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1 Capítulo 3 – Sinapses Correntes que geram vida Augusto Valadão Junqueira Introdução Antes de mais nada, entenda o seguinte: uma "sinapse" é um local, uma região, um espaço físico. É o ponto de contato entre dois neurônios. Dependendo de onde for esse ponto em cada neurônio, poderemos ter diferentes tipos de sinapse: axodendrítica (ou seja, entre o axônio de um neurônio e o dendrito de outro – o tipo mais comum), axossomática (entre um axônio e um corpo neuronal, também chamado de soma) e ainda outros tipos menos comuns, como axoaxônicas, dendrodendríticas e somatossomáticas. Existem basicamente dois tipos de sinapse: as sinapses elétricas e as sinapses químicas. As químicas são as únicas que permitem modulação de informações, sendo as predominantes no ser humano. Quase tudo que estudaremos sobre sinapses será referente às sinapses químicas, bem mais sofisticadas e complexas. As sinapses elétricas servem como um mecanismo de sincronização celular, como veremos a seguir. Sinapses elétricas O termo-chave das sinapses elétricas é junção comunicante. As sinapses elétricas são representadas por junções comunicantes (GAP junctions) que tornam as células nervosas acopladas entre si, permitindo assim uma comunicação rápida e eficaz entre elas. A junção comunicante liga o citoplasma de cada célula, permitindo alto nível de interação intercelular. Forma-se, em geral, uma cadeia de células nervosas unidas pelas junções comunicantes, e portanto um potencial de ação gerado em uma delas irá se propagar imediatamente para as células vizinhas, indiferente a qualquer sentido de passagem da informação. Existem junções comunicantes unidirecionais (chamadas junções retificadoras), mas o mais comum são aquelas em que um sinal gerado se difunde em todas as direções. Nas células acopladas pelas sinapses elétricas não há processamento de informações, e portanto os potenciais gerados inicialmente se mantêm inalterados até o fim da cadeia. Há uma clara desvantagem nisso, já que dessa forma não há como modular sinais recebidos, condição sine qua non para todas Capítulo 3 – Sinapses 2 as avançadas funções neurais vistas no ser humano. Mas há também uma vantagem: a rapidez de transmissão permite a sincronização de numerosas populações de células acopladas, algo de grande importância, por exemplo, para a visão. Sinapses químicas Nas sinapses químicas há um espaço entre um neurônio e outro, a fenda sináptica. Isso gera dois "lados" na sinapse: uma membrana pré-sináptica, do neurônio por onde vem o impulso, e uma membrana pós-sináptica, do neurônio para onde o impulso seguirá. Não bastasse isso para diferenciá-las das sinapses elétricas, há ainda diversas especializações específicas nas membranas pré- e pós-sinápticas de cada sinapse química. As propriedades específicas das sinapses químicas permitem que elas sejam processadoras de sinais, enquanto as elétricas são apenas sincronizadores celulares. Enquanto na sinapse elétrica o agente transmissor é uma corrente iônica, na sinapse química a função de transmitir a mensagem entre um e outro neurônio será feita por um transmissor químico, o chamado neurotransmissor. As especializações das membranas sinápticas servirão para possibilitar a produção, liberação, captação e remoção desses neurotransmissores. No terminal pré-sináptico (onde se encontra a membrana pré-sináptica) há vesículas sinápticas, zonas ativas e grânulos de secreção. As vesículas sinápticas são estruturas de armazenamento para os neurotransmissores, que são pequenas moléculas produzidas no próprio terminal sináptico. As zonas ativas possuem duas funções principais: liberam cálcio no interior do terminal (como será visto adiante) e servem como ancoradouros para as vesículas sinápticas, durante o processo de transmissão sináptica que será descrito no próximo parágrafo. Nos grânulos de secreção ficam armazenados os neuromoduladores, que são produzidos no soma neuronal e então transportados ao terminal sináptico. As diferenças entre neurotransmissores e neuromoduladores serão discutidas