado. lavras de salvação". Os grandes centros monásticos do século IV eram Isto é importante. Os Padres do Deserto adquiri- O Egito, a Arábia e a Palestina. A maioria destas histó- ram posteriormente a fama de fanáticos em decor- rias referem-se aos eremitas da Nítria e de Cétia, ao rência das histórias sobre seus feitos ascéticos, con- norte do Egito, próximas à costa do Mediterrâneo e a tadas por admiradores indiscretos. De fato, eles eram oeste do Nilo. Também havia muitas colônias de mon- ascéticos, mas, quando lemos suas próprias palavras ges no delta do Nilo. Tebaida, próxima à antiga Te- e vemos O que pensavam sobre a vida, descobrimos bas, mais em direção ao interior do Nilo, era um outro que em hipótese alguma eram fanáticos. Eram pes- centro de atividade monástica, especialmente dos ce- 14 15THOMAS MERTON A SABEDORIA DO DESERTO nobitas. A Palestina desde cedo atraiu monges de to- todas as paixões e tornar-se à raiva, à las- das as partes do mundo cristão, sendo São Jerônimo O cívia, ao orgulho e a todo resto. Porém, podemos en- mais famoso deles, que viveu e traduziu as Escrituras contrar muito pouco nestes ditos que motivasse aque- em uma caverna de Belém. Em seguida, havia uma im- les que acreditavam na perfeição cristã como apátheia portante colônia monástica ao redor do monte Sinai, (impassibilidade). O louvor aos monges "além de toda na Arábia: OS fundadores do monastério de Santa Ca- paixão" parece na verdade ser proveniente de turistas tarina divulgaram recentemente a "descoberta" de que passaram brevemente pelo deserto e voltaram às obras de arte bizantinas preservadas lá. suas casas para escrever livros sobre O que haviam Que tipo de vida levavam OS Padres? Uma expli- visto, e não daqueles que passaram toda a vida em cação pode nos ajudar a compreender melhor seus uma região inóspita. Estes últimos estavam muito mais ditos. Os Padres do Deserto são normalmente chama- inclinados a aceitar as realidades comuns da vida e a dos de "abades" (abbas) ou "anciãos" (senex). Um se satisfazer com a porção ordinária do homem que abade não era, como hoje, um superior eleito canoni- tinha de lutar toda a vida para se superar. A sabedo- camente pela comunidade, mas qualquer monge ou ria dos Verba pode ser vista na história do monge eremita que tivesse passado anos no deserto e prova- João, que se gabava de estar "além de qualquer ten- do ser um servo de Deus. Com eles, ou próximo a eles, e foi aconselhado por um ancião perspicaz a viviam "irmãos" ou "noviços" aqueles que ainda es- orar a Deus pedindo algumas poucas e boas batalhas tavam no processo de aprendizado da vida. Os novi- concretas para que sua vida continuasse a valer algu- ços ainda precisavam da supervisão contínua de um ma coisa. ancião, e viviam junto a um deles para serem instruí- Em certos momentos, todos OS solitários e novi- dos por sua palavra e exemplo. Os irmãos viviam por ços reuniam-se para a synaxis litúrgica (missa e orações conta própria, mas às vezes recorriam ao conselho de em comum) e, depois disso, podiam comer juntos e um ancião das redondezas. realizar uma espécie de assembléia para a discussão de A maioria dos personagens representados nos di- problemas da comunidade. Em seguida, retornavam tos e histórias são homens "a caminho" da pureza do à solidão e passavam O tempo trabalhando e orando. coração, não homens que já a atingiram plenamente. Sustentavam-se com O trabalho das próprias mãos, Os Padres do Deserto, inspirados por Clemente e Orí- normalmente tecendo cestos e esteiras com folhas de genes, e pela tradição neoplatônica, às vezes se mostra- palmeiras e juncos. Vendiam esses artigos nas cidades vam confiantes de que poderiam elevar-se acima de vizinhas. Às vezes há dúvidas nos Verba quanto a 16 17THOMAS MERTON A SABEDORIA DO DESERTO questões relacionadas ao trabalho e O comércio en- quer outro aspecto da vida espiritual: sobre O conhe- volvido. Caridade e hospitalidade eram questões de cimento, a gnose, O ascetismo, a contemplação, a so- prioridade máxima e precediam as rotinas ascéticas lidão, a oração. Na verdade, O amor é a vida espiri- pessoais e O jejum. Os inúmeros ditos que apresen- tual, sem O qual todos OS outros exercícios do espíri- tam evidências dessa benevolência afetuosa deveriam to, embora elevados, ficam esvaziados de conteúdo e ser suficientes para responder a acusações de que tornam-se meras ilusões. E quanto maior a elevação, Padres odiavam a própria raça. Na verdade, havia mais mais perigosa a ilusão. O amor, com certeza, significa amor, compreensão e cordialidade verdadeiros no de- muito mais do que um simples sentimento, muito mais serto do que nas cidades, onde, como hoje, era cada que favores ínfimos ou doadores de esmolas rotinei- um por si. ros. Amor significa uma identificação interior e espiri- Este fato é ainda mais importante porque a essên- tual com O irmão para que ele não se torne um "ob- cia propriamente dita do cristianismo é a caridade, a jeto" ao "qual" se "faz um bem". O fato é que O bem unidade em Cristo. Os místicos cristãos de todas as feito ao outro na forma de objeto tem pouco ou ne- épocas buscaram e encontraram não apenas a unifi- nhum valor espiritual. O amor faz com que O indiví- cação do próprio ser ou a união com Deus, mas a duo considere O vizinho como seu outro eu e O ame união entre si mesmos no Espírito de Deus. Buscar com humildade, discrição, reserva e reverência imen- uma união com Deus que implicasse uma separação sas e plenas, sem as quais ninguém pode se aventurar completa, em espírito e corpo, do resto da humanida- a ingressar no santuário da subjetividade do outro. de seria, para um santo cristão, não apenas absurdo, Desse amor, toda brutalidade autoritária, toda a explo- mas também O oposto da santidade. O isolamento no ração, dominação e superioridade arrogante devem, eu, a inabilidade de sair de si para ir ao outro, signi- necessariamente, estar ausentes. Os santos do deser- ficaria a incapacidade para qualquer forma de auto- to eram inimigos de todo e qualquer expediente, su- transcendência. Portanto, ser prisioneiro de si mesmo til ou flagrante, que O "homem espiritual" utilizasse é, na verdade, estar no inferno: uma verdade que Sar- para intimidar aqueles que considerasse inferiores, tre, embora confessando-se ateu, expressou de ma- gratificando assim O próprio ego. Eles renunciaram a neira muito interessante na peça Entre quatro pare- tudo que evocasse punição e vingança, por mais re- des (Huis Clos). côndito que fosse. Em todos Verba Seniorum encontramos uma A caridade dos Padres do Deserto não se apre- insistência reiterada na primazia do amor sobre qual- senta a nós como efusões pouco convincentes. A ple- 18 19THOMAS MERTON A SABEDORIA DO DESERTO na dificuldade e magnitude da tarefa de amar O outro se: "Meus pecados estão vazando sem que eu veja, é reconhecida em toda parte e nunca minimizada. É e hoje estou aqui para julgar OS pecados de uma outra difícil amar de verdade O outro se O amor for com- pessoa!" preendido em seu sentido pleno. O amor demanda Se esses protestos eram feitos, é claro que havia uma transformação interna completa, pois, sem isso, algo contra O que se protestar. No final do século V, não podemos nem mesmo nos identificar com nosso Cétia e Nítria tornaram-se cidades monásticas rudi- irmão. Temos de nos transformar, de certa forma, na mentares, com leis e punições. Três chicotes pen- pessoa que amamos. E isso envolve uma espécie de diam em uma palmeira no lado de fora da igreja de morte do nosso próprio ser, do nosso próprio eu. Não Cétia: um para punir monges delinqüentes, outro para importa O quão duramente tentemos, resistamos a essa ladrões e um terceiro para vadios. Porém, havia vá- morte: lutamos contra raivas, recriminações, exigências, rios monges, como O abade Moisés, que não apoia- ultimatos. Tentamos encontrar uma desculpa conve- vam esse tipo de regra. Tais monges eram OS santos, niente qualquer para interromper O processo e desis- representavam O ideal do deserto "anárquico" primi- tir da árdua tarefa. Porém, nos Verba Seniorum, le- tivo. Talvez O exemplo mais memorável de todos seja mos sobre O abade Amonas, que passou catorze anos dos dois irmãos que viveram juntos por anos sem orando para superar a raiva, ou melhor, para se liber- brigar, e que decidiram "discutir como todos ou- tar dela. Lemos também sobre O abade Serapião, que tros homens", mas simplesmente não conseguiram. vendeu seu último livro, uma cópia do Evangelho, e A oração era a essência da vida no deserto e con- deu O dinheiro recebido aos pobres, ou seja, "vendeu sistia em salmodia (oração em voz alta recitação dos O próprio livro que lhe dizia para vender tudo que ti- salmos ou partes das Escrituras que todos deveriam nha e dar dinheiro aos pobres". Outro abade cen- saber de cor) e contemplação. Aquilo que hoje cha- surou severamente alguns monges que foram respon- maríamos de oração contemplativa era conhecido como sáveis pela prisão de um grupo de ladrões e, depois quies ou "descanso". Este termo iluminador persistiu disso, OS eremitas, envergonhados, entraram na cadeia na tradição monástica grega como ou "doce à noite e libertaram OS prisioneiros. Em outras ocasiões repouso". Quies é um estado de absorção silenciosa vemos abades negando-se a repreender um ou outro auxiliada pela repetição suave de uma única frase das delinqüente, como O abade Moisés, O grande e gentil Escrituras a mais popular delas sendo a oração de negro, que entrou na assembléia carregando uma ces- publicano: "Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tende ta cheia de areia, deixando-a vazar pelas fendas. E dis- piedade de mim, pecador." A forma abreviada desta 20 21THOMAS MERTON A SABEDORIA DO DESERTO invocação era "Senhor, tende piedade" (Kyrie eleison) cuja biografia, escrita por São Atanásio, estimulou em repetida em silêncio centenas de vezes por dia até Roma inteira vocações monásticas. Antão era realmen- se tornar tão espontânea e instintiva como a respiração. te O Pai de todos OS Padres do Deserto. Porém, O con- Quando Arsênio é instruído a fugir do cenóbio, tato com seus pensamentos originais nos faz lembrar ficar em silêncio e descansar (fuge, tace, quiesce), tra- que ele não é O Antão de Flaubert, tampouco encon- ta-se de um chamado à "oração Quies tramos aqui O Pafnúcio de Anatole France. Antão, é é um termo mais simples e menos pretensioso, e mui- verdade, atingiu a apátheia após longos e espetacula- to menos desorientador. Adequa-se à simplicidade res embates com demônios. No entanto, ao final, ele dos Padres do Deserto muito mais que "contempla- conclui que nem mesmo O diabo era O mal pleno, vis- e predispõe a menos ocasiões para narcisismo e to que Deus não poderia ter criado O mal, e que to- megalomania. Praticamente não existia perigo de das as Suas obras eram boas. Pode ser uma surpresa quietismo no deserto. Os monges mantinham-se ocu- saber que Santo Antão, ao contrário de todos, achava pados e, se O quies