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1 A ESNOGA DA BAHIA Cristãos-novos e criptojudaísmo no Brasil quinhentista Ronaldo VAINFAS Angelo A. F. ASSIS (ASSIS, Angelo. A. F.; VAINFAS, Ronaldo. “A Esnoga da Bahia: Cristãos-novos e criptojudaísmo no Brasil quinhentista”. In: GRINBERG, Keila. (Org.). Os Judeus no Brasil: ensaios sobre inquisição, imigração e identidade. 1ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 43-64.) RESUMO O artigo examina a ocorrência do criptojudaísmo no Brasil Colonial como fenômeno de mescla cultural. Analisa o papel dos cristãos novos na colonização portuguesa durante o século XVI e o problema da identidade religiosa dos cristãos novos. Neste sentido, os autores examinam o caso particular da “sinagoga” de Matoim, na Bahia, e a perseguição de Ana Rodrigues, velha senhora presa pelo Santo Ofício acusada de “judaizante” e condenada à fogueira, embora falecida no cárcere inquisitorial em 1593. ABSTRACT The article examines the ocurrence of criptojudaism in Colonial Brazil as a phenomenon of cultural mixture. It analyses the New Christians role in the portuguese colonization during the XVI th century and the problem of religious identity of the New Christians. To achieve this the authors examine the particular case of the Matoim’s “synagogue”, in Bahia, and the persecution of Ana Rodrigues, an old woman who was arrested by the Holy Office, accused as “judaizante” and comndened to be burn, although she was died in the inquisitorial prison in 1593. É já muito conhecido, embora pouco estudado, o papel decisivo desempenhado pelos cristãos novos portugueses no povoamento e colonização do Brasil. Ainda nos inícios do século XVI, quando o litoral brasílico servia fundamentalmente como escala para a carreira da Índia, foi a Fernando de Noronha ou Loronha que D. Manuel concedeu o privilégio de arrendar o comércio de pau-brasil, madeira tintória que consistia no principal negócio português na sua porção territorial da América. Fernando de Noronha talvez fosse cristão novo sobre o que há controvérsia mas liderava, de todo modo, um consórcio de cristãos novos e receberia, mais tarde, em 1504, a bela ilha do litoral pernambucano, concedida como donataria pelo mesmo rei. 2 Décadas depois, iniciada a ocupação territorial e a exploração econômica do açúcar, sobretudo no nordeste, a importância dos cristãos novos seria notável. Em seu importante livro A Inquisição Portuguesa e a sociedade colonial i , Sônia Siqueira apresenta dados que permitem afirmar que, entre 1579 e 1620, eram 27 os senhores de engenho de origem cristã nova na Bahia e em Pernambuco, de um total de 85 referidos nos papéis inquisitoriais. Índice expressivo de cerca de 32% e possivelmente incompleto, pois não inclui, nem poderia fazê-lo, os dados dos livros extraviados na visitação quinhentista do Santo Ofício ao Brasil. Mas vale dizer que, dentre a maioria de senhores de engenho cristãos velhos, não poucos eram casados com mulheres de origem conversa. Mulheres brancas, vale lembrar, em terra onde elas escasseavam para esposar fidalgos ou varões grados da terra, e mulheres bem dotadas, isto é, capazes de transferir riqueza para os lusitanos do trópico através do casamento. Estudando os cristãos novos na Bahia em livro clássico de mesmo título, Anita Novinsky os viu nos mais variados ofícios e ocupações. Muitos artesãos, pequenos lavradores, mas alguns com posses e engenhos. Vieram muitos sem grandes recursos, mas recebendo ajuda financeira de parentes ou amigos já estabelecidos, conseguiram alguns ascender socialmente, adquirindo engenhos e escravos. Novinsky acentua, aliás, que o traço distintivo dos cristãos novos no Brasil, à diferença dos que migraram para o norte da Europa ou para o Levante, residiu exatamente na sua miscibilidade. O cristão novo “miscigenou-se com a população nativa, afirma a autora, criou raízes profundas na nova terra, integrando-se plenamente na organização social e política local. Esta organização, ao mesmo tempo que permitiu a integração e acomodação do cristão novo, sofreu reciprocamente, deste, profunda influência”ii. No caso de Pernambuco, apesar da diversidade de papéis e funções que exerciam os cristãos novos na economia e sociedade da capitania, foram eles mais numerosos na direção da economia açucareira, havendo vários registros de grandes mercadores, traficantes de escravos e senhores de engenho de origem conversa. Evaldo Cabral de Mello assim o sugere em seu O nome e o sangue iii , lembrando que segmento importante da chamada açucarocracia pernambucana era de origem cristã nova, a começar por Duarte de Sá, o trisavô de Filipe Paes Barreto, personagem central do autor, homem que, no final do século XVI possuía boa fazenda e cargo de vereador na Câmara de Olinda. A afluência de cristãos novos ao Brasil no meado do século XVI, onde chegaram muitas vezes em família, à diferença do padrão migratório português essencialmente masculino, foi obviamente estimulada pelas oportunidades que se abriam com a exploração do açúcar e, posteriormente, com o tráfico atlântico de escravos africanos. Mas não resta dúvida 3 de que foi muitíssimo motivada pelo medo de perseguições inquisitoriais, recém instalado o Santo Ofício em Portugal. É mesmo interessante constatar a quase coincidência de datas: em 1532, D. João III instituiu o regime de capitanias hereditárias, começando pela de São Vicente, e em 1536 o mesmo rei instalaria, com autorização pontifícia, o Santo Ofício de Portugal. D. João III, celebrizado como o rei “colonizador”, foi também o monarca que inaugurou as perseguições religiosas contra a comunidade conversa do reino. É conhecida, a