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A ESNOGA DA BAHIA - RonaldoVainfas e AngeloAssis

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1 
A ESNOGA DA BAHIA 
Cristãos-novos e criptojudaísmo no Brasil quinhentista 
 Ronaldo VAINFAS 
Angelo A. F. ASSIS 
 
(ASSIS, Angelo. A. F.; VAINFAS, Ronaldo. “A Esnoga da Bahia: Cristãos-novos e 
criptojudaísmo no Brasil quinhentista”. In: GRINBERG, Keila. (Org.). Os Judeus no Brasil: 
ensaios sobre inquisição, imigração e identidade. 1ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 
2005, p. 43-64.) 
 
RESUMO 
 
O artigo examina a ocorrência do criptojudaísmo no Brasil Colonial como fenômeno de 
mescla cultural. Analisa o papel dos cristãos novos na colonização portuguesa durante o século 
XVI e o problema da identidade religiosa dos cristãos novos. Neste sentido, os autores 
examinam o caso particular da “sinagoga” de Matoim, na Bahia, e a perseguição de Ana 
Rodrigues, velha senhora presa pelo Santo Ofício acusada de “judaizante” e condenada à 
fogueira, embora falecida no cárcere inquisitorial em 1593. 
 
ABSTRACT 
 
The article examines the ocurrence of criptojudaism in Colonial Brazil as a 
phenomenon of cultural mixture. It analyses the New Christians role in the portuguese 
colonization during the XVI
th
 century and the problem of religious identity of the New 
Christians. To achieve this the authors examine the particular case of the Matoim’s 
“synagogue”, in Bahia, and the persecution of Ana Rodrigues, an old woman who was arrested 
by the Holy Office, accused as “judaizante” and comndened to be burn, although she was died 
in the inquisitorial prison in 1593. 
 
 
 
É já muito conhecido, embora pouco estudado, o papel decisivo desempenhado pelos 
cristãos novos portugueses no povoamento e colonização do Brasil. Ainda nos inícios do 
século XVI, quando o litoral brasílico servia fundamentalmente como escala para a carreira da 
Índia, foi a Fernando de Noronha ou Loronha que D. Manuel concedeu o privilégio de 
arrendar o comércio de pau-brasil, madeira tintória que consistia no principal negócio 
português na sua porção territorial da América. Fernando de Noronha talvez fosse cristão novo 
 sobre o que há controvérsia  mas liderava, de todo modo, um consórcio de cristãos novos 
e receberia, mais tarde, em 1504, a bela ilha do litoral pernambucano, concedida como 
donataria pelo mesmo rei. 
 
 
2 
Décadas depois, iniciada a ocupação territorial e a exploração econômica do açúcar, 
sobretudo no nordeste, a importância dos cristãos novos seria notável. Em seu importante livro 
A Inquisição Portuguesa e a sociedade colonial
i
, Sônia Siqueira apresenta dados que 
permitem afirmar que, entre 1579 e 1620, eram 27 os senhores de engenho de origem cristã 
nova na Bahia e em Pernambuco, de um total de 85 referidos nos papéis inquisitoriais. Índice 
expressivo de cerca de 32% e possivelmente incompleto, pois não inclui, nem poderia fazê-lo, 
os dados dos livros extraviados na visitação quinhentista do Santo Ofício ao Brasil. Mas vale 
dizer que, dentre a maioria de senhores de engenho cristãos velhos, não poucos eram casados 
com mulheres de origem conversa. Mulheres brancas, vale lembrar, em terra onde elas 
escasseavam para esposar fidalgos ou varões grados da terra, e mulheres bem dotadas, isto é, 
capazes de transferir riqueza para os lusitanos do trópico através do casamento. 
Estudando os cristãos novos na Bahia em livro clássico de mesmo título, Anita 
Novinsky os viu nos mais variados ofícios e ocupações. Muitos artesãos, pequenos lavradores, 
mas alguns com posses e engenhos. Vieram muitos sem grandes recursos, mas recebendo 
ajuda financeira de parentes ou amigos já estabelecidos, conseguiram alguns ascender 
socialmente, adquirindo engenhos e escravos. Novinsky acentua, aliás, que o traço distintivo 
dos cristãos novos no Brasil, à diferença dos que migraram para o norte da Europa ou para o 
Levante, residiu exatamente na sua miscibilidade. O cristão novo “miscigenou-se com a 
população nativa, afirma a autora, criou raízes profundas na nova terra, integrando-se 
plenamente na organização social e política local. Esta organização, ao mesmo tempo que 
permitiu a integração e acomodação do cristão novo, sofreu reciprocamente, deste, profunda 
influência”ii. 
No caso de Pernambuco, apesar da diversidade de papéis e funções que exerciam os 
cristãos novos na economia e sociedade da capitania, foram eles mais numerosos na direção da 
economia açucareira, havendo vários registros de grandes mercadores, traficantes de escravos 
e senhores de engenho de origem conversa. Evaldo Cabral de Mello assim o sugere em seu O 
nome e o sangue
iii
, lembrando que segmento importante da chamada açucarocracia 
pernambucana era de origem cristã nova, a começar por Duarte de Sá, o trisavô de Filipe Paes 
Barreto, personagem central do autor, homem que, no final do século XVI possuía boa fazenda 
e cargo de vereador na Câmara de Olinda. 
A afluência de cristãos novos ao Brasil no meado do século XVI, onde chegaram 
muitas vezes em família, à diferença do padrão migratório português essencialmente 
masculino, foi obviamente estimulada pelas oportunidades que se abriam com a exploração do 
açúcar e, posteriormente, com o tráfico atlântico de escravos africanos. Mas não resta dúvida 
 