mais adiante. A transmissão sináptica na sinapse química é um processo dígito- análogo-digital, isto é, começa de forma digital (impulso elétrico que vem pelo neurônio pré-sináptico), torna-se analógico (neurotransmissores transmitindo a mensagem na fenda sináptica) e volta a ser digital (um novo impulso elétrico é gerado pelo potencial de ação criado na membrana pós-sináptica). Analisemos esse fenômeno passo a passo. A corrente iônica (ou potencial de ação – PA) que chega na membrana pré-sináptica faz com que canais de 𝐶𝑎2+ voltagem- dependentes localizados nas zonas ativas sejam abertos, causando influxo de cálcio para o interior do terminal pré-sináptico. O aumento na concentração do Capítulo 3 – Sinapses 3 𝐶𝑎2+ intracelular faz com que as vesículas sinápticas se fundam com a membrana pré-sináptica, ancorando-se nas zonas ativas (por onde o cálcio entrou) para liberar seu neurotransmissor na fenda sináptica. Essa liberação pode ser feita de duas maneiras: a) por formação de um poro transitório quando a vesícula se une à membrana axoplasmática (membrana plasmática do terminal do neurônio); b) por exocitose completa da vesícula, que se fragmenta na fenda sináptica, com posterior endocitose que a faz voltar para o neurônio pré-sináptico. Uma vez liberados na fenda sináptica, os neurotransmissores se ligam a receptores moleculares presentes na membrana pós-sináptica. Os receptores (que podem ser ionotrópicos ou metabotrópicos) irão então iniciar diferentes processos que afetarão a membrana do neurônio pós-sináptico, gerando um novo potencial de ação que enviará a mensagem adiante, novamente na forma elétrica. As sinapses químicas, seguindo todo esse processo descrito, são estritamente unidirecionais. O neurotransmissor presente na fenda sináptica precisa também ser removido, ou passará a exercer uma ação tóxica. A remoção é feita por um dentre três processos, dependendo do neurotransmissor em questão: a) difusão lateral, em que o neurotransmissor naturalmente "escorrega" para os lados, até que saia da fenda; b) recaptação, em que o neurotransmissor volta ao neurônio pré-sináptico por ação de proteínas transportadoras específicas (principal meio de término das ações das catecolaminas); c) degradação, um processo enzimático que quebra o neurotransmissor em seus substratos (principal meio usado para terminar as ações da acetilcolina, que é degradada pela enzima acetilcolinesterase). Como se pode ver, na sinapse química ocorre um processo bem mais sofisticado que na sinapse elétrica. Isso permite que ela module as informações que passam por ela. É de fundamental importância que um fato nunca seja esquecido: a variação de efeitos que as sinapses químicas podem ter não depende tanto da variedade de neurotransmissores quanto depende da diferença entre os receptores. Ou seja, o que define a ação de uma sinapse não é o neurotransmissor liberado nela, mas sim o receptor que se encontra na membrana pós-sináptica. A acetilcolina, por exemplo, exerce função excitatória na placa motora (onde há receptores nicotínicos musculares), mas é inibitória quando liberada pelo sistema parassimpático no coração (onde prevalecem os receptores muscarínicos 𝑀2). Outro fator que também interfere no efeito de uma transmissão sináptica é a presença de neuromoduladores, que serão estudados ainda neste capítulo. Tendo em vista a importância dos receptores moleculares, veremos em mais detalhes os dois tipos existentes.Capítulo 3 – Sinapses 4 Receptores ionotrópicos x metabotrópicos O receptor molecular de uma transmissão sináptica serve não só para receber um neurotransmissor e gerar um novo potencial de ação no neurônio pós-sináptico (ação imediata), como também para modular a excitabilidade da própria sinapse, preparando-a para as próximas transmissões (ação antecipatória). Uma sinapse, assim, pode ser excitatória (em que há um potencial pós-sináptico despolarizante, aproximando do limiar o potencial de repouso da zona de disparo do neurônio) ou inibitória (em que há um potencial pós-sináptico hiperpolarizante, que afasta do limiar de disparo o