propósito, a ambigüidade da política de D. Manuel em relação aos judeus e, depois, em relação aos cristãos novos durante o seu reinado. Foi D. Manuel quem decretou a conversão forçada de todos os judeus do reino, os “batizados de pé”, em 1496, impedindo que saíssem de Portugal os que relutavam em adotar o cristianismo. Decretou a conversão dos judeus em parte por pressões espanholas e movido por interesses dinásticos, como se sabe, sobretudo depois que milhares de judeus expulsos da Espanha, em 1492, migraram para o reino português. Não obstante, inibiu as iniciativas favoráveis à instalação da Inquisição em Portugal, opôs-se à adoção de estatutos de limpeza de sangue à moda espanhola, reprimiu manifestações de hostilidade contra os conversos. Concedeu privilégios econômicos e políticos a recém conversos, como no caso de Fernando de Noronha e seus consorciados de origem judaica. Antônio José Saraiva iv destacou muito bem, em relação a este reinado, as oportunidades que se abriram aos cristãos novos, alçados alguns a cargos políticos nas municipalidades ou órgãos mais altos, beneficiários outros de privilégios comerciais, ascendendo muitos, como letrados, a posições na burocracia e mesmo no clero fenômeno que também ocorrera na Espanha ao longo do século XV. Falecido D. Manuel e ascendendo ao trono D. João III, pressões da Igreja e das frações mais tradicionalistas da nobreza portuguesa levaram o rei a postular o estabelecimento da Inquisição junto ao Papado, processo muito tortuoso que só em 1536 chegaria a seu termo. Em 1540 começaram de fato as perseguições e os autos de fé, as humilhações públicas e a execução de cristãos novos nas fogueiras inquisitoriais. Não resta dúvida de que isto estimulou a migração de cristãos novos para o Brasil, onde não havia Inquisição, exceto pelo inócuo poder inquisitorial confiado ao Bispo da Bahia. Poder inquisitorial raras vezes exercido e que, na verdade, não atingiu os cristãos novos. Ângela Maiav observou que, até a Visitação de 1591-1595, cristãos novos e velhos conviviam muito bem no Brasil. Não raro unidos pelo matrimônio, além de comungarem da mesma situação de colonos na estreita faixa litorânea ocupada pelos portugueses, espremidos entre a ameaça de piratas no mar e o assalto dos nativos do interior. O elevado índice de 4 casamentos mistos, os negócios e sociabilidades entre cristãos velhos e novos no limiar da colonização comprovam perfeitamente que os preconceitos antisemitas, cada vez mais fortes no reino, no Brasil se viram afrouxados. Teria sido a Visitação encabeçada por Heitor Furtado de Mendoça o momento de inflexão neste quadro de convivência, sociabilidade e relativa coesão entre cristãos velhos e novos, mas antes de tudo colonos. A visitação de 1591 alcançou os cristãos novos do Brasil e deteriorou alianças que até então pareciam sólidas. Incluiu-se a visitação num plano mais geral de expansão da Inquisição portuguesa no ultramar, sobretudo no Atlântico, pois como nos lembra Francisco Bethencourt vi , o Santo Ofício português até então só atuava no reino, à exceção do Tribunal de Goa, instituído em 1560 com jurisdição sobre o Oriente e costa oriental africana. As conquistas do mundo atlântico permaneceram livres até fins do século XVI quando partes d’África, do Brasil e das ilhas atlânticas foram visitadas em nome do Santo Ofício. Deu-se uma mudança, portanto, nas estratégias inquisitoriais portuguesas, mas convém lembrar que tal ocorreu já no tempo de Felipe II, Portugal sob a dominação hispânica. Não por acaso as visitações ocorreram neste tempo em que o Inquisidor-mor do reino, o Cardeal Arquiduque Alberto d’Áustria, era preposto de Felipe II e Vice-Rei de Portugal. Heitor Furtado chegou à Bahia autorizado a processar em última instância os desvios da fé menos gravosos, apesar de heréticos, aos olhos da Inquisição, a exemplo da bigamia, sodomia, blasfêmias e assemelhados. No caso dos delitos tipicamente religiosos contra a fé católica, deveria tão somente instruir os processos e mandar os réus presos para Lisboa, sendo este principalmente o caso de cristãos novos com forte presunção de heresia judaica. Foi neste contexto que emergiram as denúncias contra os cristãos novos radicados no Brasil, o que nos conduz antes de tudo à difícil questão sobre se os cristãos novos, ou parte deles, realmente judaizavam ou se, pelo contrário, davam mostras inequívocas de integração à comunidade católica. É bastante conhecida a polêmica travada entre António J. Saraiva e Révah a propósito do controvertido Inquisição e cristãos novos. Foi neste livro que Saraiva sustentou que, após a conversão forçada dos judeus em Portugal, uma vez que D. Manuel não impôs sistemas nítidos de discriminação, nem tampouco atuou para implantar o Santo Ofício no reino, os cristãos novos tendiam rapidamente a se integrar à sociedade cristã. Estariam os conversos em avançado processo de aculturação que somente se complicou com a instalação do Santo Ofício e a conseqüente discriminação dos portadores de “sangue infecto” ou “gente da nação”, como se dizia à época. Não fosse a Inquisição e não haveria o problema judaico em Portugal, afirma o autor, de modo que o criptojudaísmo não passava de uma invenção dos inquisidores, que arrancavam confissões sob tortura de indivíduos no fundo católicos. Daí a 5 célebre afirmação do autor de que a Inquisição era uma “fábrica de judeus”. Falsos judeus, portanto, no que toca à religiosidade, embora o fossem por origem. Contra esta tese bateu-se I. Révah, historiador tarimbado na pesquisa de processos inquisitoriais contra cristãos novos em Portugal durante os quase 300 anos do Tribunal. E, através de