 
3 
de que foi muitíssimo motivada pelo medo de perseguições inquisitoriais, recém instalado o 
Santo Ofício em Portugal. É mesmo interessante constatar a quase coincidência de datas: em 
1532, D. João III instituiu o regime de capitanias hereditárias, começando pela de São Vicente, 
e em 1536 o mesmo rei instalaria, com autorização pontifícia, o Santo Ofício de Portugal. D. 
João III, celebrizado como o rei “colonizador”, foi também o monarca que inaugurou as 
perseguições religiosas contra a comunidade conversa do reino. 
É conhecida, a propósito, a ambigüidade da política de D. Manuel em relação aos 
judeus e, depois, em relação aos cristãos novos durante o seu reinado. Foi D. Manuel quem 
decretou a conversão forçada de todos os judeus do reino, os “batizados de pé”, em 1496, 
impedindo que saíssem de Portugal os que relutavam em adotar o cristianismo. Decretou a 
conversão dos judeus em parte por pressões espanholas e movido por interesses dinásticos, 
como se sabe, sobretudo depois que milhares de judeus expulsos da Espanha, em 1492, 
migraram para o reino português. 
Não obstante, inibiu as iniciativas favoráveis à instalação da Inquisição em Portugal, 
opôs-se à adoção de estatutos de limpeza de sangue à moda espanhola, reprimiu manifestações 
de hostilidade contra os conversos. Concedeu privilégios econômicos e políticos a recém 
conversos, como no caso de Fernando de Noronha e seus consorciados de origem judaica. 
Antônio José Saraiva
iv
 destacou muito bem, em relação a este reinado, as oportunidades que se 
abriram aos cristãos novos, alçados alguns a cargos políticos nas municipalidades ou órgãos 
mais altos, beneficiários outros de privilégios comerciais, ascendendo muitos, como letrados, a 
posições na burocracia e mesmo no clero  fenômeno que também ocorrera na Espanha ao 
longo do século XV. 
Falecido D. Manuel e ascendendo ao trono D. João III, pressões da Igreja e das frações 
mais tradicionalistas da nobreza portuguesa levaram o rei a postular o estabelecimento da 
Inquisição junto ao Papado, processo muito tortuoso que só em 1536 chegaria a seu termo. Em 
1540 começaram de fato as perseguições e os autos de fé, as humilhações públicas e a 
execução de cristãos novos nas fogueiras inquisitoriais. Não resta dúvida de que isto estimulou 
a migração de cristãos novos para o Brasil, onde não havia Inquisição, exceto pelo inócuo 
poder inquisitorial confiado ao Bispo da Bahia. Poder inquisitorial raras vezes exercido e que, 
na verdade, não atingiu os cristãos novos. 
Ângela Maiav
 observou que, até a Visitação de 1591-1595, cristãos novos e velhos 
conviviam muito bem no Brasil. Não raro unidos pelo matrimônio, além de comungarem da 
mesma situação de colonos na estreita faixa litorânea ocupada pelos portugueses, espremidos 
entre a ameaça de piratas no mar e o assalto dos nativos do interior. O elevado índice de 
 
 
4 
casamentos mistos, os negócios e sociabilidades entre cristãos velhos e novos no limiar da 
colonização comprovam perfeitamente que os preconceitos antisemitas, cada vez mais fortes 
no reino, no Brasil se viram afrouxados. Teria sido a Visitação encabeçada por Heitor Furtado 
de Mendoça o momento de inflexão neste quadro de convivência, sociabilidade e relativa 
coesão entre cristãos velhos e novos, mas antes de tudo colonos. 
A visitação de 1591 alcançou os cristãos novos do Brasil e deteriorou alianças que até 
então pareciam sólidas. Incluiu-se a visitação num plano mais geral de expansão da Inquisição 
portuguesa no ultramar, sobretudo no Atlântico, pois como nos lembra Francisco 
Bethencourt
vi
, o Santo Ofício português até então só atuava no reino, à exceção do Tribunal de 
Goa, instituído em 1560 com jurisdição sobre o Oriente e costa oriental africana. As 
conquistas do mundo atlântico permaneceram livres até fins do século XVI quando partes 
d’África, do Brasil e das ilhas atlânticas foram visitadas em nome do Santo Ofício. Deu-se 
uma mudança, portanto, nas estratégias inquisitoriais portuguesas, mas convém lembrar que tal 
ocorreu já no tempo de Felipe II, Portugal sob a dominação hispânica. Não por acaso as 
visitações ocorreram neste tempo em que o Inquisidor-mor do reino, o Cardeal Arquiduque 
Alberto d’Áustria, era preposto de Felipe II e Vice-Rei de Portugal. 
Heitor Furtado chegou à Bahia autorizado a processar em última instância os desvios 
da fé menos gravosos, apesar de heréticos, aos olhos da Inquisição, a exemplo da bigamia, 
sodomia, blasfêmias e assemelhados. No caso dos delitos tipicamente religiosos contra a fé 
católica, deveria tão somente instruir os processos e mandar os réus presos para Lisboa, sendo 
este principalmente o caso de cristãos novos com forte presunção de heresia judaica. 
Foi neste contexto que emergiram as denúncias contra os cristãos novos radicados no 
Brasil, o que nos conduz antes de tudo à difícil questão sobre se os cristãos novos, ou parte 
deles, realmente judaizavam ou se, pelo contrário, davam mostras inequívocas de integração à 
comunidade católica. É bastante conhecida a polêmica travada entre António J. Saraiva e 
Révah a propósito do controvertido Inquisição e cristãos novos. Foi neste livro que Saraiva 
sustentou que, após a conversão forçada dos judeus em Portugal, uma vez que D. Manuel não 
impôs sistemas nítidos de discriminação, nem tampouco atuou para implantar o Santo Ofício 
no reino, os cristãos novos tendiam rapidamente a se integrar à sociedade cristã. Estariam os 
conversos em avançado processo de aculturação que somente se complicou com a instalação 
do Santo Ofício e a conseqüente discriminação dos portadores de “sangue infecto” ou “gente 
da nação”, como se dizia à época. Não fosse a Inquisição e não haveria o problema judaico em 
Portugal, afirma o autor, de modo que o criptojudaísmo não passava de uma invenção dos 
inquisidores, que arrancavam confissões sob tortura de indivíduos no fundo católicos. Daí a 
 