era a satisfação do que buscavam, que O demônio tinha algo de bom em si. Isso não era O corporalis quies ("descanso do corpo") era um dos mero sentimentalismo. Mostrava apenas que não ha- grandes inimigos. Traduzi corporalis quies como "vida via em Santo Antão muito espaço para paranóia. Po- fácil", para não passar a impressão de que muita ação demos refletir de maneira produtiva que homem fosse tolerada no deserto. Não era. O monge deveria massificado moderno é aquele que se voltou com toda permanecer tranqüilo e ficar O máximo possível em sua paixão para projeções fanáticas de todo O mal de um único lugar. Alguns Padres chegavam a desaprovar si sobre inimigo" (quem quer que seja). Os solitá- aqueles que procuravam emprego fora de suas celas, rios do deserto eram muito mais sábios. e trabalhavam para OS fazendeiros do vale do Nilo du- Assim, nos Verba, encontramos homens santos rante as temporadas de colheita. como Santo Arsênio, O austero e calado forasteiro que Por fim, nestas páginas, encontramo-nos com di- chegou ao deserto da longínqua corte dos imperado- versas personalidades grandiosas e simples. Embora res de Constantinopla, e que não deixava ninguém OS Verba sejam às vezes atribuídos a apenas um senex olhar seu rosto. Encontramos O gentil Poimen, O im- (ancião) não identificado, muitas vezes são imputa- petuoso João, O anão, que queria se tornar "um anjo". dos ao nome do santo que OS proferiu. Encontramo- Não menos cativante é O abade Pastor, talvez O que nos com O abade Antão, ninguém menos que Santo apareça mais vezes. Seus ditos caracterizam-se pela Antão, O Grande. Este é O Pai de todos eremitas, humildade prática, pelo conhecimento da fragilidade 22 23THOMAS MERTON A SABEDORIA DO DESERTO humana e pelo sólido bom senso. Pastor, como sabe- batessem no naufrágio. Porém, uma vez que conse- mos, era muito humano e conta-se que quando seu ir- guissem colocar pés em terra firme, as coisas seriam mão de sangue começou a agir com frieza em relação diferentes. Nesse momento eles não apenas teriam O a ele, e a dar preferência a conversas com outro ere- poder, mas a obrigação de trazer todo mundo a salvo mita, sentiu tanto ciúme que teve de ir consultar um atrás deles. dos anciãos para reequilibrar seus pontos de vista. Esta é a lição paradoxal deles para nossos tem- Os monges insistiam em permanecer humanos e pos. Talvez fosse um pouco de exagero dizer que "comuns". Isto pode parecer um paradoxo mas é mui- mundo atual precise de um outro movimento como to importante. Se pararmos para pensar um momen- aquele que atraiu tantos homens para desertos do to, veremos que fugir ao deserto para ser extraordi- Egito e da Palestina. O nosso tempo é sem dúvida de nário é somente carregar mundo como um padrão solitários e eremitas. Porém, apenas reproduzir a sim- implícito de comparação. O resultado não seria outro plicidade, a austeridade e as orações daquelas almas que a autocontemplação e a autocomparação com O primitivas não é a resposta mais completa, nem a mais padrão negativo do mundo Al- apropriada. Precisamos transcendê-los, e transcender guns dos monges do deserto fizeram isso e O que todos aqueles que, desde suas respectivas épocas, fo- conseguiram foi a perda do equilíbrio mental. Os ho- ram além dos limites que estabeleceram. Devemos li- mens simples que viveram suas vidas até uma idade bertar a nós mesmos, da nossa própria maneira, do avançada entre pedras e areia só O fizeram porque envolvimento com um mundo que caminha para O de- haviam ido ao deserto para serem eles mesmos, para sastre, com a diferença de que nosso mundo é dife- viverem seu eu ordinário, e para esquecerem um rente do deles. Nosso envolvimento é mais completo. mundo que OS mantinha afastados de si mesmos. Não Nosso perigo é muito mais urgente. Nosso tempo, tal- pode haver outra razão válida para buscar a solidão vez, é mais curto do que pensamos. ou para se afastar do mundo. Portanto, deixar O mun- Não podemos fazer exatamente que eles fize- do é, na verdade, ajudar a salvá-lo, salvando-se a si ram. Porém, precisamos ser igualmente meticulosos e mesmo. Este é ponto final e fundamental. Os ere- inexoráveis em nossa determinação de quebrar OS elos mitas cópticos que deixaram mundo, embora esti- espirituais e repudiar a dominação de compulsões ex- vessem escapando de um naufrágio, não pretendiam ternas para encontrarmos nosso verdadeiro eu, para apenas salvar suas vidas. Eles sabiam que eram inca- descobrirmos e desenvolvermos nossa liberdade es- pazes de fazer algum bem aos outros enquanto se de- piritual inalienável e usá-la para construir, na terra, O 24 25THOMAS MERTON Reino de Deus. Não é este O momento de especular O que está envolvido nessa grandiosa e misteriosa vo- cação. Isto ainda é desconhecido. Para mim, basta di- zer que é preciso aprender com esses homens do sé- culo IV como ignorar O preconceito, desafiar a com- pulsão e penetrar sem medo no desconhecido. ALGUNS DITOS DOS PADRES DO DESERTO (Tradução de Thomas Merton) I O abade Pambo perguntou ao abade Antão: "O que eu devo fazer?" O ancião respondeu: "Não confie em seu virtuosismo. Não se preocupe com O que está feito. Controle sua língua e seu ventre." II O abade José, de Tebas, disse: "Há três tipos de ho- mens que encontram a honra sob OS olhos de Deus. O primeiro é aquele que, quando doente ou sob ten- 26 27THOMAS MERTON A SABEDORIA DO DESERTO tação, aceita sua condição com agradecimento; O se- les que discernem O bem do mal. Se essas três quali- gundo é aquele que executa seus trabalhos de ma- dades forem encontradas em um homem então Deus neira limpa aos olhos de Deus, e nunca somente para O habita." agradar OS homens; O terceiro é aquele que se senta após O comando de um pai espiritual e renuncia a to- V dos OS desejos próprios." O abade Pastor disse: "Há duas coisas que O mon- ge deve odiar acima de todas, pois, assim, tornar-se-á III livre neste mundo." Um irmão perguntou: "Quais são Um irmão perguntou a um dos anciãos: "Que tra- essas duas coisas?" O ancião replicou: "Uma vida fácil balho pode me dar vida?" O ancião respondeu: "Só e uma glória vã." Deus sabe O que é bom." No entanto, conta-se que alguém inquiriu O abade Nisteros O grande, amigo do VI abade Antão: "Que bom trabalho devo executar?" Ele Conta-se que O abade Pambo, no exato momento respondeu: "Nem todos OS trabalhos são iguais. Está em que deixava esta vida, disse aos homens santos escrito que Abraão era hospitaleiro, e Deus estava que estavam ao seu lado: "Desde momento em que com ele. Elias adorava a oração solitária, e Deus esta- vim para O deserto, construí uma cela para mim e pas- va com ele. Davi era humilde, e Deus estava com ele. sei a viver nela, não me lembro de ter comido um pão Portanto, ao perceber em sua alma qualquer desejo que não tivesse sido ganho com O trabalho de minhas que estiver de acordo com Deus, realize-o e assim mãos; tampouco me lembro de ter dito nada de que manterá seu coração a salvo." me arrependesse até este momento. E vou ao Senhor como alguém que nem mesmo começou a servi-Lo." IV VII Um dos anciãos disse: "Pobreza, tribulação e dis- crição são OS três trabalhos da vida do eremita. Por- Um irmão perguntou a um dos anciãos: "Como O que está escrito: se estivessem conosco, somente es- temor a Deus alcança O íntimo de um homem?" O an- tes três homens, Noé, Jó e Daniel (ver Ez 14), seriam cião respondeu: "Se um homem viver com humildade salvos. Noé representa aqueles que não possuem nada; e pobreza, e não julgar O outro, temor a Deus passa Jó, aqueles que sofrem com tribulações; Daniel, aque- a fazer parte dele." 28 29THOMAS MERTON A SABEDORIA DO DESERTO VIII visitantes. Após O jantar, eles reiniciaram a salmodia e prosseguiram quase até O amanhecer, quando O ere- Uma vez, alguns irmãos saíram do mosteiro para mita disse: "Bom, nós não poderemos terminar nos- visitar OS eremitas que viviam no deserto. Chegaram sas preces habituais porque vocês estão cansados pela até a morada de um, que OS recebeu com alegria. Per- cebendo que estavam cansados, convidou-os a co- viagem. É melhor que descansem um pouco." Então, à primeira hora do dia, visitantes desejavam deixar mer antes do horário habitual e colocou à frente de- O eremita, mas ele não permitiu. Disse: "Fiquem co- les toda a comida que havia. Porém, naquela noite, migo mais um pouco. Não posso deixar que vão tão quando todos deveriam estar dormindo, O eremita ou- cedo, a caridade exige que eu mantenha por dois viu OS cenobitas conversando e um deles disse: "Es- ou três dias." Porém, ao ouvirem isso, esperaram até tes eremitas comem mais do que nós no mosteiro." anoitecer e foram embora, escondidos pela escuridão. Ao amanhecer, convidados prepararam as suas coisas para visitar outro eremita e, ao partirem, O an- IX fitrião disse: "Mandem saudações minhas a ele e a se- guinte mensagem: para não regar as hortali- Um ancião disse: trabalho da vida de um mon- ças'." Quando eles chegaram ao outro eremitério, ge é a obediência, a meditação, não julgar O outro, transmitiram a mensagem. O segundo eremita com- não insultar, não reclamar. Porque está escrito: quem preendeu O que queriam dizer aquelas palavras. En- ama O Senhor, odeia mal. Então, esta é a vida do tão, fez com que OS visitantes se sentassem e teces- monge, não concordar com um homem injusto, nem sem cestas e, com eles, trabalhou sem cessar. À noite, olhar mal através de seus olhos; não andar por aí quando chegou a hora de acender a lamparina, O ere- bisbilhotando, não investigar nem tentar descobrir so- mita acrescentou alguns salmos à oração habitual e, bre assuntos alheios. Não pegar nada com as pró- depois disso, disse aos visitantes: "Nós não costuma- prias mãos, mas, ao invés disso, dar aos outros. Não mos comer todos OS dias aqui no deserto, mas como sentir orgulho no coração, nem ter maus pensamen- vocês fizeram uma jornada hoje, é justo que tenha- tos sobre outros. Não encher O estômago e agir mos um breve jantar, para variar." Então, O eremita lhes sempre, com relação a qualquer assunto, com discri- ofereceu um pouco de pão seco e sal, e acrescentou: ção. Veja, um monge é O resultado de tudo isso." "Aqui está um pequeno regalo a vocês." Dizendo isso, misturou um pouco de vinagre, óleo e sal e serviu aos 30 31THOMAS MERTON A SABEDORIA DO DESERTO X disse: "Arsênio, fuja, permaneça calado, descanse na oração, essa é a base para não pecar." Um ancião disse: "Remova de si a confiança im- pensada, controle a língua e O ventre, e abstenha-se XIII do vinho. E se alguém lhe vier falar sobre um proble- ma qualquer, não discuta. Se O que essa pessoa disser Um irmão foi até Cétia pedir boas palavras ao aba- estiver correto, responda 'Sim'. Do contrário, diga: 'Vo- de Moisés. O ancião respondeu-lhe: "Volte para sua cê é quem sabe do que está falando'. Porém, não dis- cela, sente-se e ela lhe ensinará tudo O que precisa." cuta as coisas que foram ditas. Assim, sua mente se manterá em paz." XIV Um ancião disse a uma pessoa que estava