inúmeros exemplos, bem como da problematização das fontes inquisitoriais, Révah sustentou que o criptojudaísmo era ou podia ser um fenômeno concreto e real, admitindo que muitos indivíduos ou famílias de fato mantinham tradições e ritos judaicos na clandestinidade. Eram, portanto, judaizantes, e os que por isso morreram na fogueira, morreram como mártires do judaísmo e não do catolicismo. Trata-se de questão altamente complexa que não temos condição de aprofundar nos limites de um artigo, mas valeria sublinhar apenas alguns pontos. É caso de dizer, em primeiro lugar, que não convém polarizar o assunto em termos absolutos e decidir sobre se havia ou não criptojudaísmo entre os cristãos novos, senão de relativizar a questão antes de tudo no tempo. Presumir, assim, que quanto mais próxima da conversão forçada, maior a possibilidade de ocorrência do criptojudaísmo que, com o passar dos séculos tendeu a refluir. Seria esta apenas uma tendência, sem negar casos de conversos sinceros no início do século XVI ou de apóstatas assumidos no século XVII, como o Manoel Bocarro “francês”, médico e astrólogo que fugiu de Portugal e tornou-se judeu na Itália vii . Em segundo lugar, vale considerar as variações geográficas, o contraste entre o reino e o ultramar e as diferenças regionais de todo tipo. Goa, Brasil, África, o estilo e os modos de viver e pensar variaram muito, conforme as experiências de contatos culturais tão díspares como amplas eram as “conquistas” de Portugal no âmbito do império. E o que dizer do criptojudaísmo de Pernambuco, após a expulsão dos holandeses, se no tempo dos flamengos, muitos judeus de Amsterdam se instalaram na capitania, erigiu-se uma sinagoga no Recife e muitos cristãos novos abraçaram um judaísmo que nunca haviam conhecido? Este último exemplo é bem ilustrativo da complexidade do fenômeno marrano no mundo ibero-americano e da necessidade de contextualizá-lo no tempo e no espaço antes de proceder a qualquer generalização. No Pernambuco holandês, os cristãos novos já “assimilados”, porém estigmatizados pela “nódoa de sangue”, sofreram profundo impacto com a chegada de judeus de Amsterdam, os judeus conversos de origem portuguesa, sefarditas que haviam revitalizado o judaísmo na Holanda viii . Muitos abjuraram do catolicismo que professavam, circuncidaram-se, passaram a freqüentar a sinagoga do Recife, tornaram-se, enfim, “judeus de sinal”, ou seja, judeus publicamente assumidos. E se é verdade que não se deve exagerar a tolerância calvinista em face do judaísmo pois um ponto em comum entre 6 padres católicos e predicantes flamengos, que ali viviam às turras, era a zombaria em relação aos judeus , não houve perseguições, nem inquisiçõesix. Noutras palavras, se no meado do século XVII boa parte da comunidade cristã nova portuguesa só era judaica pela ascendência, o episódio da dominação flamenga foi poderoso o suficiente para reverter a assimilação e provocar forte questionamento de identidade individual na “gente da nação”. Em terceiro lugar, seria o caso de indagar sobre que tipo de judaísmo secreto era ou podia ser cultivado pelos cristãos novos nas suas “esnogas”, como então se dizia. O judaísmo secreto que transborda dos processos do “alfaiate de Setubal” ou mesmo de Gonçalo Annes, o Bandarra (o “profeta do sebastianismo”, que parece ter sido cristão velho) ambos processados em Portugal, nos anos 1540 é um judaísmo de leitura e discussão de livros sagrados, da Torah, dos Salmos. É um judaísmo letrado e praticado fundamentalmente por homens. O judaísmo que mais aparece nos processos inquisitoriais a partir de fins do século XVI é um judaísmo ritual, ligado a cultos funerários, interdições alimentares, formas de benzer heterodoxas, e nele as mulheres parecem desempenhar papel fundamental. Para ilustrar a complexidade deste processo de aculturação, bem como da ação deletéria do Santo Ofício em região colonial, vale comentar o caso célebre de Ana Rodrigues,na verdade a única cristã nova do Brasil condenada à fogueira dentre os judaizantes presos pelo visitador Heitor Furtado de Mendonça x . Ana Rodrigues chegara ao Brasil em 28 de dezembro de 1557, acompanhando o marido, Heitor Antunes na armada em que vinha o Governador Mem de Sá. Com o casal, vieram também alguns parentes, como a filha Violante Antunes, dentre outros. Não obstante cristão novo, Heitor Antunes gozava da confiança de Mem de Sá, que citou seu testemunho em certo relatório enviado a D. Sebastião (1572) e a quem favoreceu em certa demanda que rendeu ao cristão novo as terras de Matoim, onde construiu seu engenho. Também era visto constantemente ao lado do governador-geral nas visitas de inspeção às obras para a construção da igreja da Sé de Salvador, outro indício da sua proximidade com Mem de Sá. Heitor Antunes era mercador de posses e, segundo Elias Lipiner xi possuía o título de cavaleiro d’El Rei. Orgulhava-se ainda de se dizer descendente dos Macabeus, célebre família de judeus descritos, no Antigo Testamento, como heróis da resistência judaica contra os governantes selêucidas da Palestina. O casal teve ao todo sete filhos, alguns nascidos na Bahia, outros em Portugal, e todos eles, varões ou mulheres à exceção de Nuno Fernandes, que permanecia solteiro à época da I visitação , se casaram com cristãos velhos. 