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Prévia do material em texto

Martinho Lutero 
Obras Selecionadas 
Volume 1 
Os Primórdios 
Escritos de 1517 a 1519 
Editora Sinodal 
Siio Leopoldo 
Concórdia Editora 
Porto Alegre 
Edição coordenada pela Comissão Iriterli<rerana de Literiiti<rn, foriiiada pela Igreja 
Evangélica dc Confissão Lutermo no Brasil e Igreja EvliiipClica Liiterana do Brasil, 
através das editoras: 
EDITORA SINODAL CONC~KLI IA EDITORA LTDA. 
C m a Postal 11 Caixa Postal 3230 
93001 - Sdo Leopoldo - RS 90001 -Porto Alegrc - RS 
(0512) 92-6366 (0512) 42-2699 
Coriiissão Interluterana rle I,iterUtl<i.u: 
Bcrtholdo Weber Johaiinçs F. Hasenack 
Gerhard Grasel Martim C. Warth 
Ilson Kayser Martioho L. Hoffinann 
Comissão "Obras de Lutero": 
Donaido Schulcr Martini C. Warlh 
Joacliim Fischer hlartin N. Drehcr 
Tradutores: 
Anncmaxie Hohn Luís M. Saidcr 
Ilson Kayser Martinbo L. Hasse 
Walter O. Schlupp 
Redapio E revisãoJi?lal: Puginafão: 
Luís M. Sander Roberto Francisco 
Supervisão geral: Coordenação editorial: 
Ilson Kayser Editora Sinodai 
,Yetninario Concórdia 
Biblioteca 
Sumário 
Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7 
Introdução Geral . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9 
Debate sobre a Teologia Escolástica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13 
Debate para o Esclareciniento do Valor das Indulgências . . . . . . . . . . . . . . . 21 
Um Sermão sobre a IndulgEncia e a Graça. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31 
O Debatc de Heidelberg . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35 
Explicações do Debate sobre o Valor das Iiidulgências . . . . . . . . . . . . . . . . . 55 
Scrmão sohre o Poder da Exconiunháo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 191 
Relato do Fr. Martinlio Lutero, Agostiniano, sobre o Encontro 
com o Sr. Legado Apostólico em Augsburgo . . . . . . . . . . . . . . . . . . 199 
Apelação do Fr. Martinho Lutero ao Concílio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 227 
Uma Breve Iiislrução sobre Como Devemos Confessar-nos . . . . . . . . . . . . . 233 
Sermão sobre as Duas Espkcies de Justiça . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 241 
Um Semião sobre a Conteinplação do Santo 
Solrimento de Cristo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 249 
Debatc e Defesa do Fr. Martinhn Lutero contra as 
Acusações do Dr. João Eck . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 257 
Comentário de Lutero sobre a 1 3 T e s e a respeito do 
Poder do Papa (Enriquecido pelo Autor) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 267 
Comentários de Lntero sobre suas Teses Debatidas em Leipzig . . . . . . . . . . . 333 
Um S e m i o sobre a Preparação para a Morte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 385 
Sermões sobre os Sacramentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 399 
Uni Sermáo sobre o Sacramento da Penitência . . . . . . . . . . . . . . . . . 401 
Uin Sermão sobre o Santo, Vencrabilíssimo Sacramento do Batismo . . . 413 
Uni Semião sobre o Venerabiiíssimo Sacramento do Santo e 
Verdadeiro Corpo de Cristo c sobre as Irniandades . . . . . . . . . . 425 
fii<licis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 447 
Apresentação 
Umd temeridade, sem dúvida. Duas pequenas editoras eclesiásticas se arriscam a 
lançar Obras de Lutero. Mas n5o foi uma temeridade a viagem do monge agostiniano 
para Worms? 
Quem abraçou a idéia de oferecer ao mundo de fala portuguesa as principais 
obras de Lutcro foi a Con~issão Intcrluterana de Literatura - um gmpo de seis pes- 
soas - então sob a presidência do I'. Leopoldo Hcimann que lhe deu os primeiros e 
importantes impulsos. 
Desde o início a proposta foi a produção de uin trabailio de alto nível. Para al- 
cançá-lo a CIL cercou-sc da Comissão "Obras de Lutero" integrada exclusivamente 
por pcritos em matéria de História da lgrcja. Buscaraii-se tradutores - e como 6 difí- 
cil encontr&los! -que estivcsseiu à altura da dificuldade <Ia tarefa e identificados com 
ela. E os recursos financeiros, de onde os obteríamos? Abrirani-se portas tamb$n 
nesta &a. A Anerican Lutkeran Churck e a Lutkerari Ckurck Missouri Synod, par- 
ceiras da Igreja Evangélica de Confissão Lutcrana no Brasil e da Igreja EvangClica 
Luterana do Brasil respectivamcnle, e o SI. Daniel Krebs colocaram verbas à disposi- 
ção. E por caminhos tortos -estes maravilhosos caninhos de Deus que se entendem 
somente "pelas costas", como Lutero gosta de se expressar - pudemos contar tam- 
bém, para a rcta fmal da rcdação deste primeiro volume, com um competente redator 
e revisor geral. 
Que nos resta dizer ainda, quando a Comissão "Obras de Lutero" inclusive nos 
poupou da tarefa de oferecermos detalhes t6cnicosY Resta uma coisa: o nosso agrade- 
cimento. 
.$L&,, 7 2 CL . - 
São Leopoldo, julho de 1987. Pela Comissão Interluterana de Literatura 
Introdução Geral 
Martiiiho Lutero é um dos grandes personagens que marcaram profundamente o 
curso da história moderna do Ocidente. Abalou os fundamentos medievais de seu 
mundo e abriu novos horizontes a seus contemnorâneos. Já foi colocado. com boas 
razoes, ao lado dos famosos navegadores Crist&ão Colombo e Vascn da Gama, bem 
como de João Gutenberg, o célebre inventor da imvrensa com t i ~ o s móveis. 
Lutero era um homém profundamente religiosõ, consciente, da presença de Deus 
na história humana. De modo semelhante a Jacó, do qual nos faia o Antigo Testa- 
mento em Gênesis 32.22-30, lutou com Deus até compreendê-lo como o Senhor sobe- 
rano que tem amor profundo para com suas criaturas, mesmo caídas. Sua pregação da 
justificasão do pecador somente pela fé por causa de Jesus Cristo transformou Igreja 
e sociedade. Dela vieram significativas contribuiçdes para o desenvolvimento da hu- 
manidade. A influência de Lutero não se restringiu à vida da fé, o campo que lhe era 
mais familiar por tradiqão e educação. Fez-se sentir também em setores como educa- 
cão. volitica. economia e outros. O imnacto de sua obra sobre cultura e costumes foi . . . 
grande em todas as camadas da população. Já em sua época era impossivel não tomar 
~os i ção frente à causa aue ele colocara no centro das reflexdes e discnssdes. Também 
. . 
500 anos após o seu nascimento, Lutero não perdeu nada de seu significado histórico, 
como mostraram as solenidades comemorativas realizadas em 1983. 
A produção literária de Lutero é vastissima: prédicas, interpretaçdes biblicas (sua 
"~rofissão" era ~rofessor vara a interpretacão da Saprada Escritura!), escritos teoló- 
. ~ 
gicos eruditos, polêmicos e-pastorais, a tradufão da ~ i b l i a para al ingiade seu povo, o 
alemão, pareceres sobre as mais diversas auestdes. cartas e muito mais. A edicão com- 
pleta de suas obras abrange mais de 100 võlumes. Porém apenas um número reduzidis- 
simo de seus escritos foi traduzido para a lingua portuguesa. O registro dessas tradu- 
sdes (até o ano de 1982) não ocupa nem sequer duas páginas. Nos países de faia ponu- 
guesa era praticamente impossível tomar conhecimento do pensamento profundo e ri- 
co deste "evangelista de Jesus Cristo". 
A Comissão Interluterana de Literatura (CIL), constituída e mantida pela Igreja 
Evangélica Luterana do Brasil (IELB) e pela Igreja Evangélica de Confissão Luterana 
no Brasil (IECLB), aproveitou a oportunidade das comemoraçdes dos 500 anos do 
nascimento de Lutero. ein 1983. oara oromover a oublicacão de "obras selecionadas 
. . . 
de momentos decisivos da Reforma", todas elas de autoria de Lutero. Convocou um 
grupo assessor de qiiatro membros, a Comissão "Obras de Lutero" (COL), para pre- 
parar o volume Pelo Evangelho de Cristo, publicado então em 1984'. O livro possibili- 
ta um conhecimento consideravelmentemelhor do reformador e de sua teologia. Per- 
- 
mite, igualmente, vislumbrar sua atualidade. 
A CIL e a COL, no entanto, estavam cientes, desde o início, de que um volume só 
não é suficiente para um aprofundamento mais abrangente no pensamento de Lutero. 
Decidiu-se preparar uma edisão em vários volumes. O projeto elaborado pela COL 
prevê, no decorrer dos próximos anos, a publicapio de 12 a 14 volumes. Os dois pri- 
i Marlinho I.UTERO, Pelo Evangelho de Crisro; obras selecionadas de momentos decisivos 
da Keforina. Porto Alegre. Concórdia; Sàa Leopoldo, Sinodal, 1984, 338 p. 
O 
i~ieiros apresentam escritos de Lutero dos anos anteriores a 1520 (vol. I) e do ano de 
1.520 (vol. 2) em ordem cronológica. Quer-se mostrar, desta maneira, como Lutero 
<Iicyou a se tornar o reformador da Igreja cristã. Os demais volumes serão temáticos, 
:il>tangendo obras de teologia erudita, escritos relacionados com congregasão e culto 
cristãos, obras polêmicas, obras sobre ética cristã (família, economia, Estado, educa- 
v:lo. etc.), interpretasão da Sagrada Escritura, além de sermões e cartas e um indice 
&*,era1 de toda a coleção. O avanso do projeto depende, naturalmente, dos recursos hu- 
rii:inos e financeiros disooniveis. 
Apresentamos ao público o 1: volume. Foi preparado, em constante contato com 
;I ( 'IL, pela COL, integrada, inicialmente, pelos professoresdr. Nestor Beck, dr . Mar- 
t i l i Norberto Dreher, dr. Joachim Fischer e Mário L. Rehfeldt STM. Posteriormente 
rtiiraram os professores dr. Martim C. Warth (após a partida de Nestor Beck para es- 
i~i,.los na Europa) e dr. Donaldo Scbuler (após o falecimento de Mário L. Rehfeldt). 
<i? inte~rantes da COL são responsáveis pela seleção dos escritos deste volume, as in- 
iioi~usdes, as notas de rodapé e uma primeira revisão das traduçdes. Estas últimas fo- 
i:iiti feitas por Martinho L. Hasse, Annemarie Hohn, Ilson Kayser, Luis M. Sander e 
W:ilter O . Schlupp. Como editor-geral foi contratado o dr. Luis Marcos Sander, res- 
~'iuisável pela revisão e redação final de todos os textos. Executou suas tarefas com 
L,,! :iiide competência e dedicasão. pelo que merece os mais sinceros agradecimentos da 
1 '0l2. 
Quatro escritos deste volume, bem como as respectivas introduções (estas, revisa- 
<I:is), são publicados pela 2: vez. Já estão contidos em Pelo Evangelho de Crislo. E 
IIIII:I opsão consciente da CIL e da COL. Na opinião das duas comissões, o leitor e es- 
iiidioso deve ter à sua disposição, napresente edição, todos os escritos de Lutero sele- 
cionados Dara a ~ublicacão em oortueuês. 
As passageni biblicas citadas nostextos foram traduridas da versâo apresentada 
~ ~ c l o próprio Lutero, com apoio na versão ern português de João Ferreira de Almeida, 
~>iiblicada em edição revista e atualizada (1969) pela Sociedade Bíblica do Brasil. Desta 
edisão foram tomadas as abreviaturas dos livros da Biblia, com exceqão dos apócrifos, 
inra os quais utilizamos as abreviaturas da Blblia de Jerusal4m, publicada em ediqão 
revista (1985) pelas Edições Paulinas. No caso das passagens biblicas citadas por Lute- 
ro, areferência se encontra no corpo do texto. A indica& do(s) versiculo(s)foi acres- 
centada por nós (Lutero indica apenas o capítulo). Quando o próprio Lutero não indi- 
ca onde se encontra a nassaeem citada. a referência foi colocada entre colchetes. . 
Quanto à numeração dos Salmos, acrescentamos entre colchetes o número da versão 
dç Almeida nos casos em aue ele difere da numeracão da Vuleata ítraducão da Bíblia 
para o latim), utilizada por Lutero. Nos casos em'que Luter; al"de ou'se reporta a 
Iiassagens biblicas, a referência se encontra em nota de rodapé. Quando Lutero cita ou 
\c refere a afirmaçdes de outros autores, sobretudo dos pais da Igreja e do direito ca- 
ridnico, a referência foi colocada. semore aue uossivel. em nota de rodaoé. Quanto à 
. . . . . 
iindução, em alguns casos se fez necessário acrescentar palavras ou explicaqões ao tex- 
to de Lutero. Quando imorescindiveis, elas foram inseridas no corpo do texto, entre 
ci>lcbetes. Nos demais casõs, estão em nota de rodapé. Todos os escritos foram tradu- 
~ i<l»s do texto da conhecida edição de Weimar (WA). com utilização de outras versdes 
c iraduções a que tivemos acesso. A indicação exata da fonte se encontra em nota de 
i-<idapé ao titulo de cada escrito. 
A Comissão Interluterana de Literatura e a Comissão "Obras de Lutero" lamen- 
i ; i i i i com profundo pesar o falecimento prematuro de seu colega e irmão em Cristo, 
M!iri<i I.. Rehfeldt, ocorrido em 13 de junho de 1985, dois meses antes de ele comple- 
Iiii- 50 anos de idade. Deixou com a COL, como uma espécie de testamento teológico- 
histórico, as introduções assinadas neste volume com seu nome. CIL e COL prestam- 
lhe esta última homenagem com as palavras do Salmo 34.22, seu salmo predileto: "O 
Senhor resgata a alma dos seus servos, e dos que nele confiam, nenhum será condena- 
do," 
i Ao entregarmos aos leitores de fala portuguesa este volume, fazemos votos de 
que Lutero fique melhor conhecido entre nosso povo e que sua causa se torne bem evi- 
dente: "Que toda lingua confesse que Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai." 
(Filipenses 2.1 1.) 
Janeiro de 198'7 
Pela Comissão "Obras de Lutero" 
Joachim Fischer 
Debate sobre a Teologia Ekcolástical 
A teologia medieval oii escolástica baseava-se amplamentç no pensamento de 
Aristóteles (384-322 a.C.), um dos mais importantes filósofos da antiga Grécia. Era 
comum dizer-se que a filosofia em geral é a serva da teologia" que, sem Aristóteles, 
ninguém pode ser teólogo'. Formaram-se as correntes ou "escolas" dos tomistas, se- 
guidores do dominicano italiano Tomas de Aquino (1225-1274), dos escotistas, segui- 
dores do francisc;uio escocês João Duns Escoto (aproximadamente 1270-1308)4, e dos 
occamistas, segudores do franciscano inglês Guilherme de Occam (aproximadamente 
1285-1349)5, senclo esta última corrente também chamada de "via moderna". 
Na Universl lade de Erfurt. Lutero foi educado segundo os ~ad rdes filosofico- 
iroldgico> do o;. dmi\iiii>. ('r'ilo. p.)riiii. i.inic;,>ii a tiaar iii>ati,icii,? ;c1!11 :I iii:iiicira r., 
colhsti::i J c i a ~ c . lcolov~~i. COIIIC ~ r ~ i c ~ w r de ii1terprct.t;3o J:, liil~li:i, drhJc 1512, i i ~ i 
. . 
recém-fundada (1502) Üniveriidade de Wittenberg, aprofundou-se no estudo da Sagra- 
da Escritura. Em busca de alternativas, encontrou imvortante aiuda nos escritos de 
Aà.?lliiihu (353-430). hiq>o Jc lIipi,ria. ria itri;;i dc8 \<,rir. iiin J<i> iiiaior:\ pcri~;tJ\,~c. 
dc toda 3 ii~stnria .l;i teolozia ;ri,iS, :\~~o,t:nIi~l t,ra p;itr.lri~) .l:i l'tiivcr ,~daJc Jc i4'ilic11- 
herg, e seu pensamento foi de grande importância para a Ordem dos Agostinianos Ere- 
mitas, à qual Lutero pertenceu. A partir decritérios tomados da Bibliae de Agostinho, 
Lutero percebeu que a teologia estava acorrentada no cativeiro da escolástica~impossi- 
hilitadade articular adequadamente a questão essencial da fé cristã, ou seja, graça e jus- 
tificação, Deus em seu relacionamento como ser humano e vice-versa. As verdades da fé 
não podem ser compreendidas em toda a sua profundidade mediante a aplicaçào das re- 
gras dalógica filosófica. A teologia precisava ser libertada, sobretudo da "ditadura" de 
Aristóteles, a quem, certa vez, Lutero caracterizou como "esse palhaço que, com sua 
máscaragrega, tanto enganou a Igreja"6.0 metodo teológico alternativo era o do para- 
doxo: afirmaçdes que a lógica tradicional considerava paradoxais passaram a ser usadas 
oara exoressar adeauadamente as verdades cristãs. 
1 ~ u i e r o tornou:se o mentor espiritual da nova maneira de fazer teologia. Conven- ceu seus colegas da Faculdade de Teologia da necessidade de substituir as matérias tra- I dicionais po;outras, mais adequadas para conduzir os alunos ao centro da fé cristã. 
Em maio de 1517,escreveu a seu amigo João Lang, em Erfurt, que "nossa teologia e 
Agostinho progridem bem, com a ajuda de Deus, e predominam em nossa universida- 
1 Disputotio conlroschhoiosficam rheologiarn, WA 1,224-8. Tiadu~ão de Walter O. Schlupp. 
2 Pkilosophia onciilo theologiae. 
3 Cf. a tese 43 deste escrito. 
4 Um dos mais brilhantes pensadores escolásticos. Lecionou em Paris, na Inglaterra e em Ca- 
Iônia (Alemanha). 
5 Iniciador do norninalismo (v. nota 23 infrB) dos sécs. XIV/XY e da corrente filosófico-teo~ 
lógica da "via moderna". Um das mais fiéis adeptos de sua teologia foi Gabriei Biel (v. no- 
ta 8 infro). Occam lecionou em Paris e faleceu na Alemanha como refugiado. 
6 Carta a loao 1;ang. dc 8 de fevereiro dc 1517 (WA Br 1,88,17s. - no 34). 
de. Aristóteles decai pouco a pouco e está sendo arruinado."7 
Na universidade havia regularmente debates públicos sobre séries de teses formu- 
ladas especialmente para essa finalidade. Quem pretendia adquirir qualquer grau aca- 
dêmico urecisava demonstrar sua cavacidade intelectual particioando de tal debate. 
Como as teses não se destinavam a publicaqão, proporcionavam a oportunidade de 
aoreseiitar idéias novas sem o risco de uma intervenção imediata das autoridades ecle- 
sksticas. Para o debate de seu discípulo Francisco Günther, pretendente ao titulo de 
bacharel em Estudos Bíblicos, Lutero resumiu, em 97 teses claras e radicais, sua critica 
a todo o sistema da teologia escolástica. As teses, redigidas entre 21 de agosto e 4 de 
setembro de 1517, dirigem-se sobretiido contra Gabriel Bielx e sua concepfão dr. ,apa- 
cidade natural do ser humano (teses 5 a 36), bem como contra a concepsão de justisa 
de Aristóteles e o papel do mesmo na teologia (teses 37 a 53), tratando também da re- 
Iasão existente entre grasa, obediência, livre arbítrio e amor (teses 54 a 97). O debate 
realizou-se em 4 de setembro de 1517. Sobre seu conteudo nada sabemos, mas o titulo 
de bacharel em Estudos Bíblicos foi conferido a Francisco Gunther por unanimidade. 
Lutero mandou as teses também para Erfurt e Nurnberg. Estava ansioso para 
conhecer a reação de outros. Chegou a se prontificar a ir pessoalmente a Erfurt para 
defender publicamente seu ataque aos fundamentos da escolástica. Seus ex-professo- 
res, iio entanto, não lhe responderam diretamente. Como soube mais tarde, haviam 
comentado que Lutero era arrogante e condenava precipitadamente os que divergiam 
de sua teologia. Entre os jovens, porém, as criticas de Lutero foram recebidas como 
um ato de libertasão das verdades biblicas de seu cativeiro aristotélico-escolástico. Na 
evolu~ão de Lutero, as teses representam a fase da critica. São o mais importante tes- 
temunho escrito de seu rompimento com a escolástica e, assim, com seu próprio passa- 
do teológico. Ainda não aprezentam o programa de uma teologia alternativa. Entre- 
tanto, com as teses, Lutero removeu definitivamente os obstáculos no caminho em di- 
reção a uma teologia autêntica, que chega ao "interior da noz" e a "medula dos os- 
sosMY. Seu amigo Cristováo Scheurl, de Nürnberg, respondeu-lhe, acertadamente, 
em 4 de novembro daquele ano, após ter recebido as teses: "Restaurar a teologia de 
Cristo!" 
E provável que as teses tenham sido originalmente impressas em forma de cartaz 
para poderem ser afixadas em Wittenberg, nos lugares destinados a esse fim. Não se 
conhece nenhum exemplar do original. Só nas reedições as teses estão numeradas; 
contam-se entre 97 e 100 teses. Os editores modernos preferem contar 97 teses. 
Joachim Fischer 
7 Carta de 18 de maio de 1517 (WA Br 1.99.8-10 - n o 41). 
8 Aproximadamente 1410-1495. Natural da Alemanha, ocupou diversos cargos eclesiasticos, 
lecionou na Universidade de Tiibingen (1484-1492) e escreveu um livro didático deteologia, 
de ampla divulgacâo. Seu pensamento teve grande importância para a formaçâa teológica 
de Lutera. 
9 Carta a João Braun, vigaria em Eisenach, de 17 de marca de 1509 (WA Br 1,17,43s. - r19 
5 ) . 
Pelas teses abaixo responderi, em local e data a serem determinados ain- 
da, o mestre10 Francisco Gunther, de Nordhausen, para obtenção d o grau de 
bacharel em Estudos Biblicosll, sob a presidência d o reverendo padre Marti- 
nho Lutero, agostiniano, decano da Faculdade de Teologia de Wittenberg. 
1. Dizer que Agostinho'%e excede a o atacar os hereges é dizer que Agos- 
tinho quase sempre teria mentido. Contra a opinião geral. 
2. Isto é o mesmo que oferecer aos pelagianosl? e a todos os hereges uma 
oportunidade de triunfo ou mesmo uma vitória; 
3. e é o mesmo que expor a o deboche a autoridade de todos os mestres 
d a Igreja. 
4. Por isso, é verdade que o ser humano, sendo árvore má)', não pode se- 
não querer e fazer o mal. 
5. Está errado que o desejo é livre para optar por qualquer uma de duas 
alternativas opostas; pelo contrario: ele não é livre, e sim cativo. Contra a 
opinião comum. 
6. Está errado que, por natureza, a vontade possa conformar-se ao dita- 
me correto. Contra Duns Escoto e Gabriel Biel. 
7. Na verdade, sem a graça de Deus, a vontade suscita necessariamente 
u m ato desconforme e mau. 
8. Não se segue dai, entretanto, que ela seja má por natureza, isto é, per- 
tencente a o mal por natureza, conforme pretendem os maniqueusl~. 
9. Mesmo assim, por natureza e inevitavelmente ela é ina e de natureza 
viciada. 
10. Admite-se que a vontade não é livre para tender para aquilo que lhe 
parece bom segundo a razão. Contra Duns Escoto e Gabriel Biel. 
11. Ela também não tem a capacidade de querer o u não querer o que 
quer que se lhe apresente. 
12. Dizer isto tampouco é contra o B. Agostinho, que diz: Nada esta tan- 
t o dentro d a capacidade d a vontade quanto a própria vontade. 
13. Absurdissima é a conseqüência de que o ser humano em erro pode 
amar a criatura acima de tudo e, portanto, também a Deus. Contra Duns Es- 
coto e Gabriel Biel. 
10 A universidade conferia os títulos de bacharel, mestre e doutor. Francisco Günther já obti- 
vera o grau de mestre na Faculdade de Artes Liberais. uma espécie de curso básico para to- 
dos as estudantes. 
I I Grau conferido pela Faculdade de Teologia. O bacharel cm Estudos Biblicos estava habili- 
tado a dar aulas sobre aBiblia. 
12 Cf. a introduçâo a este escrito. 
13 Adeptos do asceta britânico Pelágio (m. depois de 416), que viveu durante muito tcmpo em 
Roma. Afirmou que o cristão é capaz de chegar a perfeicào através da cumprimento da lei 
de Deus e rejeitou a doutrina do pecado original. O pelagianismo foi virias vezes condena- 
do coma heresia. 
14 <If Mt 7.17. 
eiitrç u hcm e o mal (ou a luz e as trevas). 
15 
14. Não é de estranhar que ela pode conformar-se ao ditame erroneo e 
não ao correto. 
15. Pelo contrário, é característica sua conformar-se exclusivamente ao 
ditame errado e não ao correto. 
16. Preferível é esta consequência: o ser humano em erro pode amar a 
criatura; portanto, é impossível que ame a Deus. 
17. Por natureza, o ser humano não consegue querer que Deus scja 
Deus; pelo contrário, quer que ele mesmo seja Deus e que Deus não scja 
Deus. 
18. Amar a Deus, por natureza, sobre todas as coisas, é uma ficção, tinia 
quimera, por assim dizer. Contra a opinião quase geral. 
19. Também não tem validade o pensamento de Escoio a respeito do va- 
lente cidadão que ama a coisa pública mais do que a si mesmo. 
20. Um ato de amizade não provém da natureza, mas da graça preve- 
niente. Contra Gabriel Biel. 
21. Nada há na natureza senão atos de concupiscência contra Deus. 
22. Todo ato de concupiscência contra Deus é iim mal c uma prostitui- 
ção do espírito. 
23. Também não é verdade que um ato de concupiscência podc ser posto 
em ordem pela virtude da esperança. Contra Gabriel Biel. 
24. Isto porque a esperança não é contrária ao amor, que somente busca 
e deseja o que é deDeus. 
25. A esperança não vem de méritos, mas de sofrimentos que destroem 
méritos. Contra a prática de muitos. 
26. O ato de amizade não é a forma mais perfeita de fazer o que está em 
si's, nem a mais perfeita disposição para a graça de Deus, nem uma forrna de 
se converter e de se aproximar de Deus. 
27. Ele é, 'isto sim, um ato de uma conversão já realizada, temporaltnen- 
te e por natureza posterior a graça. 
28. "Tornai-vos para mim, e eu me tornarei para vós outros." [Zc 1.3.1 
"Chegai-vos a Deus, e ele se chegará a vós outros." [Tg 4.8.1 "Buscai e acha- 
reis." [Mt 7.7.1 "Quando me buscardes, serei achado de vós." [Jr 29.13s.l - 
Afirmar, a respeito destas e de outras passagens semelhantes, que uma parte 
cabe a natureza e a outra a graça, não é outra coisa que sustentar o que disse- 
ram os pelagianos. 
29. A melhor e infalível preparação e a Única disposição para a graça é a 
eleição e predestinação eterna de Deus. 
30. Da parte do ser humano, entretanto, nada precede a graça senão in- 
16 Focere quod e n in se. no original: "fazer (tudo) o que se é capaz de fazer". Trata-se da 
idéia de que Deus dá sua graça a quem faz o que é capar de fazer. Essa ideia está presente 
tanto na teologia como na religiosidade popular da Idade Média. Fazendo o que é capaz de 
fazer, a ser humano prepara-se para o recebimento da graya de Deus. Segunda Tomás de 
Aquino, a ser humano só pode fazê-lo movido pela graça divina. Para Alexandre de Haies 
íoor volta de 1170-12451. natural da Inalaterra e desde a~raximadamente 1231 franciscano. 
. . - 
quem faz o que é capaz de fazer é igual a uma pessoa que abre a janela: não acende a luz no 
quarto nem o ilumina, mas faz com que a luz possa entrar nele para iluminá-lo. 
disposição e até mesmo rebelião contra a graça. 
3 1. Invencionice vanissima é a afirmação de que o predestinado pode ser 
condenado separando-se os conceitos, mas não combinando-osi'. Contra os 
escolásticos. 
32. Igualmente não resulta nada da afirmação de que a predestinação é 
I necessária pela necessidade da conseqüência, mas não pela necessidade do 
consequentelg. 
33. Falsa é também a tese de que fazer o que está em si equivale a remo- 
ver os obstáculos que se opõem a graça. Contra determinados teólogos. 
34. Em suma, a natureza não tem nem ditame correto nem vontade boa. 
35. Não é verdade que a ignorância irremediável19 exime de toda culpa. 
Contra todos os escolásticos. 
36. Porque a ignorância de Deus, de si mesmo e do que são boas obras 
sempre é irremediável para a natureza. 
37. A natureza até necessariamente se vangloria e orgulha por dentro da 
i 
obra que, na aparência e exteriormente, é boa. I 38. Não existe virtude moral sem orgulho ou tristeza, isto é, sem pecado. I 39. Não somos senhores dos nossos atos desde o principio até o fim, e sim escravos. Contra os filósofos. 40. Não nos tornamos justos por realizarmos coisas justas; é tendo sido 1 L i feitos justos que realizamos coisas justas. Contra os filósofos. 41. Quase toda a Efica de Aristóteleszoé a pior inimiga da graça. Contra 
os escolá>ticos. 
42. E um erro dizer que a concepção de felicidade de Aristóteles não con- 
traria a d y t r i n a católica. Contra os moralistas. 
43. E um erro dizer que, sem Aristóteles, ninguém se torna teólogo. 
Contra a opinião geral. 
44. Muito pelo contrário, ninguém se torna teólogo a não ser sem Aris- 
tóteles. 
45. Dizer que o teólogo que não é um lógico é um monstruoso herege, é 
uma afirmação monstruosa e herética. Contra a opinião geral. 
17 O que significa separar e combinar os conceitos pode ser mostrado atraves do seguinte 
exemplo: "Quem dorme, pode estar acordado" é uma afirmação correta "separando-se os 
conceitos", pois um ser humano pode dormir e estar acordado em momentos diferentes. 
1 Mas é uma afirmacão errada "combinando-se os conceitos", pois ninguém pode dormir e estar acordado ao mesmo tempo. 
18 "Necessidade da conseqiiência" quer dizer, neste contexto: aquilo que Deus quer, acontece 
I 
necessariamente; quem for predestinado por Deus, será necessariamente salvo. "Necessida- 
de do conseqüente" quer dizer: não se pode demonstrar que delermirrada pessoa necesaa- 
riamente tivesse que ser predestinada por Deus. 
19 Ipnoronlia invincibilir, no original. Por "ignorância irremediável" os teólogos escolásticos 
entendiam o fato de que obstáculos intransponiveis impedem uma pessoa de conhecer o 
verdadeiro e único caminho da salvaçáo, que é indicado pela Igreja de Roma. Tal ignarân- 
'4 cia, diriam. não 6 pecado; conseqüentemente, exime de toda culpa. Além disso conheciam 
a "ignorância grave", que exime de grande parte de culpa, e a "ignorância intencional", 
') ciija conreqdência é uma culpa maior. 
'I 
211 < ' V . a iiitio<liiyãii a csrc escrilo. 
17 
46. É em vão que se forja uma lógica da fé, uma suposição sem pé nem 
cabeça. Contra os dialéticos recentes. 
47. Nenhuma fórmula silogistica subsiste em questões divinas. Contra o 
cardeal Pedro d'Ailly2'. 
48. Mesmo assim, não se segue dai que a verdade do artigo sobre a Trin- 
dade contraria as fórmulas silogisticas. Contra aqueles e contra o cardeal. 
49. Se uma fórmula silogistica subsistisse em questões divinas, o artigo 
sobre a Trindade seria conhecido, em vez de ser crido. 
50. Em suma, todo o Aristóteles está para a teologia como as trevas es- 
tão para a luz. Contra os escolásticos. 
51. É altamente duvidoso que os latinos tenham uma opinião correta so- 
bre Aristóteles. 
52. Teria sido bom para a Igreja se Porfiri022 com seus universal ia^^ não 
tivesse nascido para os teólogos. 
53. As definições mais correntes de Aristóteles parecem pressupor aquilo 
que pretendem provar. 
54. Para o ato meritório basta a coexistência da graça; do contrário, a 
coexistência nada é. Contra Gabriel Biel. 
55. A graça de Deus nunca coexiste de forma ociosa, mas é espírito vivo, 
ativo e operante; nem mesmo pelo poder absoluto de Deus pode suceder que 
haja um ato de amizade sem que a graça de Deus esteja presente. Contra Ga- 
briel Biel. 
56. Deus não pode aceitar o ser humano sem a graça justificante de 
Deus. Contra Occam. 
57. Perigosa é a afirmação de que a lei preceitua que o cumprimento do 
preceito suceda dentro da graça de Deus. Contra o cardeal Pedro d'Ailly e 
Gabriel Biel. 
58. Tal afirmação implica que ter a graça de Deus seria uma nova exigên- 
cia além da lei. 
59. Tal afirmação implica também que o cumprimento do preceito pode- 
ria ocorrer sem a graça de Deus. 
60. Ela também implica que a graça de Deus se tornaria mais odiosa do 
que a própria lei o foi. 
61. Disso não se infere que a lei deve ser guardada e cumprida na graça 
de Deus. Contra Gabriel Biel. 
21 1350-1420, francês. lecionou na Universidade de Paris, tendo sido mais tarde nomeado bis- 
po (1396 em Cambrai) e cardeal (141 1). e um dos teõlogos em cujos escritos Lutero se apro- 
fundou como estudante universitirio. 
22 232/33-304/05, lilásafo neoplatõnico que, embora fosse inimigo do cristianismo, exerceu 
grande influência sobre o mesmo. Sua introduçào aos escritos lógicos de Aristoteies, rcdigi- 
da em grego e traduzida para o latim, no séc. VI, por Boécio, foi o ponto de partida para a 
controvérsia medieval sobre os universoiio (cf. a nata seguinte). 
23 Conceitos gen6ricos. Na Idade Média discutiu-se a relaçào entre eles e as coisas reais e per- 
ceptiveis. O realismo platõnico afirmava que os conceitos genéricos existem realmente, se- 
parados das coisas. Segundo o realismo aristotéiico, os conceitos existem imanentes as coi- 
sas. Para o nominalisma, eles sao meras abstraçdes das coisas concretas, abstraçdes essas 
produzidas pelo raciocinio humano. 
62. Portanto, quem está fora da graça de Deus peca constantemente, 
mesmo não matando, não praticando adultério, não cometendo roubo. 
63. A conclusão a ser tirada é queessa pessoa peca por cumprir a lei de 
forma não espiritual. 
64. Não mata, não pratica adultério nem comete roubo espiritualmente 
quem não se ira nem cobiça. 
65. Fora da graça de Deus é a tal ponto impossivel não ser tomado de ira 
ou de cobiça, que nem mesmo na graça isso pode suceder de forma a cumprir 
perfeitamente a lei. 
66. Não matar, não praticar adultério, etc. exteriormente e em ato con- 
I creto é justiça dos hipócritas. 67. Não cobiçar e não se encolerizar provém da graça de Deus. 
I 68. Portanto, sem a graça de Deus é impossível cumprir a lei, seja de que 
I maneira for. 69. Sim, por natureza, sem a graça de Deus, ela é mais transgredida ain- 
da. 
70. Para a vontade natural, a lei, que, em si, é boa, torna-se inevitavel- 
mente má. 
71. Sem a graça de Deus, a lei e a vontade são dois adversários implacá- 
veis. 
I 72. Aquilo que a lei quer, a vontade nunca quer, a menos que, por temor 
ou por amor, finja querê-lo. 
73. A lei é o executor da vontade, que é superado apenas pelo "menino 
que nos nasceu" [Is 9.61. 
74. A lei faz abundar o pecado, porque irrita e retrai de si mesma a von- 
tade. 
75. Mas a graça de Deus faz abundar a justiça através de Jesus Cristo, 
porque torna agradável a lei. 
76. Toda obra da lei sem a graça de Deus parece boa exteriormente, mas 
interiormente é pecado. Contra os escolásticos. 
77. Sem a graça de Deus, a mão está voltada para a lei do Senhor, mas a 
vontade está sempre afastada dela. 
78. Sem a graça de Deus, a vontade se volta para a lei movida pela vanta- 
gem própria. 
79. Malditos são todos os que praticam as obras da lei. 
80. Benditos são todos os que praticam as obras da graça de Deus. 
81. Quando não entendido de forma errônea, o capitulo Falsas depe . 
I dis. V2lconfirma que, fora da graça, as obras não são boas. 
I 82. Não só as leis cerimoniais são leis não boas e preceitos nos quais não 
se vive. Contra muitos mestres. 
83. Isto vale também para o próprio Decálogo e para tudo o que puder 
ser ensinado ou prescrito interior ou exteriormente. 
24 Decreturn rnogisiri Crolioni, parte 11, causa XXXIII, questào 111, distindio V, capitulo 6 , 
in: Corpus iuris canonici, Graz, 1955, v . I , col. 1241. O Decreturn Grorioni é a campila~ão 
dr> direito can6nico feita pelo monge camaldulense Graciano pouco depois de 1140. 
19 
84. A lei boa na qual se vive é o amor de Deus derramado em nossos co- 
rações pelo Espírito Santo2J. 
85. Se fosse possível, a vontade de qualquer pessoa preferiria ser comple- 
tamente livre e que não houvesse lei. 
86. A vontade de qualquer pessoa odeia que a lei lhe seja imposta, a me- 
nos que deseje que lhe seja imposta por amor a si mesma. 
87. Já que a lei é boa, nâo pode ser boa a vontade que é inimiga da lei. 
88. Disso se evidencia claramente que toda vontade natural é iníqua e 
má. 
89. A graça é necessária como mediadora que concilie a lei com a vonta- 
de. 
90. A graça d e Deus é dada para orientar a vontade, para que esta não 
erre também ao amar a Deus. Contra Gabriel Biel. 
91. Ela nâo é dada para suscitar atos com maior freqüência e facilidade, 
mas por ue, sem ela, nenhum ato de amor é suscitado. Contra Gabriel Biel. 
92. i. irrefutável o argumento de que o amor seria supérfluo se, por na- 
tureza, o ser humano fosse capaz de um ato de amizade. Contra Gabriel Biel. 
93. Perversidade sutil é dizer que fruir e usar constituem o mesmo ato. 
Contra Occam, o cardeal Pedro d'Ailly e Gabriel Biel. 
94. O mesmo vale para a afirmação de que o amor a Deus subsiste mes- 
m o ao lado de intenso amor pela criatura. 
95. Amar a Deus significa odiar a si mesmo e nada saber além de Deus. 
96. Nosso querer deve conformar-se em tudo a ~ f o n t a d e divina. Contra o 
cardeal Pedro d'Ailly. 