 
5 
célebre afirmação do autor de que a Inquisição era uma “fábrica de judeus”. Falsos judeus, 
portanto, no que toca à religiosidade, embora o fossem por origem. 
Contra esta tese bateu-se I. Révah, historiador tarimbado na pesquisa de processos 
inquisitoriais contra cristãos novos em Portugal durante os quase 300 anos do Tribunal. E, 
através de inúmeros exemplos, bem como da problematização das fontes inquisitoriais, Révah 
sustentou que o criptojudaísmo era ou podia ser um fenômeno concreto e real, admitindo que 
muitos indivíduos ou famílias de fato mantinham tradições e ritos judaicos na clandestinidade. 
Eram, portanto, judaizantes, e os que por isso morreram na fogueira, morreram como mártires 
do judaísmo e não do catolicismo. 
Trata-se de questão altamente complexa que não temos condição de aprofundar nos 
limites de um artigo, mas valeria sublinhar apenas alguns pontos. É caso de dizer, em primeiro 
lugar, que não convém polarizar o assunto em termos absolutos e decidir sobre se havia ou não 
criptojudaísmo entre os cristãos novos, senão de relativizar a questão antes de tudo no tempo. 
Presumir, assim, que quanto mais próxima da conversão forçada, maior a possibilidade de 
ocorrência do criptojudaísmo que, com o passar dos séculos tendeu a refluir. Seria esta apenas 
uma tendência, sem negar casos de conversos sinceros no início do século XVI ou de apóstatas 
assumidos no século XVII, como o Manoel Bocarro “francês”, médico e astrólogo que fugiu 
de Portugal e tornou-se judeu na Itália
vii
. 
Em segundo lugar, vale considerar as variações geográficas, o contraste entre o reino e 
o ultramar e as diferenças regionais de todo tipo. Goa, Brasil, África, o estilo e os modos de 
viver e pensar variaram muito, conforme as experiências de contatos culturais tão díspares 
como amplas eram as “conquistas” de Portugal no âmbito do império. E o que dizer do 
criptojudaísmo de Pernambuco, após a expulsão dos holandeses, se no tempo dos flamengos, 
muitos judeus de Amsterdam se instalaram na capitania, erigiu-se uma sinagoga no Recife e 
muitos cristãos novos abraçaram um judaísmo que nunca haviam conhecido? 
Este último exemplo é bem ilustrativo da complexidade do fenômeno marrano no 
mundo ibero-americano e da necessidade de contextualizá-lo no tempo e no espaço antes de 
proceder a qualquer generalização. No Pernambuco holandês, os cristãos novos já 
“assimilados”, porém estigmatizados pela “nódoa de sangue”, sofreram profundo impacto com 
a chegada de judeus de Amsterdam, os judeus conversos de origem portuguesa, sefarditas que 
haviam revitalizado o judaísmo na Holanda
viii
. Muitos abjuraram do catolicismo que 
professavam, circuncidaram-se, passaram a freqüentar a sinagoga do Recife, tornaram-se, 
enfim, “judeus de sinal”, ou seja, judeus publicamente assumidos. E se é verdade que não se 
deve exagerar a tolerância calvinista em face do judaísmo  pois um ponto em comum entre 
 
 
6 
padres católicos e predicantes flamengos, que ali viviam às turras, era a zombaria em relação 
aos judeus , não houve perseguições, nem inquisiçõesix. Noutras palavras, se no meado do 
século XVII boa parte da comunidade cristã nova portuguesa só era judaica pela ascendência, 
o episódio da dominação flamenga foi poderoso o suficiente para reverter a assimilação e 
provocar forte questionamento de identidade individual na “gente da nação”. 
Em terceiro lugar, seria o caso de indagar sobre que tipo de judaísmo secreto era ou 
podia ser cultivado pelos cristãos novos nas suas “esnogas”, como então se dizia. O judaísmo 
secreto que transborda dos processos do “alfaiate de Setubal” ou mesmo de Gonçalo Annes, o 
Bandarra (o “profeta do sebastianismo”, que parece ter sido cristão velho)  ambos 
processados em Portugal, nos anos 1540  é um judaísmo de leitura e discussão de livros 
sagrados, da Torah, dos Salmos. É um judaísmo letrado e praticado fundamentalmente por 
homens. O judaísmo que mais aparece nos processos inquisitoriais a partir de fins do século 
XVI é um judaísmo ritual, ligado a cultos funerários, interdições alimentares, formas de benzer 
heterodoxas, e nele as mulheres parecem desempenhar papel fundamental. 
Para ilustrar a complexidade deste processo de aculturação, bem como da ação 
deletéria do Santo Ofício em região colonial, vale comentar o caso célebre de Ana Rodrigues,na verdade a única cristã nova do Brasil condenada à fogueira dentre os judaizantes presos 
pelo visitador Heitor Furtado de Mendonça
x
. 
Ana Rodrigues chegara ao Brasil em 28 de dezembro de 1557, acompanhando o 
marido, Heitor Antunes na armada em que vinha o Governador Mem de Sá. Com o casal, 
vieram também alguns parentes, como a filha Violante Antunes, dentre outros. Não obstante 
cristão novo, Heitor Antunes gozava da confiança de Mem de Sá, que citou seu testemunho 
em certo relatório enviado a D. Sebastião (1572) e a quem favoreceu em certa demanda que 
rendeu ao cristão novo as terras de Matoim, onde construiu seu engenho. Também era visto 
constantemente ao lado do governador-geral nas visitas de inspeção às obras para a construção 
da igreja da Sé de Salvador, outro indício da sua proximidade com Mem de Sá. Heitor Antunes 
era mercador de posses e, segundo Elias Lipiner
xi
 possuía o título de cavaleiro d’El Rei. 
Orgulhava-se ainda de se dizer descendente dos Macabeus, célebre família de judeus descritos, 
no Antigo Testamento, como heróis da resistência judaica contra os governantes selêucidas da 
Palestina. O casal teve ao todo sete filhos, alguns nascidos na Bahia, outros em Portugal, e 
todos eles, varões ou mulheres  à exceção de Nuno Fernandes, que permanecia solteiro à 
época da I visitação , se casaram com cristãos velhos. 
 