7 Homem de posses, em 1560 já atuava o patriarca dos Antunes como rendeiro dos açúcares, controlando a cobrança dos dízimos relativos ao comércio do produto, sendo responsável pelo pagamento dos ordenados do bispo e cabido da Bahia. Gabriel Soares de Souza assim descreveria, em 1587, a pujança das propriedades da família em Matoim: “Na boca desta ribeira está uma ilha muito fresca, que é de Nuno Fernandes; a uma légua está um engenho de bois, de que é senhorio Jorge Antunes, o qual está muito petrechado de edifícios e casas, e tem uma igreja de Nossa Senhora do Rosário”. E continua nosso cronista, agora se referindo a outro dos engenhos pertencentes aos descendentes de Heitor Antunes: “Saindo pela boca de Matoim fora, virando sobre a mão direita, vai a terra fabricada com fazendas e canaviais dali a meia-légua onde está outro engenho de Sebastião de Faria, de duas moendas que lavram com bois, o qual tem grandes edifícios assim do engenho, como de casas de purgar, de vivenda e de outras oficinas e tem uma formosa igreja de Nossa Senhora da Piedade, que é freguesia deste limite; a qual fazenda mostra tanto aparato da vista do mar que parece uma vila”xii. As relações de matrimônio, compadrio, cunhadio envolvendo este clã de Matoim, bem como a intensa sociabilidade que delas resultava, é um exemplo típico do cotidiano dos cristãos novos na Colônia, antes da chegada do Santo Ofício. Laços muito fortes uniam cristãos novos e velhos no Brasil, atenuando-se o preconceito que, na metrópole, alimentava a Inquisição de réus. Se nas terras de Matoim se fazia a “esnoga” que tantos acusariam, em 1591 e tudo parece indicar que a família realmente judaizava , durante décadas isto não constituiu problema para ninguém. O grupo de convívio familiar incluía cristãos velhos, os maridos das filhas de Heitor e Ana, as esposas cristãs velhas dos filhos varões, sem contar as antigas relações que Heitor Antunes mantivera com o Governador-geral no meado do século. À guisa de exemplo dos laços familiares entre as “duas comunidades”, vale dizer que Isabel Antunes, filha de Heitor Antunes e Ana Rodrigues, era casada com o cristão velho Antônio Alcoforado, cuja filha, Ana Alcoforado, era casada com o cristão velho Nicolau Faleiros de Vascogoncelos. Sua irmã, Leonor Antunes, o era com o cristão velho Henrique Muniz Teles; Violante Antunes, casara com o cristão velho Diogo Vaz Escobar, e Beatriz Antunes, outra irmã, com o cristão velho Bastião de Faria, cuja filha Custódia de Faria, mulher de 23 anos em 1592, era já casada com o cristão velho Bernardo Pimentel de Almeida. Dos filhos homens do casal, Jorge Antunes fora casado com a cristã velha Joana Bithencourt de Sá, enquanto Álvaro Lopes Antunes era casado com a também cristã velha Isabel Ribeiro. Nuno Fernandes, que tentara casar-se com uma moçoila de uma família amiga, seria impedido pela mãe, por ser a candidata cristã-nova. 8 Todos moravam nos engenhos de Matoim, configurando uma típica família patriarcal e extensa que, no caso, congregava cristãos velhos e novos. A chegada do Visitador Heitor Furtado de Mendonça à Bahia rompeu abruptamente este quadro de equilíbrio e convivência que temos descrito. Heitor Antunes era já falecido em 1591, mas nem por isso deixou de ser denunciado por velhos companheiros e parentes. Um dos mais contundentes testemunhos contra o cavaleiro d’El Rey que se dizia macabeu seria feito por uma sua comadre, de nome Custódia de Faria. Presença constante na residência dos Antunes, fora certa vez visitá-lo por estar doente e, clamando para que chamasse pelo nome de Jesus para assim experimentar a sua fé, Heitor se negaria, repetindo apenas “valha-me Deus”: era já o bastante para que Custódia confirmasse suas desconfianças sobre o judaísmo do adoentado senhor de engenho. Ainda mais grave seria a denúncia da cristã velha Inês de Barros, que informava ter ouvido por diversas vezes que Heitor Antunes mantinha em suas terras “uma casinha separada, na qual certos dias ele com outros cristãos-novos se ajuntavam, e que faziam ali a esnoga, e que quando os cristãos-novos iam lá em aqueles certos dias, deixavam dito na cidade que iam fazer peso, inclusive nomeando homens importantes e dos principais da terra que freqüentavam a esnoga de Matoim. Já a cristã velha Luísa Fernandes afirmaria ter ouvido de “um cristão-novo que fora judeu e se converteu” que Heitor Antunes era judeu e guardava os sábados, mantendo em casa livros da lei judaica xiii . O mesmo ocorreria com Ana Rodrigues e contra algumas de suas filhas e netas, todas acusadas de participar de cerimônias judaicas, de guardar o sábado, de fazer bênçãos e orações judaicas, de seguir as interdições alimentares do judaísmo, de proferir juramentos, de observar ritos funerários judaicos, de fazerem regularmente “esnoga” com “toura” (Torah). O epíteto com que outrora se vangloriava Heitor Antunes de sua ascendência bíblica, transformar-se-ia, no comentário geral das ruas, em ofensa contra Ana Rodrigues e suas filhas, chamadas de Macabéias pela suspeita pública de que judaizavam. Heitor Furtado de Mendoça ouviria as mais variadas acusações contra as macabéias: nas sextas-feiras, trancavam-se em uma casa apartada para judaizar, e de lá só saíam aos sábados; juravam pelo mundo que tem a alma do pai, Heitor Antunes; evitavam certos tipos de carne e peixe, e jogavam fora a água dos cântaros em casos de falecimento. Mas o forte das denúncias, sem dúvida, recairia sobre Ana Rodrigues, figura das mais insistentemente delatadas durante a I visitação do Santo Ofício ao Brasil: seria acusada de preparar pães ázimos, não comer carne, fazer as refeições em mesa baixa e de guardar as jóias que possuía para ser enterrada com elas. A matriarca também faria fama pelos impropérios que pronunciava. Num batizado de uma bisneta, teria afirmado, olhai que negro batismo! Quando 9 de um dos partos de suas filhas, clamando-se por Nossa Senhora, dissera, não me faleis nisso que não no posso dizer! Uma parenta cristã velha contaria que, adoecida certa