rindo: XI "Diante do Senhor dos céus e da terra, temos de res- O abade Antão disse: "Assim como peixes em ter- ponder por toda a nossa vida; e mesmo assim você ra seca, OS monges perecem se, afastados de suas ce- consegue rir?" las, residirem com homens do mundo, ou perderem a determinação em perseverar na oração solitária. Por- XV tanto, assim como OS peixes voltam para O mar, nós Conta-se que O abade Agatão carregou uma pe- devemos voltar para nossas celas; dessa maneira, não dra na boca durante três anos até aprender a perma- ficamos no exterior e não nos esquecemos de cuidar necer em silêncio. do nosso interior." XVI XII Um dos irmãos perguntou ao abade Isidoro, O an- O abade Arsênio, quando ainda estava no palácio cião de Cétia: "Por que demônios O temem com do rei, rezou ao Senhor, pedindo: "Senhor, conduza- tanta aflição?" O ancião respondeu: "Desde que me me à salvação." Então, uma lhe disse: "Arsênio, fuja tornei monge, luto para evitar que a raiva chegue aos dos homens e você será salvo." Quando entrou para meus lábios." a vida monástica, ele mais uma vez proferiu as mes- mas palavras em uma oração. E então, uma VOZ lhe 32 33THOMAS MERTON A SABEDORIA DO DESERTO XVII ta, mas O abade recusou-se e disse: "Vá em paz, irmão, é um presente que lhe dou." Porém, O irmão disse: O abade Anastácio possuía um livro escrito em per- "Se O senhor não O aceitar de volta, eu nunca terei gaminho muito refinado, que valia 18 denários, e que paz." Então, O irmão viveu com O abade Anastácio continha O Antigo e O Novo Testamentos integrais. pelo resto de sua vida. Uma vez, um irmão foi visitá-lo e, ao ver O livro, rou- bou-o. Um dia, O abade Anastácio foi buscar seu livro XVIII para ler e não O encontrou; descobriu, então, que O irmão O havia levado. Porém, não mandou que O pro- O abade Macário disse: "Se, ao desejar corrigir ou- curassem com medo de que O irmão somasse O per- tra pessoa, você sentir raiva, está favorecendo a pró- júrio ao roubo. Nesse ínterim, O irmão foi até uma ci- pria paixão. Não se perca para salvar O outro." dade próxima vender livro, e pediu 16 denários. O comprador disse: "Dê-me O livro para que eu possa XIX verificar se vale este preço." O comprador levou O li- O abade Hiperéquio disse: "É melhor comer car- vro a Santo Anastácio e disse: "Padre, por favor, exa- ne e beber vinho do que devorar a carne do seu irmão mine este livro e me diga se devo comprá-lo por 16 desprezando-o." denários." O abade Anastácio respondeu: "Sim, é um livro muito bom, vale O que foi pedido." Então, O com- XX prador encontrou-se novamente com irmão e disse: "Aqui está seu dinheiro. Mostrei O livro ao abade Anas- Um vez, em Cétia, foi trazida uma garrafa de vi- tácio e ele me disse que é um livro muito bom e que nho da safra mais recente para que cada irmão to- vale OS 16 denários." Então, irmão perguntou: "Isso masse um pouco em suas cuias. Um dos irmãos, ao foi tudo O que O abade Anastácio disse? Não fez ne- chegar e perceber que eles haviam recebido vinho, nhum outro comentário?" O comprador respondeu correu e se escondeu em um depósito subterrâneo. que não, que O abade não havia dito nada além daqui- No entanto, O depósito desabou. Com O barulho, lo. "Bom", disse O irmão, "mudei de idéia, não quero irmãos foram correndo até lá e encontraram à bei- mais vender O livro depois disso." Em seguida, foi ra- ra da morte. Então, começaram a censurar O irmão, pidamente se encontrar com O abade Anastácio e im- dizendo: "Que isto lhe sirva de lição por sua vaida- plorar, em prantos, para que aceitasse O livro de vol- de." Mas abade, que dispensou todos os cuidados 34 35THOMAS MERTON A SABEDORIA DO DESERTO ao irmão ferido, disse: "Perdoem meu filho, ele agiu XXIII bem e, enquanto O Senhor viver, este depósito não deve ser reconstruído para que O mundo saiba que O abade Teodoro de Fermes tinha três bons li- por uma cuia de vinho um depósito desabou em vros. Quando foi ao encontro do abade Macário, dis- Cétia." se-lhe: "Tenho três bons livros e deles tiro proveito. Eu OS empresto aos irmãos, que também tiram pro- XXI veito. O que devo fazer?" O ancião respondeu: "As coisas que você faz são boas, mas O melhor que pode Um monge encontrou um grupo de servas do Se- fazer é não possuir nada." Ao ouvir isso, ele saiu, nhor durante uma viagem. Ao vê-las, saiu da estrada e vendeu OS livros mencionados e deu O dinheiro aos permaneceu a uma boa distância delas. Porém, a aba- pobres. dessa disse-lhe: "Se você fosse um monge perfeito, nun- ca teria chegado perto O bastante para perceber que XXIV éramos mulheres." O abade Amonas disse que havia passado catorze XXII anos em Cétia orando a Deus, dia e noite, para que se libertasse de toda a raiva. Um irmão, ao renunciar ao mundo, deu O que pos- suía aos pobres, mas manteve alguns poucos perten- XXV ces. Em seguida, foi ao encontro do abade Antão. Quando O ancião ouviu sua história, disse-lhe: "Se você O abade Pastor disse: "A virtude de um monge é quiser ser um monge, vá até aquele vilarejo, compre manifestada pelas tentações." carne, coloque-a sobre O seu corpo nu e volte aqui." O monge obedeceu e foi atacado por cães e aves de XXVI rapina. Quando retornou, O ancião perguntou se ele Um ancião disse: "A razão pela qual não chega- havia cumprido a ordem. O irmão lhe mostrou O cor- mos a lugar nenhum é que não conhecemos nossos po dilacerado. O abade Antão, então, disse-lhe: "Aque- limites e não somos pacientes para continuar O traba- les que renunciam ao mundo e querem manter a pos- lho que começamos. Queremos, sem trabalho algum, se de bens materiais são atacados e dilacerados por adquirir a virtude." demônios assim como aconteceu com você." 36 37THOMAS MERTON A SABEDORIA DO DESERTO XXVII O ancião lhe disse: "Até O momento, você não en- Um ancião disse: "Assim como uma árvore não dá controu um barco, não embarcou sua bagagem e não frutos se for replantada em vários lugares, um monge começou a atravessar O mar: como é possível falar também não pode dar frutos se mudar muitas vezes O como se já estivesse na cidade a que pretende chegar? local de residência." Quando você colocar em prática aquilo de que fala, poderá falar com O conhecimento da coisa em si!" XXVIII XXXI Um ancião disse: "A cela do monge é a fornalha da Babilônia onde três jovens encontraram-se com O Certa ocasião, um juiz provincial ouviu falar so- Filho de Deus; mas é também a coluna de nuvem, da bre O abade Moisés e foi até Cétia para encontrá-lo. qual Deus falou a Moisés." Alguém avisou ao ancião que O visitante estava che- gando. O abade, então, levantou-se e correu para O XXIX brejo. Porém, no caminho, encontrou-se com O juiz e seus acompanhantes. O juiz perguntou-lhe: "Diga- Um dia, um irmão veio ao encontro do abade Teo- nos, ancião, onde é a casa do abade Moisés?" O an- doro de Fermes, e passou três dias implorando para cião respondeu-lhe: que você quer com ele? O que O ancião falasse com ele. O abade, todavia, não lhe respondeu e ele partiu decepcionado. Então, um homem é um tolo e um herege!" O juiz continuou e discípulo falou ao abade Teodoro: "Pai, por que se- chegou à igreja de Cétia. Lá, disse aos clérigos: "Ouvi nhor não falou com ele? Ele foi embora decepciona- falar sobre O abade Moisés e vim até aqui para encon- do." O ancião respondeu: "Acredite-me, eu não lhe trá-lo. No caminho, cruzamos com um velho que se- disse nada porque ele é um comerciante de palavras, guia em direção ao Egito e nós lhe perguntamos onde busca a glória por meio das palavras dos outros." era a cela do abade Moisés. Ele nos respondeu: 'O que você quer com ele? O homem é um tolo e um he- XXX rege!" Os clérigos, ao ouvir isso, ficaram constran- gidos e disseram: "Que tipo de homem era esse, ca- Outro irmão se dirigiu ao encontro do mesmo an- paz de dizer tais coisas sobre um homem santo?" Eles cião, O abade Teodoro, e começou a discutir e a inqui- responderam: "Era um homem muito velho, com rir sobre práticas que nunca havia aplicado em sua vida. uma longa túnica preta." E OS clérigos disseram: "Mas 38 39THOMAS MERTON A SABEDORIA DO DESERTO como? Esse homem era O próprio abade Moisés. Por mem espiritual, não precisa dessa comida que pereceu. não querer ser visto por vocês, disse aquelas coisas Nós temos de trabalhar, mas você escolheu a melhor sobre si mesmo." Muito edificado, O juiz retornou à parte. Lê O dia inteiro e pode passar sem comida." Ao sua casa. ouvir isso, O irmão disse: "Perdoe-me, Pai." E O an- cião respondeu: "Marta é necessária a Maria. Porque XXXII Marta trabalhou, Maria pôde ser louvada." O abade Poimen disse: "Se Nabuzardan, O prínci- pe dos cozinheiros, não tivesse ido a Jerusalém, O tem- XXXIV plo do Senhor não teria sido consumido pelas cha- Um dos monges, chamado Serapião, vendeu seu mas (II Rs 25, 8-12). Da mesma forma, se a gula não ti- livro do Evangelho e deu dinheiro àqueles que es- vesse penetrado na alma, a mente do homem não te- tavam com fome. "Vendi O livro que me instruiu a ria sido inflamada pelas tentações do demônio." vender tudo O que eu tinha para dar aos pobres", dis- se ele. XXXIII Um irmão foi ao encontro do abade Silvano, no XXXV Monte Sinai, e, ao ver OS eremitas trabalhando, excla- Um irmão foi insultado por outro irmão e queria mou: "Por que vocês trabalham pelo pão que pere- se vingar. Foi ao encontro do abade Sisoés, contou ceu? Maria escolheu a melhor parte, ou seja, sentar-se que havia acontecido, e acrescentou: "Quero me vin- aos pés do Senhor e não trabalhar." Então, O abade gar dele, Pai." Mas ancião suplicou-lhe que deixas- disse ao discípulo Zacarias: "Leve O irmão a uma cela se caso nas mãos de Deus. "Não", disse O irmão, vazia, dê-lhe um livro e deixe-o lá, lendo." Após nove vou descansar até fazer aquela pessoa pagar pelo horas, O irmão começou a tirar OS olhos do livro para que disse." Então, O ancião ficou em pé e começou a ver se O abade não lhe chamaria para O jantar. Após fazer a seguinte oração: "Oh, Deus, Tua sabedoria algum tempo, ele próprio se levantou e perguntou ao não nos é mais necessária, e não precisamos mais de abade: "Os irmãos não comeram hoje, Pai?" "Ah, sim, Ti para tomar conta de nós, uma vez que, segundo O com respondeu O abade, "eles acabaram de que diz este irmão, nós dois podemos e iremos nos jantar." "Bom", disse O irmão, "por que O senhor não vingar por nós mesmos." Ao ouvir isso, O irmão pro- me chamou?" O ancião respondeu: "Você é um ho- meteu desistir de sua idéia de vingança. 