 
7 
Homem de posses, em 1560 já atuava o patriarca dos Antunes como rendeiro dos 
açúcares, controlando a cobrança dos dízimos relativos ao comércio do produto, sendo 
responsável pelo pagamento dos ordenados do bispo e cabido da Bahia. Gabriel Soares de 
Souza assim descreveria, em 1587, a pujança das propriedades da família em Matoim: “Na 
boca desta ribeira está uma ilha muito fresca, que é de Nuno Fernandes; a uma légua está um 
engenho de bois, de que é senhorio Jorge Antunes, o qual está muito petrechado de edifícios e 
casas, e tem uma igreja de Nossa Senhora do Rosário”. E continua nosso cronista, agora se 
referindo a outro dos engenhos pertencentes aos descendentes de Heitor Antunes: “Saindo pela 
boca de Matoim fora, virando sobre a mão direita, vai a terra fabricada com fazendas e 
canaviais dali a meia-légua onde está outro engenho de Sebastião de Faria, de duas moendas 
que lavram com bois, o qual tem grandes edifícios assim do engenho, como de casas de 
purgar, de vivenda e de outras oficinas e tem uma formosa igreja de Nossa Senhora da 
Piedade, que é freguesia deste limite; a qual fazenda mostra tanto aparato da vista do mar que 
parece uma vila”xii. 
As relações de matrimônio, compadrio, cunhadio envolvendo este clã de Matoim, bem 
como a intensa sociabilidade que delas resultava, é um exemplo típico do cotidiano dos 
cristãos novos na Colônia, antes da chegada do Santo Ofício. Laços muito fortes uniam 
cristãos novos e velhos no Brasil, atenuando-se o preconceito que, na metrópole, alimentava a 
Inquisição de réus. Se nas terras de Matoim se fazia a “esnoga” que tantos acusariam, em 1591 
 e tudo parece indicar que a família realmente judaizava , durante décadas isto não 
constituiu problema para ninguém. 
O grupo de convívio familiar incluía cristãos velhos, os maridos das filhas de Heitor e 
Ana, as esposas cristãs velhas dos filhos varões, sem contar as antigas relações que Heitor 
Antunes mantivera com o Governador-geral no meado do século. À guisa de exemplo dos 
laços familiares entre as “duas comunidades”, vale dizer que Isabel Antunes, filha de Heitor 
Antunes e Ana Rodrigues, era casada com o cristão velho Antônio Alcoforado, cuja filha, Ana 
Alcoforado, era casada com o cristão velho Nicolau Faleiros de Vascogoncelos. Sua irmã, 
Leonor Antunes, o era com o cristão velho Henrique Muniz Teles; Violante Antunes, casara 
com o cristão velho Diogo Vaz Escobar, e Beatriz Antunes, outra irmã, com o cristão velho 
Bastião de Faria, cuja filha Custódia de Faria, mulher de 23 anos em 1592, era já casada com o 
cristão velho Bernardo Pimentel de Almeida. Dos filhos homens do casal, Jorge Antunes fora 
casado com a cristã velha Joana Bithencourt de Sá, enquanto Álvaro Lopes Antunes era casado 
com a também cristã velha Isabel Ribeiro. Nuno Fernandes, que tentara casar-se com uma 
moçoila de uma família amiga, seria impedido pela mãe, por ser a candidata cristã-nova. 
 
 
8 
Todos moravam nos engenhos de Matoim, configurando uma típica família patriarcal e 
extensa que, no caso, congregava cristãos velhos e novos. 
A chegada do Visitador Heitor Furtado de Mendonça à Bahia rompeu abruptamente 
este quadro de equilíbrio e convivência que temos descrito. Heitor Antunes era já falecido em 
1591, mas nem por isso deixou de ser denunciado por velhos companheiros e parentes. Um 
dos mais contundentes testemunhos contra o cavaleiro d’El Rey que se dizia macabeu seria 
feito por uma sua comadre, de nome Custódia de Faria. Presença constante na residência dos 
Antunes, fora certa vez visitá-lo por estar doente e, clamando para que chamasse pelo nome de 
Jesus para assim experimentar a sua fé, Heitor se negaria, repetindo apenas “valha-me Deus”: 
era já o bastante para que Custódia confirmasse suas desconfianças sobre o judaísmo do 
adoentado senhor de engenho. Ainda mais grave seria a denúncia da cristã velha Inês de 
Barros, que informava ter ouvido por diversas vezes que Heitor Antunes mantinha em suas 
terras “uma casinha separada, na qual certos dias ele com outros cristãos-novos se ajuntavam, 
e que faziam ali a esnoga, e que quando os cristãos-novos iam lá em aqueles certos dias, 
deixavam dito na cidade que iam fazer peso, inclusive nomeando homens importantes e dos 
principais da terra que freqüentavam a esnoga de Matoim. Já a cristã velha Luísa Fernandes 
afirmaria ter ouvido de “um cristão-novo que fora judeu e se converteu” que Heitor Antunes 
era judeu e guardava os sábados, mantendo em casa livros da lei judaica
xiii
. 
O mesmo ocorreria com Ana Rodrigues e contra algumas de suas filhas e netas, todas 
acusadas de participar de cerimônias judaicas, de guardar o sábado, de fazer bênçãos e orações 
judaicas, de seguir as interdições alimentares do judaísmo, de proferir juramentos, de observar 
ritos funerários judaicos, de fazerem regularmente “esnoga” com “toura” (Torah). O epíteto 
com que outrora se vangloriava Heitor Antunes de sua ascendência bíblica, transformar-se-ia, 
no comentário geral das ruas, em ofensa contra Ana Rodrigues e suas filhas, chamadas de 
Macabéias pela suspeita pública de que judaizavam. Heitor Furtado de Mendoça ouviria as 
mais variadas acusações contra as macabéias: nas sextas-feiras, trancavam-se em uma casa 
apartada para judaizar, e de lá só saíam aos sábados; juravam pelo mundo que tem a alma do 
pai, Heitor Antunes; evitavam certos tipos de carne e peixe, e jogavam fora a água dos 
cântaros em casos de falecimento. 
Mas o forte das denúncias, sem dúvida, recairia sobre Ana Rodrigues, figura das mais 
insistentemente delatadas durante a I visitação do Santo Ofício ao Brasil: seria acusada de 
preparar pães ázimos, não comer carne, fazer as refeições em mesa baixa e de guardar as jóias 
que possuía para ser enterrada com elas. A matriarca também faria fama pelos impropérios que 
pronunciava. Num batizado de uma bisneta, teria afirmado, olhai que negro batismo! Quando 
 