vez, “suas filhas lhe mostravam um crucifixo e que ela o não queria ver, dizendo: tirai-o lá”, atemorizando a uma das filhas, que lhe pedia para que medisse as palavras: “mãe, não nos desonreis porque somos casadas com homens cristãos velhos e nobres”. Quando emlucidez, contudo, tentava, como as filhas, manter as aparências, “sendo devotas de Nossa Senhora e fazendo romarias, indo às igrejas, dando esmolas e fazendo outras boas obras de boas cristãs”. Também alguns filhos e netos do casal Antunes acabariam denunciados perante a mesa da Inquisição. Nuno Fernandes seria acusado de açoitar um crucifixo que mantinha embaixo da cama. Seu irmão Álvaro Lopes Antunes teria sido visto na igreja da Piedade a ameaçar um crucifixo que estava no altar e a fazer-lhe duas ou três figas. Manoel de Faria, filho de Beatriz Antunes e neto de Ana Rodrigues, seria delatado por um colega de classe por vestir camisa lavada aos sábados e não freqüentar a contento a doutrina dos padres, saindo-se das missas antes do término. Os depoimentos apontavam, no limite, para a existência de uma sinagoga de judeus no engenho de Matoim e para o papel de rabi clandestino outrora exercido pelo velho Heitor Antunes. Os próprios maridos cristãos velhos das filhas e sobrinhas de Heitor e Ana não evitaram de acusá-las na mesa inquisitorial, um pouco para se livrarem da pecha de omissos, cumprindo a convocatória do Edital da Fé, outro tanto para de algum modo aliviar a presunção de culpa que poderia recair sobre as mulheres. As denúncias e confissões acerca do que se passava no engenho de Matoim nos permitem aquilatar a extrema complexidade do processo aculturador da população conversa de origem portuguesa. Percebe-se ali a ocorrência de um judaísmo que envolvia a leitura de textos, da Torah, do Alvará dos Macabeus, pontificando a figura de Heitor Antunes como rabi clandestino de uma comunidade criptojudia. Um judaísmo próximo ao vivido pelos primeiros conversos, a julgar pelos processos de um Luis Dias ou do próprio Bandarra em Portugal dos anos 1540, nos quais se percebe a continuidade de um judaísmo letrado e a ocorrência de expectativas messiânicas no seio da comunidade de cristãos novos. Por outro lado, percebe-se igualmente a força de uma série de tradições domésticas do judaísmo, conservadas pela liderança da matriarca Ana Rodrigues, transmitidas às suas filhas e daí às netas, embora a receptividade individual de diversos costumes nas gerações de mulheres da família seja bastante diferenciada. A presença de cristãos velhos na família funcionava certamente como um dado complicador, pois se há indícios de que alguns deles participavam de cerimônias, outros sugerem haver uma constante preocupação das mulheres com a reputação de seus 10 maridos “fidalgos” envolvidos com a esnoga. As filhas de Ana Rodrigues, por exemplo, chegaram-lhe a suplicar, com este propósito para que fosse discreta nos seus usos, e não deixa de ser significativo o fato de alguns denunciantes aludirem à existência de esnoga na casa do cristão velho Bastião de Faria, genro do falecido Heitor Antunes que parece ter assumido a chefia do clã após a morte do sogro. De todo modo, o Santo Ofício logrou pleno êxito, neste e noutros casos, na sua tática de dissolver as solidariedades parentais, afetivas e sociais, ação deletéria que lhe era essencial para descobrir as heresias. Amedrontadas com o clima de denúncias deflagrado pelo Visitador, várias mulheres do clã Antunes compareceram à mesa para confessar seus erros. Em 31 de janeiro de 1592 confessariam as irmãs Felipa e Custódia de Faria, netas de Ana Rodrigues, e a mãe delas, Beatriz Antunes, sabedoras de que a esnoga de Matoim fora já delatada na mesa da Visitação. Dona Felipa, mulher casada, de idade de 18 anos, confessaria que “desde que se acorda” até a chegada da visitação, sempre viu a mãe, a tia Leonor e a irmã Custódia jogarem fora a água de casa quando morria alguém em casa, o que também ela mesma fizera em determinada ocasião. Lembrava ainda ao visitador que vira a avó Ana Rodrigues, “quando lançava a benção aos netos, depois que lha lançava, correr-lhe a mão sobre a moleira e testa”, mas que não via nenhuma má intenção nestes costumes xiv Em seguida, seria a vez do depoimento da irmã Custódia, que possuía então 23 anos e era casada com o cristão velho Bernardo Pimentel de Almeida. Contava que, certa vez, ao morrer um escravo, aprendera com sua mãe que lançasse fora a água que havia em casa, “porque era bom para os parentes do morto que ficavam vivos”, o que também recomendava sua avó, Ana Rodrigues. O inquisidor, ressabiado, indagou-lhe sobre quanto tempo havia que sua mãe lhe ensinava a lei de Moisés, ao que retrucaria, em defesa da mãe, que esta era boa cristã, e que tudo fizera sem conhecimento de ser cerimônia judaica. mas contava ainda que sua mãe, ao morrer a irmã, Isabel Antunes, evitara comer carne ou qualquer outro alimento durante todo o dia até o pôr-do-sol, quando então comeu peixe. Desconfiado da sinceridade do que ouvia, Heitor Furtado admoestaria a Custódia de que era “mui forte a presunção que ela e sua mãe e avó são todas judias e vivem afastadas da lei de Jesus Cristo, e têm a lei de Moisés”, mas Custódia terminaria seu depoimento reafirmando ser boa cristã e que somente soubera que estes costumes eram cerimônias judaicas com o início da visitação, após a publicação do édito da fé da Santa Inquisição xv . A própria Beatriz Antunes, que confessaria em seguida, confirmaria o depoimento da filha. Por dezessete ou dezoito vezes, jogara fora a água de casa quando lhe morria alguém, 11 amortalhando os mortos com lençóis inteiros, sem lhe tirar ramo ou