40 41THOMAS MERTON A SABEDORIA DO DESERTO XXXVI e abriu as portas da cadeia, libertando OS assaltantes Um dos irmãos perguntou ao abade Sisoés: "Pre- e livrando-os da tortura. sumindo-se que um bando de ladrões ou selvagens me ataquem ou tentem me matar; se eu conseguir derro- XXXVIII tá-los, devo matar um deles?" O ancião respondeu: Houve uma vez um discípulo de um filósofo gre- "De maneira alguma. Comprometa-se plenamente com go que foi ordenado por seu mestre a dar dinheiro, Deus. Confesse cada mal que lhe acontecer, atribuin- durante três anos, a todo aquele que O insultasse. Ao do a razão da ocorrência aos seus pecados, pois é ne- final desse período de prova, O mestre lhe disse: "Ago- cessário aprender a entregar todas as coisas aos cui- ra você pode a Atenas e adquirir conhecimento." dados da sabedoria de Deus." Quando O discípulo estava entrando em Atenas, en- controu um velho sábio sentado no portão insultan- XXXVII do todos que passavam. Ele também insultou O discí- Havia, nas montanhas, um grande eremita que foi pulo, que imediatamente começou a gargalhar. "Por atacado por assaltantes. Seus gritos despertaram a aten- que você está rindo se eu O insultei?", perguntou O ção dos outros eremitas das redondezas, que, juntos, sábio. "Porque", respondeu O discípulo, "nos últimos conseguiram capturar OS bandidos e enviá-los sob vi- três anos eu paguei pelo que estou recebendo e ago- gilância para a cidade. Lá, foram presos por um juiz. ra você está me dando sem receber nada." O sábio Porém, OS irmãos sentiram-se muito tristes e envergo- respondeu: "Entre na cidade, ela é toda sua." O aba- nhados pois, por sua causa, OS assaltantes haviam de João costumava contar essa história e dizer: "Esta sido entregues ao juiz. Foram ao encontro do abade é a porta de Deus através da qual nossos Pais, exul- Poimen e contaram-lhe toda a história. O ancião, en- tantes por muitas tribulações, entram na Cidade dos tão, escreveu ao eremita O seguinte: "Lembre-se de Céus." quem foi O responsável pela primeira traição e você saberá a razão da segunda. A menos que você tenha XXXIX sido traído em primeiro lugar pelos próprios pensa- Certa ocasião, no vale das celas, OS irmãos esta- mentos, nunca deveria ter decidido entregar aqueles vam reunidos, comendo no local da assembléia. Um homens ao juiz." O eremita, comovido com aquelas dos irmãos presentes disse ao que servia à mesa: "Eu palavras, levantou-se imediatamente, foi até a cidade não como nenhum alimento cozido, apenas um pou- 42 43THOMAS MERTON A SABEDORIA DO DESERTO de sal¹." O irmão que servia à mesa chamou outro outra pessoa!" Ao ouvir isso, anciãos não disseram irmão e, à frente de todos da assembléia, disse em nada ao Pai, e perdoaram irmão. voz alta: "Aquele irmão não come alimentos cozidos, traga um pouco de sal para ele." Um dos anciãos le- XLII vantou-se e disse ao irmão que só queria sal: "Seria me- lhor você ter comido carne sozinho em sua cela hoje Um irmão perguntou ao abade Pastor: "Eu perco a do que ter deixado que isso fosse dito na presença de calma quando estou sentado sozinho, em minha cela, tantos irmãos." orando. O que devo fazer?" O ancião respondeu-lhe: "Não despreze ninguém, não condene ninguém, não censure ninguém. Deus lhe dará paz e sua meditação XL não será perturbada." Um dos irmãos havia pecado e O Pai pediu-lhe que deixasse a comunidade. Então, O abade Bessarião le- XLIII vantou-se e foi embora com ele, dizendo: "Eu também sou um pecador!" Um ancião disse: "Não julgue um fornicador se você for casto, pois, ao fazer isso, estará violando a lei XLI tanto quanto ele. Porque Ele disse que não fornicasse nem julgasse." Um irmão, em Cétia, cometeu um erro. Os anciãos reuniram-se e chamaram O abade Moisés para que se XLIV juntasse a eles. No entanto, ele não quis ir. O Pai en- viou-lhe uma mensagem que dizia: "Venha, a comu- Um dos Pais contou a história de um ancião que nidade de irmãos O espera." Então, ele se levantou e estava em sua cela trabalhando e vestindo um cilício partiu, carregando em suas costas uma cesta furada, quando O abade Amonas chegou. Ao ver O cilício, dis- cheia de areia. Os anciãos saíram para recebê-lo e se: "Isso não lhe fará bem algum." O ancião respon- perguntaram: que é isso, Pai?" O ancião respon- deu: "Há três pensamentos me perturbando. O primeiro deu: "Meus pecados estão vazando sem que eu OS impele-me a me recolher em algum ponto inóspito do veja, e hoje estou aqui para julgar OS pecados de uma deserto. O segundo, a procurar uma terra estrangeira onde ninguém me conheça. O terceiro, a me fechar 1. O sal era usado para temperar O pão seco. nesta cela, não ver mais ninguém e só comer a cada 44 45THOMAS MERTON A SABEDORIA DO DESERTO dois dias." O abade Amonas disse-lhe: "Nenhuma des- XLVI sas três alternativas lhe trará qualquer tipo de bem. Em O abade Pastor disse: "Se você tiver um armário vez disso, sente-se em sua cela, coma um pouco todo cheio de roupas e deixá-las lá por muito tempo, irão dia e tenha sempre em seu coração as palavras que apodrecer. Acontecerá mesmo com pensamentos estão no Evangelho, proferidas pelo publicano², as- em seu coração. Se não trouxermos para fora por sim, você pode ser salvo." meio de trabalho físico, após muito tempo eles estra- gam e tornam-se ruins." XLV Conta-se que abade João, O anão, disse uma XLVII vez ao seu irmão ancião: "Quero viver com a mesma O mesmo Pai disse: "Se houver três monges viven- segurança que têm OS anjos, sem trabalhar, mas ser- do juntos, dos quais um permanece em silêncio oran- vindo a Deus sem interrupção." Então, despojou-se do todo O tempo, O segundo está atormentado e dá de todos OS seus pertences e partiu para O deserto. graças por isso, e O terceiro serve ambos com boa von- Após uma semana, ele voltou à morada de seu ir- tade sincera, três são iguais, como se tivessem exe- mão. Bateu à porta e seu irmão perguntou, antes de cutando O mesmo trabalho." abri-la: "Quem é você?" O abade respondeu: "Sou João." Seu irmão disse: "João tornou-se um anjo e XLVIII não está mais entre OS homens." Mas João continuou a bater e disse: "Sou eu." O irmão ainda assim O man- Ele mesmo disse: "A malevolência nunca acabará teve esperando do lado de fora. Após algum tempo, com a malevolência. Se alguém lhe fizer mal, faça O abriu a porta e disse: "Se você é um homem, terá de bem a essa pessoa, assim, a sua boa ação pode des- começar a trabalhar de novo para viver. Mas se você truir a malevolência." é um anjo, por que deseja voltar à cela?" Então, João arrependeu-se e disse: "Perdoa-me, irmão, por eu ter XLIX pecado." E também disse: "Aquele que é inclinado a dispu- 2. "Senhor, tende piedade de mim, pecador." Esta é a base da "Ora- tas não é um monge; aquele que retribui O mal com ção de Jesus", repetida com freqüência, e universalmente praticada no O mal, não é um monge; aquele que sente raiva, não monasticismo oriental. é um monge." 46 47THOMAS MERTON A SABEDORIA DO DESERTO L lhe: "Se desejar, continue com ele." O irmão saiu e per- Um irmão veio ao encontro do abade Pastor e maneceu com aquele Pai. Porém, O irmão voltou no- vamente e disse ao abade Pastor: uma carga muito disse: "Muitos pensamentos inquietantes vêm à mi- nha mente, e eu estou em perigo por causa deles." grande para minha alma! E ainda O abade Pastor não lhe disse para deixar O homem. Por fim, O irmão vol- Então, O ancião empurrou-o para fora da cela e dis- se: "Abra suas vestes em seu peito e agarre O vento tou pela terceira vez e disse: "Acredite-me, não posso com elas." Ele retorquiu: "Isto eu não posso fazer." E mais suportar!" Então, O ancião disse: "Veja! Agora você está salvo, vá e corte qualquer laço que tenha O mestre disse: "Se você não pode agarrar O vento, com ele." E acrescentou: um homem perce- tampouco pode evitar que pensamentos inquietan- be que sua alma está em perigo, não é necessário pe- tes entrem em sua mente. Seu trabalho é dizer 'não' a eles." dir conselhos. Quando O problema é sobre pensamen- tos secretos, pede-se um conselho para que OS anciãos possam verificá-los. Porém, quando há pecados ex- LI plícitos, não há necessidade de inquirições, corte-os O abade Amonas disse: "Um homem carrega um imediatamente." machado por toda a sua vida e nunca corta uma ár- vore. Um outro, que sabe como cortar, com uns pou- LIII COS golpes derruba uma árvore. Este machado", disse O abade Paládio disse: "A alma que deseja viver O abade, "é a discrição." em acordo com a vontade de Cristo deve aprender ver- dadeiramente O que ainda não sabe ou ensinar aber- LII tamente O que sabe. Porém, se for capaz mas não de- Um irmão perguntou O seguinte ao abade Pastor: sejar fazer nenhuma dessas coisas, será afligida pela "Minha alma está correndo perigo por viver com meu loucura, porque O primeiro passo para se distanciar Pai Espiritual. Então, O que devo fazer? Devo conti- de Deus é a insatisfação em ensinar, e a falta de ape- nuar com ele?" O abade Pastor sabia que a alma do tite por tudo que a alma anseia quando busca a irmão estava em perigo com O outro abade, e ficou Deus." surpreso ao perceber que O irmão estava lhe pergun- tando se deveria continuar com O abade. Respondeu- 48 49THOMAS MERTON A SABEDORIA DO DESERTO LIV LVII Um dos anciãos disse: "Se um homem se estabe- Outro ancião disse: "Acontece um homem comer lece em um determinado lugar e não produz OS fru- mais e ainda assim permanecer com fome e outro co- tos que esse lugar pode oferecer, O próprio lugar O mer menos e ficar satisfeito. A maior recompensa per- expulsa, pois é alguém que não realiza seus frutos." tence ao que comeu mais e permaneceu com fome, não ao que comeu menos e se satisfez." LV LVIII Perguntaram a um ancião: que significa, quan- do lemos na Bíblia, que O caminho é estreito e aper- Houve um certo irmão que foi louvado por todos tado?" O ancião respondeu: "Está escrito 'quão estrei- OS outros na presença do abade Antão, mas, quando ta é a porta e apertado O caminho que leva à vida, e O ancião testou-o, descobriu que não suportava ser in- isso quer dizer que um homem deve agir energica- sultado. Então, abade Antão disse: "Você, irmão, é mente contra seus julgamentos e abolir, pelo amor de como uma casa com um grande e sólido portão, mas Deus, OS desejos de sua vontade própria. Isto é O que que é livremente invadida por ladrões através das ja- foi escrito pelos Apóstolos: 'E nós, então, que deixa- nelas." mos tudo para seguir-Te." LIX LVI Um irmão foi ao encontro do abade Poimen e dis- Um dos anciãos disse: "Não é por pensamentos se: que devo fazer, Pai? Estou sentindo uma gran- malignos chegarem a nós que estaremos condenados, de tristeza." O ancião disse-lhe: "Nunca despreze nin- mas por usarmos esses pensamentos. Pode acontecer guém, nunca condene ninguém, nunca fale mal de nin- de naufragarmos em decorrência desses pensamen- guém, assim O Senhor lhe concederá a paz." tos, todavia, também pode acontecer sermos coroados por sua causa." LX Um dos irmãos perguntou ao ancião: "Pai, OS ho- mens santos sempre sabem quando O poder de Deus está neles?" O ancião respondeu: "Não, nem sempre 50 51THOMAS MERTON A SABEDORIA DO DESERTO eles sabem. Uma vez, O discípulo de um grande ere- LXIV mita cometeu um erro e O eremita lhe disse: 'Saia daqui O abade Pastor disse: "Afaste-se de um homem e caia morto!' O discípulo morreu no mesmo instante e O eremita, arrebatado pelo terror, orou ao Senhor: que discute toda vez que fala." 