97. Não só devemos querer o que ele quer que queiramos, mas devemos 
querer absolutamente qualquer coisa que Deus queira. 
Com isto nada queremos dizer nem acreditamos ter dito qualquer coisa 
que não esteja de acordo com a Igreja católica e os mestres d a Igreja. 
25 Cf. Rm 5 . 5 
Debate para o Esclarecimento 
do Valor das indulgênciasi 
As 95 teses, cuja afixasão, a 31 de outubro de 1517, é comemorada anualmente 
conio Dia da Reforma, de modo algum tinham a intenqão de deíiagrar um movimen- 
to. Lutero nada mais pretendia que o esclarecimento teológico de uma questão que o 
envolvia como cura d'almas e que tinha implicaçdes para a piedade de seus paroquia- 
nos: a indulgência. A indulgência está relacionada ao Sacramento da Penitência. Na 
I'cnitência, esperavam-se o arrependimento do pecador, a confissão na presença de 
urn sacerdote, a absolvição e a satisfafáo imposta. Na satisfaqão, o pecador deveria 
fazer reparasão ou expiasão por causa do castigo que o pecado acarretava. Era opi- 
nião corrente que o pecado não só acarretava culpa, mas também castigo. Esse castigo 
deveria ser assumido aqui na terra ou expiado no purgatório. Na Alta Idade Média e 
na Idade Média Tardia desenvolveram-se, em conexão com o Sacramento da Penitên- 
cia e com o surgimeiito da doutrina das indulgências, doutrinas que diziam respeito a 
questdes de direito divino e de direito eclesiástico, ao purgatório e ao "tesouro da 
Igreja". Este seria formado pelos méritos excedentes de Cristo e dos santos, podendo 
ser usado pela Igreja para conceder indulgências a terceiros. As indulgências, surgidas 
no século XI, diriam respeito, inicialmente, apenas aos castigos temporais impostos 
pela Igreja, mais tarde; aos castigos temporais que deveriam ser purgados no purgató- 
rio e, iinalmente, também aos pecados de parentes já falecidos que estavam no purga- 
tório. As opiniões dos teólogos divergiam bastante uma da outra, e, no inicio do sécu- 
lo XVI, não havia a necessária clareza a respeito do assunto. 
As indulgências tinham destacada importância sob o aspecto financeiro. A Cúria 
e o Estado papal dependiam em grande parte das rendas auferidas com a venda de in- 
dulgências. Muitos projetos eram financiados com a publicação de indulgências. No 
campo econômico, pode-se afirmar que as indulgências tinham a mesma função que, 
mais tarde, teriam os empréstimos. Para os fiéis, a indulgência era uma oportunidade 
de se protegerem do purgatório e do juizo eterno. Aqui, o desejo de salvaçâo encon- 
trado entre o povo vem ao encontro das necessidades financeiras da Cúria. 
As criticas que Lutero tece nas 95 teses são oriundas de suas preocupaçdes como 
cura d'almas. bem como de seu comoromisso de. como doutor em Teologia. ter oue 
- . 
zelar pela correta doutrina e pregasã; da Igreja. suas criticas são possiveis, pois aiida 
não existem formulacões doamáticas acerca da questão. Por outro lado são coraiosas. 
. . 
pois têrn que enfrentar um uso muito difundidóe o interesse financeiro da Cúria Ro- 
mana. 
e qualquer forma de indulgência; limita-a, no entanto, as penas temporais impostas 
I I>i.spurario pro deciorotione virlutis indulgenliorum, WA 1,233-8. Tradução de Waltei O. 
Schliipp. 
2 1 
pela Igreja e volta-se contra a falsa segurança provocada pela indulgência. Por trás da 
critica comedida encontram-se já alguns indicios para o que há de seguir-se. Nota-se 
isso no conceito de uenitência. Que. uara Lutero, não é o sacramento, mas arrenendi- 
. . 
mento, segundo o uso do conceito no Novo Te~tamento. Há também um novo concei- 
to de ministério, uois, segundo Lutero, o sacerdote só uode uerdoar cuba como decla- 
ração de que elajá foi perdoada por Deus. Lutero ataca a doutrina do "tesouro da 
Igreja" (tese 62). Algumas formulaçdes evidenciam que, formalmente, as teses já não 
eram apenas temas de discussão. Vejam-se as teses 42-51, que principiam com as pald- 
vras "Deve-se ensinar aos cristâos que...". Por tudo isso não é de admirar que a dis- 
~ ~ 
tos. 
Em meados de 1518, Lutero publicou Um sermào sobreu indulgência e a pruçu, 
que resume os pensamentos centrais das 95 teses de 1517. Nesse escrito, o acento é co- 
locado no fato de que arrependimento e penitência são algo que atinge o ser humano 
todo. O cristão náo deve fuair ao castieo. mas assumi-lo como cruz. As obras aue o 
- " . 
cristão deve realizar são serviço ao próximo e não devem ser entendidas conio atos em 
prol de seu aperfeiçoamento ou ainda como fuga aos castigos impostos por Deus e, co- 
mo tais, úteis ao ser humano. Neste sermão já começa a ser esboçada a opinião de que 
a ~rá t ica da Penitência só uoderá ser corriaida caso houver combate a doutrina da teo- 
logia escolástica, que indiz à ociosidade da fé. 
Martin N. Dreher 
Por amor h verdade e n o empenho de elucidá-Ia, discutir-se-á o seguinte 
em Wittenherg, sob a presidência d o reverendo padre Martinho Lutero, mes- 
tre d e Artes e de Santa Teologia e professor catedrático desta última, naquela 
localidade. Por esta razão, ele solicita que os que não puderem estar presen- 
tes e debater conosco oralmente o façam por escrito, mesmo que ausentes. 
Em nome d o nosso Senhor Jesus Cristo. Amém. 
1. A o dizer: "Fazei penitência"2, etc. [Mt 4.171, nosso Senhor e Mestre 
Jesus Cristo quis que toda a vida dos fiéis fosse penitência. 
2. Esta expressão não pode ser entendida n o sentido da Penitência 
2 Também seria possível traduzir "arrependei-vos". No entanto, como a palavra latina p o e ~ 
no tem caráter jurídico-legal, é preferível que se opte por "penitência". Ao usar o conceito, 
tomando-o de Mt 4.17, na versão da Vulgata, Lutera já está entrando no centro da discus- 
são. Cf. a carta de Lutero a Staupitz (30/5/1518). WA 1,525-7. 
sacramental' (isto é, d a confissão e satisfação4 celebrada pelo ministério dos 
sacerdoies). 
3. No entanto, ela não se refere apenas a uma penitência interior; sim, a 
~en i t ênc ia interior seria nula se. externamente. não oroduzisse toda sorte de 
mortificacões d a carne. 
4. po r conseqüência, a pena perdura enquanto persiste o ódio de si mes- 
m o (isto é a verdadeira penitência interior), o u seja, até a entrada n o reino 
dos céus. 
5. O papa não quer nem pode dispensar de quaisquer penas senão daque- 
las que impôs por decisão própria o u dos cãnones. 
6. O papa não pode remitir culpa alguma senão declarando e confirman- 
d o que ela foi perdoada por Deus, ou , sem dúvida, remitindo-a nos casos re- 
servados para si; se estes forem desprezados, a culpa permanecerá por intei- 
ro. 
7. Deus não perdoa a culpa de qualquer pessoa sem, a o mesmo tempo, 
sujeitá-la, em tudo humilhada, a o sacerdote, seu vigário. 
8. Os cãnones penitenciais' são impostos apenas aos vivos; segundo os 
mesmos cãnones, nada deve ser imposto aos moribundos. 
9. Por isso o Espírito Santo nos beneficia através d o papa quando este, 
em seus decretos, sempre exclui a circunstância d a morte e d a necessidades. 
10. Agem mal e sem conhecimento de causa aqueles sacerdotes que reser- 
vam aos moribundos penitências canônicas para o purgatório7. 
11. Essa erva daninha de transformar a pena canônica em pena d o pur- 
gatório parece ter sido semeada enquanto os bispos certamente dormiama. 
12. Antigamente se impunham as penas canônicas não depois, mas antes 
da absoivicão. como verificacão da verdadeira contricão9. . . 
13. Através damorte , os moribundos pagam tudo e jáestão mortos para 
as leis canônicas, tendo, por direito, isenção das mesmas. 
3 A Penitência é um dos sete sacramentos da Igreja Católica Romana. Ao usar a expressao 
"Penitência sacramental". fica evidente que Lutero não nega a Penitència, mas dá-lhe um 
sentido mais orofundo. a oartir da Novo Testamento ícf. tese I). 
satisfacão ocorre por meio de indulgências. 
5 Prescrição da modo de confessar ou expiar. 
6 Sc. extrema. 
7 O purgatório, um estado de penitência e purificação entre a morte e o juizo final, é, para a 
doutrina católico-romana, o local para o pagamento das penas decorrentes dos pecados. 
Estas penas podem ser parcial ou tatalmente eliminadas pelas indulgências. No mundo cris- 
tào. a doutrina da purgatório surge primeiro em Origenes, no século li. Em 1517, Lutero 
ainda aceita a doutrina do purgatório. Mais tarde irá abandoná-la completamente. 
8 Cf. Mt 13.25. 
9 Nas ordens penitenciais da Igreja antiga, existentes desde os dias de Tertuliano, o pecador 
tinha que fazer satisfação para alcan~ar a readmissào na comunhão eclesiástica. Após asa- 
tisfacão, era-lhe anunciada a absolvição e concedida readmissão. Com esta referência his- 
tórica, Lutcro pretende reforgar a dito na tese 8, onde afirma que as satisfações só podem 
sei impostas aos vivos e não aos mortos. 
14. Saúdeioou amor imperfeito no moribundo necessariamente traz con- 
sigo grande temor, e tanto mais, quanto menor for o amor. 
15. Este temor e horror por si sós já bastam (para não falar de outras 
coisas) para produzir a pena do purgatório, uma vez que estão próximos do 
horror do desespero. 
16. Inferno, purgatório e céu parecem diferir da mesma forma que o de- 
sespero, o semidesespero e a segurança. 
17. Parece necessário, para as almas no purgatório, que o horror dimi- 
nua na medida em que cresce o amor]'. 
18. Parece não ter sido provado, nem por meio de argumentos racionais 
nem da Escritura, que elas se encontram fora do estado de mérito ou de cres- 
cimento no amor. 
19. Também parece não ter sido provado que as almas no purgatório es- 
tejam certas e seguras de sua bem-aventurança, ao menos não todas, mesmo 
que nós, de nossa parte, tenhamos plena certeza. 
20. Portanto, sob remissão plena de todas as penas o papa não entende 
simplesmente todas, mas somente aquelas que ele mesmo impôs. 
21. Erram, portanto, os pregadores de indulgências que afirmam que a 
pessoa é absolvida de toda pena e salva pelas indulgências do papa. 
22. Com efeito, ele não dispensa as almas no purgatório de uma única 
pena que, segundo os cânones, elas deveriam ter pago nesta vida. 
23. Se é que se pode dar algum perdão de todas as penas a alguém, ele 
certamente só é dado aos mais perfeitos, isto é, pouquíssimos. 
24. Por isso, a maior parte do povo está sendo necessariamente ludibria- 
da por essa magnífica e indistinta promessa de absolvição da pena. 
25. O mesmo poder que o papa tem sobre o purgatório de modo geral, 
qualquer bispo e cura têm em sua diocese e paróquia em particular. 
26. O papa faz muito bem ao dar remissão as almas não pelo poder das 
chaves (que ele não teml2), mas por meio de intercessão. 
27. Pregam doutrina humana os que dizem que, tão logo tilintar a moe- 
da lauçada na caixa, a alma sairá voandol3. 
28. Certo é que, ao tilintar a moeda na caixa, podem aumentar o lucro e 
a cobica; a intercessão da Igrejaid, porém, depende apenas da vontade de 
Deus. 
29. E quem é que sabe se todas as almas no purgatório querem ser resga- 
10 Sc. espiritual. 
I I O sofrimento do purgatório é um castigo de purificação imposto por Deus e não pelos seres 
humanos. No emito E m l i c o ~ do debate sobre o valor dm indulgêncim ípp. IMss. da te vo- 
lume), Lutero dirá que no purgatório deve ser consumido o resto do velho ser humano, Pa- 
ra que surja a nova vida na Espirito. O medo ante o castigo desaparece, enquanto que a fé e 
O amor crescem. 
12 Sc. para este fim. 
13 Sc. do purgatório. Segundo o pesquisador católico Nicolau Paulus, o pregador dominicano 
João Tetzel realmente anunciou em suas pregaçdes a frase: "Antes que o dinheiro iilinte na 
caixa, a alma salta do purgatório." 
14 Isto é. sua aceitação. 
tadas? Diz-se que este não foi o caso com S. Severino e S. PascoaliJ. 
30. Ninguém tem certeza da veracidade de sua contrição, muito menos 
de haver coiiseguido plena remissão. 
3 1. Tão raro como quem é penitente de verdade é quem adquire autenti- 
camente as indulgências,ou seja, é rarissimo. 
'! 32. Serão condenados em eternidade, juntamente com seus mestres, 
i aqueles que se julgam seguros de sua salvação através de carta de indulgên- cia. 33. Deve-se ter muita cautela com aqueles que dizem serem as indulgên- cias do papa aquela inestimável dádiva de Deus através da qual a pessoa é re- 
I conciliada com Deus. 
34. Pois aquelas graças das indulgências se referem somente as penas de 
satisfação sacramental, determinadas por seres humanos. 
35. Não pregam cristãmente os que ensinam não ser necessária a contri- 
ção aqueles que querem resgatar almas ou adquirir breves confessionais~6. 
36. Qualquer cristão verdadeiramente arrependido tem direito a remis- 
são plena de pena e culpa, mesmo sem carta de indulgência. 
37. Qualquer cristão verdadeiro, seja vivo, seja morto, tem participação 
em todos os bens de Cristo e da Igreja, por dádiva de Deus, mesmo sem carta 
de indulgência. 
38. Mesmo assim, a remissão e participação do papa de forma alguma 
devem ser desprezadas, porque (como disse") constituem declaração do per- 
dão divino. 
39. Até mesmo para os mais doutos teólogos é dificílimo exaltar perante 
o povo, ao mesmo tempo, a liberalidade das indulgências e a verdadeira con- 
trição. 
40. A verdadeira contrição procura e ama as penas, ao passo que a abun- 
dância das indulgências as afrouxa e faz odiá-las, pelo menos dando ocasião 
para tanto. 
41. Deve-se pregar com muita cautela sobre as indulgências apostólicas, 
para que o povo não as julgue erroneamente como preferíveis às demais boas 
obras de amor 
15 1\., c<;riio Eipliiu(ór~rdo <Iel,iire whre o iuli>r<lacinduly?n:,m lp. I 7 5 de,ic iulunir). Luteri) 
A i r i "1\13 l i uni c;rir.i Iidedigiio a riipciid do. dai,. p3rCni i > u s ~ ; . ,n i~r qucele; poJsriAm 
ter sido libertos por seus méritos, se tivessem querido sei glorificados em grau menor. (...) 
Mas nessas coisas cada um creia o que quiser, para mim tanta faz." Lutero reproduz pcnsa- 
mentos do agostiniano João Censer von Paltz (até 1507 em Erfurt). 
16 As confessionolio. "breves confessionais". eram oarte imwrtante das macas relacionadas 
.. . 
:ort. 4 prd.'ldnid;do d.,. 1iidulg6n:.a\ ~tihil.rri Oiiciii ..>mpiairc ia: pri\il?piJ adduiriradi- 
riiio .I< c*.wllier tini .x,iitr\r<,r. a.> qual li.i>i&ni ; ~ i v c J i h > ai.i<,ii?&;.>cr tis:iilJdc\) 
c..pc.iui> I > i r i a ab$ul\i;&i. Aleni dirx,. aJquiria uoid ind~lgi'n;id p.iniiia par4 \zr ii<add 
uma vez na vida e para a hora da morte. Os confessores indicados, quando da venda de 
I uma tal bula extraordinária, tinham a autoridade de conceder dispensa também nos casos reservados ao papa e de transformar promessas especialmente severas em outras de menor peso. Alem disso, podiam autorizar a retenção de bens ilegitimamente adquiridos, de ma- 
trimônios entre pessoas inabilitadas devido a certos graus de parentesco, etc. 
17 Cf. tese 6. 
42. Deve-se ensinar aos cristãos que não é pensamento do papal8 que a 
compra de indulgências possa de alguma forma ser comparada com as obras 
de misericórdia. 
43. Deve-se ensinar aos cristãos que, dando ao pobre ou emprestando ao 
necessitado, procedem melhor do que se comprassem indulgências. 
44. Ocorre que através da obra de amor cresce o amor e a pessoa se torna 
melhor, ao passo que com as indulgências ela não se torna melhor, mas ape- 
nas mais livre de pena. 
45. Deve-se ensinar aos cristãos que quem vê um carente e o negligencia 
para gastar com indulgências obtém para si não as indulgências do papa, mas 
a ira de Deus. 
46. Deve-se ensinar aos cristãos que, se não tiverem bens em abundãn- 
cia, devem conservar o que é necessário para sua casa e de forma alguma des- 
perdiçar dinheiro com indulgências. 
47. Deve-se ensinar aos cristãos que a compra de indulgências é livre e 
não constitui obrigação. 
48. Deve-se ensinar aos cristãos que, ao conceder indulgências, o papa, 
assim como mais necessita, da mesma forma mais deseja uma oração devota 
a seu favor do que o dinheiro que se está pronto a pagar. 
49. Deve-se ensinar aos cristãos que as indulgências do papa são úteis se 
não depositam sua confiança nelas, porém extremamente prejudiciais se per- 
dem o temor de Deus por causa delas. 
50. Deve-se ensinar aos cristãos que, se o papa soubesse das exações dos 
pregadores de indulgências, preferiria reduzir a cinzas a Basilica de S. Pedro 
do que edificá-Ia com a pele, a carne e os ossos de suas ovelhas. 
51. Deve-se ensinar aos cristãos que o papa estaria disposto - como é 
seu dever - a dar do seu dinheiro aqueles muitos de quem alguns pregadores 
de indulgências extraem ardilosamente o dinheiro, mesmo que para isto fosse 
necessário vender a Basilica de S. Pedro. 
52. Vã é a confiança na salvação por meio de cartas de indulgências, 
mesmo que o comissário'9 ou até mesmo o próprio papa desse sua alma como 
garantia pelas mesmas. 
53. São inimigos de Cristo e do papa aqueles que, por causa da pregação 
de indulgências, fazem calar por inteiro a palavra de Deus nas demais 
igrejas". 
- .- 
18 Lutero pensa ter o apoio papal ao discutir estas questdes. Na época julga poder usar a opi- 
nião papal contra seus adversários. Somente alguns anos mais tarde é que verá que estava 
enganado. 
19 Pessoa caniissionada pela Igreja com a venda de indulgêi.cias. O príncipe-eleitor e arcebis- 
po de Mogúncia, Alberto de Hohenzollern, era comissário-mor para a província eclesiásti- 
ca alemã. João Tetzel, o pregador daminicano, era subcamissário. 
20 Durante o periodo de sua permanência em uma localidade, o comissário era senhor absolu- 
to sobre a igreja e sobre as sacerdotes. Determinava quando e onde poderia ser pregada. 
Podia, além disso, suspender a5 indulgências especiais, proibir a confissão, sob pena de ex- 
comunhão, designar confessores de indulgência. - Nas teses 53-55 bate forte o caracão de 
Lutero: a indulgência ameaca silenciar a palavra de Deus. Unico fundamento da Igreja e da 
26 
54. Ofende-se a palavra de Deus quando, em um mesmo sermão, se dedi- 
ca tanto ou mais tempo ás indulgências do que a ela. 
55. A atitude do papa é necessariamente esta: se as indulgências (que são 
o menos importante) são celebradas com um toque de sino, uma procissão e 
uma cerimônia, o Evangelho (que é o mais importante) deve ser anunciado 
com uma centena de sinos, procissões e cerimônias. 
56. Os tesouros da Igreja21, dos quais o papa concede as indulgências, 
não são suficientemente mencionados nem conhecidos entre o povo de Cris- 
to. 
57. É evidente que eles certamente não são de natureza temporal, visto 
que muitos pregadores não os distribuem tão facilmente, mas apenas os ajun- 
tam. 
58. Eles tampouco são os méritos de Cristo e dos santos>\ pois estes sem- 
pre operam, sem o papa, a graça do ser humano interior e a cruz, a morte e o 
inferno do ser humano exterior. 
59. S. Lourenço23 disse que os pobres da Igreja são os tesouros da mes- 
ma, empregando, no entanto, a palavra como era usada em sua época. 
60. É sem temeridade que dizemos que as chaves da Igreja, que lhe fo- 
ram proporcionadas pelo mérito de Cristo, constituem este tesouro. 
61. Pois está claro que, para a remissão das penas e dos casos," o poder 
do papa por si só é suficiente. 
62. O verdadeiro tesouro da Igreja é o santissimo Evangelho da glória e 
da graça de Deus. 
63. Este tesouro, entretanto, é o mais odiado, e com razão, porque faz 
com que os primeiros sejam os úItimos25. 
64. Em contrapartida, o tesouro das indulgências é o mais benquisto, e 
com razão, pois faz dos últimos os primeiros. 
65. Por esta razão, os tesouros do Evangelho são as redes com que ou- 
trora se pescavam homens possuidores de riquezas. 
66. Os tesouros das indulgências, por sua vez, são as redes com que hoje 
se pesca a riqueza dos homens. 
67. As indulgências apregoadas pelos seus vendedores como as maioresgraças realmente podem ser entendidas como tal, na medida em que dão boa 
renda. 
68. Entretanto, na verdade elas são as graças mais ínfimas em compara- 
fe é a palavra de Deus (cf. tese 62). Também nesse aspecto, Lutero julga contar com o 
apoio Ele espera ser possível uma reforma da Igreja de dentro para fora. 
21 O tesouro da Igreja é formado pelas obras excedentes de Cristo e dos santos. Estas obras 
excedentes estão confiadas à administracão papal como thesourus bonorum operum. Cabe 
ao papa distribui-las a quem delas necessita. Lutero nega essa concepção na tese 5 8 . 
22 Lufero ainda assume o conceito católico-romano dos santos e de seus méritos. 
23 Diácano romano, morta na persegui~ão de Valéria (258). Segundo a lenda, ao ser intimado 
pelo juiz a entregar os tesouros da Igreja, Lourenço, que era diácono, apontou para os po- 
bres da comunidade. 
24 <'i. tese 6 . 
25 C f . MI 2(l.lh. 
ção com a graça de Deus e a piedade da cruz. 
69. Os bispos e curas têm a obrigação de admitir com toda a reverência 
os comissários de indulgências apostólicas. 
70. Têm, porém, a obrigação ainda maior de observar com os dois olhos 
e atentar com ambos os ouvidos para que esses comissários não preguem os 
seus próprios sonhos em lugar do que Ihes foi incumbido pelo papa. 
71. Seja excomungado e maldito quem falar contra a verdade das indul- 
gências apostólicas. 
72. Seja bendito, porém, quem ficar alerta contra a devassidão e licen- 
ciosidade das palavras de um pregador de indulgências. 
73. Assim como o papa com razão fulmina26 aqueles que de qualquer 
forma procuram defraudar o comércio de indulgências, 
74. muito mais deseja fulminar aqueles que, a pretexto das indulgências, 
procuram defraudar a santa caridade e verdade. 
75. A opinião de que as indulgências papais são tão eficazes ao ponto de 
poderem absolver um homem mesmo que tivesse violentado a mãe de Deus, 
caso isso fosse possível, é loucura. 
76. Afirmamos, pelo contrário, que as indulgências papais não podem 
anular sequer o menor dos pecados veniais27 no que se refere a sua culpa. 
77. A afirmação de que nem mesmo S. Pedro, caso fosse o papa atual- 
mente, poderia conceder maiores graças é blasfêmia contra São Pedro e o pa- 
pa. 
78. Afirmamos, ao contrário, que também este, assim como qualquer 
papa, tem graças maiores, quais sejam o Evangelho, os poderes28, os dons de 
curar, etc., como está escrito em 1 Co 12. 
79. É blasfêmia dizer que a cruz com as armas do papa, insignemente 
erguida29, equivale á cruz de Cristo. 
80. Terão que prestar contas os bispos, curas e teólogos que permitem 
que semelhantes conversas sejam difundidas entre o povo. 
81. Essa licenciosa pregação de indulgências faz com que não seja fácil, 
nem para homens doutos, defender a dignidade do papa contra calunias ou 
perguntas, sem duvida argutas, dos leigos. 
82. Por exemplo: por que o papa não evacua o purgatório por causa do 
santíssimo amor e da extrema necessidade das almas - o que seria a mais jus- 
ta de todas as causas -, se redime um número infinito de almas por causa do 
funestissimo dinheiro para a construção da basilica - que é uma causa tão 
insignificante? 
83. Do mesmo modo: por que se mantêm as exéquias e os aniversários 
26 Sc. com excomunhão. 
27 A teologia católica distingue entre pecados veniais e pecados mortais. Os primeiros não são 
pecados no sentido lato do termo. Os segundos referem-se aos sete pecados capitais. Estes. 
enquanto não forem perdoados, têm como conseqüência a morte eterna, devendo, por isso, 
ser confessados. 
28 Sc. espirituais. 
29 Sc. nas igrejas. 
dos falecidos]O e por que ele não restitui ou permite que se recebam de volta as 
doações efetuadas em favor deles, visto que já não é justo orar pelos redimi- 
dos? 
84. Do mesmo modo: que nova piedade de Deus e do papa é essa: por 
causa do dinheiro, permitem ao impio e inimigo redimir uma alma piedosa e 
amiga de Deus, porém não a redimem por causa da necessidade da mesma al- 
ma piedosa e dileta, por amor gratuito? 
85. Do mesmo modo: por que os cánones penitenciais - de fato e por 
desuso já há muito revogados e mortos - ainda assim são remidos com di- 
nheiro, pela concessão de indulgências, como se ainda estivessem em pleno 
vigor? 
86. Do mesmo modo: por que o papa, cuja fortunahoje é maior que a 
dos mais ricos Crassos", não constrói com seu próprio dinheiro ao menos es- 
ta uma Basilica de São Pedro, ao invés de fazê-lo com o dinheiro dos pobres 
fiéis? 
87. Do mesmo modo: o que é que o papa perdoa e concede aqueles que, 
pela contrição perfeita, têm direito a remissão e participação plenária? 
88. Do mesmo modo: que beneficio maior se poderia proporcionar a 
Igreja do que se o papa, assim como agora o faz uma vez, da mesma forma 
concedesse essas remissões e participações 100 vezes ao dia a qualquer dos 
- ~ - - 
fiéis? 
89. Já que, com as indulgências, o papa procura mais a salvação das al- 
mas do que o dinheiro, por que suspende as cartas e indulgências outrora já 
concedidas, se são igualmente eficazes? 
90. Reprimir esses argumentos muito perspicazes dos leigos somente pela 
força, sem refutá-los apresentando razões, significa expor a Igreja e o papa a 
zombaria dos inimigos e desgraçar os cristãos. 
91. Se, portanto, as indulgências fossem pregadas em conformidade com 
o espírito e a opinião do papa, todas essas objeções poderiam ser facilmente 
respondidas e nem mesmo teriam surgido. 
92. Fora, pois, com todos esses profetas que dizem ao povo de Cristo: 
"Paz, paz!" sem que haja paz32! 
93. Que prosperem todos os profetas que dizem ao povo de Cristo: 
"Cruz! cruz!" sem que haja cruz! 
94. Devem-se exortar os cristãos a que se esforcem por seguir a Cristo, 
seu cabeça, através de penas, da morte e do inferno; 
95. e, assim, a que confiem que entrarão no céu antes através de muitas 
tribulações33 do que pela segurança da paz. 
30 Missas e intercessdes em memária das almas dos falecidos. 
31 Referência a Marco Licinia Crasso, protótipo da homem rico da Antiguidade 
32 Cf. Jr 6.14; 8.11; Er 13.10.16. 
33 Cf. AI 14.22. 
Um Sermão sobre a Indulgência e a Graça 
pelo Mui Digno Doutor Mruíinho Lutero, Agostiniano de Wittenberg 1 
INTRODUÇÃO 
(Veja a in t rodução ao Debale para o esclarecimento d o valor das indulgências, 
pp. 21s. deste volume.) 
1. Em primeiro lugar, cumpre que saibam que vários novos mestres, tais 
como o mestre das Sentenças*, S. Tomási e seus seguidores, atribuem três 
oartes a Penitência. auais seiam: a contricão. a confissão e a satisfacão. Esta 
, . . , 
distinção, em seu conceito, dificilmente ou mesmo de forma alguma se acha 
fundamentada na Sagrada Escritura e nos antigos santos mestres cristãos. 
Mesmo assim queremos admiti-la por ora e falar ao modo deles. 
2. Dizem eles que a indulgência não elimina a primeira ou a segunda par- 
te - a contrição ou a confissão -, mas sim a terceira, a satisfação. 
3. A satisfacão também é subdividida em três oartes: orar. ieiuar. dares- 
, < - . 
mola, e isto da seguinte forma: "orar" compreende todas as obras próprias 
1 Eynn Serrnon von dem Abloss undgnode durch den wirdigenn docfornn Marlinum Lufher 
Augusliner Izu Wilfenbergk, WA 1,243-6. Tradução de Walter O. Schlupp. 
2 Trata-se de Pedro Lornbardo íca. 11W-1160). Nascido em Novara. na Lombardia. e faleci- . ~ ~~~ 
J > cri> Pa r#> , L.\!,IJJU, QLIC I J J U ~ . J L . ~ , em U<>I.mh.a c, p,,~r:r!.>rr!,.ntc, LYU RC.~I>L, C cru 
Pari>. k n i IJ3r . r Ik;iiii.,ii ii?~.s..>l:~ (l>< ,ilcdri1' JL. F I J L T ~ U3nx Lin 1151 f.>i ? . < . i . > bi.p.r Jc 
I'an> t,tb:rc obra. en :>~~r ; t r~ .d> ; a ! , e~~ t i r~ch I<>, S ~ l n , . ) , e i ~ cpi*v~>l:fi, p:xuIin.x\, ?4 \er - 
mdea e os Senfenliarurn libri I V As Senlen~os apresentam um resumo sistemático dos ca- 
nhecirnentos teolbgicos da época. Trata-se,basicamente. de uma compilação (Pedro usa 
textos de Hugo de São Vitor, Walter de Mortagnc e Pedro Abelardo), que teve grande acei- 
tação nas escolas, servindo de modelo para outras obras similares. Desde o séc. XIII, pas- 
sou a ser livro-texto oara o ensina teolbeico. Ouanto à doutrina escolástica da Penitència. ~~. 
; i . a 0hi.i de I iilero 110 ,u!t,r,rri h~bil i iniriz dd I<i~,.re,~; i:ni pr r... id:.,. ".i \.. 2 deti:% .olz;ls 
i I,>rna% J i \.luin<> (1225- 1274) I>.imin..;.iio. toi prci:,,,,: Ji, 1c<>li)$~3 2111 1'3:1\. Ko:na c 
\:q>.k'% A p r . ~ t ~ ~ r d 3 r ~ ~ l ~ ~ d ~ o r ~ l ~ ~ ; t ~ ~ ~ c n ~ ~ ~ .te .Ar~.to:?I+ c .Is>> pd!, d;a Iprc,,,, Iom13, . r#"" 
uni dos inair impressionantes sistemas da escolastica 
3 1 
da alma, como ler, meditar, ouvir apalavra de Deus, pregar, ensinar e simila- 
res; "jejuar" inclui todas as obras de mortificação da carne, como vigílias, 
trabalho, leito duro, vestes grosseiras, etc.; "dar esmolas" abrange todas as 
obras de amor e misericórdia para com o próximo. 
4. Para todos eles não resta dúvida que a indulgência elimina as obras da 
satisfação, que devemos fazer ou que nos foram impostas por causa do peca- 
do. Se ela de fato eliminasse todas essas obras, nada de bom restaria que pu- 
déssemos fazer. 
5 . Para muitos foi uma questão importante - e ainda não resolvida - 
se a indulgência elimina mais do que essas boas obras impostas, ou seja, se 
ela também elimina a pena que a justiça divina exige pelos pecados. 
6. Desta vez não questiono a opinião deles. Afirmo, entretanto, que não 
se pode provar, a partir da Escritura, que a justiça divina deseja ou exige do 
pecador qualquer pena ou satisfação, mas sim unicamente sua contrição ou 
conversão sincera e verdadeira, com o propósito de, doravante, carregar a 
cruz de Cristo e praticar as obras acima mencionadas (mesmo que não este- 
jam prescritas por ninguém). Pois assim diz o Senhor através de Ezequiel: 
"Se o pecador se converter e fizer o que é reto, não mais me lembrarei do seu 
pecado." [Ez 18.21s.; 33.14.16.1 Da mesma forma ele mesmo absolveu a to- 
dos estes: Maria Madalenaa, o paralítico', a mulher adúltera" etc. Gostaria 
de ouvir quem haveria de provar outra coisa, não levando em conta que al- 
guns doutores julgaram poder fazê-lo. 
7. O que se encoutralé isto: Deus castiga alguns segundo a sua justiça ou 
os leva a contrição através de penas, como em SI 881891.31-33: "Quando seus 
filhos pecarem, punirei com a vara o seu pecado, mas minha misericórdia 
não retirarei deles." Porém a dispensa destas penas não está na mão de nin- 
guém a não ser de Deus somente; sim, ele não quer remiti-Ias, mas promete 
que as imporá. 
8. Por isso não se pode dar nome algum a pena imaginária, tampouco 
sabe alguém qual seria ela, visto que não é este castigo nem as boas obras aci- 
ma mencionadas. 
9. Afirmo que, mesmo que a Igreja cristã decidisse e declarasse hoje que 
a indulgêiicia elimina mais do que as obras de satisfação, ainda assim seria 
mil vezes melhor que cristão algum comprasse ou desejasse a indulgência, 
inas preferivelmerite praticasse as obras e sofresse a pena. Pois a indulgência 
iião é nem pode tornar-se outra coisa do que uma dispensa de boas obras e de 
Iienéficas penas, que seria melhor fossem preferidas do que abandonadas, 
;tilida que alguns novos pregadores tenham descoberto dois tipos de penas: 
~riedicativa,~ e satisfactorias8, isto é, umas para o aperfeiçoamento, outras pa- 
4 C€. Lc 8.2. 
5 Cf. Lc 5.20 
.. -. ~~ ~ 
7 Sc. na Biblia. 
R As penas niedicatiuas sao impostas para a santificaçào e reflexão; as satisfatórias objetivam 
ra a satisfação. Nós, porém, temos mais liberdade para desprezar (Deus seja 
louvado!) essa espécie de conversa do que eles têm para inventá-la. Porque 
toda pena, sim, tudo o que Deus impõe é útil e contribui para o melhoramen- 
to do cristão. 
10. De nada vale dizer que as penas e as obras seriam demasiadas, que a 
pessoa não conseguiria realizá-las por causa da brevidade de sua vida e que, 
por isso, precisaria da iiidulgência. Respondo que isso não tem fundamento e 
é pura invenção. Porque Deus e a santa Igreja a ninguém impõem mais do 
que lhe é possível carregar, como também o diz Paulo: Deus não permite que 
alguém seja tentado acima do que pode carregarg. É grande vergonha para a 
cristandade ser acusada de impor mais do que podemos carregar. 
11. Mesmo que ainda vigorassem as penitências fixadas no direito canô- 
nico, de impor sete anos de penitência para cada pecado mortal, a cristanda- 
de deveria deixar as mesmas de lado e nada mais impor acima do que cada 
um pode suportar. Como atualmente não mais vigoram estas determinações, 
tanto menos razão há para cuidar que se imponha mais do que cada um tem 
i condições de suportar bem. 
li 12. Diz-se muito bem que o pecador deve ser remetido ao purgatório ou 
a indulgência com a pena restante, mas dizem ainda outras coisas sem funda- 
I mento e prova. 
I, 13. Incorre em grave erro quem pretende fazer satisfação por seus peca- 
i 
i 
dos, pois Deus os perdoa a toda hora grátis, por graça inestimável, e nada de- 
seja em troca senão que doravante se leve uma vida boa. A cristandade, esta 
sim, faz exigsncias; portanto, ela também pode e deve dispensar delas e não 
impor nada pesado ou insuportávd. 
14. A indulgência é permitida por causa dos cristáos imperfeitos e pre- 
guiçosos, que não querem exercitar-se resolutamente em boas obras ou não 
desejam sofrer. Pois a indulgência não promove o melhoramento de nin- 
guém, e sim tolera e permite sua imperfeição. Por esta razão não se deve falar 
contra a indulgência, mas também não se deve recomendá-la a ninguém. 
15. Agiria de maneira mais segura e melhor quem desse algo para o edifi- 
cio de S. Pedro, ou o que mais é citado, por puro amor a Deus, ao invés de 
aceitar indulgências em troca. Isso porque é perigoso fazer semelhante dádiva 
por causa da indulgência e não por causa de Deus. 
16. Muito melhor é a obra feita em beneficio de um necessitado do que 
dar para dita construção; também é muito melhor do que a indulgência con- 
cedida em troca. Pois, como dissemos: melhor é uma boa obra realizada do 
que muitas dispensas. Indulgência, porém, é dispensa de muitas boas obras, 
ou, senão, nada é dispensado. 
Sim, e para que os ensine corretamente, atentem bem: antes de todas as 
coisas (sem preocupação com o edifício de São Pedro nem com a indulgência) 
deves dar ao teu próximo pobre, se queres dar alguma coisa. Mas se chegar o 
momento em que, em tua cidade, não há mais ninguém que necessite de aju- 
da (O que jamais será o caso, se Deus quiser), então deves ofertar, se quiseres, j 
as igrejas, altares, ornamentos, cálice, em tua cidade. E quando isso também 
não mais for necessário, só então - se quiseres - podes contribuir para o 
edifício de S. Pedro ou para alguma outra coisa. Mesmo assim, também não 
I 
deves fazê-lo por causa da indulgência. Pois São Paulo diz: "Quem não faz O 
bem sequer aos de sua própria casa não é cristão e é pior do que o descrente." ! 
[l Tm 5.8.1 E podes crer: quem te disser outra coisa está te seduzindo ou pro- 
cura tua alma em teu bolso; e se encontrasse aí alguns centavos, isso lhe seria 
preferível a todas as almas. 
Se agora dizes: "Então nunca mais comprarei indulgências", replico: is- 
so eu já disse acima, que minha vontade, desejo, pedido e conselho é que nin- 
guém compre indulgência. Deixa os cristãos preguiçosos e sonolentos com- 
' I 
prarem indulgência. Tu, porém, segue teu caminho! 