pedaço; na morte de parentes, não comia carne “por nojo”, nos primeiros oito dias; ao assar carneiros, tirava-lhes a landoa, e que também não comia coelho nem lampreia, mas que consumia outros peixes sem escama; ao afirmar alguma coisa, jurava “pelo mundo que tem a alma de meu pai” Heitor Antunes. Tudo assim fazia sem nenhuma outra razão ou causa, mas apenas por ter aprendido com a sua mãe que, por sua vez, assim fora ensinada, quando moça, por uma parteira cristã velha em Portugal. Admoestada seriamente pelo visitador da gravidade de suas culpas, terminaria a confissão respondendo que “nunca teve intenção de judia” nem que praticava cerimônias judaicas, jamais desejando ofender a Jesus Cristo xvi . Todas, sem exceção, esforçaram-se por mostrar ao visitador que, não obstante usassem de certos costumes tidos por “judaicos”, admitindo que o haviam aprendido com a velha Ana Rodrigues, não seguiam a “lei de Moisés” e nem mesmo sabiam que tais usos eram típicos de judeus. No dia seguinte, outros membros da família aproveitariam para depor: Lionor e Nuno, filhos de Ana Rodrigues, e Isabel Antunes, neta, filha da falecida Violante Antunes, todos acompanhando a própria matriarca que também fora se apresentar a Heitor Furtado. Dona Lionor Antunes começaria confirmando que, ao morrer alguém em casa, repetia o costume familiar de “lançar fora de casa toda água dos potes e vasos que havia em casa das portas adentro”. Mais intrigado ainda deve ter ficado o visitador ao ouvir os costumes alimentares que mantinha: além de detalhes sobre a preparação de carnes sempre tirando- lhes a landoa para se assarem , dizia guardar restrição ao consumo de certas carnes e peixes, mas para tudo arrumando desculpa, temendo que acabasse por se incriminar: contava então que, há dois ou três anos, “veio à sua casa uma lampreia que veio do Reino em conserva e ela a não quis comer por haver nojo dela, e vir fedorenta”. Numa outra vez, ao ver uma escrava degolar uma galinha para a refeição, ordenou que lançasse sobre o sangue pó de serragem, “porque andava aí perto um porco e arremetia a ele para o comer, e isto fez porque o porco não ficasse inclinado a lhe comer os pintões”. Desde que o pai morrera, “tinha por costume ordinário jurar pelomundo que tem a alma de seu pai”, o que fazia por ouvir sua mãe fazer o mesmo. Apesar dos indícios, afirmaria não ter intenção nem malícia de fazer cerimônias judaicas. Terminaria seu depoimento pedindo misericórdia e perdão por seus atos xvii . A confissão de Nuno também traria novidades. Reconhecia ter jejuado, por nojo, durante todo o dia da morte de sua irmã Violante, mas que não sabia ser esta uma prática dos judeus, e que era bom cristão. No mais, dizia ter lido “muitas vezes, não lhe lembra quantas”, alguns livros defesos, como Diana, Metamorfoses, de Ovídio, e Eufrozina, de Jorge Ferreira 12 de Vasconcelos, sendo ordenado pelo inquisidor que trouxesse à mesa os livros que, porventura, ainda mantivesse em seu poder xviii . Isabel Antunes, filha de Violante Antunes, diria em seu depoimento que, como as tias e a avó, lançara uma vez a água de casa ao morrer-lhe uma filha, e o mesmo ensinara a uma escrava, mas “sem ter ruim intenção no coração”. Contava ainda que ouvira da mãe muito tempo atrás que “não era bom, quando levavam um pote para buscar água fora de casa, tornarem com ele para casa vazio”, mas que não presumira nenhuma má intenção da mãe por isto xix . E finalmente a própria Ana Rodrigues, matriarca da família, apareceu diante do visitador, naquele primeiro dia de fevereiro do ano de 1592. Assim como os filhos, apresentava justificativa para todos os seus atos suspeitos: “não come cação fresco porque lhe faz mal ao estômago, mas que o come salgado, assado, e outrossim, não come arraia, mas que nos outros tempos atrás comia arraia e cação”; “costuma muitas vezes, quando lança a bênção a seus netos, dizendo a benção de Deus e minha te cubra, lhes põe a mão estendida sobre a cabeça, depois que lhe acaba de lançar a bênção, e isto faz por desastre”; quando morreu o marido Heitor Antunes, “no tempo do nojo de sua morte ela esteve assentada detrás da porta, também por desastre, por acontecer ficar ali assim a jeito o seu assento”; aprendera “que era bom botar a água fora quando alguém morria, porque lavavam a espada do sangue nela”, e “que quando amortalhavam algum finado, não era bom dar agulha para coserem na mortalha, nem era bom tirar ramo nem pedaço fora do lençol em que se amortalhavam, mas que havia de ser com lençol inteiro, e que não era bom, a vassoura com que varriam a casa, emprestá-la a nenhuma vizinha para varrer a sua”. Daria ainda explicações sobre a tal história do crucifixo: “haverá sete ou oito anos que esteve muito doente em Matoim, onde ela ora é moradora, dentro nesta capitania, na qual doença chegou a tresvariar, e dizem que ela falava desatinos, mas ela não está lembrada se nesse tempo falou ou fez alguma coisa com ofensa de Deus”. Ana Rodrigues admitiu, portanto, diversos erros considerados judaizantes, a exemplo de modos de preparar alimentos, ritos funerários, formas de benzer os filhos e netos, etc. Admitiu que ensinara tudo às suas filhas, mas também insistiu em que não sabia serem tais costumes ritos judaicos e que, no seu coração, era boa católica e temente a Deus. Heitor Furtado não hesitou em pressionar a anciã, formulando perguntas que pressupunham sua culpa. “Quem lhe ensinou as ditas coisas”; “se lhe via fazer essas cousas o dito seu marido”; “quanto tempo há que ela confessante começou a ser judia e a deixar a fé de Nosso Senhor Jesus Cristo” e “começou a ensinar às ditas suas filhas que fossem judias e cressem