'Senhor Jesus Cristo, eu Lhe imploro para restituir a LXV vida ao meu discípulo e a partir de agora tomarei cui- dado com O que disser.' Na mesma hora, O discípulo Um ancião disse: "Pratique O silêncio, não tenha voltou à vida." pensamentos vãos e absorva-se em suas meditações, seja sentado para orar a Deus, seja em pé para O tra- LXI balho, temendo a Deus. Se você fizer isso, não preci- sará ter medo de ser atacado pelo Mal." Um dos anciãos costumava dizer: "No início, quan- do nos reuníamos, costumávamos dizer coisas boas LXVI para nossas almas, elevávamo-nos cada vez mais até chegar aos céus. Porém, agora nos reunimos e passa- Outro ancião disse: OS olhos de uma mos O tempo todo criticando tudo, arrastando-nos as- vaca ou mula são cobertos, ela gira a roda do moinho sim cada vez mais ao abismo." sem cessar, do contrário, ela não permanecerá andan- do em círculos ao redor da mó. Assim faz O diabo se LXII conseguir cobrir OS olhos de um homem, humilhando- O a cada pecado. Porém, se seus olhos não estiverem Não obstante, um outro ancião disse: "Se você per- tapados, O homem poderá escapar do diabo." ceber um jovem monge subindo aos céus por si só, puxe-o pelo pé e jogue-o ao chão, porque O que está LXVII fazendo não é bom para ele." Alguns irmãos vieram de Tebaida para comprar LXIII panos de linho, e disseram a um outro irmão: "Tere- mos a oportunidade de ver O abençoado Arsênio." O abade Bessarião, à beira da morte, disse: Mas quando chegaram à gruta do ancião, seu discípu- monge deve ser como OS querubins e serafins, somen- lo Daniel recebeu-os e entrou para avisá-lo do desejo te olhos." dos visitantes. Arsênio respondeu: "Vá, meu filho, re- 52 53THOMAS MERTON A SABEDORIA DO DESERTO ceba-os e faça-lhes as honras. Mas permita-me que onde vivia foi povoado por eremitas, ele foi embora olhe para céus e deixe que sigam seu caminho. Mi- chorando e dizendo: "Os homens mundanos arruina- nha face, eles não a devem ver." ram Roma e OS monges arruinaram Cétia." LXVIII LXX Os santos padres reuniram-se e falaram sobre O Abraão, O discípulo de Sisoés, disse-lhe: "Pai, O se- que aconteceria na última geração. Um deles, chama- nhor já é um homem velho. Vamos voltar ao mundo." do Isquirião, disse: "Hoje nós obedecemos OS manda- O abade Sisoés respondeu: "Certo, iremos para um mentos de Deus." Os padres, então, perguntaram-lhe: lugar onde não haja mulheres." O discípulo disse: "E quanto aos que virão depois de nós?" Ele respon- "Não há outro lugar sem mulheres, exceto O próprio deu: "Talvez metade deles manterão OS mandamen- deserto." Então, O ancião respondeu-lhe: "Portanto, tos de Deus e buscarão O eterno Deus." E então, OS leve-me ao deserto." padres perguntaram-lhe: "E OS que virão depois des- tes, O que farão?" Ele respondeu: "Os homens dessa LXXI geração não executarão OS trabalhos dos mandamen- tos de Deus e se esquecerão de Seus preceitos. En- Conta-se a seguinte história: um dos anciãos esta- tão, a perversidade predominará e a caridade de mui- va em seu leito de morte, em Cétia, e OS irmãos, que estavam ao seu redor, vestiram-no com a mortalha e tos perecerá. Em seguida, cairá sobre eles uma prova terrível. Aqueles que forem considerados de valor começaram a chorar. Nesse momento, ele abriu olhos e começou a rir. Depois, riu novamente e mais nessa prova serão melhores que nós e melhores que nossos pais. Serão mais felizes e mais solidamente pro- uma vez. Ao verem isso, OS irmãos perguntaram: "Di- vados na virtude." ga-nos, Pai, por que O senhor ri enquanto choramos?" Ele respondeu: "Ri a primeira vez porque vocês te- LXIX mem a morte. Ri novamente porque vocês não estão prontos para a morte. Ri mais uma vez porque passo O abade Arsênio vivia em uma cela a cinqüenta dos trabalhos para meu descanso." Logo que disse quilômetros do vizinho mais próximo. Raramente saía isso, fechou olhos e morreu. dela e as coisas de que precisava eram trazidas por seus discípulos. Porém, quando O deserto de Cétia 54 55THOMAS MERTON A SABEDORIA DO DESERTO LXXII LXXV O abade Lot foi ao encontro do abade José e Um irmão chegou e ficou ao lado de um solitário disse: "Pai, conforme minha capacidade, sigo minhas e, ao partir, disse: "Perdoe-me Pai, por eu ter violado poucas normas, meus poucos jejuns, minha oração, sua Regra." Porém, eremita respondeu: "Minha Re- meditação e silêncio contemplativo; e, conforme mi- gra é recebê-lo com hospitalidade e deixar que vá nha capacidade, luto para limpar OS pensamentos em paz." de meu coração. Agora, O que mais devo fazer?" O ancião levantou-se, estendeu seus braços ao céu e LXXVI seus dedos pareciam dez lamparinas acesas. Ele dis- Um irmão disse ao abade Pastor: "Se eu der um se: "Por que não se transforma completamente em pouco de pão ou algo do gênero a um dos meus ir- fogo?" mãos, OS demônios estragam tudo e sinto que estou agindo dessa maneira apenas para agradar aos homens." LXXIII O ancião disse a ele: "Mesmo que sua boa ação tenha Conta-se sobre abade Sisoés que a menos que sido para agradar, é necessário dar aos nossos irmãos abaixasse rapidamente suas mãos e parasse de orar, aquilo de que necessitam." E, então, contou-lhe a se- guinte história: "Dois fazendeiros viviam em uma vila. sua mente seria levada aos céus. E sempre que acon- Um deles semeou sua terra e obteve uma colheita tecia de estar orando com outro irmão, ele rapida- parca e deplorável. O outro não quis semear nada e, mente baixava as mãos temendo que sua mente fos- portanto, não colheu nada. Qual deles irá sobreviver se levada e que ele permanecesse em outro mundo. se estiver faminto?" O irmão respondeu: "O primeiro, não obstante sua colheita ter sido parca e deplorável." LXXIV O ancião replicou: "Vamos semear mesmo que nossa Um dos Pais disse: "Assim como é impossível que colheita seja parca e deplorável, assim não morrere- um homem veja sua face em águas agitadas, a alma, mos em tempos de fome". a menos que purificada de pensamentos exteriores, LXXVII não consegue orar a Deus em contemplação." O abade Hiperéquio disse: ofício do monge é obedecer e, se ele O cumprir, ser-lhe-á concedido aqui- 56 57THOMAS MERTON A SABEDORIA DO DESERTO lo que pede nas orações. A ele será concedido pos- LXXX tar-se com confiança diante do Cristo crucificado, por- que O próprio Senhor foi à cruz sendo obediente até Certa ocasião, O abade Macário estava voltando a morte." do brejo à sua cela, levando juncos, e em seu cami- nho encontrou O diabo com a foice nas mãos. O dia- LXXVIII bo tentou acertá-lo com a foice, mas não conseguiu. Então, disse: "Fico com muita raiva de você, Macário, Certa ocasião, alguns anciãos foram ao encontro pois não posso superá-lo. Veja, faço tudo que você do abade Antão. Entre eles, estava O abade José. Que- faz. Você jejua e eu não como nada. Você permanece rendo testá-los, O abade Antão iniciou uma conversa em vigília, e eu não durmo. Porém, há uma coisa em sobre as Escrituras Sagradas e perguntou O significa- que você me supera." E O abade Macário disse: do de textos para cada um deles, começando pelo que é?" O diabo respondeu: "Sua humildade, por cau- mais jovem. Eles responderam da melhor forma pos- sa dela, não sou capaz de superá-lo." sível, mas O abade Antão disse-lhes: "Vocês ainda não responderam corretamente." Em seguida, perguntou LXXXI ao abade José: "E você? O que significa este texto?" Então, O abade José respondeu: "Não sei!" E O abade O abade Pastor recebeu a seguinte dúvida de um Antão afirmou: "Realmente O abade José foi O único irmão: "Como devo me comportar no local onde vivo?" que encontrou O caminho, porque respondeu que não O ancião respondeu: "Seja cauteloso como um foras- O conhece." teiro. Onde quer que esteja, não deseje que suas pa- lavras tenham força diante de si, e terá paz." LXXIX LXXXII João de Tebas disse: monge deve postar-se humildemente diante de todos. Este é O primeiro man- O abade Pastor disse: "Um homem deve respirar damento do Senhor, que disse: OS humildade e temor a Deus assim como inspira e ex- pobres em espírito, pois deles é O Reino dos pira O ar sem cessar." 58 59THOMAS MERTON A SABEDORIA DO DESERTO LXXXIII LXXXVII O abade Alônio disse: "A humildade é a terra aon- Conta-se que um dos anciãos perseverou em je- de Deus quer que vamos e ofereçamos sacrifício." jum durante setenta semanas, comendo apenas uma vez por semana. Este ancião pediu a Deus que lhe LXXXIV fosse revelado O significado de um texto das Escritu- ras, mas Deus não fez. Então, O ancião disse a si Perguntaram a um dos anciãos O que era humil- mesmo: "Todo esse trabalho e não consegui chegar a dade e ele respondeu: "Perdoar um irmão que O ofen- deu antes que ele lhe peça perdão." lugar algum! Vou perguntar a um dos irmãos." Saiu de sua cela, fechou a porta e, ao começar a andar, um LXXXV anjo do Senhor foi-lhe enviado, e disse: "As setenta semanas que jejuou não aproximaram nem um pou- Um irmão perguntou a um dos anciãos: que é CO de Deus, mas agora que você se rebaixou e deci- humildade?" E O ancião respondeu: "Fazer O bem diu procurar a ajuda de um irmão, fui enviado para àqueles que lhe fizeram mal." O irmão perguntou: "Su- lhe revelar O significado daquele texto." Então, O anjo pondo que um homem não consiga fazer isso, O que revelou-lhe O significado do texto e foi embora. deve fazer?" E O ancião lhe respondeu: "Deixe que ele se afaste dos outros e mantenha-se calado." LXXXVIII LXXXVI O abade Pastor disse: "Qualquer prova colocada a você pode ser vencida pelo silêncio." O diabo apareceu a um dos irmãos transformado em anjo de luz, e lhe disse: "Eu sou O anjo Gabriel e LXXXIX fui enviado a você." Porém, O irmão respondeu: "Pen- se bem, você deve ter sido enviado a outra pessoa. A abadessa Sinclética, de memória sagrada, disse: Não fiz nada para merecer um anjo." Imediatamente "Há trabalho e grande luta para OS ímpios que se con- O diabo desapareceu. vertem a Deus, mas, depois disso, vem uma alegria inefável. Ora, para acender uma fogueira, um homem deve antes suportar O martírio da fumaça, que lhe provoca lágrimas, só então consegue O fogo que de- 60 61THOMAS MERTON A SABEDORIA DO DESERTO sejava. Assim também está escrito: 'Pois nosso Deus é mo: "Bem, vamos ver se você é capaz de suportar as um fogo abrasador.' Portanto, devemos acender O fogo chamas do inferno." E colocou um dedo sobre a cha- divino em nós mesmos com trabalho e lágrimas." ma. Apesar de a chama queimá-lo, ele não sentiu nada, tão intensa era a luxúria que sentia. Ele continuou as- XC sim durante toda a noite, queimando todos OS dedos. Havia um ancião nas regiões baixas do Egito, um A desventurada mulher, ao ver O que ele fazia, foi to- famoso eremita, que vivia totalmente sozinho em um mada de tamanho terror que quase se transformou local do deserto. Satã fez com que uma mulher de vir- em pedra. Pela manhã, dois jovens foram até a cela tude fácil propusesse O seguinte a alguns jovens: do eremita e perguntaram: "Uma mulher veio até aqui que vocês me dão se eu for até aquele eremita e con- na noite passada?" "Sim", respondeu eremita, "ela seguir seduzi-lo?" Então, eles combinaram um certo está ali, dormindo." Porém, exclamaram: "Pai, ela