17. A indulgência não é nem prescrita nem recomendada, mas está entre 
o número de coisas permitidas e autorizadas. Por isso ela não é uma obra de 
obediência nem é meritória, e sim uma fuga da obediência. Por isso, embora 
não se deva impedir ninguém de comprá-la, dever-se-iam afastar dela todos 
os cristãos, estimulando-os e fortalecendo-ospara as obras e penas que são 
ai10 remitidas. 
18. Se as almas são tiradas do purgatório através da indulgência, isso eu 
não sei e também ainda não acredito, mesmo que alguns novos doutores o 
afirmem. Mas não podem prová-lo, e também a Igreja ainda não decidiu so- 
bre o assunto. Por isso, para maior segurança, é muito melhor que ores e 
atues por elas, pois isto está mais comprovado e certo. 
19. Sobre esses pontos não tenho dúvida alguma, pois estão suficiente- 
mente fundados na Escritura. Por isso também vocês não devem ter dúvida 
alguma, e deixem os doutores escolásticos~t serem escolásticos. Todos eles 
não são suficientes, com suas opiniaes, para fundamentar um sermão. 
20. Ainda que alguns, para os quais esta verdade dá grande prejuízo ma- 
terial, agora me chamem de herege, não dou muita importância a semelhante 
palavrório, pois quem está a fazê-lo são alguns cérebros tenebrosos que nun- 
ca cheiraram a Bíblia, nunca leram os mestres cristãos, nunca entenderam os 
seus próprios professores e já estão quase a decompor-se em suas opiniões es- 
buracadas e esfarrapadas. Pois se os tivessem entendido, saberiam que não 
devem difamar a ninguém sem ouvi-lo e convencê-lo do seu erro. Que Deus 
dê a eles e a nós um entendimento correto! Amém. 
10 Sc. na indulgência. 
I I Cf. o juizo emitido por Lutero a respeito das doutores escol&sticos nas teses 18 e 19 do De 
bate de Heidelberg, p. 49 deste volume. 
34 
O Debate de ~eidelber~' 
O capitulo geral d o s agostiiiianos alemães reunia-se d e três e m três anos , sempre 
n o domingo .lubilote. E m 1518, João von Staupitz2 convocou-o para o dia 25 d e abril. 
Nesta opor tunidade , Lutero, eleito três anos antes pa ra o carpo d e vipário distrital, de- 
. 
visto. Essa incumbência deve ser vista como u m a distinção: ela significa que t an to 
Staupitz quan to a o r d i m dc 1.utero não estão dispostos a abandoná-lo. Dent ro desta 
perspectiva, 1.utero n ã o tem adversários iio debate realizado a 26 d e abril d e 1518. Seu 
jovem colega d e ordem, Leonardo Beier, defende a s teses; seus ouvintes estão dispos- 
tos a acompanhar sua argumentaçáo. E m carta dirigida a Espalatino,, assinada c o m as 
palavras "Martinus Eleuthcrius" e da t ada d e i8 d e maio d e 1518, o reformador con t a 
que o dcbate transcorreu d a maneira mais cordial. Seus professores occamistasd, Usin- 
gen e Trutvetter , não puderam acompanhá-lo, pois as teses foram, tia verdade, u m 
a taque a teologia destes. Tan to maiores foram os aplausos dos estudantes e dos jovens 
I Disputotio Heideibergoe habito, WA 1,353-65. Tradusão de Waltcr O. Schlupp. 
2 1469(?)-28/12/3524. Nasceu ein Motterwitz, perto de Leisnig, falecendo em Salrburgo. 
Nobre sanão. estudou em Colôniae Leiprig, tornando-se agostiniano, em Munique, no ano 
de 1490. Em 1497 tornou-se prior do convento de Tubingen. Desde 1500 doctor in bibiia, 
foi convocado por Frederico, o Sábia, em 1503, para ser o primeiro decano da Faculdade 
de Teologia da Universidade de Wittenberg. Neste ano, tornou-se também vigário-geral da 
Congregação alenià de Observantes. No processo contra Lutero, Staupitz procurou 
defendê-lo onde lhe foi possivel, liberando-o. p. ex., do voto deobediência. Como estivesse 
sob suspeita de heresia, Staupitz renunciou, em 1520, ao cargo de vigária-geral. tornando- 
se pregador da corte da cardeal-arcebispo Mateus Lang, em Salrburgo, e abade do Conven- 
to beneditiiio de São Pedra. Desde entào, houve um distanciamento eni re la~ão a Lutero. 
Staupitr tem influências do tomismo e da mística alemã. Sua piedade cristocêntrica auxi- 
liou Lutero em seus conflitos com a penitência e a doutrina da predestinação. 
3 WA Br 1 , 1 7 3 ~ ~ . Georg Burckhardt (1484-l545), nasceu em Spalt, perto de Nürnberg. Dai 
seu cognomc Spalatin, Espalatino. Estudou Direito em Erfurt e Wittenberg, tornando-se, 
apbs, sacerdote. Desde 1508 está a serviço de Frederico, o Sábia, cuja chancelaria assume 
em 1516. Influenciado pelo humanismo, colabora com Lutero e Melanchthon na reforma 
da Universidade de Wittenberg. Secretário, conselheiro e pregador de Frederico, Espalati- 
no gola de posicão ímpar junto ao principe-eleitor, o que lhe permite assegurar a protecão 
deste para Lutero. Como humanista e tradutor de obras de Lutero e Melanchthon, procu- 
rou. por muita tempo, intermediar entre Lutero e Erasmo. Desde I525 é pastor em Alten- 
Uurgo. Participando das visitacões, Espalatino teve grande influência na organização do 
Silprciiio Episcopado dos Senhores Teriitoriais. Teologicamente dependente de Lutero, di- 
vr ige dçste na doutrina eucarisiica. 
4 Srgiiidixcc de (iuilhcrme de Occam (1285.1349). 
Da Teologia 
Desconfiando inteiramente de nós mesmos, em conformidade com aque- 
le conselho do Espírito: "Não te fies em tua inteligência" [Pv 3.51, vimos hu- 
mildemente oferecer ao julgamento de todos os que quiserem estar presentes 
os seguintes paradoxos teológicos, para que assim se evidencie se estão bem 
ou mal tomados do divino Paulo, vaso e órgão de Cristo escolhido por exce- 
lência, e ainda de Sto. Agostinho, seu mui fiel intérprete. 
1. A lei de Deus, mui salutar doutrina da vida, não pode levar o ser hu- 
mano a justiça; antes, o impede. 
2. Muito menos podem levá-lo as obras dos seres humanos, muitas vezes 
repetidas, como se diz, com o auxílio do ditame natural. 
3. Ainda que sejam sempre belas e pareçam boas, as obras dos seres hu- 
manos são, ao que tudo indica, pecados mortais. 
4. Ainda que sejam sempre disformes e pareçam ruins, as obras de Deus 
são, na verdade, méritos imortais. 
5. As obras dos seres humanos (falamos das aparentemente boas) não 
são pecados mortais no sentido de constituírem crimes. 
6. As obras de Deus (falamos das que se realizam por intermédio do ser 
humano) não são méritos no sentido de não constituírem pecados. 
7. As obras dos justos seriam pecados mortais se os próprios justos, em 
piedoso temor a Deus, não temessem que elas fossem pecados mortais. 
8. Com maior razão são pecados mortais as obras dos seres humanos, 
pois ainda são feitas sem temor, em mera e má segurança. 
9. Afirmar que as obras sem Cristo são certamente mortas, porém não 
pecados mortais, parece constituir um perigoso abandono do temor a Deus. 
10. Na verdade, é dificílimo compreender como uma obra seria morta 
sem ser, ao mesmo tempo, pecado pernicioso ou mortal. 
11. Não se pode evitar a presunção, nem pode haver verdadeira esperan- 
ça, se em cada obra não se temer o juizo de condenação. 
12. Os pecados são realmente veniais perante Deus quando os seres hu- 
manos temem que sejam pecados mortais. 
13. Após a queda, o livre arbitrio é um mero titulo; enquanto faz o que 
está em si'], peca mortalmente. 
14. Após a queda, o livre arbitrio tem uma potência apenas subjetiva pa- 
ra o bem; para o mal, porém, sua potência é sempre ativa. 
15. O livre arbítrio tampouco pôde permanecer no estado de inocência 
pela potência ativa, mas sim pela subjetiva; menos ainda pôde progredir em 
direção ao bem. 
16. O ser humano que crê querer chegar a graça fazendo o que está em si 
I I V. p. 47, nata 33. 
acrescenta pecado sobre pecado, de sorte que se torna duplamente réu. 
17. Entretanto, falar assim não significa dar motivo para o desespero, 
mas para humilhar-se, e suscitar o empenho no sentido de procurar a graça 
de Cristo. 
18. Certo é que o ser humano deve desesperar totalmente de si mesmo, a 
fim de tornar-se apto para conseguir a graça de Cristo. 
19. Não se pode designar condignamente de teólogo quem enxerga as 
coisas invisíveis de Deus compreendendo-as por intermédio daquelas que es- 
tão feitas; 
20. mas sim quem compreende as coisas visíveis e posteriores de Deus 
enxergando-as pelos sofrimentos e pela cruz. 
21. O teólogo da gloria afirma ser bom o que é mau,e mau o que é bom; 
o teólogo da cruz diz as coisas como elas são. 
22. A sabedoria que enxerga as coisas invisíveis de Deus, 
compreendendo-as a partir das obras, se envaidece, fica cega e endurecida 
por completo. 
23. A lei provoca a ira de Deus, mata, maldiz, acusa, julga e condena tu- 
do o que não está em Cristo. 
24. Não ohstante, aquela sabedoria não é má, nem se deve fugir da lei; 
sem a teologia da cruz, porém, o ser humano faz péssimo uso daquilo que há 
de melhor. 
25. Justo não é quem pratica muitas obras, mas quem, sem obra, muito 
crê em Cristo. 
26. A lei diz: "Faz isto", mas nunca é feito; a graça diz: "Crê neste", e 
já está tudo feito. 
27. Poder-se-ia dizer, com razão, que a obra de Cristo é a que opera e 
oue a nossa é a ooerada. e. Dor conseguinte, que a obra operada agrada a 
. . . 
~ e u s pela graça d'a obra operante. 
- 
28. O amor de Deus não acha, mas cria aquilo que lhe agrada; o amor do 
ser humano surge a partir do objeto que lhe agrada. 
Da Filosofia 
29. Quem quiser filosofar sem perigo em Aristóteles precisa antes 
tornar-se bem tolo em Cristo. 
30. Assim como não faz bom uso do mal da libido quem não estiver ca- 
sado, da mesma forma ninguém filosofa bem se não for tolo, isto é, cristão. 
31. Foi fácil para Aristóteles opinar que o mundo é eterno, pois, em sua 
opinião, a alma humana é mortal. 
32. Uma vez aceito que existem tantas formas substanciais quanto há 
coisas feitas, teria sido necessário aceitar que existe o mesmo número de ma- 
térias. 
33. De nenhuma coisa no mundo surge algo necessariamente, embora da 
marcria surja necessariamente tudo que surge de modo natural. 
34. Sc Aristóieles tivesse conhecido o poder absoluto de Deus, ter-lhe-ia 
\iilii iiiipossivel afirmar que a matéria permanece por si mesma. 
35. Nada de infinito existe pelo ato, mas por potência e matéria existe 
i;iiiio quanto há de feito nas coisas, conforme Aristóteles. 
36. Aristóteles critica e ridiculariza injustamente a filosofia das idéias 
~>lni<iiiicas'2, que é melhor do que a sua. 
37. A imitação dos números nos objetos é engenhosamente afirmada por 
I'iiágorasi3, porém mais engenhosa é a participação das idéias nos objetos, 
;ilirriiada por Platão. 
38. A polêmica de Aristóteles contra o conceito de unidade de 
I';irinênidesi4 é (vênia seja dada ao cristão) dar socos no ar. 
39. Se Anaxágoras" estabeleceu o infinito segundo a forma, ao que pa- 
iccc, ele foi o melhor dos filósofos, a despeito do próprio Aristóteles. 
40. Em Aristóteles parecem ser a mesma coisa a privação, matéria, for- 
iiin, o objeto móvel, o objeto imóvel, ato, potência, etc. 
1)emonstração das Teses Debatidas no Capítulo de Heidelberg 
No ano da nossa salvação, 1518, no mês de maiol6. 
Tese 1 
A lei de Deus, mui salutar doutrina da vida, não pode levar o ser humu- 
no (i justiça; antes, o impede. 
Isio está bem claro pelo que diz o apóstolo em Romanos 3.21: "A justiça 
ilc 1)ciis se manifestou sem a lei", o que o B. Agostinho assim explica no livro 
110 L~pirito e da letra": "Sem a lei, isto é, sem a sua ajuda." Rm 5.20 diz: 
"A Ici entrou para que aumentasse o pecado"; e Rm 7.9: "Tendo chegado o 
iii~iiid;imeiito, reviveu o pecado." Por isso, em Rm 8.2, ele chama a lei de 
"lci da rnorte" e "lei do pecado". Da mesma forma, em 2 Co 3.6: "A letra 
iiiiitn." Ao longo de todo o livro Do Espírito e da letra, o B. Agostinho rela- 
c.ioii;t isto com qualquer lei, mesmo com a santissima lei de Deus. 
I L I,iiieii, \c ieferc ò Icoria das idéias de Platao (427-348/47 a.C.). 
I I Aiislhlclcs, Merqflsica, 1, VI, 987b. 
I4 ('i . Arirthlclcs, Merqflsico I. V , 986b. 
15 Aiiri(>iclev. Melqfirieo I, VIII. 989b. 
10 ('I'. 1,. 37 , ,,<,IZ, 10. 
I1 I i i i r l < i i c tc i r rc ;,os capitiilos 9 e 14 deste escrita de Agostinho. Neles, Agostinhi~ (li, qiie a 
Iri Irvii ti ~n~ur rc , referindo-5e naij sh à lei cerimonial. mas a toda Ici, tamht~ii ; i<> Ilei.<ilogi>. 
I , r l i i irsr. i i i g iliiiil Agorliiilii> divergc <Ic Jeraniiiio, vai ser delendidsi piir I i i i i . ~ < t . cqirciaIL 
ini<.iilr iiii <lircii.;rno corri Itr;,*ni«. 
Muilo ~nenos podem levá-lo as obras dos seres humanos, muitas vezes 
re/>etidus, corno se diz, com o auxílio do ditame natural. 
Tendo a lei de Deus, santa e iniaculada, verdadeira, justa, etc. sido dada 
por Deus para ajudar o ser humano, além de suas forças naturais, para 
iluminá-lo e levá-lo ao bem, e acontecendo, ainda assim, o contrário, de mo- 
do que o ser humano se torna pior ainda, de que forma poderá ele ser condu- 
zido ao beni sem semelhante auxilio, abandonado ás próprias forças? Quem 
iião faz o beni com auxilio alheio menos ainda o fará por sua própria capaci- 
dade. Por isso, em Rm 3.10s., o apóstolo chama todos os seres humanos de 
corruptos e inúteis, que não entendem nem buscam a Deus, mas se desviam 
dele todos. 
Ainda que sejam sempre belas e pareçam boas, as obras dos seres hurna- 
nos são, ao que tudo indica, pecados mortais. 
As obras dos seres humanos parecem excelentes, mas por dentro são 
imundas, como diz Cristo acerca dos fariseus em Mt 23.27. A eles mesmos e 
aos outros elas parecem boas e belas; Deus, porém, é quem julga não segun- 
do a fachada, mas escruta rins e coraqãolK Sem graça e sem fé, entretanto, é 
impossivel ter um corasão puro. At 15.9: "Purificando pela fé os seus cora- 
qões." 
A tese é, portanto, demonstrada assim: se as obras das pessoas justas 
constituem pecados, como diz a tese 7, tanto mais o são as obras das pessoas 
ainda não justas. Mas os justos dizem em relação a suas obras: "Não entres 
ein juizo com o teu servo, ó Senhor, porque diante de ti nenhum ser vivente se 
justificará." [SI 143.2.1 O mesmo afirma o apóstolo em GI 3.10: "Os que vi- 
vem a partir das obras da lei estão sob a maldição." As obras dos seres huma- 
nos. porém, são obras da lei, e, como a maldição não é atribuida aos pecados 
veniais, essas obras são pecados mortais. Em terceiro lugar, Rm 2.21: "Tu, 
que ensinas que iião se deve furtar, furtas." O B. Agostinho explica isto as- 
sim: "Por sua vontade culposa é que são ladrões, ainda que, exteriormente, 
julguem e ensinem que outros são ladrões."" 
Ainda que sejam sempre disformes e pareçam ruins, as obras de Deus 
.sNo, na verdade, méritos imortais. 
Que as obras de Deus sejam disformes, fica evidente através de 1s 53.2: 
"Ele não tem excelência nem beleza" e de 1 Rs 2: "O Senhor mortifica e vivi- 
lica, faz descer ás profundezas e traz de volta."" Isto significa o seguinte: o 
Scnhor nos humilha e nos apavora por meio da lei e da visão dos nossos peca- 
dos, para que, tanto diante dos seres humanos quanto diante de nós mesmos, 
Iiareçamos nada, tolos, maus, assim como de fato somos. Quando reconhe- 
ccmos e coiifessamos isto, não há em nós nenhuma excelência e beleza, mas 
vivemos na abscondidade2' de Deus (isto é, na confiança nua e crua em sua 
riiisericórdia), tendo em nós a resposta do pecado, da morte, do inferno, em 
conformidade com aquela palavra do apóstolo em 2 Co 6.10,9: "Como que 
tristes, mas sempre alegres; como que mortos, e eis que vivemos." E isto é o 
que 1s 28.2122 chama de obra estranha de Deus, [feita] para que ele realize sua 
obra [própria] (isto e, ele nos humilha dentro de nós mesmos, fazendo-nos 
desesperar, para nos exaltar em sua misericórdia, tornando-nos esperanço- 
sos), como diz Hc 3.2: "Quando ficares irado, lembrar-te-ás da 
iriisericórdia." Tal pessoa, portanto, desagrada a si mesma em todas as suas 
obras; não vê beleza alguma, mas apenas a sua própria deformidade. E mes- 
1110 exteriormente ela faz coisas que parecem tolas e disformes as outras pes- 
soas. 
Essa deformidade, entretanto, surge em nós seja através de Deus que nos 
nagela, seja por nos acusarmos a nós mesmos, segundo aquela palavra de 1 
Co 11.31: "Se nos julgássemos a nós mesmos, não seríamos julgadospelo Se- 
nhor." E isto o que diz Dt 32.36: "O Senhor julgará seu povo e se compade- 
cerá de seus servos." Assim, pois, as obras disformes que Deus opera em nós 
- isto é. as obras feitas em humildade e tenior - são verdadeiramente imor- 
20 O cântico de Ana é um dos salmos favoritos de Lutero. Cita I Sm 2.6 em Deservo urbilrio 
("Do arbitrio cativo"), WA l8,MX)-787, e em Dos Magnifcaf Vorfeulschel und oussgelegr 
("Interpretação da Mognificof"), WA 7.544-604. 
21 O conceito "abscondidade" quer expressar que os verdadeiros santos jamais podem 
apresentar-se diretamente como tais. Eles estilo ocultos "com Cristo em Deus" (C1 3.4). 
WA 56,392s.: "O nosso bem está oculta, e está tilo oculto que se encontra oculto sob o seu 
aposto. Assim, nossa vida está oculta sob a morte, o amor a nós sob o ódio contra nós, a 
glória sob a desonra, a salvacilo sob a corrupcâo, o reino sob a miséria, o céu sob o inferno, 
a sabedoria sob a tolice, a jus t i~a sobo pecado, a poder sob a fraqueza. E, em geral, todoo 
iiosso sini a qii;ilquer bem sob o não, para que a fé tenha espaGo em Deus, que é o ser, bon- 
dade, sahciloti:! iiirtiv;i ti>ralmrnte diferente, o qual não se pode possuir ou no qual não se 
riode ti>ciii, :i ,>:i<> #ri ;ilc;ivl:s d;i ncgafão de todas as nossas afirmaqdes." 
22 Tilo i c n i ~ i i i i i ; i i i i i . i l i i ; t t i iu c > i!\<> ilr I Siii 2.6 6 o uso da passagem de 1s 28.21 nos escritos de 
l i i rr io. Miiiiit.. \,r,i.... .itiili:i,. ;:li> i l \ ; i<l ; i \ ~imultaneamente. Cf. sua exposicão dor Salmos, 
cm 1519. i~ t#nr# ' lo i i l i i~ i~ i i < . t i l icIiirn<v ;i Si 2.<>: "Elemata e destrói. o que lhe silo obra5 estrii- 
iiIiii\. iii~iii i i rv i< i~ a l i cu#o~ i t ..LI,& 1311111 p#i>llrii!.'' (WA 5,63si) 
tais, porque humildade e temor a Deus são todo o mériton. 
As obras dos seres humanos (falamos das aparentemente boas) não são 
pecados mortais no sentido de constituírem crimes. 
Crimes são obras que podem ser objeto de acusa$ão também perante os 
seres humanos, como adultérios, roubos, homicídios, calúnias, etc. Pecados 
mortais, porém, são obras que parecem boas, embora interiormente prove- 
nham de uma raiz ruim e sejam fruto de uma árvore ruim. (Agostinho, livro 
4, Contra Juliano.) 
As obras de Deus (falamos das que se realizam por intermédio do ser hu- 
mano) não são méritos no sentido de não constituírem pecados. 
Eclesiastes 7.20: "Não há justo sobre a terra que faça o bem e não pe- 
que." Não obstante, outros24 dizem que o justo certamente peca, mas não 
quando pratica o bem. A estes deve-se responder: se fosse esta a intenção da 
passagem, por que ela gasta tantas palavras? Ou será que o Espírito Santo se 
deleita com a loquacidade e frivolidade? Pois esse sentido estaria mais do que 
suficientemente expresso da seguinte forma: "Não há justo sobre a terra que 
não peque." Então para que ela acrescenta "que pratique o bem"? Como se 
o justo fosse alguém outro, que pratica o mal. Pois unicamente o justo prati- 
ca o bem. Mas onde fala dos pecados não relacionados com fazer o bem, diz 
assim: "Sete vezes por dia cai o justo." [Pv 24.16.1 Aqui não diz: "Sete vezes 
por dia cai o justo, quando pratica o bem." Trata-se de um caso semelhante 
ao de alguém que faz cortes com uma machadinha enferrujada e cheia de 
dentes; mesmo que seja um bom artesão, a machadinha faz cortes ruins, dis- 
formes e com dificuldade. É o que ocorre quando Deus opera por nosso in- 
termédio, etc. 
As obras dos justos seriam pecados mortais se os próprios justos, em 
piedoso temor a Deus, não temessem que elas fossem pecados mortais. 
23 Lutero usa a conceito de mérito da forma corrente na doutrina católico-romana. Na reali- 
dade, porém, rompe com o esquema de mérito/demérito. 
24 Aparentemente, l.utcro refere-se a Jerônimo, ao qual está opondo Agostinho. 
43 
1\10 se evidencia a partir da tese 4. Pois confiar numa obra por causa da 
r ~ i i i i l sc deveria temer é dar glória a si mesmo e tirá-la de Deus, a quem se deve 
iciiier ein toda obra. Esta é, todavia, toda a perversão: agradar-se e desfrutar 
ii \ i IIICSIIIO em suas obras e adorar-se como um ídolo. Precisamente isto, po- 
I ~ I I I , faz quem está seguro de si e sem temor a Deus. Pois se temesse, não es- 
tiiria seguro; conseqüentemente, não se agradaria a si mesmo, mas se agrada- 
i - i : ~ em Deus. 
A segunda evidência provém daquele dito do salmo: "Não entres em jui- 
~ i i com o teu servo" [SI 143.21 e de S! 32.5: "Eu disse: confessarei ao Senhor 
cliiiira mim a minha injustiça", etc. E evidente que não se trata aqui de peca- 
C I O S veniais, pois aqueles" dizem que não são necessárias a confissão e a Peni- 
iCiicia por causa de pecados veniais. Se, portanto, são pecados mortais e se 
iiidos os santos oram por eles, como consta ali26, segue-se que as obras dos 
\;iiiios são pecados mortais. Entretanto, as obras dos santos são boas; por is- 
so, elas só são meritórias Dara eles elo temor aue se manifesta na humilde 
i~ l l i i~ssão . 
A terceira evidência provém da oração do Senhor: "Perdoa-nos as nos- 
s:is dividas." [Mt 6.12.1 Estaé a oração dos santos; portanto, as dividas pelas 
qiiiiis oram são as boas obras. Mas que também neste caso se trata de pecados 
iiiortais, fica evidente a partir da seguinte afirmação: "Se não perdoardes os 
iiccados ás pessoas, também vosso Pai celeste não perdoará os vossos peca- 
iliis." [Mt 6.15.1 Eis que estes pecados são tais que, não perdoados, levariam 
:i coiidenação, se eles não Irassem sinceramente esta oração nem perdoassem 
ili lS o1itros. 
tiiii quarto lugar, Ap 21.27: "Nada de impuro entrará no reino dos 
i.i.iis." Mas todo empecilho a entrada no reino é pecado mortal (ou então o 
licc:iil« iiiortal deve ser definido de outra maneira). Porém também o pecado 
vciiinl o impede, porque macula a alma e não pode subsistir no reino dos 
ci.iis; logo, etc. 
í 'om iriaior razáo são pecados mortais as obras dos seres humanos, pois 
,rir11111 .xiu ,frillr.s vem temor, em mera e má segurança. 
1:si:i C , cvi<lenteincnte, uma conseqüência necessária a partir do que an- 
ici.viIc. I1<iis oiidc i150 há temor, não há humildade. Onde não há humildade, 
Ii:i ,$i i l i i . i l i ; i , csi3o prcscntcs a ira e o juizo de Deus: "porque Deus resiste aos 
, . ~ , I i i , i I I ~ I S " I I I'c 5.51; sim, caso cessar a soberba, não haverá pecado em lngar 
:iI~:~liii 
Afirmar que as obras sem Cristo süo certamente mortas, porém não pe- 
cados rnortais, parece constituir um perigoso abandono do temor a Deus. 
Pois desta forma as pessoas tornam-se seguras de si mesmas e por isto 
orgulhosas, o que é perigoso. Pois assim se tira de Deus constantemente a 
glória devida, tomando-a para si mesmo, enquanto que se deveria, com todo 
o empenho, apressar-se em devolver-lhe a sua glória o quanto antes possivel. 
Por isto a Escritura aconselha: "Não tardes em te converter ao Senhor." 
[Eclo 5.8.1 Se já lhe cansa ofensa quem lhe subtrai a glória, quanto mais 
ofensa lhe causa quem a subtrai persistentemente e com toda a tranqüilidade. 
Mas quem não está em Cristo ou dele se afasta, lhe subtrai a glória, como se 
sabe. 
Na verdade, e dificílimo compreender como uma obra seria morta sem 
ser, ao mesmo tempo, pecado pernicioso ou mortal. 
Demonstração: a Escritura não fala de coisas mortas como se alguma 
coisa que esteja morta não seja mortal. Nem mesmo a gramática o faz, se- 
gundo a qual morto é mais do que mortal. Pois mortal é uma obra que mata, 
dizem eles próprios. Obra morta, porém, não é uma obra matada, mas uma 
obra não-viva. Ora, uma obra não-viva não agrada a Deus, como está escrito 
em Pv 15.8: "Os sacrifícios dos impios são abomináveis." 
Em segundo lugar: de qualquer forma, a vontade tem alguma participa- 
ção em semelhante ato morto, seja amando-o, seja odiando-o. Porque ela é 
má, não pode odiá-lo. Portanto, ela o ama; porconseguinte, ama o que é 
morto. Desta forma, ela provoca em si mesma um mau ato da vontade contra 
Deus, a quem deveria amar e glorificar neste ato e em toda obra. 
Nüo se pode evitar a presunção, nem pode haver verdadeira esperança, 
.se em cada obra não se temer o juizo de condenação. 
Isto fica evidente a partir d a tese 4, acima. Pois é impossivel ter esperan- 
v:i em Deus sem desesperar de todas as criaturas e sem saber que nada ajuda a 
piiipria pessoa senão Deus. No entanto, como não existe ninguém que tenha 
css:i cspcrança pura, conforme dissemos acima, e assim rião deixamos de con- 
I'i:ir :i16 certo ponto na criatura, fica claro que, por causa dessa impureza, 
ilcvc-se teiiicr « juizo de Deus em todas as coisas. E assim deve ser evitada a 
[ircsiinção, não apenas na aparência exterior, mas na atitude interior, isto é, 
ilc sorte que nos desagrade que ainda nos fiemos na criatura. 
Os pecados são realmente veniais perante Deus quando os seres huma- 
n o . ~ temem que sejam pecados mortais. 
Isto se evidencia suficientemente a partir do que já foi dito. Pois Deus 
iios escusa na mesma medida em que nos acusamos, em conformidade com 
cslas palavras: "Conta tuas iniqüidades, para que sejas justificado."27 "Que 
iiio se incline o meu coração a palavras de malícia para alegar escusas dos pe- 
c;idos." [SI 141.4.1 
Após a queda, o livre arbítrio é um mero título; enquanto faz o que está 
<,rir si, peca mortalmente. 
A primeira parte da sentença é evidente, porque a vontade é cativa e ser- 
va do pecado, não por nada ser, mas por não ser livre senão para o mal. Jo 
K.14.36: "Quem comete pecado é escravo do pecado." "Tendo-vos libertado 
i) I.ilho, sereis verdadeiramente livres." Por isso diz o B. Agostinho em seu li- 
vro />o Espírito e da letra: "Sem a graça, o livre arbítrio de nada serve senão 
1p:ii:i pecar."za E no livro 2 Contra Juliano: "Chamais de livre o arbítrio, mas 
ciii vcrdadc ele é escravo", etc.'9; e inúmeras outras passagens. 
A scg~inda parte da sentença resulta do que foi dito acima e de Os 13.9: 
"'l'tia perdição vem de ti, ó Israel; o teu auxilio, de mim somente." 
Ap1i.s 11 qrr~da, o livre arbítrio tem uma potência apenas subjetiva para o 
11r.in; 11rrr.11 o rtlul, porém, sua potência é sempre ativa. 
Islo ~pclo scgiiiiite: quando morta, a pessoa só tem uma potência subjeti- 
va p;ii';i ;i vida; cnqtianto vive, porém, ela tem uma potência também ativa 
11;ir:i :i iiioitc. O livre arbítrio, entretanto, está morto. Sinal disso são os mor- 
I < I ~ qiic i> Sciilii)r rcssuscitou, conforme afirmam os santos mestres. Além dis- 
so, o B. Agostinho demonstra esta tese em diversos textos contra os 
pelagianos30. 
O livre arbítrio tampouco pôde permanecer no estado de inocência pela 
potência ativa, mas sim pela subjetiva; menos ainda pôde progredir em dire- 
ção ao bem. 
O mestre das SentençasJ1, livro 2, distinctio 24, capítulo 1 , referindo-se a 
Agostinho, conclui o seguinte: "Estes testemunhos mostram claramente que, 
na criação, o ser humano recebeu a retidão e a boa vontade, bem como o au- 
xilio através do qual poderia perseverar; caso contrário, pareceria que ele não 
caiu por culpa própria." Ele fala de uma capacidade ativa, o que está fla- 
grantemente contra o que Agostinho afirma no livro Da corrupção e dagra- 
ça, onde consta o seguinte: "Ele havia recebido o poder, na medida em que 
quisesse; mas não tinha o querer, pelo qual poderia."32 Sob "poder" ele en- 
tende a potência subjetiva, e sob "querer, pelo qual poderia", a potência ati- 
va. 
A segunda parte está suficientemente clara na mesma distinctio do mes- 
I tre. 
O ser humano que crê querer chegar a graça fazendo o que está em si33 
acrescenta pecado sobre pecado, de sorte que se torna duplamente réu. 
Pois do que foi dito fica evidente que, enquanto faz o que está em si, o 
ser humano peca e procura exclusivamente o que é seu. Contudo, se crê que, 
através deste pecado, torna-se digno da graça ou apto para ela, ele ainda 
acrescenta uma soberba presunção e não crê que o pecado seja pecado, nem 
30 Pelagianos: hereges da Igreja antiga, seguidores da doutrina da monge bretão Peligio (ca. 
1 400) e de seu amigo Celéstio. Negavam a cativeiro do arbítrio humano, a perversa0 da na- 
tureza humana e o oecado orieinal. Aeastinho foi o mais ferrenho adversário dessa doutri- 
" - 
na. A Igreja decidiu-se contra o pelagianismo, mesmo que - segundo Lutero - tenha 
mantido um semipelagianisrno, o qual combatia a partir de sua doutrina da justificaçao. 
31 Trata-se de Pedra Lombardo, autor do Livro das senlencos. 
32 De corruplione e1 grolia, capitulo 11,32. 
33 Fociendo quodesf in se, no original. A tese volta-se contra os "novos pelagianos" que ensi- 
nam a justificação do ser humano a partir de suas boas "intençdes". Lutero encontra essa 
doutrina especialmente em Gabriel Biel (ca. 141&1495), o qual declara ser digno da graça 
quem se prepara para tanto, "removendo o óbice e provocando uma boa comoção em 
Deiis" (Exposilio cononis misoe, lecr. 59P). 
iliic 1 1 i i inl hcja mal; isto, porém, é um pecado muito grande. Assim consta em 
l i 2.17: "Meu povo cometeu um duplo pecado: abandonaram a mim, a fonte 
viv:i. c cavaram poços dispersos para si, que não prestam para segurar as 
:i$~,ii:i,~." Isto é, através do pecado estão muito longe de mim, mas ainda assirn 
i?iii :i presurição de fazer o bem por si mesmos. 
Dirás então: "Que faremos, pois? Vamos ficar ociosos porque nada fa- 
~ciiiiis serião pecar?" Respondo: não. Mas, ao ouvires essas palavras, 
;iiocllia-te c pede por graça, colocando a tua esperança em Cristo, no qual es- 
i:! ;i ricissa salvação, vida e ressurreição. Pois é para isto que nos são ensina- 
iI;is cstas coisas, é para isto que a lei dá a conhecer o pecado, para que, seiido 
c.<riiliecido o pecado, se procure e se obtenha a graça. Bem assim é que Deus 
~~~iiiccclc a graça aos humildes34 e é assim que quem se humilha é exaltado's. A 
1i.i Iiiirriilha, a graça exalta. A lei opera o temor e a ira; a graça opera a espe- 
i:iii<:i c u misericórdia. Pois pela lei é adquirido o conhecimento do pecado36; 
11~~lo coiiliecimento do pecado, porém, a humildade; e pela humildade, a gra- 
v:[. I)csla forma, a obra estranha de Deus realiza, por fim, a sua obra pró- 
[ ) i i:i, Ià/endo um pecador para torná-lo justo. 
I:N/r~Ianto, falar assim não significa dar motivo para o desespero, mas 
l11rnr Irrrirrilhar-se, e suscitar o empenho no sentido de procurar a graça de 
1 'ri,s~il. 
ls t i~ sc evidencia claramente do que já foi dito: segundo o evangelho, o 
iriiii~ clos cCus é dado aos pequeninos e humildes", e Cristo os ama. Ora, hu- 
iiiilclcs iiZo podem ser aqueles que não se entendem como pecadores condená- 
vi.i\ c Kiiclos. O pecado, porém, não é reconhecido senão pela lei. Assim, fica 
i.I:ii<i qiic iião é o desespero, mas, antes, a esperança que é pregada quando se 
tio\ I i rqV,n que somos pecadores. Porque esta pregação do pecado - ou me- 
Ilioi, i> iccoiiliecimento do pecado e a fé em tal pregação - é preparação pa- 
i ; i ; i p,i ;iy:i. Pois o desejo da graça só surge quando nasceu o conhecimento do 
~~ri~:iiIii. ( i (lr~cnte só procura o remédio quando entende o mal da sua doença. 
Ai i i i i i . icvcl;ir ao doente o perigo de sua doença não é dar motivo para deses- 
1,i.io i111 i~iiiiic, mas, antes, é levá-lo a procurar o remédio da cura. De igual 
i i i i ~ i l i ~ . ililci iliie nada somos e que sempre pecamos quando fazemos o que 
i.\i:i riii 110s 1130 é tornar as pessoas desesperadas (a não ser que sejam tolas), 
i. \ i 1 1 1 ~ i ~ i i i : i I;is ansiosas pela graça de nosso Senhor Jesus Cristo. 
Certo é que o ser humano deve desesperar totalmente de si mesmo, afim 
de tornar-se apto para conseguir a graça de Cristo. 
Pois a lei quer que o ser humano desespere de si mesmo ao conduzi-lo 
para o inferno e torná-lopobre, mostrando-lhe ainda que é pecador em todas 
as suas obras, como o faz o apóstolo em Rm 2 e 3 ao dizer: "Está demonstra- 
do que todos estamos sob o pecado." (Rm 3.9.) Quem, contudo, faz o que 
está em si e acredita fazer qualquer coisa de bom, de forma alguma parece a 
si mesmo um nada, nem desespera de suas forças; pelo contrário: sua presun- 
ção é tamanha, que se fia em suas próprias forças para adquirir a graça. 
Não se pode designar condignamente de teólogo quem enxerga as coisas 
invisíveis de Deus compreendendo-as por intermédio daquelas que estüo fei- 
ias; 
Isto fica evidente através daqueles que fizeram isso e que, não obstante, 
são chamados de tolos pelo apóstolo em Rm 1.22. Ademais: as coisas invisi- 
veis de Deus são o poder, a divindade, a sapiência, a justiça, a bondade, etc., 
sendo que o conhecimento disto tudo não torna digno nem sábio. 
mas sim quem compreende as coisas visíveis e posteriores de Deus 
enxergando-as pelos sofrimentos e pela cruz. 
As coisas posteriores38 e visíveis de Deus são opostas as invisíveis, ou se- 
ja, humanidade, debilidade, tolice, ao feitio de 1 Co 1.25, que fala da debili- 
dade e tolice de Deus. Porque os seres humanos abusaram do conhecimento 
de Deus a partir das obras, Deus, por sua vez, quis ser reconhecido a partir 
dos sofrimentos e quis reprovar aquela sabedoria das coisas invisíveis através 
da sabedoria das coisas visíveis, para que, desta forma, aqueles que não ado- 
raram ao Deus manifesto ein suas obras adorassem ao Deus oculto nos sofri- 
mentos, como diz 1 Co 1.21: "Como na sabedoria de Deus o murido não co- 
1.1 i I I lV<. 5 , s . 
1'1 ( ' I MI > I . I L . 
I(, ( ' I . I<, , , 3.211. 
! I ( ' 1 I11 1 s t 
38 Com a expressão "posteriorer" Lutero se reporta ao texto de Êx 33.17-23. Moisés quer ver 
a gloria de Deus, mas Deus lhe diz: "Não me poderás ver a face porquanto ser humano ne- 
nhum verá a minha face e viverá." Deus, porém, permite que Moisés a veja pelas costas (v. 