na lei de 13 Moisés?” eis alguns exemplos das pressões do visitador, procurando contradições na fala da matriarca que a pudessem incriminar. O grande problema enfrentado por Ana Rodrigues, além das denúncias que se lhe moveram, residiu na versão que apresentou ao visitador sobre como, quando e de quem aprendera os ritos confessados. Contou que aprendera tais ritos quando tinha 45 anos de idade, em Portugal, e tudo lhe fora ensinado por uma parteira cristã velha, a comadre Inês Rodrigues, sua vizinha na Sertã, mulher que, contudo, não lhe informara serem ritos de judeus. Heitor Furtado percebeu que Ana Rodrigues mentia. Se possuía cerca de 80 anos, como declarou na confissão, teria ela nascido de pais judeus atingidos, como “batizados em pé”, pela conversão forçada de D. Manuel. Estava-se diante de um típico caso de transmissão familiar da heresia judaica, aprendida por Ana Rodrigues em família de recém conversos e retransmitida às filhas e netas pela então matriarca da família na Bahia Colonial. A versão apresentada pela anciã era insustentável. Presa por ordens do visitador em 22 de abril de 1593, ficaria detida até ser confiada no dia 31 de maio ao mestre da caravela Santiago e embarcada no dia 2 de junho para Lisboa, confinada em uma câmara comprada especialmente para ela, para que ficasse incomunicável, até que fosse entregue aos representantes da Inquisição, e processada nos Estaus pelo crime de judaísmo. Ana Rodrigues não chegou a ouvir sua sentença. Morreu no cárcere do Santo Ofício, pouco depois de apresentar-se à mesa do Tribunal de Lisboa. Tratou-se, então, de uma apresentação protocolar, mas que nos informa sobre um aspecto fundamental do caso. Ana Rodrigues não teria 80 anos, como assegurara ao visitador, mas cerca de 100, conforme admitiu na primeira sessão de interrogatório. Caso confirmada esta hipótese, a centenária anciã nascera judia e fora uma das crianças “batizadas em pé” (embora fosse então criança de tenra idade) no tempo de D. Manuel. Nascera em família judia, aprendera com os pais tudo o que sabia, casara com um converso que provavelmente passara pelo mesmo processo de conversão forçada. Independente da idade exata de Ana Rodrigues, o fato é que a matriarca de Matoim convivera desde o berço com antigos seguidores do judaísmo, praticantes e conhecedores das antigas tradições, e que, apesar de convertidos ao catolicismo a partir dos decretos de 1496-97, contariam com a proteção real por algumas décadas, a impedir que fossem processados por desvios da fé. Embora não pudessem mais contar com rabinos instituídos, e privados dos textos sagrados e de sinagogas em funcionamento, podiam manter, com certa discrição e sem maiores cobranças, o comportamento e tradições do período de livre crença. Ana Rodrigues morreria pouco depois de chegar ao palácio dos Estaus, sede da Inquisição lisboeta. Morreu fatigada pela viagem, já com o corpo debilitado por doenças e 14 atemorizada pelo que lhe poderia ocorrer a ponto dos inquisidores lisboetas desconfiarem que talvez tenha cometido suicídio no cárcere, interrogando as companheiras de cela e o alcaide do cárcere para averiguar se a velha senhora apresentava “alguma lesão de doidice, ou de paixão, ou de doença” que indicasse alguma nódoa no corpo “que demonstrasse ser-lhe feito algum mal que lhe causasse morte”xx. Ana Rodrigues faleceu em 10 de outubro de 1593 e seu processo se arrastou por longos anos. É dossiê com mais de 500 fólios movido contra uma defunta. A Inquisição mandou fazer diligências, reinquiriu testemunhas, procurou devassar a sinagoga de Matoim dirigida por Heitor Antunes e sua esposa, Ana Rodrigues. Em 9 de maio de 1604, Ana Rodrigues, falecida mais de 10 anos antes, e considerada culpada pelos inquisidores “de heresia e apostasia, e que foi, sendo viva, herege e apóstata de nossa santa fé católica e, como tal, ficta, simulada, diminuta e revogante confitente” seria, como pena “em detestação de tão grande crime”, queimada em efígie, tendo sua memória amaldiçoada e seus ossos desenterrados e feitos por fogo em pó, para apartá-los das ossadas cristã do cemitério, além de ter todos os seus bens confiscados, o que levaria seus herdeiros a uma série de petições ao SantoOfício durante anos na tentativa de recuperar o patrimônio confiscado ao fisco e câmara real. Como se não bastasse, seu retrato foi pintado por ordens do Santo Ofício, no estilo burlesco que caracterizavam esses quadros, entre monstros e fogos, e atravessou o Atlântico para ser afixado, como de fato foi, na igreja de Matoim. Por cerca de uma década a memória infamada da matriarca dos Antunes foi exibida aos fiéis do lugar. Outros membros do clã seriam igualmente vitimados pela Inquisição. Heitor, o patriarca, embora falecido quase duas décadas antes da chegada de Heitor Furtado ao Brasil, seria acusado perante o visitador, que enviaria cópia do rol de denúncias contra o patriarca à sede do Tribunal, em Lisboa. Também duas de suas filhas foram seguramente presas, enviadas à Lisboa, processadas e condenadas. Beatriz Antunes o foi em sentença de 1603, saindo em auto de fé fazendo abjuração em forma, com forte presunção de heresia, com hábito e cárcere perpétuo, desenhado com fogos, sem remissão, mesma sentença aplicada à irmã, Leonor Antunes xxi . Cientes das pressões sociais decorrentes do envolvimento do casal Antunes e de suas filhas com a Inquisição, os descendentes buscariam ocultar a ascendência, suprimindo o sobrenome Antunes e substituindo-o pela ascendência dos Ferreira Bethencourt, dos Moniz Barreto e dos Faria, famílias de destaque na produção de açúcar, nos altos postos militares e na governança da Colônia entre