está valor em dinheiro. Uma noite, ela foi até a cela do morta!" Então, ele retirou O manto e mostrou suas eremita, fingindo que estava perdida. Bateu à porta e mãos a eles. "Veja O que ela fez comigo, aquela filha ele saiu. Ao vê-la, O eremita disse, perturbado: "Co- do inferno! Ela me custou todos OS dedos." E após con- mo você chegou até aqui?" Ela, fingindo chorar, res- tar tudo que ocorrera aos jovens, disse por fim: "Está pondeu: "Eu me perdi." Tomado de compaixão, dei- escrito que não deverás retribuir O mal com O mal." xou que ela entrasse no cômodo frontal de sua cela Assim, fez uma oração e ela reviveu. A mulher con- e, em seguida, foi até O cômodo dos fundos e tran- verteu-se e viveu castamente O resto da vida. cou-se lá dentro. Mas a infeliz mulher gritou: "Padre, XCI OS animais selvagens vão me atacar se eu ficar aqui," Mais uma vez O ancião ficou aflito, pensou no julga- O abade Pastor contou que O abade João, O anão, mento de Deus, e disse para si mesmo: "Como esta orara ao Senhor e que O Senhor O livrara de todas as coisa terrível foi acontecer comigo?" Abriu a porta e paixões, tornando-se assim impassível. Nessa condi- deixou a mulher entrar. O diabo, então, começou a ção, foi até um dos anciãos e disse: "Você tem diante atirar flechas de fogo em seu coração, mas O eremita de si um homem que está em pleno descanso e li- pensou: "Os caminhos do inimigo são a escuridão, vre de todas as tentações." O ancião disse-lhe: e mas O Filho de Deus é luz." Então, acendeu a lampa- reze ao Senhor para que lhe envie alguma luta a ser rina. Porém, a tentação continuou e ele disse a si mes- travada dentro de si, porque a alma é amadurecida 62 63THOMAS MERTON A SABEDORIA DO DESERTO somente por meio de batalhas." Então, quando as lu- que matariam qualquer ser que fosse pego. O ancião tas começaram a aparecer novamente, ele não pediu e seus dois discípulos foram encontrados enredados. para que fossem afastadas de si, apenas disse: "Senhor, Estavam cabeludos (era uma visão horrível!). Os ho- dê-me força para resistir à luta." mens do imperador perguntaram se eles eram huma- nos ou algum tipo de espírito. O ancião respondeu: XCII "Sou um homem e um pecador, vim até aqui para Um vez, O abade Macário estava viajando de Cé- chorar meus pecados e adorar O Filho do Deus Vi- tia para um lugar chamado Terenutim e decidiu pas- vente." Eles responderam: "Não existe um deus, só O sar a noite em uma pirâmide onde corpos de pagãos sol, a água e O fogo. Adore esses elementos e ofereça haviam sido colocados anos antes. Ele retirou uma sacrifícios a eles." O ancião disse: "Oh, não, não farei isso. Estas são criaturas e vocês estão errados. Devem das múmias e usou-a como travesseiro. Os demônios, ao perceber sua intrepidez, ficaram irados e decidi- admitir O verdadeiro Deus, que criou estas coisas e todas as outras." "Um criminoso condenado e crucifi- ram assustá-lo. Começaram a chamar OS outros cor- pos, como chamassem a uma mulher. "Senhora, ve- cado, é isto que vocês chamam de Deus!", disseram nha banhar-se conosco." E outro demônio, como se eles, O ancião respondeu: "Ele que foi fosse O fantasma de uma mulher, gritou do corpo que crucificado e destruiu a morte, a Ele eu chamo Deus." O ancião usava como travesseiro: "Este estranho está Então, eles O retiraram das redes, prenderam-no como se fosse um alvo e O acertaram com flechas atiradas me prendendo, não posso ir." Porém, O ancião, nem de vários pontos. Enquanto faziam isso, O ancião dis- um pouco assustado, começou a esmurrar O corpo, dizendo: "Levante-se e vá banhar-se se for capaz." Ao se-lhes: "Amanhã, a esta mesma hora, suas mães per- derão seus filhos." Eles riram e, no dia seguinte, reini- ouvir isso, OS demônios gritaram: "Você venceu!" E fu- giram desorientados. ciaram a caçada. Um veado ficou preso nas redes e eles foram apanhá-lo em seus cavalos, vindo de lados XCIII opostos. Ao mesmo tempo, dispararam suas flechas, e atingiram O coração um do outro e morreram de acor- Conta-se que quando O abade Milido morava na do com as palavras do ancião. Pérsia com seus dois discípulos, filhos do Impera- dor saíram para uma grande caçada, cercaram uma área com 65 quilômetros de redes e determinaram 64 65THOMAS MERTON A SABEDORIA DO DESERTO XCIV durante seis dias seguidos e cumprindo penitência. O outro cuida de doentes. Qual dos dois satisfaz mais a Certa vez, alguns ladrões invadiram O mosteiro e Deus?" O ancião respondeu: "Se O irmão que jejua du- disseram a um dos anciãos: "Viemos para levar tudo rante seis dias seguidos se pendurasse pelo nariz, nem que há em sua cela." Ele respondeu: "Meus filhos, mesmo assim se igualaria ao que cuida dos doentes." peguem tudo O que desejarem." Então, eles pegaram tudo O que acharam na cela e foram embora. Porém, XCVII deixaram uma pequena bolsa que estava escondida na cela. O ancião pegou-a e foi atrás deles, gritando: O abade Agatão admoestava freqüentemente seu "Meus filhos, vocês esqueceram isto na cela!" Surpre- discípulo, dizendo: "Nunca adquira para si nada que he- SOS com a resignação do ancião, trouxeram tudo de sitasse dar a seu irmão se ele lhe pedisse, porque dessa volta para a cela e se arrependeram, dizendo: "Este é maneira você seria um transgressor das leis de Deus. Se realmente um homem de Deus!" alguém lhe pedir algo, dê; se alguém quiser algo em- prestado, não recuse." XCV XCVIII Havia um ancião que tinha um noviço bastante ex- periente morando com ele e, uma vez, irritado, enxo- Um irmão perguntou a um ancião: "Se um irmão tou noviço para fora da cela. Porém, O noviço sen- me dever um pouco de dinheiro, senhor acha que tou-se e ficou aguardando ancião. O ancião abriu a eu devo pedir que me pague?" O ancião respondeu- porta e, ao vê-lo, arrependeu-se diante do noviço, di- lhe: "Peça a ele uma vez, com humildade." O irmão, zendo: "Você é meu Pai, porque sua humildade e pa- então, disse: "Suponha que eu peça a ele uma vez, ciência superaram a fraqueza da minha alma. Volte mas ele não me dê nada, que devo fazer?" O ancião para dentro; você pode ser ancião e O Pai, eu serei respondeu-lhe: "Não lhe peça mais." O irmão disse: jovem e O noviço. Com O seu bom trabalho, você que devo fazer, se não consigo me livrar de mi- superou a minha idade avançada." nhas ansiedades em relação a este assunto, a menos que vá pedir de novo?" O ancião disse-lhe: "Esqueça XCVI suas ansiedades. O importante é não afligir seu irmão, Um irmão perguntou a um dos anciãos: "Há dois pois você é um monge." irmãos, um deles permanece em sua cela, jejuando 66 67THOMAS MERTON A SABEDORIA DO DESERTO XCIX levando-o para fora da cela, mostrou-lhe uma pedra, Quando as pessoas vinham até O abade Agatão e disse: "Vá até lá e insulte aquela pedra, bata nela comprar as coisas que ele fizera com O trabalho das sem parar." Quando acabou de fazer isso, O abade An- próprias mãos, ele as vendia em paz. O preço que co- tão perguntou-lhe se a pedra havia respondido. "Não", brava por uma peneira era cem denários, por um ces- disse O abade Amonas. Então, abade Antão disse: to, duzentos e cinqüenta. Quando vinham comprar, "Você também deve chegar ao ponto de não se sentir ele lhes falava O preço e aceitava O que OS comprado- ofendido por nada." res oferecessem, sem ao menos contar as moedas. Porque, segundo dizia: "Qual a vantagem em discutir CII com eles, levando-os, talvez, ao pecado do perjúrio e O abade Pastor disse: "Assim como as abelhas são de ter dinheiro extra e doá-lo aos irmãos? Deus não deseja doações deste tipo de mim e Ele não ficará sa- afastadas pela fumaça, e mel lhes é roubado, uma vida de conforto afasta O temor ao Senhor da alma do tisfeito se, ao fazer minha oferta, levar alguém ao pe- homem e lhe retira todos OS bons trabalhos." cado." Então, um dos irmãos disse a ele: "E como você conseguirá um suprimento de pão para a sua cela?" E CIII O ancião respondeu: "Para que eu precisaria, em mi- nha cela, do pão dos homens?" Um certo filósofo perguntou a Santo Antão: "Pai, como senhor pode ser tão feliz privado da consola- C ção dos livros?" Antão respondeu: "Meu livro, filóso- Havia um ancião que, quando sofria algum tipo de fo, é a natureza das coisas criadas, e, a qualquer mo- mal de alguém, ia pessoalmente entregar presentes a mento que eu desejar ler as palavras de Deus, livro essa pessoa, se morasse nas redondezas. E se moras- estará à minha frente." se em um lugar distante, enviava OS presentes pelas mãos de outra pessoa. CIV CI Certa ocasião, um juiz provincial veio ao encon- tro do abade Simão, mas O ancião retirou O cinto que O abade Antão ensinou ao abade Amonas O se- usava e com ele subiu até O topo de uma tamareira, guinte: "Você deve ir mais além no temor a Deus." E, fingindo ser um apanhador de tâmaras. O juiz e seus 68 69THOMAS MERTON A SABEDORIA DO DESERTO acompanhantes aproximaram-se e perguntaram: "Onde abade Antão disse-lhe: "Coloque uma flecha em seu está O eremita que vive nesta parte do deserto?" O arco e atire-a. E outra. E outra." O caçador disse: "Se abade respondeu: "Não há eremitas por aqui." Ouvin- eu curvar meu arco tempo todo, ele se quebrará." do isso, foram embora. Noutra ocasião, um outro juiz O abade Antão respondeu: "Ocorre O mesmo com O veio vê-lo e seus acompanhantes adiantaram-se para trabalho de Deus. Se nos forçarmos além do limite, dizer ao abade: "Pai, apronte-se. Um juiz que ouviu OS irmãos não suportarão. É correto, portanto, de tem- falar do senhor está chegando para pedir sua bên- pos em tempos, relaxar seus esforços." ção." O ancião disse: "Podem ter certeza de que esta- rei pronto." Vestiu-se com todas as vestes que possuía, CVII pegou um pouco de pão e queijo, sentou-se em fren- Um dos Padres santos disse aos monges que lhe te a sua cela e começou a comer. O juiz e sua comiti- perguntaram qual seria O motivo da renúncia: "Meus va chegaram e, ao vê-lo comendo, saudaram-no com desdém. este O monge eremita de quem ouvimos filhos, é certo que odiemos toda a comodidade nesta falar tanto?", perguntaram OS visitantes. Fizeram a vol- vida, que odiemos OS prazeres do corpo e as alegrias do estômago. Vamos buscar a honra nos homens, as- ta e retornaram para seu local de origem. sim, nosso Senhor Jesus Cristo nos concederá honras divinas, descanso na vida eterna e alegria gloriosa com CV Seus anjos." O abade José perguntou ao abade Pastor: "Diga- me como posso me tornar um monge." O ancião res- CVIII pondeu: "Se você quiser ter descanso nesta vida e tam- O abade Zeno contou-nos que, uma vez, quando bém na próxima, em todo conflito com O outro, diga: estava indo para a Palestina, ele se sentou sob uma 'Quem sou eu?' E não julgue ninguém." árvore, fatigado com a viagem. Então, percebeu que estava bem ao lado de um campo cheio de pepinos. CVI Pensou consigo mesmo que iria se levantar e se ser- Uma vez, O abade Antão estava conversando com vir de pepinos, para reparar suas forças. "Porque", alguns irmãos, e um caçador, que estava perseguindo disse ele, "não haveria problemas em pegar