23). Segundo a versào da Vulgata: videbis posterior0 meu. O ser humano só pode ver de 
I>eiih aquilo que ele lhe permite ver: a cruz de Cristo. 
nheceu a Deus pela sabedoria, aprouve a Deus salvar os crentes pela tolice da 
pregação." Assim, não basta nem adianta a ninguém conhecer a Deus em 
glória e majestade se não o conhece também na humildade e na ignomínia da 
cruz. Desta maneira ele destrói a sabedoria dos sábios, etc.39, conforme diz 
Isaías: "Verdadeiramente tu és Deus abscôndito." [Is 45.15.1 
Assim, em Jo 14.9, ao dizer Felipe no feitio da teologia da glória: 
"Mostra-nos o Pai", Cristo incontinenti recolheu e reconduziu para si mes- 
mo o pensamento volátil de quem procura Deus em outra parte, dizendo: 
"Felipe, quem vê a mim, vê também meu Pai." Portanto, no Cristo crucifi- 
cado é que estão a verdadeira teologia e o verdadeiro conhecimento de Deus. 
Também Jo 10.9: "Ninguém vem ao Pai senão por mim."N "Eu sou a 
porta", etc. 
O teólogo da glória afirma ser bom o que é mau, e mau o que é bom; o 
teólogo da cruz diz as coisas como elas são. 
Isto é evidente, pois enquanto ignora Cristo, ele ignora o Deus oculto 
nos sofrimentos. Por isso, prefere as obras aos sofrimentos, a glória a cruz, o 
poder a debilidade, a sabedoria a tolice e, de um modo geral, o bem ao mal. 
Esses são os que o apóstolo chama de inimigos da cruz de Cristonl, certamen- 
te porque odeiam a cruz e os sofrimentos, ao passo que amam as obras e a 
sua glória. Assim, eles chamam o bem da cruz de um mal, e o mal da obra de 
um bem. Já dissemos, no entanto, que Deus não é encontrado senão nos so- 
frimentos e na cruz. Os amigos da cruz afirmam que a cruz é boa e que as 
obras são más, porque, pela cruz, são destruidas as obras e é crucificado 
Adão; pelas obras, este é, antes, edificado. Portanto, é impossível que não se 
envaideça com suas boas obras a pessoa que não for primeiramente exinanida 
e destruída pelos sofrimentos e males, até que saiba que ela mesma nada é e 
que as obras não são suas, mas de Deus. 
A sabedoria que enxerga as coisas invisíveis de Deus, compreendendo-as 
a partir das obras, se envaidece, fica cega e endurecida por completo. 
Isto já foi dito. Pelo fato de ignorarem e odiarem a cruz, eles necessaria- 
mente arnam o contrário, ou seja, a sabedoria, a glória, o poder, etc. Por esta 
razão, semelhante amor os cega e endurece ainda mais. Com efeito, é impos- 
sível que a avidcz qcja saciada depois de conseguir o que deseja. Pois da mes- 
39 < ' f . I < ' o l . l ~ l , 40 Cf. Jo 14.6. 41 ('1'. I'p 3.18. 
50 
ma forma como o amor ao dinheiro cresce na medida em que cresce o próprio 
dinheiro, assim também a hidropisia da alma: quanto mais bebe, mais sede 
tem. É como diz o poeta: "Quanto mais tomam, mais têm sede de água."42 
Assim diz Ec 1.8: "Não se satisfaz o olho com o que vê, nem o ouvido com o 
que ouve." O mesmo ocorre com todos os desejos. 
Por esta razão, também a sede de saber não é satisfeita com a sabedoria 
adquirida; pelo contrário: é atiçada mais ainda. Tampouco o desejo de glória 
é satisfeito pela glória alcançada, nem o desejo de dominar é satisfeito pelo 
poder e pelo império, nem a fome de elogios é satisfeita pelo elogio, etc. É o 
que Cristo indica em Jo 4.13, ao dizer: "Quem bebe desta água terá sede no- 
vamente." 
Resta, portanto, o remédio de curar não satisfazendo o desejo, mas 
extinguindo-o. Isto é: quem quer tornar-se sábio não procure a sabedoria 
avançando, mas torne-se tolo procurando a tolice, retrocedendo. Assim, 
quem quer tornar-se forte, glorioso, voluptuoso e satisfeito de todas as coi- 
sas, antes fuja do que procure o poder, a glória, a volúpia e a satisfação de 
todas as coisas. Esta é a sabedoria que é tolice para o mundo. 
A lei provoca a ira de Deus, mata, maldiz, acusa, julga e condena tudo o 
que não esfá em Cristo. 
Neste sentido diz Gálatas 3.13: "Cristo nos libertou da maldição dalei." 
E no mesmo capitulo consta: "Os que sXo das obras da lei encontram-se sob 
a maldição." (GI 3.10.) E Krn 4.15: "A lei provoca a ira." E Km 7.10: "O 
que me era para a vida revelou-se como sendo para a morte." Rm 2.12: "Os 
que pecaram sob a lei pela lei serão julgados." Portanto, quem se gloria na 
lei como sendo sábio e douto, gloria-se em sua confusão, em sua maldição, 
na ira de Deus, na morte, como aqueles aos quais se refere Rm 2.23: "Que te 
glorias na lei?" 
Não obslante, aquela sabedoria não é má, nem se deve fugir da lei; sem a 
teologia da cruz, porém, o ser humano faz péssimo uso daquilo que há de me- 
Ih or. 
Isto porque a lei é santa43, toda dádiva de Deus é boaM e toda criatura é 
42 NR<i i e sabe a que poeta Lutero se refere aqui. 
43 <'r . Kr i i 7.12. 
44 ( ' I ' I I , , , 4.4. 
iiiiiilo boaar. Entretanto, como foi dito acima, quem ainda não foi destruido, 
rcduzido a nada pela cruz e pelo sofrimento, atribui as obras e a sabedoria a 
si iiiesmo e não a Deus; desta forma, abusa das dádivas de Deus e as macula. 
Todavia, quem foi exinanido pelos sofrimentos já não opera mesmo, 
iiias sabe que é Deus quem nele opera e tudo realiza. Por isso, se Deus opera 
i111 não, para ele é a mesma coisa: não se gloria caso Deus opere nele nem é 
corifundido caso Deus não o faça. Ele sabe que lhe basta se sofre e é destrui- 
do pela cruz, para que seja, mais ainda, reduzido a nada. É isto que Cristo 
diz em Jo 3.7: "Importa que nasçais de novo." Para renascer, é necessário 
primeiro morrer e ser exaltado com o Filho do homem; digo morrer, istc é, 
~critir a presença da morte. 
Justo não é quempratica muitas obras, mas quem, sem obra, muito crê 
<'1?1 Cristo. 
Pois a justiça de Deus nao é adquirida através de atos frequentemente re- 
pctidos, como ensinou Aristóteles, mas é infundida pela fé. Pois o justo vive 
;i partir da fé (Rm 1.17). "Com o coração se crê para a justiça." (Rm 10.10.) 
I>ai quero que aquela expreTsão "sem obras" sejaentendida não no sentido 
iIc que o justo nada opere, mas no sentido de que as suas obras não fazem a 
i ~ i ; i justiça; antes, é a sua justiça que faz as obras. Pois é sem a nossa obra 
qiic a graça e a fé são infundidas, ao que, de imediato, se seguem as obras. 
Ah\iin diz Rm 3.20: "Pessoa alguma será justificada a partir das obras da 
Ici." E Rm 3.28: "Julgamos, pois, que o ser humano é justificado pela fé, 
hciii as obras da lei"; isto é, as obras nada fazem em prol da justificação. Sa- 
I)ciido, então, que as obras feitas a partir de tal fé não são suas, mas de Deus, 
clc 1in0 procura justificar-se nem glorificar-se por meio delas, mas procura a 
I ICIIS. É-lhe suficiente a justiça proveniente da fé em Cristo, isto é, que Cristo 
\i . i ; i ;i sua sabedoria, justiça, etc., como é dito em 1 Co 1.30, sendo ele mes- 
iiio. poréin, obra ou instrumento de Cristo. 
,I 11.; fliliz: " f i z isto", mas nunca é feito; a graca diz: "Crê neste", e jú 
<, . \ / l i Ilfflfl /?,i10. 
A ~~iiiiicira parte é evidenciada pelo apóstolo e por seu intérprete, o B. 
Ai:~~\iiiilii).",, ciii iniiilas passagens. Além disso, foi suficientemente dito aci- 
111: i qiic ;i Ici iiiiics opera a ira e mantém a todos sob a maldição. A scgiirida 
parte é evidenciada pelos mesmos autores, pois é a fé que justifica, sendo que 
a lei, diz o B. Agostinho, preceitua o que a fé efetua. Assim, pois, pela fé 
Cristo está em nós, sim, é uno conosco. Mas Cristo é justo e cumpre todos os 
mandamentos de Deus, razão pela qual também nós cumprimos todos eles 
através de Cristo, uma vez que ele se tornou nosso pela fé. 
Poder-se-ia dizer, com razão, que a obra de Cristo é a que opera e que a 
nossa é a operada, e, por conseguinte, que a obra operada agrada a Deuspela 
graça da obra operante. 
Pois na medida em que Cristo habita em nós pela fé, ele nos move às 
obras por aquela fé viva em suas obras. As obras que ele mesmo faz são cum- 
primento dos mandamentos de Deus, a nós concedidas pela fé. Ao 
contemplá-las, somos levados à sua imitação. Por isso o apóstolo diz: "Sede 
imitadores de Deus, como filhos caríssimos." [Ef 5.1 .I Desta forma, as obras 
de misericórdia são suscitadas pelas obras dele, pelas quais nos salvou. Diz o 
B. Gregório41 a esse respeito: "Toda ação de Cristo é instrução para nós, sim, 
uma incitação." Se sua ação está em nós, ela vive pela fé, pois atrai com vee- 
mência, conforme aquela palavra: "Leva-me contigo; corremos atrás do aro- 
ma dos teus ungüentos" [Ct 1.3s.1, isto é, das tuas obras. 
O amor de Deus não acha, mas cria aquilo que lhe agrada; o amor do ser 
humano surge a partir do objeto que lhe agrada. 
A segunda parte desta sentença é evidente e é comum a todos os filósofos 
e teólogos, porque o objeto é a causa do amor, afirmando-se, em conformi- 
dade com Aristóteles", que toda capacidade da alma é passiva e material, 
atuando apenas receptivamente. Assim, ele também atesta que sua filosofia é 
contrária á teologia na medida em que, em todas as coisas, ela procura o que 
é seu e recebe o bem mais do que o proporciona. A primeira parte é evidente, 
porque o amor de Deus, vivendo no ser humano, ama pecadores, maus, to- 
los, fracos, para torná-los justos, bons, sábios e fortes; assim, antes se derra- 
ma e proporciona o bem. Pois os pecadores são belos por serem amados, e 
não são amados por serem belos. O amor humano evita os pecadores e os 
maus. Cristo diz: "Não vim chamar justos, mas pecadores." [Mt 9.13.1 E es- 
47 Papa Gregório (590-604). É diiicil precisar a passagem h qual Lutero se refere. 
48 Élica a Nicômoco, VIII.2: "Nem tudo parece ser amado, mas apenas o estimável, este 6 
bom, agradável ou útil." 
5 3 
t e é o a m o r d a cruz, nascido d a cruz, que não se dirige pa ra onde encontra o 
bem de que possa usufruir, mas pa ra onde possa proporcionar o bem ao mau 
e ao pobre. "Mais bem-aventurado é da r que receber" [At 20.351, diz o ap6s- 
tolo. Daí consta em S141 . l : "Bem-aventurado é quem se dá conta d o carente 
e d o pobre", embora aquilo que nada é, isto é, o pobre o u o carente, nào po- 
de, por natureza, ser ob je to da percepção, mas apenas o que existe, o que é 
verdadeiro e bom. P o r isso, ela julga segundo o aspecto e acepção d a pessoa, 
bem c o m o segundo aquilo q u e é visível, etc. 
Fim 
Explicações do Debate sobre o Valor das indulgênciasi 
Com as 95 teses de 31 de outubro de 1517, Lutero pretendia esclarecer uma série 
de pontos controvertidos. Sua expectativa não se concretizou. No presente escrito, o 
oróorio Lutero resooiide as teses formuladas. buscando exolicá;las e comprová-Ias. 
. . 
Enquanto as tlses são discutidas publicamente, Lutero começa a redigi; um docu- 
mento no qual procura fundamentá-las teológica e juridicamente e explicá-las porme- 
noriradamente. Esse documento seria defesa frente aos ataques e interpretaçdes ten- 
denciosas das teses e. sobretudo. uma iustificativa a ser apresentada aos superiores 
eclesiásticos. Em princípios de 1518, ~ u i e r o está ocupado cõm a redação, massua pu- 
blicação só vai ocorrer em agosto deste ano. A 15 de fevereiro escreve a Espalatiuoz, 
dizendo que vai publicar suas "explicaçdes" das teses (WA Br 1,146). Como, porém, 
seu bispo, Esculteto de Brandenburgo', lhe im~usera o silêncio penitencial, a publica- 
pois Lutero se encontrava em Heidelberg, participando do capítulo de sua ordem. As- 
sim, somente em fins de agosto o livro fica pronto, sendo enviado aos três superiores 
eclesiásticos de Lutero. A Ordem dos Aaostinianos Eremitas encaminha um exemolar - 
para a Cúria, mas não conseguiria mais evitar a formaliração do processo que se ini- 
ciava. As Exolicacõessão o mais imoortante escrito de Lutero no debate em torno das . . 
indulgências. 
O conteúdo das Ex~licacões faz deste escrito uma das mais im~ortantes obras teo- 
. . 
lógicas e reformatórias de seu autor: discute a indulgência e a penitência, colocando-as 
num amplo contexto teológico, e exige, a partir deste contexto, pela primeira vez e 
com toda a clareza, uma reforma da Igreja. Neste escrito, se evidencia que Lutero não 
está se ocupando com um aspecto isolado. Com o debate em torno das indulgências 
1 Resolutiones dispuroiionurn de indulgenliarum virlute, WA 1,525-628. Tradu~Zo de Luis 
M . Sander. 
2 Espalatino, aliás, Georg Burckhardt (1484-1545), nasceu em Spalt/Nilrnberg. Após estu- 
dos juridicos, tornou-se sacerdote. Desde 1508 está a serviço de Frederico, o Sábio, cuja 
chanceiaria assume em 1516. Influenciada pelo humanismo, colabora com Lutera e Me- 
lanchthon na reforma da Uiiiversidade de Wittenberg. Secretário, conselheiro e pregador 
de Frederico, o Sábio, Espalatino goza junto ao principe-eleitor de posição impar, que lhe 
oermite asseeurar a orotecão deste oara Lutern. Como humanista e tradutor das obras de 
te dependente de Lutera, diverge deste na doutrina eucaristica. 
3 Esculteto, aliás, Jerônimo Schulz, cujos anos de nascimento e falecimento nos são ddesm- 
nhecidos, tornou-se bispo de Brandenburgo em 1508 e foi bispo de Havelberg de 1520 a 
1522. 
5 5 
começou a rolar a pedra que ameaça arrastar consigo toda a estrutura eclesiástica. O 
que Lutero até agora só ensinara a seus estudantes (cf. a prelesão sobre a Epistola de 
Paulo aos Romanos, WA 56,157-528) é agora apresentado ao público: a doutrina da 
iustificacão como base e centro de sua teologia. A gravura em madeira do titulo da 
primeir; edição das Explicaçdes mostra o &isto crucificado; a reedição de Leipzig 
auresenta o Cristo morto sendo tirado da cruz. Estas duas "cauas de livro" não terão 
sido produzidas sem o conhecimento e consentimento de Lutei0 e, provavelmente, se 
devem a uma sugestão sua. Elas são referência à fheolopia crucis, aoresentada Dor Lu- 
tero em Heidelberg no mês de maio de 1518. Essa teologia da cruz-é o pano dC fundo 
de toda a argumentaçãocontida nas Explicaçdes. 
As Explicaçdes evidenciam que Lutero argumenta a partir do ponto central de 
sua teologia e que começa a desenvolvê-lo. Contudo, evidenciam também que Lutero 
está lutando para ter clareza plena e que só com grande dificuldade vai conseguindo se 
libertar do "cativeiro babilônico7'. Por isso, as Explicaçdes são importante documen- 
to para se acompanhar o desenvolvimento de Lutero. Nesse sentido, o principio do so- 
la scriplura ainda não tem a primazia total em seu pensamento teológico. E certo que a 
Sagrada Escritura é a primeira das fontes comprobatórias usadas, mas ao lado dela en- 
contramos os pais da Igreja e o direito canônico(!), que mais tarde vai combater vigo- 
rosamente. Com arande resoeito ainda nrocura Douoar a fiaura do oaoa em sua auali- 
. . . . 
dade de lider e chefe da igreja e contin"a a crer que ele es t ia seu lado. Julga também 
que um concilio geral possa tomar decisdes em questdes de fé e realizar as tão necessá- 
rias reformas da Igreja. Por outro lado, podemos notar que sua teologia já lhe permite 
fazer alguns progressos. Pode dizer que um julgamento papal que venha a condenar a 
ele e a sua doutrina deve ser suportado em obediência, mas não pode ser visto como 
determinante para a consciência. Posiciona-se também contra a aueima de hereees. 
Fazendo uso da critica histórica, observa que na época de Ciregório.14 o bispo romano 
ainda não era reconhecido como supremo chefe de toda a Igreja. Procura não eliminar 
a doutrina do purgatório, dando-lhe uma interpretação evangélica. Ainda não ques- 
tiona a missa em intenção de almas; também não elimina a afirmacão acerca do "te- 
souro da Igreja", básica para a doutrina das indulgências. No entanto, nega com vee- 
mência a equiparação do "tesouro" com os méritos de Cristo. A teoloaia da cruz de- 
duzida da doutrina da justificasão vai criticando, pouco a pouco, a velhá Igreja. O no- 
vo movimento não pode mais ser contido. 
Martin N. Dreher 
4 Gregório I , o (irande. papa de 3/9/5W até 11/3/6a4 
56 
Ao Reverendo João von Stau~i tzs . verdadeiramente seu Pai. Professor 
de Sagrada Teologia, Vigirio d a & d e i dos Agostinianos, ~ a r t i n h o Lutero, 
seu discipulo, envia saudaqões, colocando-se a sua disposição. 
Lembro-me, Reverendo Pai, que em meio as tuas agradabilissimas e sa- 
lutares conversas, com as quais o Senhor Jesus costuma me consolar maravi- 
lhosamente, houve por vezes menção d a palavra "penitência". Aí, a o nos co- 
miserarmos das muitas consciências e daqueles algozes que, com infinitos e 
insuportáveis preceitos, ensinam (como se diz) um modo de confessar-se, te 
acolhemos como se falasses d o céu, [dizendo] que só é penitência verdadeira 
a que começa pelo amor à justiça e a Deus e que o que aqueles consideram o 
fim e a consumaçáo d a penitência é, antes, o princípio dela. 
Essa tua palavra se fixou em mim como a seta pontiaguda de u m forte. 
Em seguida, comecei a compará-la com passagens d a Escritura que ensinam a 
penitência, e eis que era u m jogo agradabilissimo. De todos o s lados as pala- 
vras entravam em entendimento comigo, eram claramente favoráveis a essa 
opinião e acorriam, de tal modo que, enquanto que anteriormente em toda a 
Escritura ouase não havia oalavra mais amarea oara mim d o aue "oenitên- 
- . 
cia" (embora eu zelosamente simulasse também perante Deus e procurasse 
exprimir um amor fingido e forçado), agora nada me soa de maneira mais 
doce o u grata d o que "penitência". Pois o s mandamentos d e Deus se tornam 
doces quando compreendemos que eles devem ser lidos não apenas em livros, 
mas nas feridas d o dulcíssimo Salvador. 
Depois acrescentou-se que - através d o esforço e favor d e homens eru- 
ditíssimos, que nos ensinam grego e hebraico de maneira muitíssimo oficiosa 
- eu aprendi que, em grego, a mesma palavra se diz melanoea, de meta e 
noyn, isto é, d e p o s t e mentem, de modo que penitência o u metanea é um re- 
cobrar os sentidos6 e , depojs de entendido o dano e reconhecido o erro, uma 
compreensão de seu mal. E impossível que isso aconteça sem mudança d o 
sentimento e d o amor. Tudo isso corresponde à teologia paulina de modo tão 
apropriado que, pelo menos em minha opinião, quase nada pode explicar 
Paulo de maneira mais apropriada. 
Por fim, fui mais longe e vi que metanoean pode ser deduzido não só de 
5 1469(?)-28/12/1524. Nasceu em Motterwitz, perto de Leisnig, falecendo em Salzburgo. 
Nobre saxão, estudou em Colônia e Leipzig, tornando-se agostiniano, em Munique, no ano 
de 1490. Em 1497, tornou-se prior do convento de Tilbingen. Desde 1500doctor in biblio, 
foi convocado por Frederico, o Sábio. em 1503, para ser o primeiro decano da Faculdade 
de Teologia da Universidade de Wittenberg. Neste ano, tornou-se também vigário-geral da 
Congregação alemã de Observantes. No processo contra Lutero, Staupitz procurou defen- 
dê-lo onde lhe foi possivel, liberando-o, p. ex., do voto de obediência. Como estivesse sob 
suspeita de heresia, Staupitz renunciou, em 1520, ao cargo de vigário-geral, tornando-se 
pregador da corte do cardeal-arcebispo Mateus Lang, em Salzburgo, e abade do convento 
beneditino de São Pedro. Desde então, há um distanciamcnto em relaçxo a Lutero. Stau- 
pitr tem influências do tomismo e da mística alemã. Sua piedade cristocêntrica auxiliou Lu- 
tero em seus conflitos com a penitência e a doutrina da predestinação. 
6 Resipiscenlio, no original. 
pos te mentem, mas também de transe mentem (ainda que isto seja violento), 
de modo que metania significa uma transmutação da mente e do sentimento. 
Assim, esse termo parecia assinalar não só uma mudança do sentimento, mas 
também o modo da mudança, isto é, a graça de Deus. Pois esse trânsito da 
mente, isto é, a verissima penitência, é muito frequente nas Sagradas Escritu- 
ras. É a ele que denotava outrora aquela antiga passagem7, é a ele que Cristo 
mostrou e que, muito antes, também Abraão figurou quando começou a 
chamar-se um transeunte, isto é, um hebreu8, a saber, ao fazer o trajeto para 
a Mesopotâmia, como o Burguenseg ensina doutamente. Com isto está de 
acordo também o titulo do salmol0 em que é introduzido o cantador Jedu- 
tum, isto é, alguém que salta de um para outro lado. 
Fixando-me nisso, ousei julgar que laboram em erro os que atribuíram 
ás obras da Penitência tanto, que fizeram com que quase nada nos restasse da 
Penitência exceto algumas frias satisfações e a trabalhosissima confissâo, de- 
sencaminhados que foram pelo vocábulos latinos, pois poenitentiam agere 
refere-se mais a uma açao do que a uma mudança do sentimento e de modo 
nenhum satisfaz ao termo grego metanoin. 
Quando assim se agitava essa minha reflexão, eis que subitamente come- 
çaram a ressoar, sim, a clangorar em torno de nós as novas trombetas das in- 
dulgências e as buzinas das remissões, através das quais, porém, não fomos 
animados para um estrênuo zelo pela guerra. Numa palavra: negligenciando 
a doutrina da verdadeira penitência, tiveram a presunção de maguificar - 
não a Penitência, nem ao menos a mais vil de suas partes, chamada satisfa- 
ção, e sim - a remissão dessa mesma vilissima parte a tal ponto, que nunca 
se ouviu que ela tenha sido assim magnificada. Enfim, ensinavam coisas im- 
pias, falsas e heréticas com tanta autoridade (eu queria dizer "temeridade"), 
que quem apenas piasse contra elas imediatamente estaria devotado ao fogo e 
seria réu de maldição eterna. 
Não podendo opor-me ao seu furor, decidi deles dissentir modestamente 
e colocar em dúvida suas opiniões, apoiado no parecer de todos os mestres e 
de toda a Igreja de que também é melhor satisfazer do que que a satisfação 
seja remitida, isto é, do que comprar indulgências. Não há ninguém que al- 
guma vez tenha ensinado de outra forma. Assim pois, eu debati, isto é, pro- 
voquei, para o mal de minha cabeça,as coisas maiores, médias e ínfimas, tu- 
do quanto pode acontecer e ser feito por meio desses zeladores de dinheiro 
(olha! eu deveria ter dito "de almas"). Pois, não podendo negar as coisas que 
eu disse, essas pessoas amabilissimas, munidas da mais crassa astúcia, inven- 
tam que o poder do sumo pontífice é prejudicado por meus debates. 
Esta é, Reverendo Pai, a razão pela qual agora infelizmente me apresen- 
to em público, eu que sempre gostei do meu canto e prefiro assistir ao belo jo- 
go das pessoas talentosas de nossa época a ser visto e ridicularizado. No en- 
7 Phare, no original; cf. &x 12.11. 
8 Cf. Gn 14.13. 
9 Paulo de Burgos, bispo de Burgos, falecido em 1453 como patriarca de Aqiiiléia. 
10 Cf. SI 39, 62, 77. 
58 
I 
Ao Beatissimo Pai, Leão X, Sumo Pontífice, deseja o frei Martinho Lu- 
tero, agostiniano, salvação eterna. 
I 
I 
I 
Beatissimo Pai: Ouvi um péssimo rumor sobre mim, do qual depreendo 
que alguns amigos tornaram meu nome insuportavelmente fétido diante de 
vós e dos vossos, dizendo que eu teria me esforçado para diminuir a autorida- 
de e o poder das chaves e do sumo pontífice. Dai que sou acusado de herege, 
apóstata, pérfido e com um sem-número de nomes, mais ainda: de ignomi- 
tanto, como vejo, por causa da beleza e do encanto é necessário que também 
o legume ruim seja visto entre os bons e que o negro seja colocado entre o 
branco. 
Rogo, pois, que aceites este meu inepto trabalho e, com tanta dedicação 
quanto possível, o transmitas ao bom pontífice Leão Xil, para que ele me se- 
ja lá uma espécie de paracleto contra os esforços de pessoas malignas. No en- 
tanto, não quero te ligar a mim no perigo; quero ter feito isso unicamente pa- 
ra meu próprio risco. Cristo verificará se as coisas que eu disse são dele ou 
minhas. Sem um sinal dele, nem o sumo ponti-ce tem uma palavra em sua 
língua, nem o rei tem o coração em sua mãol2. E a ele que espero como o juiz 
que pronunciar8 sua sentença a partir da Sé Romana. 
No mais, nada tenho a responder a esses meus amigos fazedores de 
ameaças senão aquela palavra de Reuchlinl3: "Quem é pobre nada teme, na- 
da pode perder." Não possuo nem desejo bens; se tive reputação e honra, 
agora perde incessantemente quem perde. Uma coisa resta: o corpo fraco e 
fatigado por assíduos incômodos. Se o destruirem por meio de violência ou 
de dolo (para prestar um obséquio a Deus), talvez me tornem mais pobre em 
uma ou duas horas de vida. Basta-me o doce redentor e propiciador, meu Se- 
nhor Jesus Cristo, a quem cantarei enquanto eu viverl4. Mas se alguém não 
quiser cantar comigo, que me importa? Ele que ulule, se lhe agrada, mesmo 
consigo. Ele, o Senhor Jesus, te guarde em eternidade, meu amabilissimo 
11 Papa de 11/3/1513 até 1/12/1521. Nascido como Giovanni de Medici (1475) em Florença, 
como filho de Lorenzo Magnifico, recebeu como criança inúmeras prebendas, tornando-se 
cardeal aos 13 anos. Em Roma, esteve a serviço de Júlio 11. Como papa, concluiu o V Con- 
cilio de Latrão. Em 1520, condenou 41 sentengas de Lutero, sem conseguir ver as conse- 
qiiências do movimento reformatario para a Igreja e para o Sacro Império Romano Oer- 
mânico. Lutero dedicou-lhe, em 1520, seu escrito Do liberdade crista (que constará no v. 2 
desta coleção). 
12 Cf. Pv 21.1. 
13 João Reuclilin (1455-1522). nascido em Pfarzheirn, era tio-avo de Melanchthan. Humanis- 
ta, era o mais importante representante do platonismo ao norte dos Alpes. Latinista e gre- 
cista, foi o maior erudito no tocante à lingua hebraica em seu tempo, devendo ser conside- 
rado o pai da lingilistica hebraica. 
i4 Cf. SI 104.33. 
Pai. Wittenberg, no dia da Santa Trindade'', 1518. 
nias. Os ouvidos se horrorizam e os olhos ficam estupefatos. Mas continua de 
pé o Único sustentáculo de [minha] confiança, [minha] consciência inocente e 
tranqüila. Também não são novas as coisas que ouço. Pois com tais adornos 
me ornaram também em nossa região essas pessoas honestissimas e verazes, 
isto é, as que têm uma péssima consciência, que procuram me impor suas 
monstruosidades e glorificar suas ignomínias com minha ignomínia. Rogo- 
vos, porém, Beatissimo Pai, que vos digneis a ouvir a causa propriamente di- 
ta de mim, que sou infante e inculto. 
Recentemente se começou a pregar entre nós o jubileu das indulgências 
apostólicas, e isso chegou a tal ponto, que os seus pregadores, crendo que tu- 
do Ihes era permitido sob o terror do vosso nome, ousaram ensinar publica- 
mente coisas impiissimas e heréticas, para o gravíssimo escândalo e escárnio 
do poder eclesiástico, como se as decretais sobre os abusos dos questores em 
nada lhes dissessem respeito. Não contentes com o fato de difundirem esses 
seus venenos com palavras licenciosas, ainda por cima publicaram libelos e os 
disseminaram entre o povo. Neles - para silenciar a respeito da insaciável e 
inaudita avareza, que quase cada um dos pontos deixa perceber muito crassa- 
mente - estatuiram as mesmas coisas impias e heréticas, e o fizeram de tal 
modo que obrigaram os confessores, mediante juramento, a inculcar no povo 
essas mesmas coisas com extrema fidelidade e insistência. Digo a verdade, e 
não há nada com que eles possam se esconder desse calor. Os libelos estão ai, 
e não podem negá-los. Naquele tempo isso ia prosperamente, as pessoas eram 
sugadas através de falsas esperanças, e , como diz o profetai6, eles arranca- 
vam a carne de cima de seus ossos; eles mesmos, porém, engordavam de ma- 
neira muito confortável e suave nesse meio-tempo. 
Havia uma coisa com a qual amainavam os escândalos: o terror do vosso 
nome, a ameaça do fogo e o opróbrio do nome de herege. Pois é incrivel co- 
mo são propensos a ameaçar com essas coisas, mesmo ao perceberem uma 
contradição tão-somente em suas ninharias, que não passam de fantasmago- 
rias. Ora, isto não é acalmar escândalos, mas, antes, provocar, com pura ti- 
rania, cismas e, por fim, revoltas. 
Não obstante, pelas tabernas se propagavam as conversas sobre a avare- 
za dos sacerdotes e as detrações das chaves e do sumo pontífice, como testifi- 
ca a voz corrente de toda esta terra. Quanto a mim, porém, reconheço que me 
inflamava por causa do zelo por Cristo, como me parecia, ou, se assim apraz, 
por causa da impetuosidade juvenil. No entanto, eu via que não me cabia es- 
tatuir ou fazer qualquer coisa nessas questões. Por conseguinte, adverti parti- 
cularmente vários magnatas da Igreja. Fui aceito por alguns, ridicularizado 
por outros, a outros pareci outra coisa ainda, pois prevalecia o terror do vos- 
so nome e a ameaça das censuras. Por fim, como não podia outra coisa, 
apronve-me opor-me a eles pelo menos muito brandamente, isto é, colocar 
em dúvida as opiniões deles e suscitar um debate. Assim pois, publiquei uma 
folha de debate, convidando apenas os mais doutos, se quisessem discutir co- 
migo - como deve ser manifesto, a partir do prefácio dessa mesma discepta- 
ção, até para os adversários. 
Eis aí o incêndio que, segundo se queixam eles, teria conflagrado o mun- 
do todo, talvez porque se indignam com o fato de que eu, como um único in- 
dividuo, mestre da Teologia por vossa autoridade apostólica, tenho o direito 
de debater em escola pública, conforme o costume de todas as universidades 
e de toda a Igreja, não apenas sobre as indulgências, mas também sobre o po- 
der, a remissão e as indulgências divinas, que são coisas incomparavelmente 
maiores. Enlretanto, não me impressiona muito o fato de que eles me recu- 
sam essa faculdade, que me foi concedida pelo poder de Vossa Beatitude, 
pois sou obrigado a conceder-lhes, contra a vontade, coisas muito maiores, a 
saber, o fato de misturarem os sonhos de Aristótelesl7 n o meio das coisas da 
teologia e de debaterem meras nugas acerca da majestade divina, e isto contra 
e fora da faculdade que Ihes foi dada. 
Além disso, eu mesmo me pergunto com espantoque destino fez com 
que tão-somente esses meus debates, antes dos outros - não apenas dos 
meus, mas de todos os mestres -, se propagassem em quase toda a terra. Eles 
foram publicados junto aos nossos e apenas por causa dos nossos, e o foram 
de tal modo, que me parece inconcebivel que tenham sido compreendidos por 
todos. Pois trata-se de debates, não de doutrinas nem de dogmas; como é 
costume, são apresentados de maneira obscura e enigmática. De outro modo, 
se tivesse podido prever, de minha parte eu certamente teria cuidado para que 
fossem mais fáceis de entender. 
E agora, o que farei? Não posso revocar, e vejo que por causa dessa pu- 
blicação se formou um ódio extraordinário contra mim. E a contragosto que 
venho a público e me coloco sob o juizo perigoso e inconstante dos seres hu- 
manos, principalmente porque sou indouto, estúpido de inteligência e des- 
provido de erudição, e depois porque o faço em nossa florescente época, que, 
por sua fecundidade em conhecimentos e em inteligência, poderia empurrar 
para o canto até um Cicerola,que, aliás, procurava corajosamente a luz e a 
publicidade. Mas a necessidade obriga a que eu, como pato, grasne entre os 
cisnes. 
Assim pois, para abrandar os próprios adversários e satisfazer os desejos 
de muitos, eis que emito minhas ninharias, em que explico meus debates; 
emito-as, porém, Beatissimo Pai, para estar mais seguro, sob a guarda de 
vosso nome e sob a sombra de vossa proteção. Nelas, quem quiser poderá 
perceber com quanta pureza e simplicidade procurei e cultivei o poder ecle- 
siástico e a reverência as chaves, e, ao mesmo tempo, com quanta injustiça e 
falsidade os adversários me desonraram com tantos epitetos. Pois se eu fosse 
tal como eles desejam que eu seja visto - e não, antes, pela faculdade de de- 
bater, todas as coisas tivessem sido corretamente tratadas por mim -, não 
17 384~322 a.C. Com a formulação, Lutero desqualifica o pensamento do grande filósofo gre- 
go. Em rua opinião, a filosofia aristotélica não deve ser critério e norma para a teologia. 
18 Marco Túlio Cicero (106-43 a.C.). Em sua época pessoa de imensos conhecimentos, Cicero 
c! <I criador da prosa latina clássica. 
61 
poderia ter acontecido que o ilustrissimo príncipe Frederico'g, duque da Sa- 
xônia, eleitor do império, etc., permitisse tal peste em sua universidade (já 
que, sem dúvida, ele é o maior amante da verdade católica e apostólica), e eu 
não teria sido suportável aos homens extremamente enérgicos e instruidos de 
nossa escola. Na realidade estou perdendo tempo, pois aquelas amabilíssimas 
pessoas não receiam destruir publicamente, junto comigo, também o principe 
e a universidade com a mesma ignomínia. Por isso, Beatissimo Pai, prostra- 
do aos pés de Vossa Beatitude, ofereço-me com tudo o que sou e tenho. Vivi- 
ficai, matai, chamai, revogai, aprovai, reprovai, como vos aprouver. Em 
vossa voz reconhecerei a voz de Cristo que governa e fala em vós. Se mereci a 
morte, não me recusarei a morrer. Pois a terra e sua plenitude pertencem ao 
Senhorzo, que é bendito para sempre, amém, que guarde também a vós em 
eternidade, amém. No ano de 1518. 
Protestação 
Como este é um debate teológico, repetirei aqui, mais uma vez, a protes- 
tação habitual nas escolas, para pacificar os ânimos que porventura tenham 
se ofendido com o simples texto do debate. 
Em primeiro lugar, protesto que absolutamente nada quero dizer ou sus- 
tentar senão o que é e pode ser sustentado primeiramente nas Sagradas Escri- 
turas e a partir delas, depois em e a partir dos pais da Igreja aceitos e até ago- 
ra conservados pela Igreja Romana, e, por fim, a partir dos cânones e das de- 
cretais pontificias. Se alguma coisa não pode ser provada ou desaprovada a 
partir deles, mantê-la-ei apenas por causa do debate, segundo o juizo da ra- 
zão e a experiência; nestas coisas, porém, fica sempre ressalvada a decisão de 
todos os meus superiores. 
Uma coisa acrescento e reivindico para mim conforme o direito da liber- 
dade cristã: quero refutar ou aceitar, segundo meu arbítrio, as opiniões do B. 
Tomás21, do B. Boaventura22 ou de outros escolásticos ou canonistas" que se- 
jam meramente propostas, sem texto e sem prova. [Farei isto] de acordo com 
o conselho de Paulo: "Julgai todas as coisas, retende o que é bom." [ l Ts 
5.21 .I No entanto, conheço a opinião de alguns tomistas que querem que o B. 
19 Frederico, o Sabio (1463-1525). desde 1486 principe-eleitor da Saxônia. Ficou historica- 
mente conhecido por interceder incansavelmente por Lutero ante o papa e a imperador; 
evitou o processo contra Lutero, auxiliando, com isso, a Reforma alema. A ele se deve a 
criação da Universidade de Wittenberg, na qual Lutero atuou. 
20 Cf. SI 24.1. 
21 Tomas de Aquino (1225-1274), daminicano, foi professor de Teologia em Paris, Roma e 
Nápoles. Aprofundando o conhecimento de Aristóteles e dos pai? da Igreja, Tomás criou 
um dos mais impressionantes sistemas da escolastica. 
22 Boaventura (1221-1274), alias João Fidanza, franciscano, é considerado o segundo funda- 
dor da Ordem Franciscana. Recebeu a designaçào de "mestre seráfico" ou "principe deto- 
dos os místicos" por causa de seus escritos dogmáticos. 
23 Pessoas que ensinam o direito canõnico. 
62 
Tomás seja aprovado pela Igreja em todas as coisas. É suficientemente sabi- 
do quanto vale a autoridade do B. Tomás. Creio que por meio desta minha 
protestação fica suficientemente claro que por certo posso errar, mas que não 
sou um herege, por mais que rujam e se desfaçam de raiva aqueles que pen- 
sam ou desejam outra coisa. 