 
9 
de um dos partos de suas filhas, clamando-se por Nossa Senhora, dissera, não me faleis nisso 
que não no posso dizer! Uma parenta cristã velha contaria que, adoecida certa vez, “suas filhas 
lhe mostravam um crucifixo e que ela o não queria ver, dizendo: tirai-o lá”, atemorizando a 
uma das filhas, que lhe pedia para que medisse as palavras: “mãe, não nos desonreis porque 
somos casadas com homens cristãos velhos e nobres”. Quando emlucidez, contudo, tentava, 
como as filhas, manter as aparências, “sendo devotas de Nossa Senhora e fazendo romarias, 
indo às igrejas, dando esmolas e fazendo outras boas obras de boas cristãs”. 
Também alguns filhos e netos do casal Antunes acabariam denunciados perante a mesa 
da Inquisição. Nuno Fernandes seria acusado de açoitar um crucifixo que mantinha embaixo 
da cama. Seu irmão Álvaro Lopes Antunes teria sido visto na igreja da Piedade a ameaçar um 
crucifixo que estava no altar e a fazer-lhe duas ou três figas. Manoel de Faria, filho de Beatriz 
Antunes e neto de Ana Rodrigues, seria delatado por um colega de classe por vestir camisa 
lavada aos sábados e não freqüentar a contento a doutrina dos padres, saindo-se das missas 
antes do término. 
Os depoimentos apontavam, no limite, para a existência de uma sinagoga de judeus no 
engenho de Matoim e para o papel de rabi clandestino outrora exercido pelo velho Heitor 
Antunes. Os próprios maridos cristãos velhos das filhas e sobrinhas de Heitor e Ana não 
evitaram de acusá-las na mesa inquisitorial, um pouco para se livrarem da pecha de omissos, 
cumprindo a convocatória do Edital da Fé, outro tanto para de algum modo aliviar a presunção 
de culpa que poderia recair sobre as mulheres. 
As denúncias e confissões acerca do que se passava no engenho de Matoim nos 
permitem aquilatar a extrema complexidade do processo aculturador da população conversa de 
origem portuguesa. Percebe-se ali a ocorrência de um judaísmo que envolvia a leitura de 
textos, da Torah, do Alvará dos Macabeus, pontificando a figura de Heitor Antunes como rabi 
clandestino de uma comunidade criptojudia. Um judaísmo próximo ao vivido pelos primeiros 
conversos, a julgar pelos processos de um Luis Dias ou do próprio Bandarra em Portugal dos 
anos 1540, nos quais se percebe a continuidade de um judaísmo letrado e a ocorrência de 
expectativas messiânicas no seio da comunidade de cristãos novos. Por outro lado, percebe-se 
igualmente a força de uma série de tradições domésticas do judaísmo, conservadas pela 
liderança da matriarca Ana Rodrigues, transmitidas às suas filhas e daí às netas, embora a 
receptividade individual de diversos costumes nas gerações de mulheres da família seja 
bastante diferenciada. A presença de cristãos velhos na família funcionava certamente como 
um dado complicador, pois se há indícios de que alguns deles participavam de cerimônias, 
outros sugerem haver uma constante preocupação das mulheres com a reputação de seus 
 
 
10 
maridos “fidalgos” envolvidos com a esnoga. As filhas de Ana Rodrigues, por exemplo, 
chegaram-lhe a suplicar, com este propósito para que fosse discreta nos seus usos, e não deixa 
de ser significativo o fato de alguns denunciantes aludirem à existência de esnoga na casa do 
cristão velho Bastião de Faria, genro do falecido Heitor Antunes que parece ter assumido a 
chefia do clã após a morte do sogro. 
De todo modo, o Santo Ofício logrou pleno êxito, neste e noutros casos, na sua tática 
de dissolver as solidariedades parentais, afetivas e sociais, ação deletéria que lhe era essencial 
para descobrir as heresias. 
Amedrontadas com o clima de denúncias deflagrado pelo Visitador, várias mulheres do 
clã Antunes compareceram à mesa para confessar seus erros. Em 31 de janeiro de 1592 
confessariam as irmãs Felipa e Custódia de Faria, netas de Ana Rodrigues, e a mãe delas, 
Beatriz Antunes, sabedoras de que a esnoga de Matoim fora já delatada na mesa da Visitação. 
Dona Felipa, mulher casada, de idade de 18 anos, confessaria que “desde que se 
acorda” até a chegada da visitação, sempre viu a mãe, a tia Leonor e a irmã Custódia jogarem 
fora a água de casa quando morria alguém em casa, o que também ela mesma fizera em 
determinada ocasião. Lembrava ainda ao visitador que vira a avó Ana Rodrigues, “quando 
lançava a benção aos netos, depois que lha lançava, correr-lhe a mão sobre a moleira e testa”, 
mas que não via nenhuma má intenção nestes costumes
xiv
 
Em seguida, seria a vez do depoimento da irmã Custódia, que possuía então 23 anos e 
era casada com o cristão velho Bernardo Pimentel de Almeida. Contava que, certa vez, ao 
morrer um escravo, aprendera com sua mãe que lançasse fora a água que havia em casa, 
“porque era bom para os parentes do morto que ficavam vivos”, o que também recomendava 
sua avó, Ana Rodrigues. O inquisidor, ressabiado, indagou-lhe sobre quanto tempo havia que 
sua mãe lhe ensinava a lei de Moisés, ao que retrucaria, em defesa da mãe, que esta era boa 
cristã, e que tudo fizera sem conhecimento de ser cerimônia judaica. mas contava ainda que 
sua mãe, ao morrer a irmã, Isabel Antunes, evitara comer carne ou qualquer outro alimento 
durante todo o dia até o pôr-do-sol, quando então comeu peixe. Desconfiado da sinceridade do 
que ouvia, Heitor Furtado admoestaria a Custódia de que era “mui forte a presunção que ela e 
sua mãe e avó são todas judias e vivem afastadas da lei de Jesus Cristo, e têm a lei de Moisés”, 
mas Custódia terminaria seu depoimento reafirmando ser boa cristã e que somente soubera que 
estes costumes eram cerimônias judaicas com o início da visitação, após a publicação do édito 
da fé da Santa Inquisição
xv
. 
A própria Beatriz Antunes, que confessaria em seguida, confirmaria o depoimento da 
filha. Por dezessete ou dezoito vezes, jogara fora a água de casa quando lhe morria alguém, 
 