potencial de repouso da membrana pós-sináptica). A forma como isso é feito, entretanto, difere os receptores em duas classes: os ionotrópicos e os metabotrópicos. Os receptores ionotrópicos são representados pelos receptores de canais iônicos. Eles têm uma ação mais rápida, pois são eles próprios os canais por onde a troca de íons (como o influxo de 𝑁𝑎+ e a saída de 𝐾+) se realizará no neurônio pós-sináptico. A ligação do neurotransmissor em um receptor ionotrópico causa neste uma mudança de conformação tridimensional (alosteria), abrindo assim o canal (isto é, o próprio receptor) e permitindo a passagem iônica através da membrana. Se o receptor fizer com que predomine o influxo de 𝑁𝑎+ para dentro da célula nervosa (o neurônio pós-sináptico), provocará a despolarização da membrana pós-sináptica e/ou irá gerar um potencial pós-sináptico excitatório (PPSE, já citado como despolarizante). Se, ao contrário, o receptor facilitar a entrada de 𝐶𝑙− ou a saída de 𝐾+, causará um estado de hiperpolarização: é o potencial pós-sináptico inibitório (PPSI, referido acima como hiperpolarizante). A transmissão sináptica rápida desses receptores é vista na maioria das ações motoras e dos processamentos perceptivos no sistema nervoso. Os receptores metabotrópicos são representados por três classes principais (receptores acoplados à proteína G, receptores ligados a quinase e receptores nucleares), que comandam os canais iônicos indiretamente. Neste caso, a função de receber e a função de executar são feitas por estruturas diferentes. O receptor irá apenas reconhecer o neurotransmissor e ativar uma molécula acoplada ao interior da membrana (como por exemplo a proteína G), que será então responsável pelas alterações pós-sinápticas que culminarão com a formação de um potencial de ação. A molécula intermediária do receptor metabotrópico pode fazer isso de duas maneiras: alterando diretamente a atividade de canais iônicos (utilizando-se para isso de proteínas efetoras que completam o efeito da transmissão sináptica, como acontece no caso dos receptores acoplados a uma proteína G efetora) ou ativando uma cascata de segundos mensageiros que acabarão por Capítulo 3 – Sinapses 5 fazer o mesmo (como acontece com os receptores acoplados a uma proteína G transdutora). A ação dos receptores metabotrópicos é mais lenta, relacionando- se a estados emocionais, humor, vigília e algumas formas simples de aprendizagem e memória. Neurotransmissores x neuromoduladores Revendo tudo o que já foi dito, podemos ter uma boa noção da diferença entre neurotransmissores e neuromoduladores: os neurotransmissores agem de forma imediata, passando adiante uma mensagem no momento em que são liberados na fenda sináptica. Eles podem criar potenciais excitatórios e inibitórios na sinapse, sim, mas neste caso mais por efeito dos receptores moleculares que do neurotransmissor; os neuromoduladores, por outro lado, como o nome sugere, focam-se na modulação do estado de excitabilidade sináptica, facilitando ou dificultando a ação dos neurotransmissores que serão eventualmente liberados. Os neurotransmissores, em sua maioria, são pequenas moléculas transmissoras sintetizadas no citoplasma do terminal sináptico e então capturadas e concentradas em vesículas (as vesículas sinápticas), onde ficam protegidas das enzimas de degradação presentes no citosol da célula nervosa. Exemplos consagrados são a acetilcolina (usada nas sinapses neuromusculares, nas sinapses pré-ganglionares do sistema nervoso vegetativo e nas pós-ganglionares da divisão parassimpática, além de diversas sinapses em todo o encéfalo, sendo produzida no núcleo basal de Meynert e liberada então para todo o córtex cerebral), as aminas biogênicas (representadas pelas catecolaminas – dopamina, noradrenalina e adrenalina –, a serotonina e a histamina), os aminoácidos transmissores (glutamato, GABA e glicina) e as purinas (o ATP – famoso por sua função de gerar energia ao ser quebrado nas mitocôndrias das células, o que, como estamos vendo agora, não é sua única função – e um de seus substratos, a adenosina). Em negrito