uns pou- um animal no deserto, veio a eles. Ele viu O abade An- cos." Porém, respondendo a si mesmo, ele disse: tão e OS irmãos se divertindo e desaprovou aquilo. O "Quando OS ladrões são condenados pelos juízes, são 70 71THOMAS MERTON A SABEDORIA DO DESERTO enviados à tortura. Então, devo testar a mim mesmo e local onde O abade Isaac estava escondido. Ao alvo- verificar se posso suportar tormentos sofridos pe- recer, monges, procurando O asno, acharam O lu- los ladrões." No mesmo instante, levantou-se e per- gar onde O ancião estava escondido. Maravilhados maneceu sob O sol quente por cinco dias, até tostar com a desobrigação concedida por Deus, eles agar- seu corpo. Então, pensou consigo: "Não pude supor- raram e começaram a amarrá-lo para prendê-lo e le- tar tormentos, portanto, não devo roubar, mas vi- vá-lo embora. Nesse momento, venerável ancião não ver do trabalho de minhas mãos, como é costume, e permitiu que continuassem e disse: "Agora não posso viver do fruto do meu trabalho, como diz a Sagrada mais me opor a vocês, já que talvez seja O desejo de Escritura: porque poderás comer com O trabalho de Deus que eu, embora indigno, deva receber as ordens tuas mãos, bem-aventurado sejas, e que O bem esteja sacerdotais." contigo. Isto, certamente, é O que cantamos todos dias sob OS olhos do Senhor!" CX Havia dois monges irmãos que viviam juntos em CIX um cela, e sua humildade e paciência eram louvadas Os anciãos e todos OS monges que viviam no de- por muitos dos Padres. Um santo, ao ouvir sobre eles, serto de Cétia se reuniram em conselho e concorda- quis testá-los para confirmar se possuíam a verdadeira ram em que abade Isaac deveria ser ordenado Pa- e perfeita humildade. Então, decidiu Eles O dre para servir à Igreja naquele local solitário, onde receberam com alegria e juntos fizeram as preces e em datas e horários determinados monges que vi- cantaram OS salmos, como de costume. Em seguida, O viam no deserto se reuniriam para O culto. Porém visitante foi para fora da cela e viu a pequena horta abade Isaac, ao ouvir a decisão, fugiu para O Egito e dos irmãos, onde plantavam hortaliças. Com seu caja- escondeu-se em um campo, em meio a uma mata, do, correu até a horta e com toda sua energia come- considerando-se indigno para exercício do sacerdó- çou a destruir cada planta que via, até não restar ne- cio. Um grande número de monges foi atrás dele, para nhuma. Vendo isso, OS dois irmãos não disseram uma buscá-lo. Quando pararam à noite no mesmo campo palavra. Tampouco expressaram tristeza ou irritação para descansar, exaustos com a viagem (já era noite), em seus rostos. Voltando à cela, eles terminaram as soltaram O asno que carregava as bagagens e deixa- orações das Vésperas, fizeram as honras ao homem ram-no comendo. Enquanto este pastava, chegou ao santo e disseram: "Senhor, se desejar, podemos buscar 72 73THOMAS MERTON A SABEDORIA DO DESERTO um repolho que ainda restou, cozinhá-lo e comê-lo, sim, um deles disse ao outro: "Vamos discutir pelo me- porque está na hora de comermos." Então, O ancião nos uma vez, como outros homens." O outro disse: caiu aos pés dos dois irmãos, dizendo: "Agradeço ao "Eu não sei como começar uma discussão." O primei- meu Deus pois vejo que Espírito Santo permanece ro disse: "Colocarei este tijolo aqui, entre nós. Então, com vocês." direi: 'É meu.' É isso que provoca uma disputa e uma briga." Então, colocaram tijolo entre eles e um dis- CXI se: "É meu." E outro respondeu: "Creio que seja Um dos irmãos perguntou a um ancião: "Haveria meu." O primeiro disse outra vez: "Não é seu, é meu." algum problema em guardar dois denários comigo Então, O outro disse; "Bom, já que é seu, pegue-o!" para O caso de ficar doente?" O ancião, vendo O que Assim, não conseguiram entrar em discussão. pensava e percebendo que ele queria ficar com O di- CXIII nheiro, disse-lhe: "Guarde O dinheiro." O irmão, de volta à sua cela, ficou lutando com próprios pen- O abade Marcos disse uma vez ao abade Arsênio: samentos: "Será que O Pai me deu a bênção ou não?" bom não ter nada em sua cela que só lhe dê pra- Então, levantou-se, foi ao encontro do Pai novamen- zer, não? Por exemplo, uma vez soube de um irmão te e perguntou-lhe: "Em nome de Deus, diga-me a que arrancou pela raiz uma flor silvestre que nascera verdade, porque estou muito angustiado por causa em sua cela." O abade Arsênio disse: "Bem, isto está destes dois denários." O ancião disse-lhe: "Como per- certo. Porém, cada homem deve agir de acordo com cebi seu desejo de mantê-los, disse que ficasse com O próprio caminho espiritual. E, se um homem não eles. Porém, não é bom manter mais do que necessita- puder viver sem a flor, deve plantá-la novamente." mos para O corpo. Agora, estes dois denários são sua esperança. Se forem perdidos, Deus não tomaria con- CXIV ta de você? Portanto, entregue seus cuidados a Deus, pois Ele cuidará de nós." Uma vez perguntaram ao abade Agatão: que é melhor? O ascetismo do corpo ou a vigilância inte- rior?" O ancião disse: "Um homem é como uma árvo- CXII re. Os trabalhos do corpo são como as folhas, mas a Havia dois anciãos que viviam juntos em uma cela vigilância interior é como os frutos. Portanto, como e nunca tiveram uma discussão sequer entre si. As- está escrito que toda árvore que não der bons frutos 74 75THOMAS MERTON A SABEDORIA DO DESERTO deve ser cortada e lançada ao fogo, devemos ter cui- Você é capaz de considerá-lo como se fosse outra pe- dado com este fruto, que é a vigilância da mente. Po- dra?" "Não", respondeu ele, "mas eu resisto aos meus rém, também precisamos de folhas para nos adornar pensamentos e não O pego." O abade Abraão, então, e nos cobrir: e isso significa bons trabalhos executa- disse: "Veja, a paixão está viva. Porém, está presa." E dos com a ajuda do corpo." O abade Agatão era sá- continuou: "Se lhe contarem que há dois irmãos: um é bio em conhecimentos, incansável no trabalho e pron- seu admirador e fala coisas boas de você; O outro to para tudo. Dedicava-se energicamente ao trabalho odeia e fala coisas más a seu respeito. Eles vão visitá- manual e privava-se de sua comida e suas roupas. lo. Você recebe os dois da mesma maneira?" O ancião respondeu: "Não, mas me sinto atormentado, tento CXV ser justo e gentil com O que me odeia, assim como O mesmo abade Agatão disse: "Mesmo que um sou com O outro." O abade Abraão disse: "As paixões homem irado ressuscitasse mortos, não satisfaria estão vivas, portanto. Mas nos santos, elas estão ape- Deus por causa de sua ira." nas, até certo ponto, presas." CXVI CXVII Havia um ancião que jejuou bravamente por cin- No início de sua conversão, abade Evágrio³ foi qüenta anos. Ele disse: "Apaguei as chamas da luxúria, até um ancião e disse: "Pai, conceda-me algumas pa- da avareza e da vanglória." O abade Abraão, ao ouvir lavras pelas quais eu possa ser salvo." O ancião res- isso, foi até ele e perguntou: "Você disse isso mesmo?" pondeu: "Se você quiser ser salvo, sempre que for se "Disse", respondeu ele. Então, O abade Abraão disse: encontrar com alguém, não fale até que ele lhe per- "Suponha que você vá até sua cela e haja uma mulher gunte algo." Evágrio ficou muito comovido com O deitada em sua esteira. Você pode achar que ela não é que ouviu, cumpriu penitência sob olhos do an- uma mulher?" Ele disse: "Não, mas luto com meus pensamentos para não tocá-la." "Então", disse O abade 3. Evágrio Pôntico, além de grande místico, também foi um dos Abraão, "você não eliminou a fornicação. A paixão está homens mais sábios do deserto e príncipe dos origenistas em Cétia. Seu viva, mas está presa. Agora, suponha que você esteja tratado sobre orações é um clássico e chegou a nós erroneamente atri- buído a São Nilo. O significado deste "verbum" não fica claro a menos viajando e que entre as pedras há uns vasos quebra- que percebamos que Evágrio provavelmente tivesse muito a dizer quan- dos e você percebe um pouco de ouro em um deles. do foi pela primeira vez a Cétia. 76 77THOMAS MERTON A SABEDORIA DO DESERTO cião e deu uma satisfação a ele, dizendo: "Acredite- mem que odeia O Mal, odeia próprios pecados, vê me, li muitos livros e nunca encontrei em parte algu- cada irmão como um santo e O ama como um santo." ma tão grande ensinamento." Ele partiu e progrediu com grandeza. CXX O abade João costumava dizer: "Nós nos desin- CXVIII cumbimos de uma carga leve, que é a repreensão a Certa vez, alguns dos anciãos foram a Cétia e en- nós mesmos, e no lugar dela optamos por carregar tre eles estava O abade João, O anão. Quando estavam uma carga pesada ao nos justificar e recriminar jantando, um dos Padres, um grande ancião, levan- outros." tou-se para dar um pequeno copo com água para be- ber a cada um deles, e ninguém aceitou, exceto João, CXXI O anão. Os outros surpreenderam-se e, mais tarde, Um dos anciãos havia terminado suas cestas e co- perguntaram a ele: "Como é que você, O menor de to- locado alças nelas, quando ouviu seu vizinho dizen- dos, atreveu-se a aceitar O serviço daquele grande an- do: que vou fazer? O mercado está quase abrindo cião?" Ele respondeu: "Bem, quando eu me levanto e não tenho mais material para fazer as alças." Na mes- para dar um pouco de água às pessoas, fico feliz se ma hora, O ancião retirou as alças de suas cestas e as elas aceitam; e, por este motivo, aceitei desta vez a deu ao irmão. Disse: "Tome, eu não preciso delas, pe- água, e ele deve ter se sentido recompensado, não tris- gue-as e coloque-as em suas cestas." Assim, com sua te por ninguém ter aceito O copo que oferecia." Dian- enorme caridade, ele garantiu que O irmão completas- te disto, todos se admiraram com sua discrição. se seu trabalho, mesmo que O próprio trabalho perma- necesse inacabado. CXIX CXXII Certa ocasião, dois irmãos estavam sentados com O abade Poimen e um deles louvou O irmão, dizendo: Um dos anciãos disse: "Assim como uma abelha, "Ele é bom irmão, ele odeia O Mal." O ancião disse: que onde quer que vá produz mel, um monge, onde que você quer dizer com odiar O Mal?" E irmão quer que vá, se for para satisfazer a vontade de Deus, que não sabia O que responder, então, falou: "Diga- sempre será capaz de produzir a doçura espiritual de me, Pai, O que é odiar O Mal?" O Pai disse: ho- bons trabalhos." 