 
11 
amortalhando os mortos com lençóis inteiros, sem lhe tirar ramo ou pedaço; na morte de 
parentes, não comia carne “por nojo”, nos primeiros oito dias; ao assar carneiros, tirava-lhes a 
landoa, e que também não comia coelho nem lampreia, mas que consumia outros peixes sem 
escama; ao afirmar alguma coisa, jurava “pelo mundo que tem a alma de meu pai” Heitor 
Antunes. Tudo assim fazia sem nenhuma outra razão ou causa, mas apenas por ter aprendido 
com a sua mãe que, por sua vez, assim fora ensinada, quando moça, por uma parteira cristã 
velha em Portugal. Admoestada seriamente pelo visitador da gravidade de suas culpas, 
terminaria a confissão respondendo que “nunca teve intenção de judia” nem que praticava 
cerimônias judaicas, jamais desejando ofender a Jesus Cristo
xvi
. 
Todas, sem exceção, esforçaram-se por mostrar ao visitador que, não obstante usassem 
de certos costumes tidos por “judaicos”, admitindo que o haviam aprendido com a velha Ana 
Rodrigues, não seguiam a “lei de Moisés” e nem mesmo sabiam que tais usos eram típicos de 
judeus. 
No dia seguinte, outros membros da família aproveitariam para depor: Lionor e Nuno, 
filhos de Ana Rodrigues, e Isabel Antunes, neta, filha da falecida Violante Antunes, todos 
acompanhando a própria matriarca que também fora se apresentar a Heitor Furtado. 
Dona Lionor Antunes começaria confirmando que, ao morrer alguém em casa, repetia 
o costume familiar de “lançar fora de casa toda água dos potes e vasos que havia em casa das 
portas adentro”. Mais intrigado ainda deve ter ficado o visitador ao ouvir os costumes 
alimentares que mantinha: além de detalhes sobre a preparação de carnes  sempre tirando-
lhes a landoa para se assarem , dizia guardar restrição ao consumo de certas carnes e peixes, 
mas para tudo arrumando desculpa, temendo que acabasse por se incriminar: contava então 
que, há dois ou três anos, “veio à sua casa uma lampreia que veio do Reino em conserva e ela 
a não quis comer por haver nojo dela, e vir fedorenta”. Numa outra vez, ao ver uma escrava 
degolar uma galinha para a refeição, ordenou que lançasse sobre o sangue pó de serragem, 
“porque andava aí perto um porco e arremetia a ele para o comer, e isto fez porque o porco não 
ficasse inclinado a lhe comer os pintões”. Desde que o pai morrera, “tinha por costume 
ordinário jurar pelomundo que tem a alma de seu pai”, o que fazia por ouvir sua mãe fazer o 
mesmo. Apesar dos indícios, afirmaria não ter intenção nem malícia de fazer cerimônias 
judaicas. Terminaria seu depoimento pedindo misericórdia e perdão por seus atos
xvii
. 
A confissão de Nuno também traria novidades. Reconhecia ter jejuado, por nojo, 
durante todo o dia da morte de sua irmã Violante, mas que não sabia ser esta uma prática dos 
judeus, e que era bom cristão. No mais, dizia ter lido “muitas vezes, não lhe lembra quantas”, 
alguns livros defesos, como Diana, Metamorfoses, de Ovídio, e Eufrozina, de Jorge Ferreira 
 
 
12 
de Vasconcelos, sendo ordenado pelo inquisidor que trouxesse à mesa os livros que, 
porventura, ainda mantivesse em seu poder
xviii
. 
Isabel Antunes, filha de Violante Antunes, diria em seu depoimento que, como as tias e 
a avó, lançara uma vez a água de casa ao morrer-lhe uma filha, e o mesmo ensinara a uma 
escrava, mas “sem ter ruim intenção no coração”. Contava ainda que ouvira da mãe muito 
tempo atrás que “não era bom, quando levavam um pote para buscar água fora de casa, 
tornarem com ele para casa vazio”, mas que não presumira nenhuma má intenção da mãe por 
isto
xix
. 
E finalmente a própria Ana Rodrigues, matriarca da família, apareceu diante do 
visitador, naquele primeiro dia de fevereiro do ano de 1592. Assim como os filhos, 
apresentava justificativa para todos os seus atos suspeitos: “não come cação fresco porque lhe 
faz mal ao estômago, mas que o come salgado, assado, e outrossim, não come arraia, mas que 
nos outros tempos atrás comia arraia e cação”; “costuma muitas vezes, quando lança a bênção 
a seus netos, dizendo a benção de Deus e minha te cubra, lhes põe a mão estendida sobre a 
cabeça, depois que lhe acaba de lançar a bênção, e isto faz por desastre”; quando morreu o 
marido Heitor Antunes, “no tempo do nojo de sua morte ela esteve assentada detrás da porta, 
também por desastre, por acontecer ficar ali assim a jeito o seu assento”; aprendera “que era 
bom botar a água fora quando alguém morria, porque lavavam a espada do sangue nela”, e 
“que quando amortalhavam algum finado, não era bom dar agulha para coserem na mortalha, 
nem era bom tirar ramo nem pedaço fora do lençol em que se amortalhavam, mas que havia de 
ser com lençol inteiro, e que não era bom, a vassoura com que varriam a casa, emprestá-la a 
nenhuma vizinha para varrer a sua”. 
Daria ainda explicações sobre a tal história do crucifixo: “haverá sete ou oito anos que 
esteve muito doente em Matoim, onde ela ora é moradora, dentro nesta capitania, na qual 
doença chegou a tresvariar, e dizem que ela falava desatinos, mas ela não está lembrada se 
nesse tempo falou ou fez alguma coisa com ofensa de Deus”. 
Ana Rodrigues admitiu, portanto, diversos erros considerados judaizantes, a exemplo 
de modos de preparar alimentos, ritos funerários, formas de benzer os filhos e netos, etc. 
Admitiu que ensinara tudo às suas filhas, mas também insistiu em que não sabia serem tais 
costumes ritos judaicos e que, no seu coração, era boa católica e temente a Deus. Heitor 
Furtado não hesitou em pressionar a anciã, formulando perguntas que pressupunham sua 
culpa. “Quem lhe ensinou as ditas coisas”; “se lhe via fazer essas cousas o dito seu marido”; 
“quanto tempo há que ela confessante começou a ser judia e a deixar a fé de Nosso Senhor 
Jesus Cristo” e “começou a ensinar às ditas suas filhas que fossem judias e cressem na lei de 
 