Explicações do Debate sobre o Valor das Indulgências 
Tese 1 
Ao dizer: "Fazeipenitência'? etc. [Mt 4.171, nosso Senhor e Mestre Je- 
sus Cristo quis que toda a vida dos fiéis fosse penitência. 
Afirmo esta tese e dela em nada duvido. 
Contudo, demonstro-a por causa dos incultos: em primeiro lugar. a par- 
tir do próprio termo grego metanoite, isto é, fazei penitência, o que pode ser 
traduzido de maneira extremamente exata por transmentamini, isto é, "to- 
mai outra mente e maneira de pensar e sentir, recobrai os sentidos", fazei 
uma transição da mente e uma passagem do espírito", de modo que vós, que 
até aqui compreendestes as coisas terrenas, agora compreendais as celestiais. 
E o que o apóstolo diz em Rm 12.2: "Renovai-vos pela novidade de vossa 
mente." Através dessa recuperação dos sentidos acontece que o prevaricador 
cai em si e odeia seu pecado. Certo é, porém, que essa recuperação dos senti- 
dos ou ódio de si mesmo deve acontecer durante a vida toda, conforme aque- 
la passagem: "Quem odeia a sua vida neste mundo preservá-la-á para a vida 
eterna." [Jo 12.25.1 E de novo: "Quem não toma a sua cruz e me segue não é 
digno de mim." [Mt 10.38.1 E no mesmo lugar: "Não vim para enviar paz, 
mas a espada." [Mt 10.34.1 Mt 5.4: "Bem-aventurados os que choram, por- 
que serão consolados." E Paulo, em Rm 6 e 8, bem como em muitos outros 
lugares, ordena mortificar a carne e os membros que estão sobre a terra. Em 
G1 5.24 ensina que se crucifique a carne com suas concupiscências. Em 2 Co 
6.4,5 ele diz: "Mostremos a nós mesmos em muita paciência, em muitos je- 
juns", etc. Exponho isso extensamente, como se lidasse com pessoas que não 
conhecem nossa [posição]. 
2. Por isso demonstro a mesma tese também pela razão. Porque Cristo é 
o mestre do espírito, não da letra, e suas palavras são vida e espírito", é ne- 
cessário que ele ensine uma penitência que seja feita em espírito e em verda- 
24 Cf. p. 22, nota 2. 
25 Resipisciie, no original. Também poderia ser traduzido por "voltai a vós" ou "voltai B sa- 
bedoria". Em português existe o termo "resipiscência". 
26 Cf. Jo 6.63. 
de, não uma penitência que possa ser feita exteriormente pelos mais soberbos 
hipócritas, desfigurando o rosto em seus jejuns%?, orando nos cantos28 e dan- 
do esmola comtrombetas29. Digo que é preciso que Cristo ensine uma peni- 
tência que possa ser feita em toda espécie de vida - que o rei em sua púrpu- 
ra, o sacerdote em sua pureza30 e os príncipes em sua dignidade possam fazer 
não menos do que o monge em seus ritos e o mendigo em sua pobreza, assim 
como fizeram Daniel e seus companheiros em meio a Babilónia. Pois a dou- 
trina de Cristo deve convir a todos os seres humanos, isto é, de todas as con- 
diçdes. 
3. Em terceiro lugar, por toda a vida oramos e devemos orar: "Perdoa- 
nos as nossas dívidas." [Mt 6.12.1 Logo, durante toda a vida fazemos peni- 
tência e desagradamos a nós mesmos, a não ser que alguém seja tão tolo, que 
creia que deve fazer de conta que ora pela remissão das dívidas. Pois as divi- 
das pelas quais nos é ordenado orar são verdadeiras e não devem ser menos- 
prezadas; mesmo que sejam veniais, não podemos ser salvos se não tiverem 
sido perdoadas. 
Tese 2 
Esta expressüo nüo pode ser entendida no sentido da Penitência 
sacramental3i (da confissüo e satisfação celebrada pelo ministério dos sacer- 
dotes). 
Afirmo e demonstro também esta tese: 
1. Em primeiro lugar, porque a Penitência sacramental é temporal e não 
pode ser feita a todo momento. Do contrário, dever-se-ia falar incessante- 
mente com o sacerdote e não fazer qualquer outra coisa exceto confessar os 
pecados e cumprir a satisfação imposta. Por isso ela não pode ser aquela cruz 
que Cristo manda tomar sobre $1, nem é a mortificação das paixões da car- 
ne. 
2. A Penitência sacramental é apenas externa e tem a interna como pré- 
requisito, sem a qual nada vale. Ora, esta é interna e pode existir sem a sacra- 
mental. 
3. A Penitência sacramental pode ser fingida; esta33 só pode ser verdadei- 
ra e sincera. Se não fosse sincera, seria uma penitência de hipócritas, não a 
que Cristo ensina. 
4. A respeito da Penitência sacramental não se tem um mandamento de 
27 Cf. Mt 6.16. 
28 Cf. Mt 6.5. 
29 Cf. Mt 6.2. 
30 Munditio, no original. Também poderia ser traduzido por "adorno" 
31 Cf. p. 23, nota 3 
32 Cf. Mt 16.24. 
33 Sc. a interna. 
Tese 3 
Cristo. Ela foi estatuida pelos pontífices e pela Igreja (pelo menos no que diz 
No entanto, ela não se refere apenas a uma penitência interior; sim, ape- 
nitência interior seria nula se, externamente, não produzisse toda sorte de 
mortificações da carne. 
1 
Afirmo e demonstro também esta tese: 
1. Em Rm 12.1 o apóstolo ordena que ofereçamos nossos corpos como 
sacrifício vivo, santo e agradável a Deus. Em seguida, expõe clara e ampla- 
mente como isso deve ser feito, ao ensinar que pensemos36 com humildade, 
sirvamos e amemos uns aos outros, perseveremos na oração, sejamos pacien- 
tes, etc. Como ele também diz em 2 Co 6.4.5: "Mostremos a nós mesmos em 
muita paciência, em jejuns e vigílias", etc. Porém também Cristo ensina, em 
Mt 5 e 6, a jejuar, orar, dar esmolas corretamente. Do mesmo modo, em ou- 
tro lugar: "O que resta, dai como esmola, e eis que tudo vos será limpo." [Lc 
11.41.1 
Dai se segue que, por serem preceito de Cristo, aquelas três partes da sa- 
tisfação -jejum, oração e esmola - não pertencem a Penitência sacramen- 
tal no que diz respeito à substância das açdes. Pertencem a ela no que diz res- 
peito ao modo e tempo determinado segundo o qual a Igreja as ordenou, a 
saber, quanto tempo se deve orar, jejuar, dar, do mesmo modo quanto e o 
que se deve orar, quanto e o que não se deve comer e quanto e o que se deve 
dar. Contudo, na medida em que pertencem a penitência evangélica, o jejum 
I compreende todos os castigos da carne, sem escolha de alimentos e sem dife- rença de roupas; a oração, todo exercício da alma: meditar, ler, ouvir, orar; a 
esmola, todo obséquio para com o próximo. Assim, pelo jejum [a pessoa] 
i serve a si mesma; pela oração, a Deus; e pela esmola, ao próximo. Pelo pri- meiro, ela vence a concupiscência da carne e vive sóbria e castamente; pela se- gunda, vence a soberba da vida e vive piedosamente; pela terceira, vence a 
! 
respeito a sua terceira parte, ou seja, a satisfação"). Por esta razão, também 
pode ser mudada segundo o arbitrio da Igreja. Mas a penitência evangélica é 
lei divina, não podendo ser mudada nunca, pois é aquele sacrifício perpétuo 
chamado um coração contrito e humilhado3r. 
5. Cabe aqui [a observação de] que os mestres escolásticos são unânimes 
em distinguir a penitência como virtude da Penitência sacramental, conside- 
rando a penitência como virtude como matéria ou objeto do Sacramento da 
34 O Sacramento da Penitência é formado de três partes: contriç2o, confissão e satisfação. A 
terceira parte é a expiação das penas impostas pelo confessor. 
I 35 Cf. SI 51.17. 
Penitência. 
1 36 Sc. a respeito de nós mesmos, 
concupiscência dos olhos e vive de maneira justa neste mundo. Por isso, to- 
das as mortificações que a pessoa compungida se impõe - sejam elas vigílias, 
trabalhos, privações, estudos, orações, evitar o sexo e os prazeres - perten- 
cem a penitência interior como seus frutos, na medida em que promovem o 
espírito. 
2. Assim agiu o Senhor mesmo, e com ele todos os seus santos. Assim, 
finalmente, ele ordenou: "Que a vossa luz brilhe diante dos seres humanos, 
para que vejam vossas hoas obras." [Mt 5.16.1 Pois sem dúvida as boas obras 
são, exteriormente, frutos da penitência e do Espírito, já que o Espírito não 
faz nenhum som senão o da rola, isto é, o gemido do coração, a raiz das hoas 
obras. 
Contra essas minhas três teses certa pessoa, indignada e andando por ai 
sob a pele de um leão,', afirmou aos berros que é um erro negar que a palavra 
"penitência" deva ser entendida como dizendo respeito também ao Sacra- 
mento da Penitência. Em primeiro lugar, não é meu propósito refutar todas 
as suas proposições, escritas de maneira tão estúpida e ignorante, que me é 
impossível crer que tenham sido compreendidas tanto por aquele sob cujo 
nome são publicadas3s quanto por aquele que as forjou'q, o que se evidencia 
com facilidade também a qualquer pessoa mediocremente inteligente e versa- 
da nas Escrituras. No entanto, para demonstrar também a eles sua própria ig- 
norância (se é que puderem captá-lo), vou elucidar essa primeira tese. Admi- 
to que sob o termo "penitência" se pode entender mesmo a penitência de Ju- 
das, mesmo uma penitência de Deus, mesmo uma penitência imaginária, e, 
como costumam dizer os lógicos, uma penitência tomada primeiramente se- 
gundo sua matéria e, em segundo lugar, conforme sua intenção, e, por isso, 
também o sacramento, isto é, a satisfação. Ou quem nega que até hoje alguns 
teólogos - e não poucos -se permitiram corromper quase toda a Escritura 
com suas audazes distinções e anfibologias recentemente inventadas, a tal 
ponto que, em lugar de Paulo e Cristo, lemos colchas de retalhos de Paulo e 
de Cristo? Eu falei do significado autêntico e próprio do termo, do significa- 
do que Cristo quis dar a ele, ou que pelo menos João Batista quis. Este não ti- 
nha autoridade para instituir um sacramento; mesmo assim, veio pregando o 
batismo de penitência, dizendo: "Fazei penitência." [Mt 3.2.1 Esta palavra 
foi repetida por Cristo", e, assim, creio que é suficientemente compreensivel 
que ele não falou do sacramento. Contudo, [suponhamos] que o sonho deles 
seja verdadeiro e vejamos o que daí se segue. 
Cristo é, sem dúvida, um legislador divino, e sua doutrina, direito divi- 
no, isto é, um direito que nenhum poder pode mudar ou do qual pode dispen- 
37 Lutera refere-se às teses de Conrado Wimpina, apresentadas em debate pública na conven- 
$20 dos dominicanos, em Frankfurt/Oder, em janeiro de 1518, posteriormente publicadas 
sob o nome de João Tetzel. 
38 Joâo Tetzel. 
39 Conrado Wimpina. 
40 Cf. Mt 4.17. 
sar. Mas se a penitência ensinada por Cristo nessa passagem4' significa a Pe- 
nitência sacramental, isto é, a satisfação, e se a esta o papa podemudar e, de 
fato, muda conforme seu arbítrio, então ou o papa tem em seu poder o direi- 
to divino, ou ele é o mais ímpio adversário de seu Deus, anulando o manda- 
mento de Deus. Se ousam afirmar isto aqueles que se gloriam de debater para 
o louvor de Deus, e para a defesa da fé católica, e para a honra da santa Sé 
Apostólica, e para a revelação da verdade, e para a supressão dos erros; por 
fim, se é assim que honram a Igreja e defendem a fé os que querem ser vistos 
como inquisidores da depravação herética (um título medonho, do qual se 
gabam enormemente - quase que eu disse "inutilmente"42) - o que, per- 
gunto, sobra para os mais loucos hereges, com que também eles possam blas- 
femar e incriminar o papa e a Sé Apostólica? A tais pessoas eu não chamaria 
publicamente de inquisidores, mas de enxertadores43 da depravação herética. 
De tal espécie e tão prudentemente propostas são quase todas as teses que 
aquele sobremodo magnífico e inocente papel -não voluntariamente sujeito 
a vaidadeu - difunde por toda parte. Se eu quisesse refutar todas, seria pre- 
ciso um grande volume, e quase todo o caos do livro IV das Sentenças45, jun- 
tamente com os que sobre ele escreveram, teria que ser revolvido. Mas tu, lei- 
tor, sê livre e franco, para poderes aprender todas a partir dessa uma [tese]. 
Tese 4 
Por conseqüência, apenuperduru enquanto persiste o ódio de si mesmo 
(isto é a verdadeira penitência interior), ou seja, até a entrada no reino dos 
céus. 
Afirmo e demonstro também esta tese: 
1. Ela se segue como consequência segura, qual corolário, do que foi di- 
to. Pois se toda a vida é uma penitência e uma cruz de Cristo, não só nas afli- 
ções voluntárias, mas também nas tentações por parte do diabo, do mundo e 
da carne, sim, também nas perseguições e nos sofrimentos, como se evidencia 
a partir do que foi dito, de toda a Escritura, do exemplo do próprio santo dos 
santos e de todos os mártires, é certo que essa cruz dura até a morte e, assim, 
até a entrada no reino. 
2. Isso é evidente também em outros santos. Santo Agostinho4 fez com 
que lhe fossem copiados os sete salmos penitenciais e os orava e meditava 
41 Sc. Mt 4.17. 
42 Trata-se de um jogo de palavras: immoniler/enormcmente - inonifer/inutilmente. 
43 Outro jogo de palavras: inquisiiores - insitores. 
44 Cf. Rm 8.20. 
45 De Pedro Lombardo (ci. p. 31, nota 2 e p. 81, nota 83). 
46 354-430, o mais importante pai da Igreja ocidental, nasceu em Tagaste, na Numidia, can- 
verteu-se em 387, falecendo como bispo de Hipona. Lutero não só ocupou-se com sua teo- 
logia, mas também com sua vida. Cf. Migne PL 32.63. 
com lágrimas, dizendo que mesmo que algum bispo tivesse vivido de maneira 
justa, não deveria partir deste mundo sem penitência. Assim clamou tambérn 
o B. Bernardoli, quando agonizante: "Vivi de maneira infame, porqiie des- 
perdicei o tempo. Nada tenho senão que sei que tu, Deus, não desprezarás 
um coração contrito e humilhado." 
3. Por meio da razão: essa cruz da penitência deve durar até que, segun- 
do o apóstolo, seja destruido o corpo do pecado", pereça a velhice do primei- 
ro Adão juntamente com sua imagem, e o novo Adão seja tornado perfeito á 
imagem de Deus. O pecado, porém, permanece até a morte, embora diminua 
a cada dia pela renovação diária da mente. 
4. Pelo menos o castigo da morte permanece em todos, bem como o te- 
mor da morte, que certamente é o maior dos castigos e, em muitos, mais pe- 
noso do que a própria morte, para não falar do medo do juizo e do inferno, 
do terror da bnsciência, etc. 
Tese 5 
O papa não quer nern pode dispensar de quaisquer penas senão daquelas 
que impôs por decisão própria ou dos cânones. 
Esta tese eu debato e peço humildemente que me instruam. E assim co- 
mo roguei no prefácio, da mesma forma rogo ainda agora: quem puder, que 
me estenda a mão e atente para meus motivos. 
1. Em primeiro lugar, vamos reunir as espécies de penas que os crentes 
podem sofrer: 
A primeira é a pena eterna, o inferno dos condenados, que não tem nada 
a ver com o assunto em pauta. Pois é certo que, como sustentam todos em to- 
da a Igreja, este castigo não está no poder nem do maior nem do menor dos 
pontífices. Esta pena só Deus remite pelo perdão da culpa. 
A segunda pena é a do purgatório, a respeito da qual veremos mais abai- 
xo na tese que dela trata; entrementes, pressupomos que ela não está no po- 
der do pontifice ou de qualquer ser humano. 
A terceira pena é a pena voluntária e evangélica. Quanto a ela, dissemos 
acima que é realizada pela penitência espiritual, segundo aquela palavra de 1 
Co 11.31: "Se nos julgássemos a nós mesmos, não seriamos julgados pelo Se- 
rihor." Ela é aquela cruz e mortificação das paixões mencionada acima na te- 
se 3. Ora, como esta pena é ordenada por Cristo, pertence à esssncia da peni- 
tência espiritual e é inteiramente necessária para a salvação, de forma nenhu- 
47 1091-1153, abade de Claraval, é o maior teólogo mistico dos povos românicos. Alcancou 
importância em virtude de seu rigor ético, sua piedade e oratória. Lutero estima-o muito e 
cita* constantemente, ao lado de Agostinho. Profundo conhecedor da vida de Bernardo, 
Lutero cita aqui a última oraçào do mesmo, segundo a Legendo oureo de Jacó a Voragine 
(3230-1298). 
48 Cf. Rm 6.6. 
68 
ma está no poder de qualquer sacerdote aumentá-la ou diminui-la. Pois ela 
iião depende do arbítrio de urn ser humano, mas da graça e do Espirito. Sim, 
esta pena está lias mãos do papa menos do que o estão todas as outras penas, 
como quer que se chamem. Mesmo que possa ariular junto a Deus, pelo me- 
nos através de oração, a pena eterna, purgatória, aflitiva, assim como pode 
obter a graça justificante para o pecador - esta pena, no entanto, ele" não 
pode anular, nem mesmo através de oração. Deve, antes, obtê-la para o peca- 
dor e inipô-Ia, isto é, anunciá-la coino imposta, não menos do que [lhe] ob- 
tém a graça. Do contrário, esvaziaria a cruz de Cristoso, e uniria o resto dos 
canaiieus com seus próprios filhos e filhassf, e não mataria os inimigos de 
Deus, ou seja, os pecados, até o extermiiiio; a não ser que visse que algumas 
pessoas, com fervor excessivo, se afligem mais do que é convenieiite para sua 
salvação e para a irecessidade dos outros. Neste caso, deve não só perdoar, 
mas também proibir, assim como São Paulo diz a Timóteo: "Não mais bebas 
água", etc. [I Tm 5.23.1 
A quarta pena é castigadora e uma flagelação da parte de Deus, da qual 
[diz] SI 89.31s.: "Mas se seus filhos pecarem e não guardarem minhalei, visi- 
tarei suas iniqüidades coin a vara e seus pecados com açoites de seres huma- 
nos." Quem duvida que essa pena não esteja nas mãos dos pontifices? Pois 
Jr 49.12 diz que ele52 a impõe a inocentes: "Eis que os que não estavam con- 
denados a beber o cálice o beberão, e Lu sobrarias como que inocente? Não 
serás iriocente, mas o beberás." E do mesmo profeta: "Eis que na cidade em 
que meu nome é invocado eu começo a afligir; e vós sereis como que inocen- 
tes? Não sereis inocentes." (Jr 25.29.) Donde [diz] o B. Pedro em 1 Pe 4.17: 
"Agora é tempo de começar o juizo pela casa de Deus; se primeiro por nós, 
qual será o fim daqueles qiie não crêem no Evangelho?" Ap 3.19: "Eu casti- 
go a quem amo." E Hb 12.6: "Ora, ele açoita todo filho a quem recebe." Se 
o sumo pontífice quisesse remitir esta pena ou se o pecador cresse que ela é re- 
mitida, certamente aconteceria que resultariam [filhos] adulterinos e espú- 
rios, como [diz] Hb 12.8: "Se estais seni disciplina, de que todos foram feitos 
participantes, logo sois bastardos, e não filhos." Pois João Batista e os maio- 
res santos sofreram esta pena. 
Todavia, eu admitiria que algumas dessas penas, tais como doenças, en- 
fermidades, pestes, febres, podem ser suprimidas para os fracos através de 
orações da Igreja, assim como o B. Tiago ensinou que se devemchamar os 
presbiteros da Igreja e ungir o doente, para que o Senhor erga o doente por 
causa da oração da fé'3. Mas por que me demoro? Como se não estivesse cla- 
ro, para qualquer cristão, que os flagelos de Deus não podem ser removidos 
pelo poder das chaves, mas somente através de lágrimas e oração, e mais pela 
imposição de outras penas do que pela remissão, assim como os ninivitas, pe- 
las penitências com que se afligiram humildemente, mereceram afastar o fla- 
gelo da destruição dirigido contra elesJ4. De outro modo, se um sacerdote da 
49 Sc. o papa. 
50 Cf. I Cii 1.17 
51 ('I'. 111 7 . 1 s 
52 Sc. Deus. 
53 Cf. Tg 5 . 1 4 ~ ~ . 
54 Cf. Jn 3 . 
Igreja, seja o mais elevado, seja o mais baixo, pode anular essa pena pelo po- 
rler das chaves, que ele afaste então pestes, guerras, sedições, terremotos, in- 
cCtidios, massacres, assaltos, bem como turcos e tártaros e outros infiéis; nin- 
g~iém a não ser um mau cristão desconhece que estes são o flagelo e a vara de 
I>cus. Pois diz 1s 10.5: "Ai da Assiria! Ela é a vara e o cetro do meu furor. 
Ikn suas mãos está a minha indignidade." No entanto, atualmente muitos, 
tité os grandes na Igreja, não sonham com outra coisa senão com guerra con- 
ira o turco5'. Querem fazer guerra não contra as iniquidades, mas contra a 
vara da iniqüidade, e [assim] lutar contra Deus, que diz que, através dessa va- 
ra, visita nossas iniquidades porque nós não as visitamos. 
A quinta é a pena canônica, isto é, estabelecida pela Igreja. Não há dúvi- 
(Ia de que ela está de pleno direito nas mãos do sumo pontífice, porém assim 
(Iiie (como dizem) haja uma justa razão para sua remissão e a chave não erre. 
IIii, contudo (em minha temeridade), não compreenderia essa justa razão tão 
rigidamente como muitos soem fazer. Pois a piedosa vontade do pontifice 
parece ser suficiente, e esta deveria ser uma razão suficientemente justa. 
'l'ambém não vejo como, nessa remissão, poderia acontecer um erro da cha- 
ve, ou, se acontecer, em que ele haveria de prejudicar, já que a alma é salva, 
iiiesmo que, por um erro, tais penas não fossem rrmitidas. 
Deve-se prestar mais atenção no seguinte: na remissão plenária, o sumo 
pontífice não remite todas as penas canônicas. Isto é evidente, pois não remi- 
te aentradaou aintrodução de pessoas niim monastério, o que é uma penanão 
raranos cãnones. Eletambém não remite as penas civis ou, antes, criminais in- 
Iligidas pelo direitocivil, emboraos legados façamisso ein qualquer lugar onde 
cstejam pessoalmente presentes. Portanto, ele parece remitir somenle as penas 
iiiipostas em relação com jejuns, orações, esmolas e outros labores e discipli- 
iras, algumas por sete anos, outras por menos, outras ainda por mais. E nesta 
cspécie de pena eu incluo também a que o sacerdote da Igreja impõe conforme 
c i i arbítrio. Agora, pois, vê emeensina, tu que podes. As quatro primeiras pe- 
rins ele não pode remitir; que outra remite senão a canônica e arbitrária? 
Aqui, mais uma vez aquele sujeito em pele de leão56 me ladra: É remitida 
;i Iicna que é exigida pela justiça divina ou que deve ser paga no purgatório. A 
vhic eu respondo que é sobremodo impio pensar que o papa tenha o poder de 
iiiitdar o direito divino e de relaxar o que a justiça divina infligiu. Pois eles' 
:iZo diz: "Tudo o que eu ligar tu desligarás", mas sim: "O que tu desligares 
\cr;i desligado. Mas não deves desligar tudo o que está ligado, e sim apenas o 
I ( i i i março de 1517, na última sessão do Concilio de Lairão, I.e.30 X anunciou que pretendia 
;iiliii«estai os grandes da Europa a estabelecerem iim armisticio e a se prepararem para uma 
criirada contra os turcos. Durante o inverno de 1517/18. o colégio de cardeais ociipou~se 
ii,rii as iraplicações diplomálicas e militares da questão e enviou o cardeal Caelano, a 5 de 
~ i i ; i i « de 1518, para conferenciar com o imperador a esse respeito. 
Vi <'i,iirudo Wirnpina. 
! i SC. Cristo. 
que foi ligado por ti, não o que foi ligado por mim." Eles, porém, entendem 
isso assim: "Tudo o que desligares, seja no céu, seja na terra, será 
desligado", embora Cristo tivesse acrescentado "na terra", restringindo, de 
propósito, a chave a terra, sabendo que, do contrário, eles furariam todos os 
céus. 
A sexta pena - que quero imaginar até ser instruido de outra maneira - 
é aquela que eles dizem ser exigida segundo a justiça divina, para satisfazer a 
justiça divina. Esta pena, entretanto - se é diferente da terceira e da quinta 
(como é necessário que seja, se deve ser a sexta) -, não pode ser sequer ima- 
ginada exceto no sentido de que seria imposta - a saber, mais oração, jejum, 
esmolas - onde a terceira e a quinta não fossem suficientes. Assim , ela dife- 
riria da quinta ou da terceira somente pelo grau de intensidade. Ela não pode 
significar a pena civil, pois esta (como eu disse) elesunão remite; de outro mo- 
do, as cartas de indulgências aboliriam todos os patíbulos e locais de tortura e 
execução pela Igreja. Mas ela também n j o pode significar a pena canônica de 
fato imposta através da sentença de um tribunal de causas litigiosas, pois, co- 
mo a experiência evidencia suficientemente, ele não remite excomunhões, in- 
terditos ou quaisquer censuras eclesiásticas já infligidas. Resta, portanto, a 
pena que eu disse que vou apenas imaginar. Contudo, estou persuadido de 
que tal pena é inexistente: em primeiro lugar, porque por afirmação nenhuma 
da Escritura, dos mestres, dos cânones nem por um argumento racional plau- 
sível se pode ensinar que existe uma pena dessas; e é muito absurdo ensinar 
qualquer coisa na Igreja que não possa ser fundamentada nem na Escritura, 
nem nos mestres, nem nos cânones, nem ao menos através de argumentos ra- 
cionais. Em segundo lugar, porque, mesmo que houvesse uma pena dessas, 
ela não pertenceria a remissão do papa, já que é voluntária e imposta para 
além dos cânones; aliás, ela não é imposta, r sim assumida por vontade pró- 
pria, pois é diferente das penas que são impostas, como foi dito acima no 
contexto da quinta pena. 
Mas se disseres: "Como, então, se satisfaria a justiça divina se, de algum 
modo, as penas canônicas ou sacerdotais não fossem suficientes?", respon- 
do: ela é abundantemente satisfeita pela terceira e quarta penas, segundo 
uma medida que Deus conhece. Pois não lemos em lugar algum que Deus te- 
nha exigido alguma pena exceto a terceira e, por vezes, também a quarta, co- 
mo no caso de Davi e dos filhos de Israel no livro de Juizes e Reis. Mas ele 
quase sempre se contenta com um coraqão contrito e com uma pena da tercei- 
ra espécie. Dai admira-me a negligência de certas pessoas que, para funda- 
mentar a satisfação, dizem que Cristo absolveu aquela adúltera no 
evangelho39 sem satisfação, mas não [absolveu] Maria Madalena sem satisfa- 
ção, e que, por esta razão, o Senhor deve ser imitado no caso de Maria, não 
no caso da adúltera, para que, sem satisfação, a ninguém seja remitido o pe- 
cado. "Pois nem os leprosos ele purificou sem impor-lhes que satisfizessem a 
58 Sc. o ,papa. 
51) ( ' I ' , I ( , n . 1 ~ ~ . 
lei e se apresentassem ao sacerdote. Esta é, portanto, a pena que a justiça di- 
vina exige para alem das já mencionadas." Eu respondo, porém: em minha 
opinião, essa adúltera sofreu mais penas e satisfez mais do que Maria Mada- 
lena. Com efeito, ela já sofreu a morte, nada mais vendo senão o juizo duris- 
simo. Por isto, foi extraordinariamente cruciada e sofreu muito mais do que 
Maria, para quem o juizo da morte não estava iminente. Por essa razão, sua 
pena foi da quarta e terceira espécies, porque suportou o flagelo da morte em 
seu coração contrito. Maria Madalena pagou penas da terceira espécie, e não 
se pode ensinar que sua pena fosse outra, como é evidente. Quanto aos lepro- 
sos, digo que,lhes foi ordenado apresentar-se não para satisfação, mas para 
testemunho. E que a lepra não erapecado, mas significava pecado; a apre- 
sentação do pecado não é satisfação, mas busca a sentença do sacerdote, co- 
rno é suficientemente sabido. 
2. Em segundo lugar, demonstro a tese da seguinte maneira: aqueles dois 
poderes - o de ligar e o de desligar - são iguais e se referem a mesma malé- 
ria. No entanto, o sumo pontífice não tem [poder] para ligar e impor nenhu- 
ma pena exceto a canônica ou quinta; logo, também não pode desligar e anu- 
lar alguma [outra]. Ou então teria que se dizer que esses dois poderes são de 
extensão desigual. Se se diz isto, ninguém é obrigado a crer, pois não é prova- 
do por quaisquer passagens da Escritura nem por quaisquer cânones, ao pas- 
so que é claro o texto em que Cristo concedeu [o poder de] ligar sobre a terra 
e [o de] desligar sobre a terra, medindo e estendendo ambos os poderes de 
igual modo. 
3. A extravagante depe. et re. li. V. c. Quod autemmdiz expressamente 
que as remissões não têm validade para quem não as receber de seu juiz, visto 
que ninguém pode ser ligado ou desligado por alguém que não seja seu juiz. 
Certo é, porém, que o ser humano não está sob a jurisdição do papa nas pe- 
nas da primeira, segunda, terceira, quarta e sexta espécies, mas apenas na 
quinta, como é claramente evidente e como ficará mais evidente abaixo. 
Corolario 
Segue-se que a satisfação não é chamada de sacramental porque satisfaz 
pela culpa pura e simplesmente (é que pela culpa satisfazem a terceira e a 
quarta penas), mas porque satisfaz pela culpa segundo os estatutos da Igreja. 
Pois a Deus se satisfaz maximamente por meio de uma nova vida, etc. Mas 
iambém por meio das Escrituras deve ser demonstrado que não é exigida 
qiialquer satisfação pelos pecados. 
Temos aqui João Batista, enviado, segundo o propósito e decreto de 
Ileus, para pregar penitência, e que também disse: "Farei penitência" [Mt 
110 Trata-se das decretais de Gregóiia IX, a segurida das cinco partes principais da coleção de 
leis eclesiásticas designada, desde princípios do s i c . XVI, de Corpus iuris cononici. A r e l è ~ 
rência comoleta é: Decreloles d . Greaorii oaDoe IX, livro V. titulo XXXVIII (De Doenden- 
- . . . . 
liis e1 remikonibus), capitulo 4 (que inicia com as p a l a v r a s ~ u o d ourem), i": Corpus iuris 
cononici, Graz, 1955, v . 2, col. 885. 
72 
3.21, e de novo: "Produzi, pois, frutos dignos da penitência." [Lc 3.8.1 Ele 
mesmo explicou essas palavras, ao responder as multidões que lhe pergunta- 
vam o que deveriam fazer: "Quem tiver duas túnicas, dê a quem não tem; e 
quem tiver comida, faça o mesmo." [Lc 3.11 .I Não vês que, como penitên- 
cia, ele não impós senão aobserváncia dos mandamentos de Deus, e que, por 
isso, quis que sob "penitência" fossem entendidas tão-somente a conversão e 
a mudança para uma nova vida? Mas mais claramente ainda: "Eis que vie- 
ram publicanos e disseram: Mestre, que havemos de fazer? E ele disse: Não 
fazei nada mais do que aquilo que vos foi estabelecido." [Lc 3.12s.I Acaso 
disse aqui: "Deveis satisfazer pelos pecados passados"? De igual modo disse 
aos soldados: "A ninguém maltrateis, a ninguém calunieis, e contentai-vos 
com o vosso soldo." [Lc 3.14.1 Acaso impôs aqui outra coisa do que os man- 
damentos comuns de Deus? Ora, se esse mestre da penitência, instituído por 
Deus para isto, não nos ensinou a satisfação, então ele certamente nos enga- 
nou e não ensinou suficientemente o dever da penitência. 
A segunda passagem é Ezequiel 18.21: "Se o ímpio se converter de sua 
impiedade e fizer o que é reto e justo, certamente viverá e não morrerá." Vê, 
ele nada impõe senão a retidão e a justiça, que devem ser feitas durante toda 
a vida, conforme aquela palavra: "Bem-aventurados os que praticam a reti- 
dão e a ju~tiça em todo tempo." [SI 106.3.1 Terá ele, pois, nos enganado tam- 
bém aqui? 
A terceira passagem é Miquéias 6.8: "Eu te mostrarei, ó ser humano, o 
que é bom e o que o Senhor exige de ti: principalmente que pratiques a justi- 
ça, ames a misericórdia e andes humildemente com o teu Deus." [Aqui] vês o 
que Deus exige do ser humano corno satisfação. Por fim, no que antecede ele 
zomba dos que querem satisfazer através de obras, dizendo: "O que oferece- 
rei de digno ao Senhor? Acaso lhe oferecerei holocaustos e bezerros de um 
ano? Pode ele ser aplacado com milhares de carneiros ou com muitos milha- 
res de bodes? Acaso lhe darei meu primogênito pela minha transgressão, o 
fruto de meu ventre pelo pecado de minha alma?" [Mq 6.6s.l Quer dizer: 
"Não, porque Deus não exige tais coisas pelo pecado, mas sim justiça, mise- 
ricórdia e temor, como foi dito, isto é, uma nova vida." 
Tese 6 
O papa não pode remitir culpa alguma senão declarando e confirmando 
que elafoi perdoada p o r Deus, ou, sem drívida, remitindo-a nos casos reser- 
vados para si; se estes forem desprezados, a culpa permanecera po r inteiro. 
A primeira parte é tão evidente, que alguns61 até confessaram que é uma 
maneira de falar imprópria quando [se diz que] o papa dá remissão da culpa. 
61 Aparentemente, trata-se de Joào Genser von Paltz e Jacó von Jiiteborg. O primeiro foi pro- 
fessor de Lutera na convento de Erfurt. 
73 
Outros, porém, confessaram não entender. Pois todos confessam que a culpa 
é perdoada unicamente por Deus, conforme 1s 43.25: "Eu, eu mesmo, sou o 
que apago as tuas iniqüidades por amor de mim, e dos teus pecados não me 
lembrarei." E Jo 1.29: "Eis o cordeiro de Deus, que tira os pecados do mun- 
do." E S1 129[1301.3s: "Se observares, Senhor, iniquidades, quem, Senhor, 
subsistirá? Pois contigo está a propiciação." E mais, abaixo: "Junto ao Se- 
nhor há misericórdia, junto a ele, copiosa redenção. E ele quem redime Israel 
de todas as suas iniquidades." (SI 130.7s.) E SI 50[51].10: "Cria em mim, ó 
Deus, um coração puro", etc. E, em tantas obras contra os donatistas62,o B. 
Agostinho outra coisa não diz senão que os pecados são perdoados somente 
por Deus. 
A segunda parte é igualmente muito clara, pois a quem desprezasse os 
casos reservados certamente não seria remitida nenhuma culpa. "Quem vos 
desdenhar", diz ele, "a mim me desdenha." [Lc 10.16.1 Sim, ninguém retor- 
na de Deus com a culpa perdoada se não leva consigo, ao mesmo tempo, re- 
verência para com as chaves. 
Uma vez que esta tese é admitida por todos como verdadeira, não é ne- 
cessário que ela seja reforçada por minha afirmação. Não obstante, indicarei 
aqui o que me preocupa e, mais uma vez, confessarei minha ignorância, se al- 
guém se dignar a me instruir e elucidar essa questão com maior clareza. Em 
primeiro lugar, quanto á primeira parte, parece que essa maneira de falar ou 
opinião é imprópria e incompatível com o texto do evangelho, já que se diz 
que o sumo pontífice desliga, isto é, declara desligada a culpa ou confirma63. 
Pois o texto não diz: "Tudo o que eu desligar nos céus tu desligarás na 
terra", mas, pelo contrário: "Tudo o que desligares na terra eu desligarei, ou 
será desligado, nos céu?"', onde o sentido é mais de que Deus confirma o 
desligamento do sacerdote do que vice-versa. Em segundo lugar, em relação a 
segunda parte, é certo que os casos que o papa desliga são desligados também 
por Deus, e que ninguém pode se reconciliar com Deus se não se reconciliar 
primeiramente, pelo menos em desejo, com a Igreja. Também é certo que a 
ofensa a Deus não é removida enquanto permanecer a ofensa á Igreja. Mas é 
de se perguntar se alguém, tão logo esteja reconciliado com a Igreja, também 
está reconciliado com Deus. O texto sem dúvida diz que tudo o que está desli- 
gado na Igreja estará desligado também no céu, porém não parece seguir-se 
daí que, por este motivo, pura e simplesmente tudo estará desligado no céu, 
mas unicamente aquilo que está desligado na Igreja. Em minha opinião, essas 
h2 Trata-se de movimento surgido no séciilo I V , no Norte da África, o qual rccebcu rei, nameda bispo Donato. Donato e seus adeptas, defensores dc uma disciplina eclcsiistica mais ri^ 
gida, negavam-se a reconhecer a sagracão do bispo Ceciliano, feita por outro hicpa que c o ~ 
metera apostasia diirante as perseguições. 0 s donatistar foram violentamente persegiiidos 
por Canstanfino I. Agaitinho defrontou-sc com os donatistas através de escritor e em um 
dcbate, no ano de 41 1. Deite debate provém a tese de que a validade de um ato sacramental 
independe da dignidade do sacerdote. 
h3 Sc. o desligamento. 
M Cf. Mt 16.19. 
duas perguntas não são de pouca importância; quanto a elas, talvez vou ex- 
por minha opinião mais amplamente na tese seguinte. 
Tese 7 
Deus não perdoa a culpa de qualquer pessoa sem, ao mesmo tempo, 
sujeitá-la, em tudo humilhada, ao sacerdote, seu vigário. 