78 79THOMAS MERTON A SABEDORIA DO DESERTO CXXIII para a cesta. O ancião disse ao nobre: Senhor acei- O abade João disse: "Um monge deve ser como tou sua oferta. Vá agora e doe aos pobres." um homem que, sentado sob uma árvore, levanta a cabeça e percebe todos OS tipos de cobras e animais CXXVI selvagens correndo em sua direção. Como não pode O abade Matoés disse: melhor um trabalho leve lutar contra todos, sobe na árvore e se afasta deles. O que demora muito tempo para terminar que um tra- monge, em todos OS momentos, deve fazer a mesma balho difícil que pode ser feito rapidamente." coisa. Quando pensamentos maus são despertados pelo inimigo, ele deve recorrer, por meio de orações, CXXVII à proteção de Deus, e assim será salvo." Os Padres costumavam dizer: "Se alguma tenta- ção aparecer no local onde você vive no deserto, não CXXIV deixe O local no momento da tentação. Porque, se O abade Moisés disse: "Um homem que vive afas- você fizer isso, não importa aonde vá, encontrará a tado dos outros homens é como uma uva madura. E mesma tentação esperando-o. Espere pois que a ten- um homem que vive na companhia de outros é uma tação vá embora, para que sua partida não escandali- uva azeda." ze OS outros que moram no mesmo local e traga-lhes tribulações." CXXV CXXVIII Um grande nobre desconhecido de todos veio até Cétia, trazendo consigo ouro, e perguntou ao padre O abade Zeno, discípulo do abade Silvano, disse: do local onde poderia deixar aquele ouro para OS ir- "Não more em um local famoso, e não se torne discí- mãos. O padre disse a ele: "Os irmãos não precisam pulo de um homem de grande nome. E não construa disso." O nobre insistiu e não aceitaria um "não" como fundações quando construir uma cela para si." resposta; então, colocou a cesta com O ouro na porta da entrada da igreja e disse ao padre: "Aqueles que CXXIX desejarem um pouco, podem pegar à vontade." Porém, Um dos anciãos disse: "Ou se afaste O máximo ninguém tocou no ouro, alguns nem mesmo olharam possível dos homens ou, rindo do mundo e dos ho- 80 81THOMAS MERTON A SABEDORIA DO DESERTO mens que O habitam, aja como um tolo diante muitas rei O Antigo e O Novo Testamentos inteiros." O an- coisas." cião disse-lhe: "Você preencheu O ar com palavras." O outro disse: "Eu copiei Antigo e O Novo Testa- CXXX mentos e tenho-os em minha cela." A este, O ancião respondeu: "Você preencheu sua janela com perga- Teófilo, de memória sagrada, bispo de Alexandria, minhos. Porém, não conhece Aquele que disse que O viajou até Cétia e irmãos disseram ao abade Pam- reino de Deus não existe em palavras, mas em poder? bo: "Diga uma ou duas palavras ao bispo, para que E também que não são aqueles que ouvem a Lei que sua alma seja edificada." O ancião respondeu: "Se ele serão justificados diante de Deus, mas aqueles que a não for edificado pelo meu silêncio, não há esperan- realizam." Então, OS irmãos perguntaram qual era O ça de que O seja pelas minhas palavras." caminho da salvação, e ancião respondeu-lhes: início da sabedoria é O temor a Deus e a humildade CXXXI com paciência." Um dos anciãos disse: "Um monge não deve in- quirir como esse ou aquele homem vive. Perguntas CXXXIV deste tipo afastam-nos de nossas orações e nos levam Conta-se sobre um grande ancião em Cétia, que, à difamação e à tagarelice. Não há nada melhor do sempre que OS irmãos estavam construindo uma cela, que manter-se em silêncio." chegava com grande alegria e construía as fundações, e não ia embora até que a cela estivesse pronta. Uma CXXXII vez, ele chegou muito triste para ajudar alguns irmãos O abençoado Macário disse: "Eis a verdade: se um a construir uma cela. Eles perguntaram: "Por que está monge considera O desdém como louvor, a pobreza triste, Pai?" Ele respondeu: "Meus filhos, Cétia será des- como riqueza e a fome como banquete, ele nunca truída, vi um fogo sendo ateado em Cétia, irmãos morrerá." saíram correndo com folhas de palmeira e apagaram O fogo. Novamente vi O fogo ateado e mais uma vez CXXXIII eles cortaram folhas de palmeira e O apagaram. Porém, a terceira vez, O fogo ganhou força e tomou toda Cé- Dois irmãos foram ao encontro de um ancião que tia e não pôde ser apagado. Por isso é que estou tris- vivia sozinho em Cétia. O primeiro disse: "Pai, deco- te e desolado." 82 83THOMAS MERTON A SABEDORIA DO DESERTO CXXXV nhe algum alimento para esses irmãos, pois estão muito fracos." Por fim, disse aos irmãos: "Se vocês O abade Oro disse ao seu discípulo: "Cuidado para não podem nem ao menos fazer isso, como poderei nunca trazer a esta cela as palavras de outros." ajudá-los? Tudo que posso fazer por vocês é rezar." CXXXVI CXXXVIII O abade Moisés disse: "Um homem deve agir como Um ancião disse: "Um homem que mantém a mor- morto para seu companheiro, pois morrer para O ami- te diante dos olhos todo tempo vence a covardia." go significa cessar de julgá-lo." CXXXIX CXXXVII Um dos irmãos disse ao abade Antão: "Gosta- Um soldado perguntou a um ancião se Deus per- ríamos que senhor nos dissesse algumas palavras doaria um pecador e ele lhe respondeu: "Diga-me, pelas quais pudéssemos ser salvos." Então O ancião meu caro, se seu manto estiver rasgado, você joga- disse-lhes: "Vocês ouviram as palavras das Escritu- rá fora?" O soldado respondeu: "Não, vou consertá-lo ras, elas devem bastar para vocês." Mas eles disse- e vesti-lo novamente." O ancião disse-lhe, então: "Se ram: "É que também gostaríamos de ouvir algo do você cuida de seu manto, por que Deus não teria pie- senhor, Pai." O ancião respondeu-lhes: "Você ouvi- dade de Sua própria imagem?" ram O Senhor dizer: 'Se alguém lhe bater numa face, ofereça-lhe também a outra." Eles responderam: "Is- CXL não podemos fazer." Então, O ancião disse: "Se vo- Certa ocasião, abade Silvano deixou sua cela cês não puderem oferecer a outra face, pelo menos tolerem a primeira agressão." E eles responderam: por algum tempo e seu discípulo Zacarias, junto com "Também não podemos fazer isso." O ancião disse: outros irmãos, afastaram a cerca da horta e a aumen- "Se vocês não podem nem mesmo fazer isso, pelo taram. Quando ancião voltou, e ao ver isto, pegou menos não saiam por aí agredindo OS outros mais sua pele de carneiro e começou a se preparar para do que gostariam que OS agredissem." Mais uma vez, partir. Porém eles se prostraram ao seus pés e implo- irmãos disseram: "Também não podemos fazer raram-lhe que dissesse por que estava fazendo aqui- isso." Então, O ancião disse ao seu discípulo: "Cozi- lo. O ancião disse: "Eu não entrarei nesta cela até que 84 85THOMAS MERTON A SABEDORIA DO DESERTO vocês retornem a cerca à sua antiga posição." Eles fi- CXLIII zeram isso e O ancião entrou na cela. Um dos anciãos disse: "Ore com atenção e, em breve, você endireitará seus pensamentos." CXLI Uma vez, dois irmãos foram até um ancião que ti- CXLIV nha O costume de não comer todos OS dias. Porém, Um irmão perguntou ao abade Pambo: "Por que quando viu OS dois irmãos, ficou muito feliz e convi- OS demônios me impedem de fazer bem ao meu vi- dou-os para jantar, dizendo: jejum tem sua recom- zinho?" E O ancião lhe disse: "Não fale dessa pensa, mas aquele que come por caridade cumpre dois Acaso Deus é mentiroso? Por que você simplesmente mandamentos, pois coloca de lado sua própria vonta- não admite não ser misericordioso? Deus não falou, de e sacia seus irmãos famintos." há muito tempo atrás, 'Eu lhes dei autoridade para pi- sarem sobre cobras e escorpiões, e sobre todo O po- CXLII der do Então, por que você não pisa sobre O Estabeleceram a seguinte regra em Cétia: todos de- espírito demoníaco?" veriam jejuar uma semana inteira antes da Páscoa. Po- rém, naquela semana, alguns irmãos foram ao encon- CXLV tro do abade Moisés do Egito e ele lhes cozinhou um O abade Pastor disse: "Não resida em um lugar em pouco de caldo de legumes. Quando clérigos de que outros O invejem, porque não crescerá neste uma igreja em Cétia viram a fumaça saindo da cela do lugar." abade, exclamaram: "Veja, Moisés está violando a re- gra e cozinhando em sua cela. Quando ele aparecer CXLVI por aqui, lhe diremos algumas verdades." Porém, no primeiro sábado, OS clérigos viram a grandiosa santi- O abade Pastor disse: "Se um homem agiu mal e dade do abade Moisés e lhe disseram: "Oh, abade Moi- não negá-lo, mas disser: 'Eu não O censure, por- sés, você violou O mandamento dos homens, mas ate- que assim irá quebrar a resolução de sua alma. E se ve-se firmemente aos mandamentos de Deus." você lhe disser: 'Não se sinta triste, irmão, mas preste atenção no futuro', você irá animá-lo a mudar sua vida." 86 87THOMAS MERTON A SABEDORIA DO DESERTO CXLVII nho em minha cela, levaram-me contra minha vonta- de e tornaram-me um clérigo na vila. Como não de- O abade Hiperéquio disse: "Um monge que não for capaz de controlar sua língua, quando estiver com sejava ficar lá, fugi para uma outra vila onde um ho- mem laico devoto ajudou-me a vender meu trabalho raiva, também não será capaz de controlar a paixão da luxúria." manual. No entanto, nessa mesma época, uma jovem meteu-se em problemas e ficou grávida. E quando seus parentes lhe perguntaram quem havia sido O res- CXLVIII ponsável, ela disse: 'O eremita de vocês cometeu este O arcebispo Teófilo, de sagrada memória, disse, crime.' Então, seus pais vieram e me prenderam, pen- quando estava à beira da morte: "Você é um homem duraram potes em meu pescoço e me fizeram percor- feliz, abade Arsênio, porque sempre manteve esta hora rer as ruas da vila, batendo-me e insultando-me. Eles diante dos olhos." diziam: 'Este monge estuprou nossa filha.' E, quan- do eles estavam quase a ponto de me matar com seus CXLIX bastões, um dos anciãos perguntou-lhes: 'Até quando Quando um homem pediu que O abade Agatão vocês ainda irão bater neste monge Mas como ele nos seguia e tentava me ajudar, eles também aceitasse um presente em forma de dinheiro, para usar em benefício próprio, Pai recusou, dizendo- O insultaram, que O fazia corar de vergonha. Di- lhe: "Não preciso disso, pois vivo do trabalho das mi- ziam: tudo que este homem fez você ainda nhas mãos." Porém, O outro continuou insistindo em quer E OS pais da menina afirmaram: 'Sob nenhuma hipótese nós libertaremos, a menos que a que aceitasse, dizendo: "Pelo menos pegue e dê aos necessitados." Agatão respondeu: "Isso significaria uma nossa filha seja sustentada e que alguém assuma a res- dupla vergonha para mim, uma vez que estaria rece- ponsabilidade no caso de ele foragir-se.' Então, quan- bendo dinheiro sem precisar e, ao dar dinheiro a ou- do fiz um sinal para que O ancião fizesse isso, ele deu tros, seria culpado de vaidade." sua garantia e me levou embora. Então, voltando à minha cela, dei-lhe todas as cestas de que dispunha CL para que ele as vendesse e comprasse comida para mim e minha esposa. Eu disse a mim mesmo: 'Bem, O abençoado Macário contou a seguinte história Macário, agora você tem uma esposa, e terá de traba- sobre si mesmo: "Quando eu era jovem e vivia sozi- lhar mais para alimentá-la.' Então, trabalhei dia e noi- 88 89THOMAS MERTON te para poder sustentá-la. Mas quando chegou a hora do pequeno infeliz vir ao mundo, ela sofreu vários dias com as dores do parto, sem conseguir dar à luz. E quando lhe perguntaram a respeito do que acontecia, ela disse: 'Eu acusei aquele eremita de um crime do qual era inocente. Porque foi O jovem que morava ao meu lado O responsável por minha condição.' Então, ao ouvir isso, aquele que me ajudara foi tomado de uma grande alegria e veio me contar toda a história. Pediu-me, então, que perdoasse a todos do povoado. Ao ouvir isso, temendo que viessem me assediar, eu ra- pidamente fugi e vim parar neste lugar. Este é O moti- VO da minha vinda a Cétia." 90

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