 
13 
Moisés?”  eis alguns exemplos das pressões do visitador, procurando contradições na fala da 
matriarca que a pudessem incriminar. 
O grande problema enfrentado por Ana Rodrigues, além das denúncias que se lhe 
moveram, residiu na versão que apresentou ao visitador sobre como, quando e de quem 
aprendera os ritos confessados. Contou que aprendera tais ritos quando tinha 45 anos de idade, 
em Portugal, e tudo lhe fora ensinado por uma parteira cristã velha, a comadre Inês Rodrigues, 
sua vizinha na Sertã, mulher que, contudo, não lhe informara serem ritos de judeus. 
Heitor Furtado percebeu que Ana Rodrigues mentia. Se possuía cerca de 80 anos, como 
declarou na confissão, teria ela nascido de pais judeus atingidos, como “batizados em pé”, pela 
conversão forçada de D. Manuel. Estava-se diante de um típico caso de transmissão familiar 
da heresia judaica, aprendida por Ana Rodrigues em família de recém conversos e 
retransmitida às filhas e netas pela então matriarca da família na Bahia Colonial. A versão 
apresentada pela anciã era insustentável. Presa por ordens do visitador em 22 de abril de 1593, 
ficaria detida até ser confiada no dia 31 de maio ao mestre da caravela Santiago e embarcada 
no dia 2 de junho para Lisboa, confinada em uma câmara comprada especialmente para ela, 
para que ficasse incomunicável, até que fosse entregue aos representantes da Inquisição, e 
processada nos Estaus pelo crime de judaísmo. 
Ana Rodrigues não chegou a ouvir sua sentença. Morreu no cárcere do Santo Ofício, 
pouco depois de apresentar-se à mesa do Tribunal de Lisboa. Tratou-se, então, de uma 
apresentação protocolar, mas que nos informa sobre um aspecto fundamental do caso. Ana 
Rodrigues não teria 80 anos, como assegurara ao visitador, mas cerca de 100, conforme 
admitiu na primeira sessão de interrogatório. Caso confirmada esta hipótese, a centenária anciã 
nascera judia e fora uma das crianças “batizadas em pé” (embora fosse então criança de tenra 
idade) no tempo de D. Manuel. Nascera em família judia, aprendera com os pais tudo o que 
sabia, casara com um converso que provavelmente passara pelo mesmo processo de conversão 
forçada. Independente da idade exata de Ana Rodrigues, o fato é que a matriarca de Matoim 
convivera desde o berço com antigos seguidores do judaísmo, praticantes e conhecedores das 
antigas tradições, e que, apesar de convertidos ao catolicismo a partir dos decretos de 1496-97, 
contariam com a proteção real por algumas décadas, a impedir que fossem processados por 
desvios da fé. Embora não pudessem mais contar com rabinos instituídos, e privados dos 
textos sagrados e de sinagogas em funcionamento, podiam manter, com certa discrição e sem 
maiores cobranças, o comportamento e tradições do período de livre crença. 
Ana Rodrigues morreria pouco depois de chegar ao palácio dos Estaus, sede da 
Inquisição lisboeta. Morreu fatigada pela viagem, já com o corpo debilitado por doenças e 
 
 
14 
atemorizada pelo que lhe poderia ocorrer  a ponto dos inquisidores lisboetas desconfiarem 
que talvez tenha cometido suicídio no cárcere, interrogando as companheiras de cela e o 
alcaide do cárcere para averiguar se a velha senhora apresentava “alguma lesão de doidice, ou 
de paixão, ou de doença” que indicasse alguma nódoa no corpo “que demonstrasse ser-lhe 
feito algum mal que lhe causasse morte”xx. 
Ana Rodrigues faleceu em 10 de outubro de 1593 e seu processo se arrastou por longos 
anos. É dossiê com mais de 500 fólios movido contra uma defunta. A Inquisição mandou fazer 
diligências, reinquiriu testemunhas, procurou devassar a sinagoga de Matoim dirigida por 
Heitor Antunes e sua esposa, Ana Rodrigues. Em 9 de maio de 1604, Ana Rodrigues, falecida 
mais de 10 anos antes, e considerada culpada pelos inquisidores “de heresia e apostasia, e que 
foi, sendo viva, herege e apóstata de nossa santa fé católica e, como tal, ficta, simulada, 
diminuta e revogante confitente” seria, como pena “em detestação de tão grande crime”, 
queimada em efígie, tendo sua memória amaldiçoada e seus ossos desenterrados e feitos por 
fogo em pó, para apartá-los das ossadas cristã do cemitério, além de ter todos os seus bens 
confiscados, o que levaria seus herdeiros a uma série de petições ao SantoOfício durante anos 
na tentativa de recuperar o patrimônio confiscado ao fisco e câmara real. Como se não 
bastasse, seu retrato foi pintado por ordens do Santo Ofício, no estilo burlesco que 
caracterizavam esses quadros, entre monstros e fogos, e atravessou o Atlântico para ser 
afixado, como de fato foi, na igreja de Matoim. Por cerca de uma década a memória infamada 
da matriarca dos Antunes foi exibida aos fiéis do lugar. 
Outros membros do clã seriam igualmente vitimados pela Inquisição. Heitor, o 
patriarca, embora falecido quase duas décadas antes da chegada de Heitor Furtado ao Brasil, 
seria acusado perante o visitador, que enviaria cópia do rol de denúncias contra o patriarca à 
sede do Tribunal, em Lisboa. Também duas de suas filhas foram seguramente presas, enviadas 
à Lisboa, processadas e condenadas. Beatriz Antunes o foi em sentença de 1603, saindo em 
auto de fé fazendo abjuração em forma, com forte presunção de heresia, com hábito e cárcere 
perpétuo, desenhado com fogos, sem remissão, mesma sentença aplicada à irmã, Leonor 
Antunes
xxi
. 
Cientes das pressões sociais decorrentes do envolvimento do casal Antunes e de suas 
filhas com a Inquisição, os descendentes buscariam ocultar a ascendência, suprimindo o 
sobrenome Antunes e substituindo-o pela ascendência dos Ferreira Bethencourt, dos Moniz 
Barreto e dos Faria, famílias de destaque na produção de açúcar, nos altos postos militares e na 
governança da Colônia entre os séculos XVI e XVII
xxii
. Desta forma, tencionavam omitir a 
origem cristã-nova ao alinhar-se com o lado cristão velho da família  aliás, como desejavam 
 