Afirmo esta tese. Ela não necessita de debate ou de demonstração, já 
que é aprovada por tão grande consenso de todos. Todavia, ainda me preocu- 
po com sua compreensão. E vou expor minha maneira de pensar primeira- 
mente como um tolo. Pois esta tese, juntamente com a precedente, afirma 
que Deus não perdoa a culpa a não ser que haja anteriormente uma remissão 
por parte do sacerdote, pelo menos em desejo, como dizo texto com clareza: 
"Tudo o que ligares", etc. [Mt 16.19.1 E Mt 5.24: "Vai primeiro reconciliar- 
te com teu irmão; e então, voltando, faze a tua oferta." E esta passagem: 
"Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus." [Mt 22.21.1 E na 
oração do Senhor: "Perdoa-nos as nossas dividas, assim como também nós 
perdoamos aos nossos devedores." [Mt 6.12.1 Em todas estas passagens é da- 
do a entender que a remissão na terra é anunciada antes que [acontece] a re- 
missão nos céus. Pergunta-se, com razão, como isso pode acontecer antes da 
infusão da graça, isto é, antes da remissão de Deus, pois, sem que a graça de 
Deus tenha perdoado primeiramente a culpa, o ser humano não pode ter se- 
quer o desejo de buscar a remissão. Quanto a isso, assim digo e compreendo: 
quando Deus começa a justificar o ser humano, ele o condena primeiro; ele 
destrói a quem quer edificar, fere a quem quer curar, mata a quem quer vivi- 
ficar, como diz em 1 Rs 265e Dt 32.39: "Eu mato e vivifico", etc. Ora, ele faz 
isso quando abate o ser humano e o humilha e assusta no conhecimento de si 
mesmo e de seus pecados, para que diga, como misero pecador: "Não há paz 
nos meus ossos por causa de meus pecados; não há saúde em minha carne por 
causa de tua ira." [Sl 38.3.1 Pois assim os montes se desvanecem perante o 
Senhor. "Assim ele envia suas setas e os conturba; pela tua repreensão, Se- 
nhor, e pelo sopro do espírito da tua ira." [SI 18.14s.l Assim os pecadores 
são voltados para o inferno, e sua face se enche de ignomínia. Essa conturba- 
ção e agitação foi experimentada frequentemente por Davi, que a confessa 
com muitos gemidos em diversos salmos. Contudo, nessa conturbação come- 
ça a salvação, pois o temor do Senhor é o inicio da sabedoria". Aqui (como 
diz Naum 1.3), ao limpar, o Senhor não faz ninguém inocente e tem seus ca- 
minhos na tempestade e no turbilhão, e as nuvens são o pó de seus pés; aqui 
brilham os seus relâmpagos, a terra o vê e se agita67; aqui suas flechas cruzam 
e se fincam, e a voz de seu trovão rola, isto é, faz a volta, e as águas o vêem e 
ficam com medo68; em suma, aqui Deus realiza sua obra estranha, para reali- 
65 Cf. I Sili 2.6. 
h6 <'I. SI 111.10 
67 Cf. SI 97.4. 
68 Cf. SI 77.17s~. 
zas sua obra [prÓprial69; esta é a verdadeira contrição do coração e humilha- 
ção do espírito, o sacrifício mais agradável a Deus; aqui está a vitima já imo- 
lada, cortada em pedaços e com a pele tirada, com o fogo aceso para o holo- 
causto. E aqui a graça é infundida (como dizem), como afirma 1s 41.3: "Ele 
os persegue e passa adiante em paz." E 1s 66.2: "Meu espirito não repousará 
senão sobre quem é quieto e humilde e treme ás minhas palavras." E Eze- 
quias, em 1s 38.16: "O Senhor, se assim se vive e em tais coisas está a vida do 
meu espírito, tu me castigarás e me farás viver.'' Porém então o ser humano 
ignora sua justificação a tal ponto, que se crê próximo da condenação e crê 
que isso não é uma infusão da graça, mas sim uma efusão da ira de Deus so- 
bre ele. No entanto, bem-aventurado é ele se sofre essa tentação, pois no mo- 
mento em que se julgar consumido, se levantará como a estrela da manhã. 
Mas enquanto dura essa mísera perturbação de sua consciência, ele não tem 
paz nem consolação, a menos que se refugie junto ao poder da Igreja e, tendo 
posto a descoberto seus pecados e misérias através da confissão, peça conso- 
lação e remédio. Pois não conseguirá encontras paz por seu próprio conselho 
ou auxílio; sim, por fim a tristeza seria transformada em desespero. Aqui o 
sacerdote, vendo tal humildade e compunção, e confiando no poder que lhe 
foi dado para fazer misericórdia, deve ter plena confiança e desligá-lo e 
declará-lo desligado, dando-lhe, assim, paz de consciência. A pessoa a ser ab- 
solvida, porém, deve, com toda a diligência, tomar cuidado para não duvidar 
que seus pecados lhe estejam perdoados junto a Deus e deve ficar tranqüila 
em seu coração. Pois ainda que esteja incerta devido a perturbação de sua 
consciência (como deve acontecer via de regra, se a compunção é verdadeira), 
mesmo assim é obrigada a perseverar no julgamento do outro -não por cau- 
sa do próprio prelado ou de seu poder, e sim por causa da palavra de Cristo, 
que não pode estar mentindo ao dizer: "Tudo o que desligares na terra." [Mt 
16.19.1 A fé nesta palavra produzirá a paz de consciência, desde que o sacer- 
dote a tenha desligado de acordo com esta palavra. Mas quem busca paz por 
um outro caminho - interiormente através da experiência, por exemplo - 
parece por certo tentar a Deus e querer a paz no fato'o, não na fé. Pois terás 
paz na mesma medida em que creres na palavra daquele que promete: "Tudo 
o que desligares", etc. [Mt 16.19.1 Nossa paz é Cristo, porém na fé. Se al- 
guém não crê nessa palavra, nunca estará em paz, mesmo que seja absolvido 
milhões de vezes pelo próprio papa e se confesse ao mundo todo. 
Esse é, pois, o dulcíssimo poder pelo qual devemos agradecer sumamen- 
te e do fundo do coração a Deus, que deu tal poder aos seres humanos. Esse 
poder é o Único consolo dos pecadores e das consciências infelizes, desde que 
creiam que a promessa de Cristo é verdadeira. A partir disso fica claro agora 
o que se perguntava acima: mesmo que a remissão da culpa aconteça, pela in- 
fusão da graça, antes da remissão do sacerdote, de tal natureza e de tal modo 
abscôndita sob a forma da ira é a infusão da graça - pois os seus vestígios 
não são reconhecidos (SI 76[771.19) e a vereda sob seus pés não é visivel (1s 
69 Cf. 1s 28.21. 
70 In re, no original 
41.3) -, que o ser humano fica mais incerto a respeito da graça quando ela 
estiver presente do que quando está ausente. Por isso, na ordem geral, a re- 
missão da culpa só nos é certa por meio da sentença do sacerdote, e nem se- 
quer por meio dela, se não crês em Cristo que promete: "Tudo o que desliga- 
res'', etc. Mas enquanto nos é incerta, ela nem sequer é uma remissão, name- 
dida em que ainda não é uma remissão para nós; sim, o ser humano pereceria 
de forma pior ainda se ela não se tornasse certa, porque não creria que lhe foi 
dado remissão. Assim disse Cristo a Simão, o leproso, a respeito de Maria 
Madalena: "Perdoados lhe são os pecados" [Lc 7.471; com isto em todo caso 
indicou que a graça já lhe tinha sido infundida. Porém ela não reconheceu es- 
sa infusão; por causa de seus pecados, ainda não havia paz em seus ossos; até 
que ele se virou para ela e lhe disse: "Teus pecados te são perdoados. Tua fé 
te salvou" [Lc 7.48,501, a saber, [a fé] pela qual ela creu naquele que a per- 
doou; por isso, segue-se: "Vai-te em paz." [Lc 7.50.1 Também aquela mulher 
adúltera os pecados já estavam perdoadosantes que Cristo se levantasse. Ela, 
entretanto, não reconheceu isso, visto que havia tantos acusadores a sua vol- 
ta, até que ouviu a voz do noivo dizer: "Mulher, ninguém te condenou? Nem 
eu tampouco te condenarei." [Jo 8.10s.1 E quando Davi pecou e, por ordem 
de Deus, foi repreendido pelo profeta Natã, por certo teria morrido subita- 
mente, quando, pela graça da justificação nele atuante, exclamou: "Pequei" 
[2 Sm 12.131 (pois esta é a voz dos justos, que acusam primeiramente a si 
mesmos), se Natã, como que o absolvendo, não dissesse imediatamente: 
"Também o Senhor removeu o teu pecado; não morrerás." [2 Sm 12.13.1 
Por que acrescentou "não morrerás", senão porque o viu ser destroçado e 
desfalecer por causa do terror de seu pecado? Também Ezequias, ao ouvir 
que ia morrer, teria morrido se não tivesse recebido de Isaias consolo e um si- 
nal para entrar no templo7'. Crendo nele, obteve, ao mesmo tempo, paz e re- 
missão dos pecados, como diz: "Jogaste todos os meus pecados para trás de 
tuas costas." [Is 38.17.1 E em geral no Antigo Testamento: de que modo po- 
deria manter-se a confiança deles na misericórdia de Deus e na remissão dos 
pecados, se Deus não tivesse mostrado - através de aparições, inspirações, 
queimas de oferendas, apresentações de nuvens e outros sinais - que lhe 
agradava tudo o que faziam? Agora ele quer que isso aconteça através da pa- 
lavra e da sentença do sacerdote. 
Portanto, a remissão de Deus opera a graça, mas a remissão do sacerdo- 
te opera paz, a qual também é graça e dom de Deus, porque é a fé na remis- 
são e na graça presentes. Em minha opinião, esta é a graça que nossos mes- 
tres dizem ser conferida eficazmente através dos sacramentos da Igreja, po- 
rém ela não é a primeira graça justificante, que deve estar nos adultos antes 
do sacramento, e sim, como se diz em Rm 1.17, fé em fé; pois é necessário 
que quem vem72 creia. Por outro lado, também a pessoa batizada precisa crer 
que creu e veio corretamente, ou então nunca terá a paz que só se tem apartir 
71 Cf. Ia 3 8 . 4 ~ ~ . 
72 Sc. para o sacramento 
da fé. Por conseguinte, Pedro não desliga antes do que Cristo, mas declara e 
mostra o desligamento. Quem crer nisso com confiança obteve verdadeira- 
mente paz e perdão junto a Deus (isto é, tornou-se certo de que está absolvi- 
do), não pela certeza da coisa, mas pela certeza da fé, por causa da palavra 
infalível daquele que promete misericordiosamente: "Tudo o que 
desligares", etc. Assim [diz] Rm 5.1: "Justificados gratuitamente por sua 
graça, temos paz junto a Deus por meio da fé", em todo caso não por meio 
de uma coisa, etc. 
Se minha compreensão é correta e verdadeira, não é errado nem impró- 
prio (como querem eles) dizer que o papa remite a culpa. Sim, a remissão da 
culpa é incomparavelmente melhor do que a remissão de quaisquer penas, 
embora preguem apenas a esta e o façam de tal forma, que tornaram a remis- 
são da culpa nula na Igreja. No entanto, é, antes, o contrário: onde, pela re- 
missão da culpa (que não pode dar a si mesmo, já que ninguém deve crer em 
si mesmo, a menos que prefira transformar uma desordem em duas), recebi- 
da através da fé na absolvição, o ser humano encontrou paz, toda pena lhe é 
nenhuma pena. Pois é a perturbação da consciência que torna a pena moles- 
ta; a alegria da consciência, porém, torna a pena desejável. 
E vemos que essa compreensão do poder das chaves abunda entre o po- 
vo, que busca e recebe a absolvição com fé singela. Entretanto, algumas pes- 
soas mais doutas se esforçam no sentido de encontrar paz através de suas 
contrições, obras e coqfissões, mas iiada mais fazem senão passar de uma in- 
quietude para outra. E porque confiam em si mesmas e em suas [obras], ao 
passo que, se sentissem o flagelo da consciência, deveriam crer em Cristo que 
diz: "Tudo o que desligares", etc. Para esse flagelo da consciência os teólo- 
gos mais recentes" contribuem enormemente, tratando e ensinando o Sacra- 
mento da Penitência de tal forma, que o povo aprende a confiar que pode ex- 
tinguir seus pecados através de suas contrições e satisfações. Esta vanissima 
presunção não pode produzir outra coisa senão que as pessoas vão de mal a 
pior - assim como no caso da mulher com hemorragia no evangelho", a 
qual gastou tudo o que possuia com médicos. Dever-se-ia, primeiramente, 
ensinar a fé em Cristo, que concede a remissão gratuitamente, e persuadir [as 
pessoas] a desesperar de sua própria contrição e satisfação, para que, assim 
fortalecidas pela confiança e alegria do coração por causa da misericórdia de 
Cristo, por fim odiassem jovialmente o pecado, fizessem contrição e satisfa- 
ção. 
Também os juristas contribuem ativamente para essa tortura [das cons- 
ciências]: exaltando com excessivo zelo o poder do papa, fizeram com que o 
poder do papa fosse mais estimado e admirado do que a palavra de Cristo 
honrada através da fé, ao passo que se deveriam ensinar as pessoas para que 
aprendessem a confiar não no poder do papa, mas na palavra de Cristo que 
73 Trata-se dos nominaiistas, movimenta surgido a partir de Duns Escoro (1270-1308) e, prin- 
cipalmente, de Guilherme de Occam (m. após 1347 em Munique). Em contiapasicão ao to- 
rnisrno, designado como vio onriquo, o nominalisma era denominado de via moderna. 
74 Cf. Mc 5 . 2 5 ~ ~ . 
78 
promete ao papa, se é que querem alcançar paz em suas consciências. Pois 
não é posque o papa dá que tu tens algo, mas tens se creres que o recebes. 
Tens na mesma medida em que crês por causa da promessa de Cristo. 
Contudo, se o poder das chaves não tivesse essa eficácia para a paz do 
coração e a remissão da culpa, então na verdade (como dizem alguns) as in- 
dulgências seriam vilificadas. Pois que grande coisa é conferida se se confere 
remissão das penas, visto que os cristãos devem desprezar até a morte? 
Do mesmo modo, por que Cristo disse: "De quem perdoardes os peca- 
dos, são-lhes perdoados" [Jo 20.231, senão porque não são perdoados a 
quem não crê que lhe são perdoados através do perdão do sacerdote? Por es- 
ta razão, nas palavras "de quem perdoardes os pecados" é conferido o 
poder's, mas nas palavras "são-lhes perdoados" o pecador é desafiado a crer 
no perdão. Da mesma forma, também nas palavras "tudo o que desligares" é 
dado o poder; nas palavras "será desligado" nossa fé é despertada. Pois ele 
poderia ter dito: "De quem perdoardes as penas ou castigos", se quisesse que 
assim compreendêssemos. Porém ele sabia que, por causa de seu medo, a 
consciência já justificada pela graça rejeitaria a graça, se não fosse socorrida 
através da fé na presença da graça pelo ministério do sacerdote; sim, se ela 
não cresse que o pecado está perdoado, ele permaneceria. É preciso também 
crer que ele está perdoado, e esse é o testemunho que o Espírito de Deus dá ao 
nosso espirito, que somos filhos de Deus's. Porque ser filho de Deus é tão 
abscôndito (já que parece que se é inimigo de Deus), que, se não se crê que é 
assim, [também] não pode ser [assim]. Deus age tão maravilhosamente com 
seus santos, que ninguém suportaria a mão daquele que justifica e medica a 
menos que creia que ele o justifica e medica, assim como um doente não acre- 
dita que o médico do corpo lhe faz uma incisão com a intenção de curá-lo a 
menos que bons amigos o persuadam [disso]. 
Seja, pois, o sacerdote a causa sem a qual [não há remissão], seja a causa 
da remissão uma outra, não me importa - desde que conste de alguma for- 
ma que é verdade que o sacerdote perdoa os pecados e a culpa; da mesma for- 
ma, a saúde do doente é atribuída verdadeiramente aos amigos porque, por 
sua persuasão, fizeram com que o doente cresse no médico que fez a incisão. 
Também não se deve pensar aqui: "E se o sacerdote errasse?" Ocorre 
que a remissão não está firmada no sacerdote, mas na palavra de Cristo. Por 
isto, quer o sacerdote o faça por causa do lucro, quer porcausa da honra, tu 
deves desejar o perdão sem fingimento e crer no Cristo que promete. Sim, 
mesmo que ele absolvesse por leviandade, ainda [assim] obterias paz a partir 
de tua fé. Assim como ele dá o Batismo ou a Eucaristia, seja em busca de lu- 
cro, seja levianamente, seja brincando, tua fé o recebe plenamente. Tão gran- 
de coisa é a palavra de Cristo e a fé nela. Pois lemos nas histórias dos 
mártires'7 que certo comediante quis ser batizado por brincadeira, sim, para 
zombar do Batismo; enquanto era batizado, se converteu, foi verdadeira- 
75 Sc. para perdoar. 
76 C ( . Rm 8.16. 
77 Pi>deinns corirtatal qiie Lutero se ocupou intensivamente com a história das perseguiçóes 
mente batizado por seus companheiros pagãos e imediatamente por eles co- 
roado com o martírio, Do mesmo modo, quando menino, Sto. Atanásio78 ba- 
tizou outros meninos, que, depois, o bispo de Alexandria declarou batizados, 
como [lemos] na História eclesiástica'9. E o B. Ciprianoao repreendeu a paz 
dada muito precipitadamente por um certo bispo Terápio, mas quis que ela 
fosse ratificada. Portanto, somos justificados pela fé, também obtemos paz 
pela fé -não por obras, penitências ou confissões. 
Com respeito a essa sexta e sétima tese aquele nosso leãoai triunfa com 
glória, sim, canta um hino de vitória sobre mim antes da vitória. Daquela 
sentina de opiniões ele tira uma distinção entre uma pena satisfatória e vindi- 
cativa, por um lado, e uma pena medicativa e curativa, por outro, como se 
fosse necessário crer em quem sonha essa espécie de coisa. Não obstante, pe- 
rante o povo, eles escondem essa distinção com extrema prudência, para que 
as indulgências ou, antes, os lucros não sejam prejudicados, se o povo perce- 
besse que são remitidas as tão modestas e inúteis penas vindicativas (isto é, 
inventadas). Depois, para tornar conhecido de todos que não sabe o que é o 
sacerdócio antigo ou o novoaz, ele introduz outra escuridão de palavras e uma 
aos cristãos. Além disso, sempre mostrou grande amor e respeito em relação aqueles que 
derramaram seu sangue. A expressão do original latino gesra morlyrum, no entanto, não se 
refere a uma coletânea que levasse esse nome, mas A Legendo ourea de Jacó a Vaiagine 
(1230-1298). muitissimo usada por Lutero. 
78 Considerado o "oai da ortodoxia". Atanásio defendeu iá no Concilio de Nicéia 1325). con- 
ira Arto, .I d ~ u t r i n a .I.I ltorna.>u,ia dc C r t \ t < , :,>tu ,J I ? ~ I t ~ w ,~qx:t.> 1,) .!r r).% :, :Y>I>.. ~1 
,cr :rnir31 para >"a icril.>gi.i uic .i iiiial JL. \tu\ J I A , I 'dr ;a 2.1 ctile~.i .Ir.. . .L. 8 1 - ~ 1 : 1 
Aidnaw> ~ J I por :ln;o ~ ~ 7 2 ~ c ~ p ~ ! l ~ . ~ . l ~ h ~ $ p a J d ~ m ! T \ . C \ , ~ ! I , I ~ I A I , ~ t . r , > C\ I# I . I ,> ,% X I J C . ~ . 
\io rm iim3 \ r r \ J a Is1in.i Je >eu\ r\;r.i.>\ c e l d h ~ r ~ i i . eiii 1532. {vcli:.., i i.1 .. i r u . Je I1 i - 
~enhagen , que cJ$idia &,, e \ : r ~ t a ~ r a t ~ d c p u . I2 I6rc1,~ \\ \ 11, 1 1 1 . qli,.2, 
79 I turcro relcrc \e i oh rd / I ~ ~ t o r ~ u e ~ ~ ~ / ~ ~ ; ~ u ~ ~ ~ . ~ , .lc Fu,ch~.>, .J 4 . 1 ~ 1 I,,# h . % i > ~ ~ .I<,< c,,,,,; ,311- 
~ ~ 
340) e elaborou a primeira história da igreja, dos primórdibs até o ~bnc i l i a de ~ i c G a . 
80 Cipriano é um dos mais conhecidos pais da Igreja. Batizado em 246. Ioga veia a se tornar 
bispo de Cartago. quando pôde iiderar sua comunidade em meio a perseguição sob Décio. 
Em relação aos que haviam negado a fé em meio às perseguições, Cipriano procurou assu- 
mir uma posição conciliadora. Par outro lado, negou validade aa Batismo oficiado por h e ~ 
reges. Essas duas questões valeram-lhe o anátema do bispo romano Estêvão. Tal anátema 
levou-a a escrever a obra De uniroteecclesioe, na qual defende o principio de que o bispo de 
Roma, apesar do lugar de destaque conferido ao apóstolo Pedro, n2o tem poder judicial 
supremo sobre os demais bispos. Cipriano é o mais importante representante da constitui- 
$20 episcopal da Igreja, contra o papalismo. Seu escrito De unirate ecclesiae foi de grande 
importância para Lutero em sua luta contra o primado papal, mesmo que afirmasse que Ci- 
priano foi "um homem piedoso, mas um teólogo fraca". O fato mencionado por Lutero 
encontra-se na carta de Cipriano ad Fidum (II1,8). 
81 Wimpina-Tetzel. No que se segue, Lutero usa, contra Wimpina-Tetrel, um dito proverbial 
(ante vieroriam encomium canere) que também encontramos nos Adagio de Erasmo. A ex- 
pressão exseniinoillo opinionum é um jogo de palavras com o qual Lutero zomba da p i i n ~ 
cipal obra de Pedro Lombarda, Senlenriorum libri IV . Em virtude dessa obra, Lombaido 
recebera o titulo de mogister sententiorum. 
82 Na 11: tese e nas seguintes, Wimpina-Tetzel afirmam que os sacerdotes cristãos não só 
"proclamam e confirmam" a graça do perdão dos pecados, mas que, realmtnte, a conce- 
dem, mercê do poder das chaves. 
80 
distinção das chaves, [distinguindo entre] as da autoridade, as da excelência e 
as do ministério. Até nossos exímios mestres, os inquisidores da depravação 
herética e defensores da fé católica, absolutamente nada sabem, exceto o que 
sugaram das fragmentadas e rançosas questões do livro IV das Sentençasa). 
Talvez eles queiram [dizer] que aquilo que Cristo desligar com as chaves da 
excelência no céu í j á que na terra ele mesmo não desliga) será desligado num 
céu superior junto a Deus. Mais uma vez, para que o pontífice também seja 
Deus, é preciso inventar um outro Deus, superior, junto ao qual seja desliga- 
do o que ele desligar com as chaves da autoridade no céu superior. Mas fora 
com essas frivolidades! Nós só conhecemos uma espécie de chaves, tão- 
somente as dadas na terra. Concluem eles agora: "Erra, portanto, quem diz 
que o sacerdote da nova lei só desliga confirmando e declarando" (pois nisso 
consistia o ministério do sacerdócio judaico). Oh! que agudeza de inteligên- 
cia e que ingente peso de erudição! Esses homens são realmente dignos de in- 
quirir os hereges e de defender a fé católica - mas contra pedras e pedaços de 
pau! Quão mais corretamente afirma o apóstolo Pauload que o antigo sacer- 
dócio consistia no julgamento de leprosos, na administração da justiça e pu- 
rificação da carne, em comida e bebida e vestimenta e dias festivos, etc.! 
Através disso são denotadas, como numa figura, a justificação no espírito e a 
i purificação do coração, operadas por Cristo na Igreja pelo ministério do no- vo sacerdócio. Assim, eu não propus a sexta tese de coração, como disse lá, e 
sim porque outros pensam desse modo. No entanto, [a propus] porque nem 
mesmo os adversários, com todos os seus mestres, até hoje podem mostrar 
como o sacerdote perdoa as culpas, a menos que apresentem aquela opinião 
herética, mas corrente, segundo a qual os sacramentos da nova lei dão a gra- 
ça justificante a quem não coloca óbice. Pois é impossível conferir os sacra- 
mentos de forma salutar exceto a quem já crê e é justo e digno (pois é necessá- 
rio que quem vemRJ creia; além disso, não é o sacramento que justifica, mas a 
fé no sacramento). Por esta razão, seja lá o que os petulantes sofistas tarame- 
larem, é mais verossímil que o sacerdote da nova lei apenas declara e confir- 
ma a absolvição de Deus (isto é, a indica) e, através dessa indicação e de sua 
sentença, aquieta a consciência do pecador, o qual deve crer na sentença do 
sacerdote e ter paz. Desta maneira o velho sacerdote aquietava aqueles a 
quem julgava puros em corpo ou vestimenta, embora ele próprio não pudesse 
83 A obra de Pedro Lombardo está dividida em quatro livros, par sua vez subdivididos em 
I quoesriones. O primeiro livro trata de Deus, como o sumo bem, o segundo das criaturas, o terceiro da encarnação e da redenção, o quarto dos sete sacramentos e da escatologia. Lute- ro zombava do fato de que em seu tempo ninguém se considerava um doutor sem que tives- 
se escrito um comentáriosobre o Livro dm senrensas. De falo, houve cerca de 250 comen- 
tários sobre o Livro dossenrensos. No mais, Lutero aprecia a erudisilo do Lombardo, recri- 
minando-o, porém, por "20 se ater à Escritura. 
84 Hh 10.1 1s. A Igrejaantiga julgava. seguindo a opinião de Agostinho, que Hebreus fossede 
autoria de Paulo. Lutero tratou de Hebreus ao lado das demais epistalas paulinas. Quando 
da tradusão do Novo Testamento, porém, Lutero chegou à convicção de que o autor é um i discipulo dos apóstolos (Hh 2.3) e não o próprio Paulo. 
I 85 Sc. ao sacramento. 
I 
8 1 
purificar ninguém, também não a si mesmo. Pois o que aquele operava nos 
corpos este opera nas consciências, e assim o espírito corresponde a letra e a 
verdade a figura. Espero que esses defensores da fé católica [mostrem] como 
podem expor, sem depravaçòes heréticas, o poder das chaves de outro modo. 
Tese 8 
Os cânones penitenciaisas são impostos apenas aos vivos; segundo os 
mesmos cânones, nada deve ser imposto aos moribundos. 
Esta tese eu debato, embora haja muitas pessoas que se admiram que ela 
seja duvidosa. 
1. Em primeiro lugar, ela é provada por Rm 7.1: "A lei tem domínio so- 
bre o ser humano enquanto este vive", etc. Como o apóstolo explica isto a 
respeito da lei divina, é muito mais verdade com relação a lei humana. Dai 
que ele diz no mesmo capitulo: "Quando morrer o marido, a mulher está de- 
sobrigada da lei do marido." [Rm 7.2.1 Muito mais ele, quando morto, está 
desobrigado da lei da esposa que [ainda] vive. Pois o apóstolo argumenta do 
menor ao maior: se o vivo é desobrigado pela morte do outro, muito mais o é 
o próprio morto, pelo qual o [que ainda está] vivo é desobrigado. 
2. Como todas as outras leis positivas, as leis canônicas estão presas as 
circunstâncias de tempo, lugar e pessoas (dist. XXIX8'), como é do conheci- 
mento de todos. Pois somente a respeito da palavra de Cristo é dito: "Para 
sempre, ó Senhor, permanece a tua palavra, a tua verdade de geração em ge- 
ração" [SI 119.89s.l; "e a sua justiça permanece para sempre." [SI 111.3.] A 
palavra e a justiça dos seres humanos, porém, só permanecem por um tempo. 
Por isso, mudadas as circunstâncias, cessam também as leis, a menos que se 
queira dizer que, destruida a cidade, o lugar deserto ainda seja obrigado a fa- 
zer tudo o que a cidade fazia anteriormente, o que é absurdo. 
3 . Se o direito obriga a dispensar mesmo os viventes e a mudar a lei 
quando cessa a condição da lei ou quando ela se inclina para pior - visto que 
(como diz o papa Leão88) aquilo que foi estabelecido em favor do amor não 
deve militar contra ele, assim certamente [isto vale também para] o que come- 
çar a militar contra a unidade, a paz, etc. -, quanto mais devem ser abolidas 
as leis para os moribundos, visto que neste caso não cessa apenas a condição 
das leis, mas também a própria pessoa para a qual e para cujas condições elas 
foram estabelecidas. 
86 Cf. p. 23, nota 5. 
87 No capitulo 1 da disrinctio XXIX do Decrelurn Grotiani, na parte 1: "Deve-se saber que na 
maioria dos capitulas causa, pessoa, lugar e época devem ser tidos em conta." 
88 Traia-se de Leão I(440-4611, cujas cartas, impressas em Paris, no ano de 151 I, eram muita 
bem conhecidas por Lutero. Lutera veio a usá-las em seu escrito Von den Konziiiis und Kir- 
chen ("Dos concilios e da Igreja"), WA 50,509-653. 
4. Em quarto lugar, [ela é provada] a partir das próprias palavras da lei, 
nas quais estão claramente expressos os dias e anos, jejum, vigílias, traba- 
lhos, peregrinações, etc. É manifesto que essas coisas pertencem a esta vida e 
cessam com a morte, em que o ser humano migra para uma vida muitíssimo 
diferente, onde não jejua, nem chora, nem come, nem dorme, pois não tem 
corpo. Dai que João Gérson89ousa condenar as indulgências dadas com uma 
validade de muitos milhares de anos. Assim, pergunto-me com espanto o que 
aconteceu com os inquisidores da depravação herética para que não queimas- 
sem, mesmo depois de morto, a ele que se pronuncia contra o costume de to- 
das as estações [de peregrinação] de Roma" e principalmente contra o uso de 
Sixto IV91 (que esbanjou iiidulgências em profusão), e que o faz com tanta 
confiança, que também lembra os prelados de seu dever de corrigir essas 
[práticas] e de tomar cuidado com elas, chamando as titulaçòes de tais indul- 
gências de fátuas e supersticiosas, etc. 
5. [Provo esta tese] referindo-me a intenção do autor dos cânones, que 
por certo nem sequer cogitou que tais cânones fossem impostos aos moribun- 
dos. Faz de conta que perguntássemos ao pontífice que propõe tais cânones: 
C ' A que pessoas, ó Pai, vos referis em vossa lei: as vivas ou As mortas?" O 
que responderia ele senão: "As vivas, é claro. Pois que posso eu fazer com as 
mortas, que saíram de minha jurisdição?" 
6 . Um sacerdote de Cristo agiria de maneira extremamente cruel se não 
liberasse um irmão assim como quer que aconteça com ele mesmo; e não exis- 
te razão pela qual não deva [fazê-lo], já que está em seu poder. 
7. Se os cânones penitenciais permanecem para os mortos, pela mesma 
razão permanecem também todos os outros cânones. Por conseguinte, eles 
devem celebrar, observar festas, jejuns e vigílias, dizer as horas canônicas9~, 
não comer ovos, leite e carne em certos dias, mas apenas óleo, peixe, frutas e 
legumes, vestir roupas pretas ou brancas conforme a diferença dos dias e 
[carregar] outros pesadíssimos fardos com os quais agora a misera, outrora 
libérrima Igreja de Cristo é premida. Pois não existe qualquer razão pela qual 
89 Jean Charliei, de Gérson/Reims (1363-14291, foi doutor em Teologia e. em 1395, chanceler 
da Universidade de Paris. Um dos mais importantes escolásticos do periada conciliar, tra- 
balhou para pôr fim ao cisma eclesiástico com seus escritas sobre a unidade da Igreja e a de- 
mitibilidade da papa. Nos concilios de Pisa e Constan~a posicionou-se contra os desman- 
dos dos papa7 italianos e buscou a reforma da Igreja atravks da melhoria da moral do clero. 
Exigiu a estuda da Bíblia e a renovaç&o da eacalástica através de sua fusão com a mística. 
Concordou com a condenaç&o do movimento reformador boêmio. Lutero menciona-o inú- 
meias veres. 
90 I.utcro refere-se às sete igrejas principais de Rama. Os peregrinas eram obrigados a visitá- 
Ias para conquistar indulgências. 
91 Papa de 1471-1484. Com ele iniciao "periodo da perversão" na vida da Igreja. Paparenas- 
centista, obteve através de seus nepotes conde Girolamo e cardeai Pedro Riario a~seculari- 
ra fão da Cúria. Ao caracterid-lo como aquele "que esbanjou indulgências em profusão", 
Lutero se refere ao excesso de voderes esoirituais oue o Dava conferiu tis ordens mendican- 
. . . 
tes, especialmente aos franciscanos. 
92 Trata-se das horas de orafão e céntico impostas aos sacerdotes, especialmente aos secula- 
res. 
[apenas] alguns cânones cessem por causa do tempo, e não todos. Se cessam 
os que são bons e meritórios para a vida, por que não, antes, os aflitivos, esté- 
reis e impeditivos? Ou vamos inventar também aqui uma troca, de modo que, 
assim como sofrem outras penas, proporcionadas a eles, da mesma forma fa- 
zem outras obras, proporcionadas a eles, e de modo que, não obstante, se de- 
ve dizer que eles lêem as horas canônicas? 
8. Os cânones, tanto penitenciais quanto morais, são suspensos de fato 
para quem está doente de corpo, mesmo que não esteja a beira da morte. Um 
sacerdote doente não é obrigado a orar, celebrar; depois, também as outras 
pessoas não são obrigadas a jejuar, nem a vigiar, nem a se abster de carne, 
ovos e leite. E não só Ihes são livres todas essas coisas, mas até Ihes são proi- 
bidas as coisas que antes, quando estavam sãs, Ihes eram ordenadas. De ou- 
tro modo se diria a elasg], visto que a mão do Senhor já as toca: "Por que me 
perseguis como Deus e vos fartais da minha carne (istoé, de minhas enfermi- 
dades)?'' [Jó 19.22.1 Afirmo, pois: os cânones são impostos não aos doentes, 
mas aos sãos e robustos; logo, muito menos ainda aos mortos, e sim aos vi- 
vos. Ou, se os moribundos e mortos não são livres, por que também os enfer- 
mos não são com eles premidos e vexados? Depois, tendo recobrado a saúde, 
não são obrigados a recuperar o que omitiram enquanto doentes; por conse- 
guinte, como se pode crer que os cãnones precisam ser recuperados ou cum- 
pridos após a morte? 
Mas aqui alguns dizem: "E se uma pessoa sã omitir as penitências [que 
lhe foram] impostas e, mais tarde, confessar isso quando estiver prestes a 
morrer? Parece absolutamente necessário que tais penas sejam pagas no pur- 
gatório, mesmo que outras não lhe devam ser impostas ou não lhe sejam im- 
postas." Respondo: de forma alguma. Pois por tal omissão não se fez outra 
coisa do que pecar contra o preceito da Igreja; a respeito disso se deve sentir 
pesar, porém não se deve recuperar e cumprir mais uma vez pelo passado, e 
sim apenas pelo futuro. "Basta ao dia o seu próprio mal; o dia de amanhã se 
preocupará com o que é seu.'' [Mt 6.34.1 Se a transgressão de algum manda- 
mento devesse ser recuperada, de modo que não permanecesse nenhuma, isso 
deveria acontecer principalmente em relação aos mandamentos de Deus. En- 
tretanto, é impossível que o adultério não seja um ato em que se perde a casti- 
dade. 
9. A quem suporta uma pena maior do que a que lhe é imposta se per- 
doam, com razâo e pelo direito natural, as penas menores. Ora, o moribundo 
suporta a última, mais elevada e máxima das penas: a da morte. Por isto, na 
presença da morte, toda outra pena deve ser absolvida, visto que dificilmente 
alguém é capaz de aguentar apenas esta uma pena. Imagina, mais uma vez, 
que um moribundo se oferecesse para morrer perante um legislador - acaso 
este não retiraria imediatamente suas penas? 
10. Alguns mestres ilustres na Igreja dizem que qualquer cristão é riquís- 
simo porque, morrendo de livre vontade, pode pagar tudo e sair voandoq4 lo- 
93 Sc. às pessoas que impõem os cânones aos doentes. 
94 Sc. para o céu. 
84 
go. Pois nada é maior do que uma morte voluntária sofrida por causa de 
Deus. Portanto, os cânones são inutilmente reservados para Iá9J. Dessa opi- 
nião são Guilherme de Paris% e Gérson, seguidos por uma multidão não des- 
provida de razão. 
11. Se a morte não é pena suficiente a não ser que o morto sofra também 
os cânones97, então a pena dos cãnones será maior do que a pena da morte, 
porquanto dura para além da morte. [Assim] se faz injustiça àmorte dos cris- 
tãos, a respeito da qual é dito: "Preciosa é aos olhos do Senhor a morte de 
seus santos." [SI 116.15.1 
12. Imagina que um pecador fosse raptado e, ao confessar a Cristo, so- 
fresse incontinenti o martírio, antes de satisfazer os cânones (como se lê a res- 
peito do mártir B. Bonifácio98). Haverá o purgatório de reter tal pessoa, para 
que ela não esteja com Cristo? E acontecerá que se tenha de orar por um már- 
tir na Igreja? Ora, toda pessoa que morre de livre vontade (é dessa pessoa que 
falamos, isto é, do cristão) também morre segundo a vontade de Deus. 
13. Por que também as leis civis não permanecem em vigor após a morte, 
já que também elas ligam perante Deus e nos céus, não por sua própria força, 
mas por força de Cristo e dos apóstolos Pedro e Paulo, que ensinamsque de- 
vemos submeter-nos a elas de coração e por causa da consciência, porque as- 
sim é a vontade de Deus? 
14. Os cânones cessam quando um leigo penitente muda seu estado, para 
o sacerdócio, por exemplo, ou quando um sacerdote se torna bispo ou mon- 
ge. Essa cessação acontece nesta vida, e não haveria de acontecer por ocasião 
da mudança da morte? O que há de mais absurdo? 
15. Essa opinião de que os cânones devem ser cumpridos após a morte 
não tem absolutamente nenhuma passagem da Escritura, nenhum cânone ou 
razão plausivel, mas, assim como muitas outras superstições, parece ter sido 
introduzida unicamente pela preguiça e negligência dos sacerdotes. 
16. Além disso, temos exemplos dos antigos pais. Cipriano, talvez o 
mais rígido observante de censuras e disciplinas eclesiásticas, ordena, ainda 
assim, na carta 17 do Livro IIIim, que se dê a paz aqueles que estão submeti- 
dos a perigo de morte, para que venham com paz ao Senhor, tendo feito sua 
confissão ao presbitero ou ao diácono, como ele diz no mesmo lugar. Esse 
95 Isto é, para depois da morte. 
96 E impossivel precisar a que escritor escolásrico Lutero está se referindo, pois existem inú- 
meros com o nome de Guilherme de Paris nos séculos XIII a XVI. Lutero se engana ao atri- 
buir a Gérson a nega& do valor da indulgência para o purgatório. Gérson também admi- 
tiu o efeito das penas canônicas para o além. 
97 Isto é, as penas prescritas pelos cânones. 
98 Wynfrith (672/75-754), beneditino, natural de Wessex. Após tentativa infrutifera de mis- 
são entre os frisios, foi para Roma, onde Gregório 11, dando-lhe o nome de Bonifácio, o 
enviou como missionário p a a a Germânia. Ali atuou na Turlngia, Frisia, Hesse. Sagrado 
bispo, em 722, tornou-se reformador da Igreja no Reino Franco. Foi assassinado a 5 de ju- 
nho de 754 na Frisia, sendo sepuitada no convento de Fulda, o qual tinha fundado em 744. 