neste parágrafo estão alguns dos neurotransmissores mais conhecidos e estudados. Os neuromoduladores não servem para criar um potencial de ação imediato. Eles apenas alteram o estado da sinapse: modulam a liberação de transmissores, a sensibilidade dos receptores ou a excitabilidade elétrica da célula pós-sináptica. Não são "pequenas moléculas", como dito para os neurotransmissores, mas sim neuropeptídeos (grandes moléculas que só podem ser produzidas no corpo neuronal, sendo então levadas ao terminal sináptico, onde ficarão nos grânulos de secreção) ou gases (como o NO, produzidos apenas no momento de sua liberação, por não ser possível retê-los em nenhuma estrutura). Os neuromoduladores se ligam a receptores Capítulo 3 – Sinapses 6 metabotrópicos e, através da molécula intermediária (proteína G ou uma tirosina quinase, por exemplo), acabam por ativar segundos mensageiros (como o AMPc) que afetarão a célula nervosa pós-sináptica após uma cascata de reações. Placa motora: acetilcolina A sinapse neuromuscular é um dos locais mais bem elucidados acerca da transmissão sináptica. Como é um contato nervo-músculo, trata-se de uma sinapse do SNP. Sendo assim, há uma importante peculiaridade a ser notada: a sinapse não será entre dois neurônios, como descrito até aqui, mas sim entre um neurônio e uma fibra muscular. A região da fibra muscular especializada para sediar uma sinapse é análoga à "membrana pós-sináptica", por ser também o lado final da sinapse. Essa região é chamada de placa motora. É simples de ser estudada e entendida, pois nela há basicamente um neurotransmissor (a acetilcolina) e um tipo de receptor (o receptor nicotínico muscular, que é um exemplo de receptor ionotrópico), ao contrário das sinapses no SNC (que envolvem diversos neurotransmissores e diferentes receptores simultaneamente). Um neurotransmissor, um receptor, um efeito. É assim que funciona a junção neuromuscular: ativação direta. O clássico liga/desliga, como se fosse uma espécie de interruptor. A fibra muscular está ou contraída ou relaxada; é verdade que um músculo pode possuir diferentes graus de contração, mas isso acontece porque em um músculo existem diversas fibras: a quantidade de fibras contraídas é o que define o estado de contração do músculo como um todo. Vista como unidade isolada, a fibra muscular permanece toda contraída ou toda relaxada. Quando um potencial de ação (PA) chega ao terminal nervoso de um neurônio motor pré-sináptico, causa a liberação de acetilcolina (ACh) na fenda sináptica pelos processos já explicados. Atingindo então a placa motora do outro lado da fenda sináptica, a ACh é captada pelos receptores nicotínicos (ionotrópicos) e faz com que eles se abram, liberando o fluxo de íons através da fibra muscular pós-sináptica. O influxoresultante de íons 𝑁𝑎+ produz o potencial sináptico despolarizante chamado potencial da placa motora, que é o que gera a corrente elétrica para causar a contração do músculo. Terminada a transmissão, a ACh é rapidamente degradada pela enzima acetilcolinesterase liberada na fenda sináptica. A placa motora volta ao seu potencial de membrana (potencial de repouso) e a contração termina. Importante notar que os receptores nicotínicos da placa motora são canais dependentes de ligantes, e por isso bem diferentes dos canais Capítulo 3 – Sinapses 7 voltagem-dependentes, porque: a) os canais voltagem-dependentes costumam ser seletivos para um tipo específico de íon (passagem de 𝑁𝑎+ ou 𝐾+), precisando ser ativados conjuntamente em sequência para gerar o potencial de ação corretamente, enquanto o canal dependente de ligante gera sozinho os potenciais da membrana pós-sináptica (a placa motora, no caso) ao permitir passagem tanto de 𝑁𝑎+ como de 𝐾+), com permeabilidade praticamente igual; b) o influxo de 𝑁𝑎+ nos canais voltagem-dependentes é um processo chamado de regenerativo, pois quanto mais canais se abrem, mais canais se abrem: uma vez iniciado o potencial de ação, ele é propagado até que todos os canais estejam abertos, seguindo o princípio do tudo-ou-nada. Os canais dependentes de ligantes, por