 
15 
Heitor Antunes e Ana Rodrigues, que escolheram genros e noras de sangue dito puro para os 
filhos , evitando futuros problemas com o Tribunal do Santo Ofício. 
Anos depois, durante a segunda visitação inquisitorial ao Brasil, comandada pelo 
licenciado Marcos Teixeira, ouvia-se ainda os ecos da perseguição aos Antunes e dos 
problemas causados à família. O cristão velho Antônio de Aguiar Daltro, lavrador de 
mandioca, acusaria ao mamaluco Adão Gonçalves de haver roubado da porta principal da 
igreja de Matoim o tal retrato da cristã-nova Ana Rodrigues, do que “houve grande escândalo 
entre os cristãos velhos daquela freguesia”, segundo se dizia, a pedido de Henrique Muniz 
Teles, casado com Dona Lionor Antunes, interessado em livrar não só a esposa mas todos os 
membros da família Antunes de comentários acerca do cruel destino que tivera a matriarca e 
da má fama que dela herdaram, procurando preservar-lhes a honra e evitar novas acusações e 
problemas com o Santo Ofício
xxiii
. 
Ana Rodrigues e Heitor Antunes: ex-judeus, criptojudeus. O processo da anciã nos 
confirma a ocorrência muito concreta do criptojudaísmo no século XVI, inclusive em terras 
coloniais. Um criptojudaísmo doméstico, já muito mesclado com elementos do catolicismo, 
incorporando mesmo cristãos velhos no grupo de convívio e na família dos judaizantes. 
Criptojudaísmo este marcado pela intensificação do papel feminino como baluarte da antiga 
fé, alçando as mulheres ao papel de grandes divulgadoras da lei judaica aos descendentes. 
Embora descoberta, denunciada, presa e condenada pela Inquisição, Ana Rodrigues conseguira 
passar aos filhos os ensinamentos de sua fé. Suas filhas e netas, mesmo denunciadas ou 
processadas, levariam à frente costumes e práticas aprendidas com os fundadores do clã de 
Matoim. 
A história da família de Ana Rodrigues é sem dúvida uma história trágica, mas oferece 
ao historiador um cenário privilegiado para estudar as metamorfoses culturais da religião no 
tempo e no espaço. Um exemplo típico de como a micro-história pode ajudar a compreender 
processos históricos globais. 
 
 
NOTAS: 
i
 Sônia Siqueira. Inquisição Portuguesa e sociedade colonial. São Paulo: Ática, 1978. 
ii
 Anita Novinsky. Cristãos novos na Bahia. São Paulo: Ática, 1972, p. 58. 
iiiiii
 Evaldo Cabral de Mello. O nome e o sangue. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, 
sobretudo o capítulo “Branca Dias e outras sombras”. 
iv
 Antônio José Saraiva. Inquisição e Cristãos novos. 5a. edição, Lisboa: Editorial Estampa, 
1974, sobretudo debate em anexo, pp. 211-290. 
v
 Ângela Vieira Maia. À sombra do medo: cristãos velhos e cristãos novos nas capitanias do 
açúcar. Rio de Janeiro: Oficina Cadernos de Poesia, 1995, pp. 97-138. 
 
 
16 
 
vi
 Francisco Bethencourt. História das Inquisições. Portugal, Espanha e Itália. Lisboa: Círculo 
de Leitores, 1997, pp. 167-193. 
vii
 Jacqueline Hermann. No reino do desejado: a construção do sebastianismo em Portugal 
(séculos XVI-XVII). São Paulo: Companhia das Letras, 1998, pp. 3-51. 
viii
 Yosef Kaplan. Judíos Nuevos en Amsterdam. Estudio sobre la historia social e intelectual 
del judaísmo sefardi en el siglo XVII. Barcelona: Gedisa, 1996. 
ix
 Charles Boxer. Os holandeses no Brasil (1624-1654). São Paulo: Companhia Editora 
Nacional, 1961, pp. 172-3 e 186. 
x
 Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Inquisição de Lisboa, processo n
o
 11618. 
xi
 Elias Lipiner. Os judaizantes nas capitanias de cima (estudos sobre os cristãos-novos do 
Brasil nos séculos XVI e XVII). São Paulo: Brasiliense, 1969, pp. 122-138. 
xii
 Gabriel Soares de Souza. Tratado descritivo do Brasil em 1587. 9
a
 ed. Recife: Fundação 
Joaquim Nabuco / Editora Massangana, 2000, p. 110. 
xiii
 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, processo n
o
 12142. 
xiv
 Testemunho de Dona Felipa, meio cristã-nova, em 31/01/1592. A Inquisição de Lisboa 
contra Ana Rodrigues. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, processo 
n
o
 12142. 
xv
 “Confissão de Dona Custódia de Faria, cristã-nova, em 31 de janeiro de 1592”. In: Ronaldo 
Vainfas (org.). Confissões da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, pp. 271-274. 
xvi
 “Confissão de Beatriz Antunes, cristã-nova, no tempo da graça, em 31 de janeiro de 1591”. 
Idem, pp. 275-278. idem, pp. 299-300. 
xvii
 “Confissão de Dona Leonor, cristã-nova, no tempo da graça, em 1o de fevereiro de 1592”. 
Idem, pp. 288-293. 
xviii
 “Confissão de Nuno Fernandes, cristão-novo, na graça, em 1o de fevereiro de 1592”. 
xix
 “Confissão de Isabel Antunes, meia cristã-nova, no tempo da graça do Recôncavo, mulher 
de Henrique Nunes, cristão-novo, em 1
o
 de fevereiro de 1592”. Idem, pp. 294-296. 
xx
 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, processo n
o
 12142. 
xxi
 Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Inquisição de Lisboa, processos n
o
 4309, 1276 e 
10716. 
xxii
 Suzana M. Sousa Santos. “Além da Exclusão: convivência entre cristãos-novos e cristãos-
velhos na Bahia setecentista”. Tese de doutoramento apresentada à USP, 2002, p. 50. 
xxiii
 “Antonio de Aguiar Daltro contra Adão Gonçalves e Antonio Mendes Beiju”, em 
16/09/1618. “Livro das Denunciações que se fizerão na Visitação do Santo Officio á Cidade 
do Salvador da Bahia de Todos os Santos do Estado do Brasil, no ano de 1618  Inquisidor e 
Visitador o Licenciado Marcos Teixeira”. In: Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 
1927, volume XLIX. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1936.

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