99 Cf. Mt 22.21; Rm 13.1~s.; 1 Pe 2 . 1 3 ~ ~ . 
100 Epjsl. 18.1. 
dar a paz nada mais é do que aquilo que, hoje em dia, é chamado de remissão 
plenária, como fica claro para quem olha atentamente. 
Portanto, podemos concluir que os cânones só devem ser impostos aos 
vivos e, entre estes, só aos sãos e robustos, sim, só aos preguiçosos e aos que 
não querem agir melhor espontaneamente. Por certo eu não teria exposto is- 
so tão amplamente se não soubesse que alguns afirmam, com extrema tenaci- 
dade, o contrário, que não podem provar de nenhuma maneira. Pois se qui- 
sesse tratar com pessoas inteligentes e eruditas, eu teria feito melhor se calas- 
se ao invés de falar. 
Mas aqui alguém poderia dizer: "Falar assim é vilificar excessivamente 
as indulgências, se só as penas canônicas são remitidas, e nem mesmo todas, e 
unicamente para esta vida." Respondo: é preferível desvalorizar as indulgen- 
cias do que esvaziar a cruz de Cristo, e é melhor depreciar as indulgências do 
que ensinar na Igreja alguma coisa que, para a vergonha da Igreja, possa ser 
acusada de invenção. Eu confesso abertamente e protesto que não me impor- 
to muito com as indulgências como remissão de penas (é só nesta que eles se 
gloriam); porém venero, estimo e muitíssimo me regozijo com elas como re- 
missão da culpa, conforme minha maneira de pensar acima exposta - o que 
eles consideram sem valor. 
A esta oitava tese se coloca um único punhal de chumbolo' como obje- 
ção, a saber, que nas leis se encontra que também os mortos são excomunga- 
dos, como atesta sobretudo o capítulo A nobis da extravagante de sen. ex- 
com. 102 Quanto eu temia que eles dissessem que também descobriram que aos 
mortos se infligem penas e satisfações sensíveis! Ora, é bom que disseram 
apenas que os mortos são excomungados; assim não há quem duvide que os 
mortos também são absolvidos. Mas o que essa absolvição tem a ver com a 
remissão das penas? Acaso isto é aquela sutilissima dialética sem a qual - 
ensinam eles - ninguém pode se tornar um teólogo? Talvez ela contenha, 
numa quinta figuraiol, a seguinte conseqüência: "Sendo alguém absolvido da 
excomunhão, são-lhe remitidas as penas de satisfação." Por que então espa- 
lham profusamente indulgências por toda parte, se a pessoa absolvida do pe- 
cado sem demora tem também a remissão das penas? Se, contudo, ainda res- 
ta uma satisfação para os absolvidos, como é que a absolvição aproveita aos 
mortos ou remove a pena? Portanto, é fútil esse silogismo de que assim como 
a excomunhão se estende aos mortos, da mesma forma o faz também a remis-são das penas. Sim, como dizem os próprios juristas: "A excomunhão de um 
morto nada causa ao morto, assim como a abolvição nada [lhe] confere, mas 
101 Essa expressão, que também encontramos nos Adogio de Erasmo, plttmheo iuguiore glo- 
dio, significa: refutar alguém com provas fúteis. 
102 Decretoles d. Gregoriipopae IX, livro V, titulo XXXIV, capitulo 28, in: Corpus iurir cano- 
nici, v. 2 , cols. 899-900. 
103 Lutero coloca sua troca contra a "dialética sutil" de Wimpina-Tetzel no gracejo de que in- 
vestem contra ele com uma "quinta figura" do silogismo. A lógica medieval, baseada em 
Aristóteles, conhece apenas quatro. Isto é, Lutera está a afirmar que a afirmação de 
Wimpina-Tetzel é tolice! 
todas essas coisas são feitas para que nos aterrorizemos; apenas não se ora 
publicamente por tal pessoa." Por conseguinte, essa pessoa não sofre da par- 
te de tal excomunhão mais do que sofreriam uma casa ou uma roupa, se fos- 
sem excomungadas; assim, por outro lado, ela em nada mais é ajudada atra- 
vés da absolvição. Entretanto, não continuarei a refutar essas gárrulas con- 
tradições, uma vez que nada contêm senão opiniões escolásticas, que não es- 
tão fundamentadas nem nas Escrituras, nem nos pais da Igreja, nem nos câ- 
nones. Pois ele sempre pressupõe aquilo que quer provar ou, se não faz isto, 
blatera, feito uma mulhejzinha furiosa, as palavras "ele erra, está fora de si, 
está louco, erro, errar". E que nessas palavras ele quer que se veja colocada a 
totalidade de sua sabedoria e de seu conhecimento. 
Tese 9 
Por isso o Espírito Santo nos beneficia através do papa quando este, em 
seu decreto, sempre exclui a circunstância da morte e da necessidade'". 
Esta tese é, antes, uma prova da tese precedente. Pois é certo que, se o 
sumo pontífice quer excetuar os casos de necessidade temporal, [ele o quer] 
muito mais [nos casos de] necessidade eterna. E para esta que o ser humano 
vai através da morte, ao passo que uma pessoa doente ou legalmente impedi- 
da só é retida por uma incapacidade temporal. Sim, mesmo que o sumo pon- 
tífice não excetue a necessidade, ainda assim se entende que ela está excetua- 
da, porque a necessidade não tem lei. Ora, a morte é a mais extrema necessi- 
dade e o último e maior de todos os impedimentos. 
Tese 10 
Agem mal e sem conhecimento de causa aqueles sacerdotes que reservam 
aos moribundos penitências canônicas para o purgatórioloJ. 
Também esta tese é um corolário evidente da oitava. Certamente existem 
pessoas que perguntam com espanto se os sacerdotes fazem tais coisas. Sem 
dúvida que fazem. Todavia, como isso significa dar mais peso à obediência 
aos cânones do que à obediência ao chamado de Deus, e preferir as mais ba- 
ratas obras dos cânones ao valor da preciosíssima morte dos cristãos, não sei 
se aqueles que estão imbuídos dessa opinião possuem a regra da fé verdadei- 
ra. 
2. É conhecido e frequentemente [afirmado] por insignes autores na 
Igreja: Se Deus levasse uma pessoa ao êxtase ou a uma iluminação singular 
i04 Sc. exlrema. 
i05 Cf. p. 23, nota 7. 
jiisiamente em meio às obras de obediência eclesiástica, então a pessoa seria 
olirigada a interromper a obra, deixar de lado a obediência a Igreja e obede- 
cer iriais a Deus do que aos seres humanoslM. Sim, eles dizem que, mesmo nas 
Iioras canônicas, devemos, contra o mandamento da Igreja, abandonar a 
;ircii(.ão ás palavras se por acaso formos agraciados com uma iluminação e 
iiin arrebatamento celestes. Portanto, se as leis da Igreja deixam de vigorar 
iicsses chamamentos, como não haveriam de cessar num tão grande chama- 
iiieiiio e êxtase que é o da morte? A menos que talvez se deva seguir a multi- 
c130 de tolos que de tal modo se apegam a suas obras cerimoniais, que, por 
caiisa delas, muitas vezes pospõem a obediência manifesta a Deus e aos seres 
litiirianos e crêem ter agido corretamente se fizeram apenas aquelas, mas nun- 
c:i as outras. 
3. A Igreja certamente seria muito impia para com Deus se retivesse em 
scii foro inferior a quem ele já chama para seu tribunal supremo. Ou quando 
S qtie o sumo pontífice tolera que um réu seja retido pela lei e pelos direitos 
do foro inferior de um bispo ou prelado, depois de ter sido chamado a com- 
parecer perante seu foro? Acaso exige ele de seus subordinados o que ele mes- 
iiio, como ser humano, não permite a seu Deus, que é superior a ele? Então 
tiri i ser humano fecha a mão de Deus, e um ser humano não pode fechar a de 
oliiro ser humano? Longe seja! Ora, se ele impõe cânones ao moribundo, 
cert ainente está claro que o julga e pune segundo seu foro. 
Assim, são essas as quase 20 razões que me levaram a duvidar - não 
sciii ponderação, como espero - quanto a esse assunto das penas canônicas, 
;to passo que no lado contrário não há passagem [da Escritura], nem cânone, 
iiciii argumento racional, nem uso universal da Igreja, mas táo-somente o 
:ihilso de algumas pessoas. 
Tese 11 
I<~ssa erva daninha de transformar apena canônica empena dopurgató- 
rio parece ter sido semeado enquanto os bispos certamente dormiam. 
Aqui rogo que ninguém pense que eu esteja levantando uma calúnia con- 
ira os reverendíssimos bispos ao afirmar que eles dormiram. Essas palavras 
ii;l11 são minhas, mas do evangelho'o', só que lá não está colocado o nome dos 
Iiislios, nias dos seres humanos. Não obstante, é certo que por "seres huma- 
iios" ele entende as autoridades e os dirigentes da Igreja, a não ser que o in- 
i~~rlirciemos tropologicamente como o espírito e a mente de toda pessoa sobre 
seti corpo"'". Por conseguinte, os pontífices na verdade não ensinam isso à 
Igreja, porque, como eu disse, não temos nenhum cânone, nenhuma determi- 
nação dos cânones a partir dos quais isso possa ser ensinado. Assim sendo, é 
em vão que se esforçam alguns canonistas quando procuram mostrar de que 
espécie são os anos, dias e quadragésimas no purgatório, pois na verdade não 
os há, ou, pelo menos, não se pode provar que os haja. O erro provém do fa- 
to de que não percebem que os cânones são estabelecidos para o tempo desta 
vida e que só são obrigatórios na terra. É como alguém que, mudando de mu- 
nicipio, também muda, ao mesmo tempo, de direitos municipais. Se deve al- 
guma coisa, é obrigado a saldar [a divida] antes de mudar. Portanto, absolu- 
tamente nada deve ser imposto aos moribundos, e eles também não devem ser 
remetidos ao purgatório com o resto da penitência (como diz Gérson em cer- 
to lugar); antes (como ele ensina melhor em outra parte), devem assumir a 
morte com firmeza e de bom grado, de acordo com a vontade de Deus. 
Aqui temos que examinar aquela invencionice e fútil cavilação com que 
querem nos assustar como as criancinhas com as máscaras, dizendo que, co- 
mo o sacerdote não conhece a medida de contrição da pessoa a ser absolvida 
e, por isso, talvez não imponha uma satisfação tão grande quanto a justiça de 
Deus o exige, é necessário satisfazer também por isto, seja através de uma 
obra própria, seja através de indulgências. 
1. Vê como fazem soar suas palavras nuas, sem qualquer prova, como 
oráculos [divinos], embora o profeta diga: "Deus não dirá uma palavra sem 
revelar seu segredo aos seus servos, os profetas." [Am 3.7.1 Também não é 
crível - pois ele é o nosso Deus, que nos ensina as coisas úteis, como diz pelo 
profeta]" - que não nos revelasse, em qualquer parte, também esta exigên- 
cia de sua justiça. 
2. Não sei se os que assim falam querem transformar Deus num usurário 
ou num mercador, como alguém que não remite gratuitamente a menos que 
se lhe preste uma satisfação como pagamento. Porventura querem que nego- 
ciemos a respeito de nossos pecados com a justiça de Deus, perante a qual 
pessoa alguma é justificada? 
3. Se isto é assim, por que então o papa concede absolvição plenária, já 
que, da mesma maneira, não conhece a medida da contrição, nem pode, ele 
mesmo,completar a imperfeição da contrição? A contrição perfeita, porém, 
não necessita da absolvição dele. Ele também não tem um poder de gênero di- 
ferente do que um outro sacerdote, mas sim de outra quantidade, porque re- 
mite os pecados de todos, ao passo que os outros [sacerdotes] remitem de al- 
glms; tanta satisfação quanta eles podem remitir para algumas pessoas, ele o 
pode para todas, e nada mais. Do contrário a Igreja seria um monstro, cons- 
tituída de diversos gêneros de poder. 
IlHi ( ' I . Ai 5.2'J. 
l l l i ('I. MI 11.25. 
I I I N A ~ i i l r r ~ i r c l i t ~ n o hlhlicu de I.iitcr<i iiiiidn eslb muito <Icliciiderite do riiCi<idi, uleyúiico d:i Ida. 
ilc Mhliii. i, qiir rc rtiuiiifcrlii esprciiilrkicrilc iiu iiiterprclacPo ~.riiloldxicri <I<i\ ~ ; i I i i i i i \ . I'iiilr 
X X 
do sentido literal, mas Ioga confere a este um significado profético. No fundo, segunda o 
método exegética tradicional, Lutero distingue um sentido mistico triplo: a explica~ão tro- 
pológica apresenta o significado da passagem biblica quando a aplica a alma ciente, a ole- 
górico, quando a aplica a Igreja, a anagógica, quando a aplica ao além, ao juizo divino. 
109 Cf. Mq 6.8. 
4. Também a Igreja primitiva ignorava a medida da contrição e o peso 
110s espíritos. Não obstante, concedia remissão plenária depois de feita a pe- 
iiiitiicia, a respeito da qual não podia saber se era suficiente - segundo a 
opiiiião deles. 
5. Um outro sonho provém do fato de que eles não edificam a remissão 
dos pecados sobre a fé e a palayra do Cristo que se comisera, mas sobre a 
obra do ser humano que corre. E que imaginam que só se pode dar remissão 
plctiária as pessoas perfeitamente contritas, das quais não existe nenhuma 
iicsla vida. No entanto, admitem que ela seja dada pelo papa, também a pes- 
soas não perfeitamente contritas. 
6. Se a justiça de Deus exige alguma coisa, esta já está fora da autoridade 
<!;r Igreja, que não tem nada a mudar naquilo que Deus quer ou impõe. Pois 
pcrrnanece firme este dito: "O meu conselho permanecerá de pé, e minha 
vontade será feita." [Is 46.10.1 
Pela mesma razão é refutada a afirmação, feita por outros, de que penas 
~.aiiônicas são declarações das penas exigidas pela justiça divina. Em primeiro 
lugar, isso não é provado; por conseguinte, pode ser menosprezado com a 
iiicsma facilidade. Se a Igreja declara, segue-se que é impossível que ela as re- 
Iiixc, porque não as impôs; o que ela faz é declarar que são impostas por 
I>cos. Ou então eles são obrigados a dizer que a palavra de Cristo deve ser or- 
clciiada da seguinte maneira: tudo o que eu ligar, tu deves desligar. 
Tese 12 
Antigamentese impunham as penas canônicas não depois, mas antes da 
ul~solvição, como verificação da verdadeira contrição"0. 
Esta décima segunda tese prova novamente a oitava, pois as penas canô- 
iiicas são de tal forma temporais, que têm como seu fim a própria absolvição. 
('oino, porém, todo moribundo deve ser absolvido (as demais condições sen- 
clt) iguais), evidencia-se que não devem ser impostas [penas], mas, antes, que 
i;iiiihém as bá] impostas e aquelas a serem impostas devem ser relaxadas. Se 
;iqiicle antigo costume da Igreja tivesse sido conservado até hoje, esse erro 
i180 !cria surgido. Agora, contudo, visto que a absolvição precede as penas, 
:icoiitcceu que, para prejuízo da absolvição, remetem a pessoa não absolvida 
li:ii.;i ;i morte e cometem algo assim como uma monstruosidade ao não absol- 
vcrcrii [niesmo] concedendo absolvição e ao ligarem a pessoa absolvida com a 
iiicsiiin lialavra [com que a absolvem]. 
I . A tese é provada a partir do próprio uso da Penitência solene, descrita 
iios ~5iioiies, do qual ainda temos um exemplo ou ainda resta um vestígio na 
I'ciiiiCiicia cni caso de homicídio. Pois por que, neste caso, absolvem da pena 
; I ~~cs soo qiic vive e não a remetem a outras [penitências] a serem feitas em vi- 
da, enquanto que são tão rigidos no caso dos moribundos? 
2. Assim, escreve o B. J e r ô n i m ~ ~ ~ ~ , foi perdoada sua FabiolalI2. Assim o 
B. Ambrósio") absolveu seu Teodósio"4. Por fim, em ninguém se lê isto com 
maior freqüência do que no glorioso mártir Cipriano, no livro 111 de suas car- 
tas. A mesma coisa [se lê1 na História eclesiástica e na História tripartida"5. 
Da mesma forma, em Dionisioil6, na Hierarquia eclesiástica, é descrito o es- 
tado dos penitentes e dos energúmenos. Em todos estes casos vemos que na- 
quela época os pecadores não eram aceitos para graça e absolvição antes de 
terem feito penitência. 
3 . Também Cristo só absolveu Maria Madalena e a mulher adúltera após 
lágrimas, unsão e uma aflição sobremodo veemente e humilde. 
4. Lemos em Gn 44 que José afligiu seus irmãos com muitas tentações 
para verificar se sua afeição por ele e Benjamim era verdadeira. Quando des- 
cobriu isso, deu-se a conhecer a eles e os recebeu em graça. 
1 Tese 13 I Através da morte, os moribundospagam tudo e já estão mortospara as leis canônicas, tendo, por direito, isençao das mesmas. 
Esta tese conclui o que foi dito acima e é suficientemente evidente. Pois 
seria uma coisa muito estranha se o moribundo fosse desligado de todas as 
obras, coisas, leis, pessoas e além disso das próprias leis de Deus - a saber, 
em que se ordenam esmola, oração, jejum, cruz, trabalho e tudo o que pode 
ser feito pelo corpo -, por fim, até mesmo das obras do santo amor ao pró- 
ximo (que é o único que nunca morre), e que a única coisa da qual não possa 
ser desligado sejam os canônes. Então o cristão seria mais miserável do que 
1 111 Ca. 345-420. resoonsável oela Vuleata. foi ardoroso defensor do monacato e da ascese. ~. 
;.riii:ir:s.iii?iiic euire ~LI I I I I~> I~~ .I.( i111i) i ~ c ~ i l l i l l e T O I I I ~ ~ . ~ 
112 \ ' i ~ i \ ~ :.iiti~ii.i GUC I : I I I J ~ U UIN I ~ ~ p i i l l j U 1 1 1 3 .t3 p ~ r i ~ Je Koiiir. \'.A ep i \ t~ l a 77 dc Ic.i>iii- 
mo. 
113 340-395. Governador do Norte da Itália. Em 375 foi eleito bispo de Milão. Destacou-se na 
luta contra os arianos. 
114 Lutero pensa na ocasião em que Ambrósio forçou o imperador Teodósio a fazer penitên- 
cia. No ano de 390, o general Buterico mandara prender, em Tessalõnica. um famoso cor- 
redor de carros. O povo exaltado matara o general. Teodósio pos fim ao movimento, cer- 
cando o circo da cidade com seus soldados e mandando matar os que se encontravam no 
circo. Ambrósio impõs, entàa, penitência ao imperador, excluindo-o da comunhão até o 
Natal daqueie ano. 
I I 5 Hisrorio ecclesias~ico friparfilo, escrita pelo senador romano Cassiodoro (477-570), o qual 
compilou os três continuadores da Histeria ecclesiostica de Eusébio de Cesaréia. 
I I6 Lutero pensa nos escritos atribuidos a Dionisio Areopagita (AI 17.34), os quais, no entan- 
to, 76 podem ter sido redigidos no s6culo VI. Seu conteúdo mistico-teosófico é a tentativa 
de fundir as doutrinas cristãs com a filosofia neoolatõnica. O olena conhecimento de Deus 
todos os gentios, porque, mesmo morto, as leis dos vivos o atormentariam, 
ao passo que é, antes, uma pessoa que, mesmo entre os mortos, deve ser livre 
por meio de Cristo, em quem ele vive. 
Reunamos, por fim, um epílogo, para ver a quantas pessoas são remiti- 
das as penas através de indulgências. Seis tipos de pessoas me parecem excluí- 
dos, por não precisarem de indulgências: em primeiro lugar, os mortos ou 
moribundos; em segundo lugar, os doentes; em terceiro, os legalmente impe- 
didos; em quarto, os que não cometeram crimes; em quinto, os que comete- 
ram crimes, porém não públicos; em sexto lugar, os que se emendam. Vamos 
demonstrar isso e torná-lo pelo menos verossímil: 
1. Em primeiro lugar o que talvez cause a maior agitação: as indulgên- 
cias só são necessárias para crimes públicos, tais como adultério, homicídio, 
usura, fornicação, embriaguez, rebelião, etc. Pois se tais crimes fossem ocul-tos, aparentemente não diriam respeito aos cânones. Em primeiro lugar, por- 
que os cânones estabelecem penitências públicas, e a Igreja não tem direito de 
julgar publicamente a respeito de coisas ocultas. Em segundo lugar, porque 
assim como não deve ser punido publicamente, da mesma forma o pecado 
oculto não precisa ser perdoado publicamente. As indulgências, porém, são 
remissões públicas e acontecem A face da Igreja, como é evidente. Sim, exis- 
tem alguns que julgam haver uma diferença considerável entre as indulgên- 
cias concedidas através de bulas ~úblicas e as dadas oarticularmente. no foro 
- ~ ~ ~ . - - - - ~ - 
da consciência. Em terceiro lugar, a Igreja não é ofendida através dos peca- 
dos ocultos, mas unicamente dos públicos; por isso elas117 não são obrigadas 
a [fazer] penitência pública para reparar os escândalos e tornar a construir o 
que destruíram. Quarto: também hoje os jurisconsultos não condenam as 
pessoas que são criminosas publicamente, a menos que sejam reconhecidas 
[como tais] pela lei, enquanto que toleram as que são reconhecidas [como 
tais] pelo fato. Certamente não reprovo a opinião deles, e ela não me parece 
crrónea, pois a ninguém é permitido julgar, condenar e desprezar o outro, 
por mais pecador que seja, a menos que tenha poder para julgá-lo, para que 
iião se lhe diga: "Quem és tu que julgas o servo alheio?" [Rm 14.4.1 Entre- 
t~tnto, deve ser repreendida a negligência do amor tanto por parte de superio- 
res quanto de súditos, pois permitem que os que são reconhecidos [como cri- 
iitiiiosos] pelo fato ajam livremente, não cuidando para que se tornem [crimi- 
nosos] reconhecidos [como tais também] pela lei, de acordo com aquele pre- 
~. 
cr>rniingddos e descreve com ele como os penitentes, os catecumenos e o s energúmenas po- 
diam participar da missa até aleitura do Evangelho, devendo ausentar-se antes da distribui- 
vã<) da Eucaristia. Os catecúmenos eram judeus ou pagãos que proclamavam sua adesão ao 
c!isriilnisino. mas ainda não haviam recebido a Batismo. Os energúmenos eram os posses- 
r<>s. <ir dhbeis, o s excepcionais, os quais a Igreja acompanhava de maneira especial. 
l'iic<iriiravam-se sob a orientação do enorcista, tinham um lugar especial no templo e . r«- 
ixlciilc c i l i usos de furia, fora delc. No mais. eram tidos. assim como aqueles que haviaiii 
cornctid<i pccwdos grnvcs. por excluidos da comunhão. 
117 Sc. us Iicrsoas qiic coriiclerii pecados ocultos. 
ceito de Cristo: "Dize-o à Igreja; se não ouvir a Igreja", etc. [Mt 18.17.1 
2. Creio que é evidente para todos que penas canônicas só são impostas 
por crimes. Logo, as indulgências (se são remissões dos cânones) só são úteis 
para criminosos. Por isso, as pessoas que levam uma vida comum, que não 
pode ser vivida sem pecados veniais, não necessitam de indulgências, princi- 
palmente porque não devem ser instituídas penas para pecados veniais, sim, 
[as pessoas] também não são obrigadas a confessá-los; [portanto,] muito me- 
nos têm necessidade de comprar indulgências. Do contrário, seria preciso que 
as penas canônicas fossem suportadas por todos em todo e qualquer tempo, 
já que, como eu disse, ninguém vive sem pecados veniais. Mas digo mais: 
nem mesmo por cada pecado mortal devem-se comprar indulgências. De- 
monstro isto da seguinte maneira: ninguém está certo de que não vive em pe- 
cado mortal por causa do ocultíssimo vício da soberba. Se, pois, as penas ca- 
nônicas se aplicassem a todo pecado mortal, toda a vida dos crentes, além da 
cruz evangélica, não seria outra coisa senão também uma tortura das penas 
canõnicas. Por esta razão, também dever-se-iam comprar sempre indulgên- 
cias, sem fazer outra coisa. Se isso é absurdo, está claro que as indulgências 
só se aplicam aos pecados punidos pelos cânones. Ora, só podem ser punidos 
pelos cânones, como pecados, os crimes certos e públicos, ou, se insistirem 
muito comigo, pelo menos [só] aqueles em relação aos quais estamos certos 
de que são crimes, como eu disse a respeito do adultério, do furto, do homicí- 
dio, etc., isto é, obras exteriormente manifestas. Por isso, o consentimento 
com qualquer pecado mortal não diz respeito às penas canônicas, seja para 
fins de imposição, seja para fins de remissão, assim como também não uma 
palavra da boca, a menos que seja a ocasião para a obra futura, como é evi- 
dente também a partir das palavras dos cânones. 
3 . Os cânones também não sáo impostos pelos crimes de tal forma que 
não cessem se alguém faz coisa melhor: se entra num monastério, ou se dedi- 
ca ao serviço dos pobres e doentes, ou sofre por causa de Cristo, ou morre de 
acordo com a vontade de Deus, ou se faz algo semelhante ou maior do que es- 
sas coisas. No caso dessas pessoas está claro que as penas canônicas cessam e 
que as indulgências em nada Ihes aproveitam. Daí que elas só são impostas 
aos preguiçosos, aos que fazem penitência com frieza, isto é, aos pecadores 
delicados. Por esta razão, as indulgências também parecem ser concedidas 
com propriedade tão-somente aos duros e impacientes. 
4. Quanto aos impedidos por uma causa justa, de modo que não podem 
suportar as penas, não há dúvida de que se deve entender como se elas não 
lhes fossem impostas, por exemplo, se alguém fosse prisioneiro dos turcos e 
infiéis, ou se fosse servo de algum senhor, a quem é obrigado a obedecer de 
acordo com o mandamento do Evangelho, ou como se alguém também [ti- 
vesse que] cumprir uma obrigação, [como] servir mulher e filhos mediante o 
trabalho das mãos e a obtenção do sustento. Pois quem está impedido por 
tais coisas não é obrigado a abandoná-las; pelo contrário: é obrigado a fazê- 
Ias, a deixar os cânones de lado e a obedecer a Deus. Por isso, também não 
tem necessidade de que elas lhe sejam remitidas, já que não estava em condi- 
Góes de que lhe fossem impostas. 
93 
5. Aos doentes os cânones nada impõem. Logo, só entra em considera- 
ção quem está são e quem não pertence ao número daqueles que dizem: "A 
mão do Senhor me atingiu." [Jó 19.21.1 Pois o que se deve a estes não é im- 
~iosição de penas, mas visitação e consolo, conforme aquela palavra de Cris- 
to: "Estive doente, e não me visitastes." [Mt 25.43.1 Do contrário se dirá aos 
pontífices: "Pois perseguem a quem tu feriste e aumentaram a dor de minhas 
feridas." [SI 69.26.1 E aquela palavra de Jó: "Por que me perseguis como 
Deus me persegue?" [Jó 19.22.1 Portanto, também para estes as indulgências 
não são necessárias. 
6. Por fim, [O mesmo vale para] os mortos e moribundos, dos quais já 
falamos. 
Vês, pois, como são muitos os cristãos para os quais as indulgências não 
são necessárias nem úteis. Mas volto, por fim, à tese, para finalmente termi- 
nar esse assunto e para golpeá-los com sua própria espada. 
Todos na Igreja concordam que, na agonia e no momento da morte, 
qualquer sacerdote é papa e, por conseguinte, tudo remite ao moribundo. Se 
falta um sacerdote, o desejo certamente é suficiente. Por isso, ele está absol- 
vido de tudo aquilo de que pode ser absolvido pelo papa. Portanto, as indul- 
gências parecem absolutamente nada conferir aos falecidos, visto que tudo o 
que pode ser desligado é desligado na morte. A partir disso fica claro, ao 
iriesmo tempo, que a diferença de graus e leis só se aplica aos vivos e sãos. As- 
sim, as indulgências são úteis às pessoas manifestamente criminosas, vivas, 
s3s e robustas, não impedidas e que não querem agir melhor. Se erro nessa 
qtiestão, que me corrija quem puder e souber. 
Mas se perguntas: "Então de que penas as almas são redimidas, ou que 
i>ciias sofrem elas no purgatório, se não sofrem nada correspondente às pe- 
nas canônicas?", digo: se eu soubesse isso, por que debateria e perguntaria? 
liii 1120 sou tão perito e sabedor do que Deus faz com as almas que partiram 
quanto aqueles copiosissimos redentores de almas118, que propõem tudo com 
iriiita segurança,como se fosse impossível que sejam seres humanos. 
Acrescenta-se a essa dificuldade o fato de haver mestres que são de opinião 
qiie as almas nada sofrem do fogo, mas apenas no fogo, de modo que o fogo 
iiâo é o algoz, mas o cárcere das almas. Por isso, também aqui entro num as- 
siirito muitíssimo dúbio e disputável e exponho o que compreendi a respeito 
clcssas coisas. 
Tese 14 
Saúdell9ou amor imperfeito no moribundo necessariamente traz consi- 
ao grande temor, e tanto mais, quanto menor for o amor. 
120 Sc. aurnciitando a amor 
121 Isto é. purificados. 
122 ( '1 . MI 14.30. 
123 ( ' I ' Mi 14.26. 
124 ('I'. I c 24.37. 
Isto se torna evidente através de 1 Jo 4.18: "No amor não existe medo. 
O amor perfeito lança fora o medo, pois o medo tem castigo." Portanto, se o 
amor perfeito lança fora o medo, é necessário que o amor imperfeito não o 
lance fora e que, por isso, haja medo com o amor imperfeito. Mas onde está 
I 
esse amor perfeito? E (para fazer uma pequena digressão) quem não tem me- 
do da morte, do juizo, do inferno? Pois, por mais santa que seja uma pessoa, 
nela há restos do velho ser e do pecado, e, neste tempo, os filhos de Israel não 
conseguem destruir completamente os jebuseus e cananeus e demais gentios. 
Permanece [sempre] o vestígio do velho Adão. Esse velho ser, porém, é erro, 
concupiscência, ira, temor, apreensão, desespero, má consciência, horror da 
morte, etc. Essas coisas são [características] do ser humano velho e carnal. 
Elas diminuem no novo ser humano, mas não são extinguidas até que ele 
mesmo seja extinguido pela morte. Como diz o apóstolo: "Mesmo que o nos- 
so ser humano exterior se corrompa, o interior é renovado de dia em dia." [2 
Co 4.16.1 Portanto, esses males dos restos do velho ser não são suprimidos 
pelas indulgências nem pela contrição iniciada; eles começam a ser suprimi- 
dos e, aumentandoilo, são suprimidos mais e mais. Esta é a saúde espiritual, 
que não é outra coisa senão a fé ou o amor em Cristo. 
Estando as coisas assim estabelecidas, a tese está suficientemente clara. 
Porque se alguém é surpreendido pela morte antes de alcançar o amor perfei- 
to que expulsa o medo, necessariamente morre com medo e horror, até que o 
amor se torne perfeito e lance fora aquele medo. Ora, esse medo é justamente 
1 a consciêiicia má e inquieta por causa da falta de fé. Pois nenhuma consciên- cia é medrosa exceto a consciência que é ou vazia ou imperfeita em termos de 
I fé. Pois assim diz também o apóstolo: "O sangue de Cristo liberta nossas 
consciências de obras mortas." [Hb 9.14.1 E mais uma vez, em Hb 10.22: 
"Com os corações aspergidos121 de uma má consciência na plenitude da fé." 
Numa palavra: se posso provar que a causa do horror e do medo é a falta 
de confiança e que, por outro lado, a causa da segurança é a fé, creio que está 
provado, ao mesmo tempo, que quem morre em fé imperfeita necessariamen- 
te tem medo e horror. Lemos frequentemente no evangelho que a falta de 
confiança é a causa de terror, desespero, condenação. Em primeiro lugar, 
quando Pedro ordena ao Senhor que se afaste dele, dizendo: "Porque eu sou 
um ser humano pecador" [Lc 5.81; em segundo lugar, quando começou a 
afundar por causa de sua pequena féia; em terceiro lugar, quando os discipu- 
10s quiseram clamar por causa da perturbação, pois achavam que Cristo, que 
andava sobre o mar, era um fanltasmal"; em quarto lugar, quando, perturba- 
dos, acreditavam estar vendo um espírito, na ocasião em que Cristo entrou 
até eles através das portas fechada@. Em todos esses casos se mostra que a 
lalta de confiança é a causa do temor e horror. Logo, toda perturbação pro- 
vCm da falta de confiança, toda segurança, da confiança em Deus; a confian- 
c.], porém, provém do amor, pois é necessário que te agrade aquele em quem 
coiifiai. 1 
Tese 15 
Este temor e horrorpor si sós já bastam Ipara nüo falar de outras coisas) 
pura produzir a pena do purgatório, uma vez que estão próxrmos do horror 1 
110 desespero. 
Não falo nada sobre o fogo e o lugar do purgatório, não porque o negue, 
iiias porque esse é um outro debate que não me propus agora; além disso, 
porque não sei onde é o lugar do purgatório, embora o B. Tomás creia que 
ele esteja debaixo da terra. Nesse meio-tempo, entretanto, fico com o B. 
Agostinho, a saber, que os receptáculos das almas são escondidos e estão fo- 
ra de nosso conhecimento. Digo isto para que o herege begardol2' não imagi- 
iie que obteve de mim [a afirmação de] que o purgatório não existe porque 
coril'esso que seu lugar é desconhecido, ou que a Igreja Romana erra por não 
rejeitar a opinião do B. Tomás. E-me certissimo que existe um purgatório. 
Não me impressiona muito o que blateram os hereges, visto que, já há mais 
de 1.100 anos, no livro IX de suas Confissões, o B. Agostinho ora por sua 
riiáe e seu pai e pede que se ore [por eles], e sua santa mãe, ao morrer (como 
clc 15 escreve), desejou que sua memória [fosse lembrada] junto ao altar do 
Senhor; mas ele conta que isso também aconteceu com o B. Ambrósio. E 
iiicsino que na época dos apóstolos o purgatório não existisse, como se enso- 
herbece o altivo Begardo - acaso deve-se, por esta razão, crer num herege 
qtie nasceu mal-e-mal há 50 anos e pretender que a fé de tantos séculos seja 
falsa? Principalmente porque ele não faz outra coisa exceto dizer: "Não 
creio", tendo, assim, provado todas as suas [asserções] e rejeitado todas as 
nossas, como se também a madeira e a pedra não cressem. Mas isto fica para 
iiiiia obra e um tempo apropriados. 
Portanto, está admitido que há horror nas almas. Agora vou provar que 
csse horror é uma pena do purgatório, ou melhor, a máxima: 
I. 'Iodos admitem que as penas do purgatório e do inferno são as mes- 
I ! h hey;iidos s3a. oripinalinenle, assaciaqões religiosas da Idade Média. Iniciaimente. eram 
I<iilti;id;is piir mulheres (beguinas) que, sem se submeterem aos scveros votos rnona?ticos. 
\r rri,rii;irii 1i;tra a prática de obras piedosas e meditacao. Pohteriormentc cairani hi lh a in- 
Ili i l ' i iciii dc irii,viiiientos helerodaxos, o que Icvou a que seu iicimc fosse usado eiii se~iiidci 
~~cy ; i i i v~ , . Nos <lia< dc I.iitero, as aysociiiqòcs feiiiiiiinas c«citiriiiiivain a existir. c\pçcialcneo- 
ir cii>,\ I>;iircr H;iiroe. As associai.iier nia<ciilirias Ii:iviai~i *e cniiriyiii i l<i eiri viriii'lc <lii\ vio- 
ICIII~\< lpcrhcyk~isfic~ a q t ~ c ! i n I ~ a n ~ ~ i c l , ) \~~hn~ctid:\h. O ~,<)rt!c V<ni ir:!rthVcci~lo, n o \?~,l Iu X V , 
liitr'i i > \ l i i i r~i l i is r piir;i os Irinisor Hocrnioh i>ii M<ir;ivi;ici<,s. i,* i1ii;iir $r <iry;iiiiliir;tiii !>;I I l i i i 
I I I I : I i l : I I . I I ( 1 I 7 2 H ) . 
mas, diferindo apenas no que diz respeito a eternidade. Ora, a Escritura des- 
creve as penas do inferno como sendo perturbação, pavor, horror e fuga, co- 
mo diz SI 1.4: "Os impios não são assim; são, porém, como a palha que o 
vento dispersa." Mas também em Jó e em Isaias e em muitos outros lugares 
os impios são comparados a palha e ao pó, arrastados e dispersos pelo turbi- 
lhão; nisto [a Escritura] certamente denota a horrivel fuga dos condenados. 
Do mesmo modo SI 2.5: "Então falará a eles em sua ira e em seu furor os 
conturbará." E 1s 28.16: "Quem confianele náo será envergonhado", isto é, 
não se precipitará, não se assustará nem fugirá perturbado e horrorizado, 
querendo dizer, em todo caso, que os que não confiam serão confundidos e 
tremerão. Pv 1.33: "Quem me der ouvidos repousará sem terror e gozará de 
abundância, sem temor dos males." E S1 11 1 [I 121.7: "Não se atemorizará de 
más noticias." Nestas e em outras passagens da Escritura a pena dos impios é 
expressa como terror, horror, pavor, temor, ao passo que a respeito dos pie- 
dosos se afirma o contrário. Por fim, também o B. Tiago diz que os demô- 
nios crêem e trememl26. E Dt 28.65 afirma claramente que a penado ímpio é 
pavor, dizendo: "O Senhor Deus te dará um coração pávido", etc. Pois se es- 
se pavor não existisse, nem a morte, nem o inferno, nem pena alguma seriam 
molestos, como diz em Cantares: "O amor é forte como a morte, e duro co- 
mo o inferno é o ciúme" [Ct 8.61, o que se mostrou suficientemente nos már- 
tires, a tal ponto, que o Espírito diz quanto aos impios em SI 13[14].5: "Eles 
tremeram de medo lá onde não havia medo", e em Pv 28.1: "O ímpio foge 
sem que ninguém o persiga, mas o justo, audacioso como um leão, estará sem 
terror." De outro modo, por que uma pessoa teme a morte e se aflige, en- 
quanto que uma outra pessoa a despreza, senão porque a pessoa que interior- 
mente não tem confiança na justiça teme onde não deve temer? 