outro lado, abrem-se em relação direta com a quantidade de ACh disponível. A despolarização produzida nesse caso não leva à abertura de mais canais ativados pelo transmissor. Para se ter uma ideia, se os canais nicotínicos musculares fossem voltagem-dependentes, toda a musculatura de uma dada região iria se contrair involuntariamente quando tentássemos contrair apenas um músculo – o que obviamente não acontece. A sinapse neuromuscular descrita até aqui foi aquela referente à musculatura estriada esquelética (voluntária). Quando se diz placa motora refere-se apenas aos músculos esqueléticos, mas como sabemos existem também dois outros tipos de musculatura – e em ambos a ACh é também utilizada. A acetilcolina, quando usada no coração pelo sistema parassimpático, encontra outro tipo de receptor nas células musculares cardíacas: o receptor muscarínico 𝑀2, um receptor metabotrópico hiperpolarizante (ou seja, de ação indireta e inibitória: completamente oposto ao nicotínico) responsável pelo efeito de bradicardia da ação parassimpática. A ACh é também usada pelo sistema parassimpático na musculatura lisa, onde há uma associação entre os dois tipos de receptores colinérgicos. Sinapses no sistema nervoso central A sinapse neuromuscular difere das sinapses centrais basicamente por três motivos: 1) uma fibra muscular é geralmente inervada por um único neurônio motor, ao passo que uma célula nervosa central conecta-se com centenas de outros neurônios; 2) as aferências recebidas pelas células musculares são sempre excitatórias, enquanto as células nervosas centrais recebem também impulsos inibitórios; 3) na placa motora é usado apenas um tipo de neurotransmissor, a acetilcolina, que ativa um único tipo de receptor, o nicotínico. No SNC diversos transmissores agem ao mesmo tempo em uma única célula, mediando sua atividade por diferentes canais iônicos. Os Capítulo 3 – Sinapses 8 neurônios centrais, portanto, diferentemente das fibras musculares, precisam integrar diversas aferências em uma única resposta coordenada. O neurotransmissor excitatório mais comum no SNC é o glutamato, enquanto o inibitório mais usado é o GABA. Veremos como funcionam os receptores de cada um. Glutamato e seus receptores: NMDA e não-NMDA Existem receptores glutametérgicos (que reconhecem o glutamato) tanto ionotrópicos (nos quais ele age de forma excitatória) quanto metabotrópicos (onde pode agir produzindo tanto excitação quanto inibição). Os receptores ionotrópicos são os que nos interessam agora. São divididos em três tipos: o NMDA (assim chamado por responder ao agonista glutamatérgico N-metil-D- aspartato), o AMPA e o cainato. Esses últimos dois são geralmente agrupados, por serem muito semelhantes, sendo chamados em conjunto de não-NMDA. O receptor glutamatérgico não-NMDA é o responsável por tirar a membrana de seu potencial de repouso, sendo permeável tanto ao 𝑁𝑎+ como ao 𝐾+ e funcionando de maneira muito parecida com a vista na placa motora (que é o padrão encontrado na maioria dos receptores ionotrópicos). O receptor NMDA possui peculiaridades marcantes que merecem ser analisadas, diferenciando-o não só do não-NMDA como dos demais receptores ionotrópicos vistos no SN. Primeiro, ele é um canal catiônico de alta condutância, sendo permeável também ao 𝐶𝑎2+, ao passo que pelo não-NMDA passam apenas o 𝑁𝑎+ e o 𝐾+. Segundo, ele é ao mesmo tempo um canal dependente de ligante e um canal voltagem-dependente. O ligante para que ele funcione precisa ser uma combinação: não basta ser glutamato, é preciso também que haja a presença da glicina, um outro neurotransmissor, formando um processo de cotransmissão (como será visto adiante). A voltagem necessária para que ele se ative é também por um motivo diferente do habitual: normalmente, um canal voltagem-dependente precisa da corrente elétrica porque assim ele sofre alterações conformacionais por um sensor de voltagem intrínseco à membrana; nos canais de NMDA, há uma partícula bloqueadora extrínseca (o 𝑀𝑔2+), que se liga a um sítio na região de abertura do canal e o fecha como uma rolha, bloqueando o fluxo de