os séculos XVI e XVII xxii . Desta forma, tencionavam omitir a origem cristã-nova ao alinhar-se com o lado cristão velho da família aliás, como desejavam 15 Heitor Antunes e Ana Rodrigues, que escolheram genros e noras de sangue dito puro para os filhos , evitando futuros problemas com o Tribunal do Santo Ofício. Anos depois, durante a segunda visitação inquisitorial ao Brasil, comandada pelo licenciado Marcos Teixeira, ouvia-se ainda os ecos da perseguição aos Antunes e dos problemas causados à família. O cristão velho Antônio de Aguiar Daltro, lavrador de mandioca, acusaria ao mamaluco Adão Gonçalves de haver roubado da porta principal da igreja de Matoim o tal retrato da cristã-nova Ana Rodrigues, do que “houve grande escândalo entre os cristãos velhos daquela freguesia”, segundo se dizia, a pedido de Henrique Muniz Teles, casado com Dona Lionor Antunes, interessado em livrar não só a esposa mas todos os membros da família Antunes de comentários acerca do cruel destino que tivera a matriarca e da má fama que dela herdaram, procurando preservar-lhes a honra e evitar novas acusações e problemas com o Santo Ofício xxiii . Ana Rodrigues e Heitor Antunes: ex-judeus, criptojudeus. O processo da anciã nos confirma a ocorrência muito concreta do criptojudaísmo no século XVI, inclusive em terras coloniais. Um criptojudaísmo doméstico, já muito mesclado com elementos do catolicismo, incorporando mesmo cristãos velhos no grupo de convívio e na família dos judaizantes. Criptojudaísmo este marcado pela intensificação do papel feminino como baluarte da antiga fé, alçando as mulheres ao papel de grandes divulgadoras da lei judaica aos descendentes. Embora descoberta, denunciada, presa e condenada pela Inquisição, Ana Rodrigues conseguira passar aos filhos os ensinamentos de sua fé. Suas filhas e netas, mesmo denunciadas ou processadas, levariam à frente costumes e práticas aprendidas com os fundadores do clã de Matoim. A história da família de Ana Rodrigues é sem dúvida uma história trágica, mas oferece ao historiador um cenário privilegiado para estudar as metamorfoses culturais da religião no tempo e no espaço. Um exemplo típico de como a micro-história pode ajudar a compreender processos históricos globais. NOTAS: i Sônia Siqueira. Inquisição Portuguesa e sociedade colonial. São Paulo: Ática, 1978. ii Anita Novinsky. Cristãos novos na Bahia. São Paulo: Ática, 1972, p. 58. iiiiii Evaldo Cabral de Mello. O nome e o sangue. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, sobretudo o capítulo “Branca Dias e outras sombras”. iv Antônio José Saraiva. Inquisição e Cristãos novos. 5a. edição, Lisboa: Editorial Estampa, 1974, sobretudo debate em anexo, pp. 211-290. v Ângela Vieira Maia. À sombra do medo: cristãos velhos e cristãos novos nas capitanias do açúcar. Rio de Janeiro: Oficina Cadernos de Poesia, 1995, pp. 97-138. 16 vi Francisco Bethencourt. História das Inquisições. Portugal, Espanha e Itália. Lisboa: Círculo de Leitores, 1997, pp. 167-193. vii Jacqueline Hermann. No reino do desejado: a construção do sebastianismo em Portugal (séculos XVI-XVII). São Paulo: Companhia das Letras, 1998, pp. 3-51. viii Yosef Kaplan. Judíos Nuevos en Amsterdam. Estudio sobre la historia social e intelectual del judaísmo sefardi en el siglo XVII. Barcelona: Gedisa, 1996. ix Charles Boxer. Os holandeses no Brasil (1624-1654). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1961, pp. 172-3 e 186. x Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Inquisição de Lisboa, processo n o 11618. xi Elias Lipiner. Os judaizantes nas capitanias de cima (estudos sobre os cristãos-novos do Brasil nos séculos XVI e XVII). São Paulo: Brasiliense, 1969, pp. 122-138. xii Gabriel Soares de Souza. Tratado descritivo do Brasil em 1587. 9 a ed. Recife: Fundação Joaquim Nabuco / Editora Massangana, 2000, p. 110. xiii Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, processo n o 12142. xiv Testemunho de Dona Felipa, meio cristã-nova, em 31/01/1592. A Inquisição de Lisboa contra Ana Rodrigues. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, processo n o 12142. xv “Confissão de Dona Custódia de Faria, cristã-nova, em 31 de janeiro de 1592”. In: Ronaldo Vainfas (org.). Confissões da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, pp. 271-274. xvi “Confissão de Beatriz Antunes, cristã-nova, no tempo da graça, em 31 de janeiro de 1591”. Idem, pp. 275-278. idem, pp. 299-300. xvii “Confissão de Dona Leonor, cristã-nova, no tempo da graça, em 1o de fevereiro de 1592”. Idem, pp. 288-293. xviii “Confissão de Nuno Fernandes, cristão-novo, na graça, em 1o de fevereiro de 1592”. xix “Confissão de Isabel Antunes, meia cristã-nova, no tempo da graça do Recôncavo, mulher de Henrique Nunes, cristão-novo, em 1 o de fevereiro de 1592”. Idem, pp. 294-296. xx Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, processo n o 12142. xxi Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Inquisição de Lisboa, processos n o 4309, 1276 e 10716. xxii Suzana M. Sousa Santos. “Além da Exclusão: convivência entre cristãos-novos e cristãos- velhos na Bahia setecentista”. Tese de doutoramento apresentada à USP, 2002, p. 50. xxiii “Antonio de Aguiar Daltro contra Adão Gonçalves e Antonio Mendes Beiju”, em 16/09/1618. “Livro das Denunciações que se fizerão na Visitação do Santo Officio á Cidade do Salvador da Bahia de Todos os Santos do Estado do Brasil, no ano de 1618 Inquisidor e Visitador o Licenciado Marcos Teixeira”. In: Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 1927, volume XLIX. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1936.
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