corrente. Quando a membrana é despolarizada, o 𝑀𝑔2+ é expelido do canal por repulsão eletrostática, permitindo que o canal se abra. Essa despolarização inicial necessária é geralmente causada pelos receptores não-NMDA, de funcionamento mais simples e ativação mais rápida. Os receptores não-NMDA, portanto, são responsáveis pelo "começo" da transmissão glutamatérgica (a excitação propriamente dita), enquanto os NMDA, mais lentos e de ação Capítulo 3 – Sinapses 9 prolongada (principalmente pela presença dos canais de 𝐶𝑎2+), assumem a função de manter os potenciais de excitação por mais tempo. Esse processo é importante, por exemplo, em alguns mecanismos da aprendizagem. GABA e seus receptores: GABAA e GABAB Enquanto a transmissão glutamatérica é o mais importante exemplo da ação de receptores despolarizantes (excitatórios), a transmissão GABAérgica é o principal exemplo do funcionamento visto nos receptores hiperpolarizantes (inibitórios). O GABA age em dois receptores: o GABAA e o GABAB. O primeiro é ionotrópico e o segundo metabotrópico. Ambos são inibitórios, mas por motivos diferentes. O GABAA é um receptor que serve como canal para a passagem de cloreto. O influxo de 𝐶𝑙− é o que causa a hiperpolarização da célula pós- sináptica. O GABAB, por sua vez, ativa uma cascata de segundos mensageiros (através de uma molécula intermediária como a proteína G, como vimos sobre os receptores metabotrópicos) que ativam canais de 𝐾+. A saída de 𝐾+ da célula, nesse caso, é o que causa a negatividade intracelular (isto é, o estado de hiperpolarização). Integração sináptica Tendo em mente todas as informações dadas sobre as sinapses químicas, há ainda um fator a ser considerado: "os potenciais sinápticos produzidos por um único neurônio pré-sináptico são caracteristicamente pequenos e não são capazes de excitar uma célula pós-sináptica suficientemente para que esta alcance o limiar para um potencial de ação" (Kandel et al., 2003). Tem-se assim uma questão que não pode ser resolvida simplesmente pela cotransmissão (uso de dois ou mais neurotransmissoresna mesma sinapse, como glutamato e glicina) nem pela coativação (funcionamento conjunto de dois ou mais receptores, como o não-NMDA e o NMDA). Esse problema, visto principalmente no SNC, é resolvido por dois fatores: o espaço e o tempo. A somação espacial (vários neurônios pré-sinápticos agindo para estimular um mesmo neurônio pós-sináptico ao mesmo tempo) e a somação temporal (um ou mais neurônios pré-sinápticos estimulando um neurônio pós-sináptico na mesma região várias vezes, até que ele se ative) são os dois mecanismos responsáveis pela produção do potencial de ação na transmissão sináptica do SNC. Capítulo 3 – Sinapses 10 Há, entretanto, um outro problema: nem todas essas somações são qualitativamente iguais. Alguns neurônios excitam, outros inibem, outros modulam cada hora de uma forma. Essas aferências competidoras que um mesmo neurônio recebe são nele integradas por um processo chamado integração neuronal ou sináptica. Essa integração reflete a tarefa com a qual o sistema nervoso é constantemente confrontado: a tomada de decisão. "Uma célula nervosa, em qualquer dado momento, tem duas opções: disparar ou não disparar um potencial de ação" (Kandel et al., 2003). Ou seja, a implicação final de tudo que vimos neste capítulo foi já colocada por Shakespeare através de seu personagem Hamlet há 400 anos atrás: ser ou não ser, eis a questão. "Quem não souber povoar sua solidão, também não conseguirá isolar-se entre a gente." — Charles Baudelaire, poeta francês do século XIX. Referências 1. Bear MF, Connors BW, Paradiso MA. Neurociências: Desvendando o Sistema Nervoso. 3rd ed. Porto Alegre: Artmed; 2008. 2. Guyton AC, Hall JE. Tratado de Fisiologia Médica. 11th ed. Rio de Janeiro: Elsevier; 2006. 3. Haines DE. Neurociência Fundamental. 3rd ed. São Paulo: Elsevier; 2006. 4. Kandel ER, Schwartz JH, Jessel TM. Princípios da Neurociência. 4th ed. Barueri: Manole; 2003. 5. Lent R. Cem Bilhões de Neurônios. 1st ed. São Paulo: Atheneu; 2005.
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