2 . 2 Ts 1 .as.: "Os que não crêem no Evangelho sofrerão penas eternas de 
destruição longe da face do Senhor e da glória de seu poder", a saber, porque 
Deus os atormenta e crucia unicamente com o aspecto de seu poder, visto que 
Ihes é insuportável. Por isso fugirão e não escaparão, mas serão apanhados 
em meio a angústias. Assim diz aquela passagem em Sabedoria: "Rapida- 
mente ele vos aparecerá de modo horrendo." [Sb 6.6.1 E SI 20[21].9: "Tu os 
tornarás como uma fornalha ardente no tempo de tua aparição." Do contrá- 
rio, de onde viria aquela palavra: "Montes, cai sobre nós; outeiros, cobri- 
nos" [Os 10.81, e 1s 2.10: "Entra na rocha e te esconde num buraco na terra 
em face do furor do Senhor e da glória de sua majestade", e JÓ: "Oxalá me 
abrigues no inferno e me escondas até que passar o teu furor!" [JÓ 14.131? 
Está claro, pois, que sua maior pena se origina da face do Senhor, sendo en- 
vergonhados por sua horribilissima impureza, comparada com tão grande 
pureza. 
3. Também a Igreja canta e geme na pessoa das almas, em SI 6.2s.: 
"Meus ossos estão abatidos, e minha alma está grandemente perturbada." E 
em St 114[116],..3: "As aflições darnorte me cercaram, e os perigos do inferno 
126 <'i. l 'p 2.19. 
97 
vivi ;i111 sobre niim." Dai que a oração mais em uso é que Ihes desejamos re- 
i i i > i i \ i i , dando a entender, em todo caso, que elas estão inquietas. Ora, não 
\:\<r ;is peiias que causam a inquietude, como se evidencia no caso dos márti- 
ics L, Iioiiiens firmes, mas sim o horror e a fuga das penas, oriiindos da fra- 
i ~ i i r ~ : ~ da confiança em Deus. Assim como cada pessoa crê, tal lhe sucederá, e 
:i\ Ilciias c todas as coisas lhe serão tal qual ela mesma é. Dai que não contur- 
1x1 ii j ~ i s ~ o qualquer coisa que lhe acontecer, diz em Sbl27. Por outro lado, aos 
iriil>iiis aterroriza o ruido de uma folha que voa (Lv 26.36). E 1s 57.20s. diz: 
"Os iiiipios são como o mar agitado, que não pode se aquietar, e cujas ondas 
I:i i i~:i i i i de si lodo e lama. Para os ímpios não há paz, diz Deus, o Seiihor." 
4. Algumas pessoas provaram dessas penas -isto é, das p e n a do irifer- 
i i i i aiiida em vida. Por conseguinte, tanto mais deve-se crer que sejarn ini- 
i > i i ? t ; i h aos mortos no purgatório. Pois o experimentado Davi diz: "Não tives- 
\i. l i Scrihor me ajudado, por pouco minha alma estaria iio iiiferrio." [SI 
04.17.1 E em outra passagem: "Minha alma está repleta de males, e niinlia vi- 
i l t i sc nproximou do inferno." [SI 88.3.1 E mais uina vez: "Nossos ossos estão 
i\ptilIiados a beira do inferno." [SI 141.7.1 "Tornei-ine semelhante aos que 
~lcsccrii a cova." [Sl 28.1.1 E de novo: "Quantas grandes e más tribulações 
I I I C iirostraste, e tornaste a me tirar dos abismos da terra." [SI 71.20.1 Eze- 
iliiins, poréni, diz: "Eu disse: na metade de meus dias irei ás portas do infer- 
iiíi." [Is 38.10.1 E mais abaixo: "Como um leão ele triturou todos os meus 
ii\s<is" [ls 38.131, o que por certo só pode ser entendido como tendo sido cau- 
s:i<lo por uin insuportável horror. 
S. Quaiitos há que ainda hoje provam dessas penas! Pois qiie outra coisa 
rii\iii;i iambém João Taulerl28, em seus sermões alemães, senão os sofrimen- 
ios (lcssas penas, das quais também aduz alguns exemplos? Sei que esse mes- 
irc 2 desconhecido das escolas de teólogos e, por isso, talvez desprezível. No 
ciiiaiiio, nele (embora esteja todo escrito na língua dos alemães) eu encontrei 
i i i ; i i \ teologia sólida e pura do que foi encontrado em todos os mestres esco- 
I:isiicos de todas as uiiiversidades ou que pode ser encontrado em suas senteri- 
<;is. 
Mas tanibem eu conheci uma pessoal29 que afirmou ter sofrido essas pe- 
ii:ih iiriiiias vezes, é verdade que por um brevissimo espaço de tempo, porém 
i A i i grniidcs c tão infernais, que nenhuma lingua pode expressá-las, nenhuma 
~>c,ii:i ipíidc descrevê-las e quem não as experimentou não pode crer. Elas eram 
<Ir i:iI iiaiurcza que, se fossem completadas ou durassem meia hora - sim, 
i i i i i il2ciiiio dc I i o r a , ela pereceria de todo, e todos os seus ossos seriam re- 
ilii/iilu? ;i ciiiz;is. Aqui Deus se mostra horrivelmente irado e, com ele, tam- 
bem toda a criação. Então rião há nenhuma fuga, nenhum consolo, neni inte- 
rior nem exterior, mas [unicamente] acusação por parte de tudo. Então se ge- 
me aquele versiculo: "Fui expulso dos teus olhos" [SI 31.221 e nem ao menos 
se ousa dizer: "Senhor, iião me repreendas em tua ira." [SI 6.1.1 Nesse mo- 
mento (fnirabile dictu) a alma não pode crer que alguma vez possa ser remi- 
da; ela só sente que a pena ainda não está completa. Entretanto, ela é eterna e 
não pode considerá-la temporal; resta apenas o puro desejo de auxilio e um 
horrendo gemido, mas ela não sabe de onde pedir auxilio. Aqui a alma está 
estendida com Cristo, de modo que se podein contar todos os seus ossos, e 
não há nenhum canto nela que não esteja repleto do mais amargo amargor, 
horror, pavor, tristeza, porém de tal maneira, que todas estas coisas são eter- 
iias. E, de todas as maneiras, para dar um exemplo: se uma esfera passa sobre 
uma linha reta, cada ponto da linha que é tocado suporta toda a esfera, mas 
não a compreende em sua totalidade. Assim, ao ser tocada por uma inunda- 
ção eterna que passa, a alma em seu ponto nada sente e bebe a não ser pena 
eterna; entretanlo, ela não fica, pois passa adiante de novo. Portanto, se essa 
pena dos infernos, isto e , esse pavor insuportável e inconsolável, atinge os vi- 
vos, muito mais a pena das almas no purgatório parece ser de tal espécie, po- 
rém continua. E é este aquele fogo interno, muito mais atroz do que o exter- 
no. Se alguém não crê nisso, não contendemos, mas demonstramos tão- 
somente que esses pregadores de indulgências dizem, com demasiada audá- 
cia, muitas coisas que ignoram ou de que duvidam. Deve-se crer mais nas pes- 
soas experimentadas nessas coisas do que nesses inexperientes. 
6. Acresce-se a isso a autoridade da Igreja, que canta: "Liberta-as da 
goela do leão, para que o inferno não as engula." Do mesmo modo: "da por- 
ta do iiiferno". Essas palavras certamente parecem indicar que as almas estão 
como que já na porta e na entrada d a condenação e no início do inferno. É o 
que chaniei de estar próximo ao desespero, e creio que as palavras da Igreja 
não sejam vãs. 
Tese 16 
Inferno, purgatório e céu parecem diferir da mesma forma que o deses- 
pero, o semidesespero e a segurança. 
Quem tiver considerado verdadeiras as duas teses precedentes admite fa- 
cilmente também esta. Sim, como cremos que no céu reinam paz, alegria e se- 
gurança na luz de Deus, no inferno, contudo, pelo contrário, esbravecemi30 
dcsespero, dor e horrível fuga nas trevas exteriores, [que] o purgatório, po- 
rCm, é o meio entre ambos, mas de tal forma que está mais próximo do infer- 
iio do que do céu (porque não têm alegria e paz, sim, em nada participam do 
l7 r l A<) iiivl's de servire. que consta na edicão de Weiinar (p. 5 5 8 ) , o termo iatino original deve 
\c, .s,,<.,,;r<,. 
09 
c.i.11, pois se considera que se trata da mesma pena como noinferno, diferente 
;ij>ciias na duração), está suficientemente claro que também nele'J1 há deses- 
{'cio, fuga, horror e dor. Todavia, quando mencionei o desespero acrescentei 
"scmi", visto que, por fim, esse desespero cessa. No mais, enquanto está ne- 
Ic, a alma realmente não sente senão desespero, não porque ela desespere, 
iiius porque está em tamanha perturbação e confusão de pavor, que iião sente 
qiic tem esperança. Lá somente o Espirito socorre sua fraqueza o mais possí- 
vel, intercedendo por elas com gemidos inexprimiveis'J2. Pois o mesmo acon- 
tece aos tentados nesta vida, de modo que não sabem se esperam ou desespe- 
i-ain; sim, parece-lhes que desesperam, restando só um gemido por auxilio. A 
partir desse sinal, não são eles mesmos, mas outros que reconhecem que eles 
:iiiida têm esperança. No entanto, não vou falar mais longamente sobre esse 
assunto, que é sobremaneira abstruso, para que os vendedores de indulgên- 
cias não acusem também a mim de estar falando sem provas, embora eu não 
;ifirme o que ignoro, como fazem eles, mas sim debata e pergunte. Ademais, 
sustento que a presumida certeza deles é dúbia e , mais ainda, nula. 
Tese 17 
Parece necessário, para as almas no purgatório, que o horror diminua na 
rrredida em que cresce o amor'". 
Também esta tese se apóia nas três precedentes. Não obstante, vamos 
cxplicá-Ia e propor (assim como começamos) três espécies de almas que par- 
iciii. A primeira é constituída pelas almas completamente desprovidas de fé 
(isto é, condenadas). Na morte, elas são necessariamente tomadas do mais 
extremo horror e desespero, conforme aquela passagem: "Os males se apode- 
r:irã» do homem injusto na morte." [SI 140.11.1 E mais uma vez: "A morte 
(10s pecadores é a pior de todas" [Sl 34.211, isto porque não têm confiança 
ciii Deus; por esta razão, a ira os apanha. A segunda espécie são as almas 
c:iiiiipletamente cheias de fé e perfeitas (isto é, bem-aventuradas). Na morte, 
clas são necessariamente tomadas da maior segurança e alegria, conforme 
:iqiiela passagem: "Ainda que cair, o justo não se quebrará, pois o Senhor 
~ilie siia nião debaixo." [SI 37.24.1 E de novo: "Preciosa é aos olhos do Se- 
iilior 3 morte dos seus santos." [SI 116.15.1 E mais uma vez: "Se for assalta- 
(10 ccdo demais pela morte, o justo estará em refrigério." [Sb 4.7.1 E a causa 
iIc ornhos é que o injusto encontra o que temia, sendo que ele sempre temia 
iiiiirtc ç castigo. O justo, porém, saciado desta vida, desejava ao máximo ser 
livrado; por esta razão, seu desejo lhe é concedido. Aquele não chegou a me- 
t:i<lc dos setis diasl34; este prolongou sua morada para além da corisumação. 
I I 1 l ~ l i > LI. 1 1 0 ] ~ I I I X I ~ L U I ~ U . 
I I,! ( ' I . H i i i 8.26. 
I I I ( '1. 1,. 24. iii>i:i I I . 
11.1 ( ' I . SI 15.21. 
Por isso, o que aquele teme, este busca, pois estão tomados de um desejo to- 
talmente diferente; o que para aquele é supremo horror, para este é supremo 
ganho e alegria. A terceira espécie são as almas imperfeitas na fé, que diferem 
de modo variado, indo desde a fé plena até nenhuma fé. Ora, creio que nin- 
guém nega que algumas almas partem com fé imperfeita; mesmo assim, abai- 
xo demonstraremos isso mais amplamente. Portanto, como a imperfeição de 
fé não é outra coisa do que a imperfeita novidade da vida no Espirito e um 
resto aiiida existente do velho ser da carne e de Adão (pois se fosse perfeita 
não temeria o castigo, nem morreria a contragosto, ou não partiria com afei- 
ção terreiia por esta vida), parece claro que as almas não só precisam remover 
as penas, mas também acrescentar a perfeição d a novidade e fazer desapare- 
cer o resíduo do velho ser (isto é, o amor a vida e o temor da morte e do 
juizo). Ocorre que, por mais que a pena fosse removida (se fosse possível), a 
alma não ficaria sã através dessa remoção, assim como também nesta vida 
ninguém se torna melhor apenas pela remoção das penas, mas sim pela adi- 
ção da graça e pela remoção do pecado. Por isso, também delas primeira- 
mente deve ser retirado o pecado, isto é, a imperfeição da fé, da esperança e 
do amor. 
2. Nenhuma pena é vencida pela fuga ou pelo medo, pois é verdadeiro 
aquele provérbio: "Quem tem medo do inferno acaba entrando nele." Sim, a 
neve cairá sobre quem tem medo da geada (Jó 6.16), isto é, vai cair sobre ele 
mais do que temia. Toda pena é aumentada e fortalecida pelo medo a ela, as- 
sim como é diminuída e enfraquecida pelo amor. Ora, a pena é vencida sendo 
amada e abraçada; então, nenhuma pena é molesta, contanto que tenha sido 
vencida. Por isso, para quem as ama, as penas e a morte não são molestas, 
mas agradáveis, porque vencidas pelo amor e pelo Espirito. Para quem as te- 
me, porém, elas são molestas porque o dominam pelo temor e pela letra. Se, 
pois, o purgatório aflige as almas e o pavor Ihes é molesto, é evidente que Ihes 
falta o amor e o Espirito da liberdade e que a letra e o temor estão presentes. 
Essa falta de amor eu chamo de imperfeita saúde do espírito. No entanto, co- 
mo ninguém entrará no céu sem saúde perfeita, concluo, por fim, que lhes é 
necessário que, assim como o horror seja diminuído, o amor e a saúde sejam 
aumentados. 
Se alguém negar e não crer nisso e sustentar que as almas lá135 seriam 
perfeitas na vida do Espirito e só pagariam as dividas passadas de penas, res- 
poiido em primeiro lugar: que eles também provem sua opinião, que eu nego, 
estando certo de que não a provarão por nenhuma razão ou então a provarão 
através de razões mais fracas. Pois bem, em segundo lugar, pergunto se ne- 
g:iiii aquelas três espécies de almas que partem acima expostas. Se admitem 
iariibém a terceira espécie, que respondam ao que eu disse anteriormente, de 
qiic modo são removidos a pusilanimidade do espírito e o temor, visto que o 
scr tiiiiiiano perfeito, assim como Deus, seu Pai, nadateme, tudo pode, tudo 
si)frc, cri1 tudo se alegra e deleita. Se não o admitem, mas crêem que na morte 
Tese 18 
Parece não ter sido provado, nem p o r meio de argumentos racionais 
rrem da Escritura, que elas se encontram fora do estado de mérito ou de cres- 
cimento no amor. 
Este é o meu mais forte argiimento contra a opiiiião contrária: ela é ensi- 
nada sem prova. Nossa opinião, porém, certamente se apóia pelo menos na- 
quela passagem que diz que sem o acréscimo da graça nenhum temor é expul- 
so; este só é lançado fora pelo amor perfeito"3. Esta tese previne o argumen- 
to daqueles que poderiam dizer contra mim: "Elas estão fora do estado de 
iiiérito, razão pela qual as três teses precedentes são falsas." Eu, contudo, 
para continuar (assim como comecei) a opinar e debater, sem nada afirmar, 
digo: se o purgatório é tão-somente uma oficina para o pagamento de penas e 
;is almas que nele estão são impuras por sua imoderaçãolM (como penso eu) e 
i120 são purificadas desse vicio, o purgatório se tornaria o mesmo que é o in- 
lerno, pois o inferno é onde existe pena com culpa que permanece. Ora, nas 
iilmas do purgatório existe culpa, a saber, temor das penas e falta de amor, 
no passo que o justo, segundo 1s 8.13, nada deve temer senão apenas Deus; 
portanto, elas pecam sem interrupção enquanto temem as penas e buscam re- 
poiiso. Provo isso pelo fato de que buscam seu próprio interesse mais do que 
:i vontade de Deus, o que é contra o amor. Se amam a Deus, amam-no coni o 
iiiiior da concupiscência (isto é, com um amor vicioso), enquarito que deve- 
ii;irn, mesmo em suas penas, amar e glorificar a Deus e suportar com firme- 
/,:i. Mas, para também afirmar alguma coisa em meio a tantos espinhos dos 
dchates, confesso francamente que creio que nenhuma alma é redimida das 
iiciias do purgatório por causa de seu temor, até que ponha de lado o temor e 
coiiiece a amar a vontade de Deus em tal pena, e a ame mais do que teme a 
pcria, sim, até que ame unicamente a vontade de Deus, mas vilipendiea pena 
i111 até a ame na vontade de Deus. Porque é necessário amar a justiça antes de 
scr salvo. A justiça, porém, é Deus, que opera essa pena. Depois, Iiá aquela 
1p;ilavra de Cristo: "Quem não toma (isto é, carrega de bom grado e com 
:1111or) a sua cruz e me segue, não é digno de mim." [Mt 10.38.1 Ora, a cruz 
d;is alinas é aquela pena. Sendo as coisas assim, e as reputo sumamente ver- 
iI:idciras, diga quem puder de que forma esse amor das penas pode substituir 
o icriior sem uma nova infusão da graça. Eu confesso que não sei, a menos 
qiic digas que o purgatório não tem terror das penas e, por isso, não é seme- 
I11:iiric ao inferno, contra o dito anteriormente; mas então é em vão que ora- 
I I I ~ I S por aquelas que, conforme ouvimos, querem e amam suas penas, seni te- 
iiior. 
2. Eni segundo lugar, provo que o amor cresce nelas. Diz o apóstolo: 
"l'od;is as coisas cooperam para o bem daqueles que amani a Deus." [Krn 
8.28.1 Esse bem, contudo, não pode ser compreendido senão como aumento 
do bem já possuido; por conseguinte, também o purgatório aumenta o bem 
do amor a Deus, sim, aumenta ao máximo de tudo, enquanto o ciúme é duro 
como o inferno'45 e ama mesmo em tão grandes males; assim como o forno 
prova o da mesma forma a pena prova o amor. 
3. "0 poder se aperfeiçoa na fraqueza." [2 Co 12.9.1 Se o amor está pre- 
sente, toda pena é salutar e proficua. Pois o preciosissimo e fecundissimo 
amor não permite alguma coisa estéril junto de si. Ora, no purgatório está a 
maior fyaqueza; por conseguinte, ele aperfeiçoa o amor ao máximo. 
I 4. E impossivel ficar parado no caminho. O caminho de Deus, porém, é 
o amor que se dirige a Deus. Portanto, é necessário que as almas ou avancem 
ou retrocedam do amor de Deus, já que, como é evidente, ainda não estão no 
fim e ainda não vêem. 
5. É impossivel qualquer,perseverança da criatura a menos que receba 
incessantemente mais e mais. E dai que certas pessoas perspicazes dizem que 
a coiiservação de uma coisa é a criação continuada da mesma. Criar, entre- 
tanto, é fazer sempre novo, como se evidencia também nos riachos, nos 
raios, no calor, no frio, principalmente quando estão fora de sua origem. Por 
esta razão, também o calor espiritual, isto é, o amor a Deus, nas alinas neces- 
sita de uma continua conservação (até que sejam absorvidas em sua origem 
divina) e, por isso, também de aumento, mesmo que fosse verdade que elas 
são perfeitas, embora estar fora de Deus e não ter chegado a ele, por um la- 
do, e ser perfeito, por outro, são coisas contraditórias. 
No entanto, vale a pena ver que razões os movem a negar as almas o es- 
tado de mérito ou por que razões provam que deve ser-lhes negado. 
A primeira razão é aquela difundidissima afirmação do B. Agostinho: 
"Todo mérito é adquirido aqui; após a morte, nenhum."l47 Por conseguinte, 
dizem eles, o purgatório não é lugar para adquirir mérito. 
Respondo: o B. Agostinho e os outros pais que disseram coisas seme- 
lhantes falam a partir da autoridade e do uso da Escritura, que fala muito 
mais vigorosamente em favor dessa opinião: por exemplo, G1 6.10: "Faça- 
mos o bem enquanto temos tempo." E Cristo diz em Jo 9.4: "A noite vem, 
quando ninguém poderá trabalhar." E o Apocalipse: "Pois as suas obras os 
seguem." [Ap 14.13.1 E aquela clarissima passagem de Hb 9.27: "Está esta- 
belecido a todos os seres humanos morrerem uma vez, depois disso, o juizo", 
depois o fim. G1 6.7: "Pois aquilo que o ser humano tiver semeado, isso tam- 
bém ceifará." Da mesma forma: "E necessário que todos nós sejamos mani- 
festados perante o tribunal de Cristo, para que cada um receba conforme o 
qiie fez no corpo, seja bem, seja mal." [2 Co 5.10.1 E há muitas outras passa- 
gens que, no conjunto, soam como se, após a morte, haja somente um juizo 
para que se receba conforme se agiu (isto é, mereceu) aqui, segundo aquela 
palavra de Eclesiastes: "A árvore ficará no lugar em que cair." [Ec 11.3.1 
. ~ ~ 
1 4 ( ' r . ('I 8.6. 
146 ('r. I'u 27.21. 
141 /)<~,»ric<l<~,~ii,iorror,r .sanclorurn. 12; De civilate dei. XX1,24; i": Migne PL 44,977; 41,740. 
105 
Mas todas essas passagens militam igualmente contra todo o purgatório, 
lii~rqiie não estabelecem um estado intermediário entre os mortos condena- 
i105 e os bem-aventurados. Se, pois, não obstante isso, o purgatório é defen- 
dido com razão, também se pode defender que lhes é aumentada a graça, não 
c~li\iante aquela afirmação de que todo mérito é adquirido aqui, porqiic ela 
ii:lo Fala do purgatório - assim como também aquelas passagens nada falam 
<I,i piirgatório, mas sim do céu ou do inferno. Portanto, ein ambos os casos o 
liiii-gatório é deixado de lado. Por esta razão, aquelas palavras de Agostinho 
ii;i<i devem ser relacionadas com o purgatório: todo mérito é [adquirido] 
:iqiii, iião lá, quer dizer não no céu ou no inferno. Por fim, segundo o B. 
Axostiriho, aqui também é adquirido o mérito pelo qual o ser Iiuniano é dig- 
i i ~ de ser ajudado, no purgatório, através de intercessão. Do contrário, no 
,.i.ii ou no inferno ele não tem nenhum mérito pelo qual mereça receber ajuda 
I;!. certo que lá e1e"Vem o purgatório em vista, mai de fornia algurna aqui. 
Entretanto, se alguma pessoa mais contenciosa qiiisessc afirmar qiie as 
1i:issagens já aduzidas em nada pugnam coiitra o piirgatório, pois poderiam 
,,cr iiiantidas através de um duplo juizo ou de uma diipla retribuição após a 
iiiorie - a saber, de uma temporal, que é do purgatório, e de unia eterna, 
~liic é do inferno (e assim um ceifa o purgatório, outro, o inferno; da niesma 
Ii>riiia, as obras de um o seguem ao piirgatório, as de outro, ao i n f e r n o ) , 
i rspoiido: falando assim, essas passagens, juntamente com o purgatório, não 
\;li] salvas, mas, antes, destruidas por meio de um equivoco tão violento e ar- 
Iriir:irio, visto que uma parte do equivoco iiunca pode ser demonstrada. Em 
iiicii juizo, creio que não é licito e que é péssimo um uso conservado por al- 
,:li115 até hoje: o de dividir o sentido simples da Sagrada Escritura nuin senti- 
i10 cqiiivoco e dúbio. Pois é mais correto dizer que essa passagem não fala 
clcisc irssunto do que, tentando relacioná-la com ambos os assuntos, fazer 
c , r i i i ela não seja certa em nenhum sentido. Pois a coberta é curta, diz 
li:iinsi"', ela não pode cobrir ambos os lados. Além disso, como se diz comu- 
iiiciitc: "Um altar não deve ser ornado ás custas da nudez de outro." Por 
<.oiiscgiiinte, deve-se dizer que a afirmação de que o ser humano lá ceifa o que 
; i i l i i i erneou deve ser entendida em relação a vida presente e a futura. Pois [a 
~~iiliivr:i] "ceifa" - sem que a distorçamos e a tornemos equívoca segundo 
ii<rsro ;~rbitrio -deve ser deixada com o significado com que é usada pela Es- 
<.i i! iirn, a saber, do juizo futuro e universal. Assim, aquelas passagens em na- 
iI:i piigiieiii contra o purgatório, e isto não pela cavilação de um equivoco, 
lii;is ~ ic lo seiitido da ablação15o. O mesmo vale para a afirmação: "Todo méri- 
C I O li. iiclqiiirido] aqui, e nenhum lá." De outro modo, quanto suor teria cus- 
i:i<I<i 11 iiicii esforço, se também eu atribuisse ao mérito um duplo sentido, 
. i l i i iiiniido que após a morte não existe mérito deste tempo, mas sim o mérito 
<l:iiliiclc cstado, e que Agostinho se refere ao primeiro. Porém eu não quis 
I I;11rr isso]. 
Mas o que hão de dizer eles sobre aquela passagem de Eclesiastes: 
"Caindo a árvore para o sul, ou para o norte, no lugar em que cair, ai ficará" 
[Ec 11.31, se é que realniente entendem sob "queda" a morte? Se, pois, o 
iiorte significa o inferno e o sul, o céu, para onde caem os que entram no pur- 
gatório? "Para o sul", dirão eles, porém equivocamente. Mas o que dirão a 
"ai ficará", "ai permanecerá"? Quer dizer então que elas nunca sairão do 
p~irgatório? Acaso também aqiii a permanência será equivoca, a saber, tem- 
poral e eterna?Assim, fica claro que essa passagem está diretamente voltada 
contra o purgatório; mais ainda: se a considerarmos equivoca, ela transfor- 
ma o purgatório em inferno. Assim sendo, [o problema] não pode ser resolvi- 
do a nienos que se diga (como eu disse) que ela nada afirma a respeito do pur- 
gatório, não mais do que aquela passagem que reza: "Liiro da genealogia de 
Jesus Cristo." [Mt 1.1.1 
Tese 19 
Tarnbétri purece nüo ter sido provado que as alnzas no purgatório este- 
jani certas e seguras de sua bem-uventurançu, ao menos não todas, mesmo 
que nris, de nossa parle, tenhamos plena certeza. 
Pois nós, porque cremos qiie iieiihuma alma vai ao purgatório a menos 
que pertença ao número daquelas a serem salvas, estamos certos da bem-a- 
venturança delas, assim como estamos certos da salvação dos eleitos. Mesmo 
assim, rião impugiio muito se alguém afirma qiie elas estão certas [de sua 
bem-aventurança]. Eu digo [apenas] que nem todas estão certas. Mas como 
todo o assunto das almas no purgatório é sobremaneira abscondito, explico a 
tese mais persuadindo do que demonstrando. 
1. Em primeiro lugar, a partir das afirmações anteriores: se a pena do 
purgatório é aqiiele pavor e horror da condenação e do inferrio, todo pavor, 
porém, torna o coração perturbado, incerto, privado de conselho e auxílio, e 
tanto mais quanto mais intenso e inopinado forl5'. Ora, o pavor das almas é o 
mais intenso e inopinado de todos, como foi dito acima e como diz Cristo: 
"Aquele dia sobrevém como um laço." [Lc 21.34.1 E o apóstolo: "O dia do 
Seiihor virá como ladrão de noite." [2 Pe 3.10; 1 Ts 5.2.1 Por esta razão, é 
iiiiiito provável que, por causa de sua perturbação, elas não saibam em que 
cstado estão, se condenadas ou salvas; sim, parece-lhes que já estão a cami- 
iilio da condenação, que já estão descendo ao inferno e que, em verdade, já 
csião iias portas do inferno, como diz Ezequiasl52. Mas também 1 Rs1S3 2.6 
diz: "O Senhor faz descer aos infernos e faz subir." Portanto, não sentem 
oiitra coisa seiião que sua condenação está começando, só que sentem que a 
I,IH si, Ay,i\liiili<i. 
1.1'1 1 ' I . 1, 28.20. 
l > O I',,, ,!/~/uliu,~i.\ vvr~,vr ,r?, , I!<> ori&irb;tI, i \ l u i, n c ~ \ c ~ ~ l i d c ~ LIC que r ) A o r c l ' c r c > ~ ; a < > ~>tug:c lO~i :~ . 
1 7 1 i > ~prri<i<li, c\i6 iiico~icliiso tanibérn no original 
152 ( ' I . I, 1 X . I O . 
151 \ri .: ilcvi. \ v i 1 Soi 2 . 6 . 
[porta do inferno ainda não se fechou atrás delas e também não abandonam o 
clcsejo de auxilio, ainda que este não seja visivel em parte alguma. Pois assim 
falam os que o experimentaram. Façamos uma comparação: suponhamos 
que alguém vem inopinadamente ao juizo da morte, caindo, por exemplo, 
lias mãos de salteadores, que o ameaçam de morte de todos os lados, ainda 
que tenham decidido aterrorizá-lo, não matá-lo. Neste caso, eles estão certos 
de que ele viverá, ele mesmo, contudo, nada mais vê exceto a morte iminen- 
iissima e, por isso mesmo, já está morrendo. A única coisa que lhe resta é o 
fato de ainda não ter morrido e poder ser redimido da morte, mas não sabe 
de onde154 (pois vê que aqueles podem, porém não querem). Assim seiido, ele 
ein quase nada difere de um morto. O mesmo parece acontecer no caso do 
iiicdo da morte eterna, visto que não sentem outra coisa senão que a morte 
ctcrna os ameaça de toda parte. Assim canta a Igreja por eles: "Arranca suas 
itlinas da porta do inferno e liberta-as da goela do leão, para que o inferno 
i150 as engula", etc. O único conhecimento que Ihes resta é que Deus pode 
rcdimi-10s. No entanto, parece-lhes que ele não quer [fad-lo]. Os condena- 
dos, porém, imediatamente acrescentam a blasfêmia a esse mal, ao passo que 
:iqueles acrescentam apenas queixa e gemido inexprimivel, auxiliados pelo 
Iispiritolsi. Pois aqui o Espirito de Deus paira por sobre as águas, onde há 
trevas sobre a face do abismo'sb. Mas sobre isso [falei] mais amplamente aci- 
iiia. 
2. Lêem-se muitos exemplos nos quais se tem que algumas almas confes- 
\;li-am essa incerteza de seu estado, pois apareceram como que indo ao juizo, 
para o qual tinham sido chamadas, como [é dito] a respeito de S. Vicente"', 
cic. Por outro lado, lêem-se muitos exemplos nos quais confessaram sua cer- 
icza. Quanto a isto, digo: em primeiro lugar, eu disse que não todas estão cer- 
i;is. Em segundo lugar, conforme o dito anteriormente talvez [seria] melhor 
[~lizer que] elas não estiveram certas, mas, por causa de seu desmedido desejo 
clc ajuda, pediram, como se estivessem certas, que se as ajudasse mais rapida- 
iiiciite. Assim, elas antes julgam e timidamente presumem estar certas do que 
i r snhem, da mesma forma como também no evangelho se diz, a respeito dos 
iIciiii,iii«s, que eles sabiam que ele é o Cristo, isto é, eram fortemente de opi- 
. . iii;io, como diz a glosalsg. Pois assim acontece naturalmente em toda angústia 
<. c111 tudo pavor: somos fortemente de opinião que ainda podemos nos recu- 
]lci:ir, ainda que ai haja mais um desejo de recuperaçãc do que esperança ou 
154 Sr. Ilie viril ajuda. 
1 5 7 ( ' I ' . Krn 8.26. 
IV? [ ' I ' . c;,, 1.2. 
117 S. Vice,ile I'crrer, doininicano, pregador de penitència. Lutera pensa na Vilu Vincentrikr~ 
,<.ri ile 1'cdi.o Karrana 
I Vi N;i I<l;i<le Média perdeii~se o contato coin a interpirtaqào bíblica patristica. Os exrgrias l i - 
v r i ;ini qiie valer-se da.; ohsrrvaçõrs dos pais da Igreja latiria, que haviam sido coletiirl;is por 
i l i v r l \ i i \ ;iiiiorcs. A\sini, eri<tiain as colecões de Beda Vcncrahilis. de Paiilo Wariiciricd. 
I'ii\irriiiiiriciiic. piiicilr<iu-se por uni \istcnia mais sii~iplei aiiida. aiicitaiido iia ni;iraritl <iii 
t f ~ l c r c ; k l ~ t ~ ~ ~ l ~ ~ V ~ I I T C ;i$ l i ~ , I l : t < <lu Icxtu Idl~Iico i ~ ~ l c r ~ ~ ~ c l ~ ~ ~ c s ru:si\ a t ~ l i ~ a \ . I)csju< ' ' ~ I , I \ : \ s ' ' , a 
> : / 0 , $ . 5 , ! or,Ii,,<tri<~ <!c ValaI ' t idt ) S I K ~ I ? ~ i I U4'0 I'<>i ;, r ~ ~ ; t i \ : t ~~ rec i a~ l ; t , 
saber, da mesmaforma como nos demônios houve mais um desejo de saber 
do que o saber. E que o saber da salvação não se apavora nem treme, mas 
confia e tudo tolera com a maior coragem. 
Neste ponto se diz: "Como fica então o juizo particular, que, como é 
voz corrente e como Inocêncio'J9 atesta, tem lugar na morte de qualquer pes- 
soa? Pois parece que, por meio dele, o ser humano fica certo de seu estado." 
Respondo: não se segue que ele fique certo, mesmo que seja um juizo particu- 
lar. Pode acontecer que o morto seja julgado e até acusado, mas que, ainda 
assim, a sentença seja adiada e não lhe seja revelada. Nesse ínterim, contudo, 
enquanto a consciência acusa, os demônios acossam e a ira de Deus ameaça, 
a misera alma nada faz senão tremer por causa da sentença esperada com 
horror a todo momento, assim como faz em relação a morte corporal e como 
ameaça Dt 28.65~s.: "O Senhor te dará um coração pávido, e tua vida estará 
suspensa diante de ti. Pela manhã dirás: ah, quem me dera ver a noite! E a 
noite dirás: ah, quem me dera ver a manhã!" Assim também lá a morte eter- 
na ferirá com pavor semelhante e supliciará a alma com terrivel horror. Essa 
opinião não está muito dissonante da verdade, visto que, em Mt 5.22, tam- 
bém o Senhor distingue entre réu de juizo, réu de conselho e réu de inferno, 
isto é, entre um acusado, um convicto e um condenado. Mas também alguns 
insignes autores ousam afirmar, mais por conhecimento do que por ouvir di- 
zer, que, por tremerem por sua vida, algumas almas são arrebatadas pela 
morte e de tal modo rejeitadas por Deus, que até o fim do mundo não sabem 
se estão condenadas ou se serão salvas. E caso se aceita aquela história sobre 
o monge que estava a morte e, como que condenado por causa do pecado da 
fornicação, já blasfemava, e que depois recuperou a saúde, fica suficiente- 
mente evidente que o juizo e a acusaçãodo inferno podem afligir a alma mes- 
mo que a sentença definitiva não tenha sido pronunciada ainda. O mesmo 
sentido tem o que o B. Gregório conta numa homilia a respeito de um jovem 
a que,m, na morte, um dragão queria engolir. 
E isso, pois, que proponho como verossímil a respeito de toda a matéria 
das penas do purgatório, movido, primeiramente, pela natureza do horror e 
pavor; em segundo lugar, porque a Escritura atribui essa pena aos condena- 
dos; por fim, porque toda a Igreja diz que são as mesmas as penas do inferno 
e do purgatório. Assim, creio que essa nossa opinião está suficientemente 
fundada nas Escrituras. Os apregoadores de indulgências, porém, parecem 
imaginar-se as penas das almas como se fossem infligidas de fora e fossem 
completamente externas, não nascendo a partir de dentro, na consciência, co- 
mo se Deus apenas lhes tirasse as penas, ao passo que o contrário é mais ver- 
dadeiro: ele tira, antes, as almas das penas, como está escrito: "Ele afasta 
suas costas dos fardos." [SI 81.6.1 Ele não diz: "Afasta os fardos de suas cos- 
tas." E mais uma vez: "Se passares pelo fogo, a chama não te fará mal." [Is 
43.2.1 De que forma não fará mal? Só porque ele dá confiança ao coração, 
para que não tema o fogo. Não, porém, de modo que não haja fogo quando 
I 9 Ini>cEncio IV (1243-1254). Apparatus in quinque libros decrefolium, od C. Vlir. 38, c. 14. 
109 
c l ; ~ ~ ~ ~ ' t e m de passar por ele. Por esta razão, o afastar as costas dos fardos não 
:ic<riicece senão curando o temor da alma e a confortando, assim como tam- 
hi.iii foi dito acima que nenhuma pena é vencida sendo temida, e sim através 
clc ainor e desprezo. Ora, as indulgências não removem o temor, mas, pelo 
<.i)iiiririo, o suscitam tanto quanto podem, persuadindo que as penas a serem 
iclnxadas são como que uma coisa odiosa. Entretanto, Deus se propôs ter fi- 
Ilios impávidos, seguros, generosos em eternidade e com perfeifão, que abso- 
I~iÍaiiiente nada temam, mas, confiantes em sua grafa, tudo venfam e despre- 
~c i i i , c considerem as penas e mortes um objeto de zombaria. Os demais igna- 
vos ele odeia, os que são confundidos pelo medo de tudo, até mesmo pelo rui- 
i10 de uma folha que voa. 
De novo se objeta: "Se as almas suportam as penas de bom grado, por 
qiie orarnos por elas?" Respondo: se não as suportassem de boa vontade, 
cc:rtainente estariam condenadas. Mas será que por isso não devem desejar 
i~rr i~ões? Pois também o apóstolo desejou que se fizessem orações por ele, 
11iira que fosse livrado dos descrentes e se lhe abrisse uma porta a palavral6'. 
N5o obstante, era ele qiiem, cheio de toda confiança, se gloriava de desde- 
iiliar a morte. Mesmo que as almas não desejassem orações, é nosso dever 
i.i)iidocr-nos de seu sofrimento e socorrê-las através da oração, assim como a 
i~iinisquer outros, por mais corajosamente que sofram. Depois, como as al- 
iiins n2o sofrem tanto com a pena presente quanto com o horror da perdição 
iiiiiiieiite que as ameaça, não é de admirar que desejem intercessão, para que 
I)crseverem e não se tornem faltas de confiança, tendo em vista que, como eu 
clissc, estão incertas quanto a seu estado e não temem tanto as penas do infer- 
iio quanto o ódio de Deus que existe no inferno, assim como é dito: "Na 
iiioi-te iião há quem se lembre de ti; no inferno quem se confessari a ti?" [SI 
O . S . ] Assim é evidente que não sofrem por temor da pena, mas por amor da 
iiisiica, como dissemos acima. Pois elas têm mais medo de não louvar e amar 
;I I>eiis (o que aconteceria no inferno) do que de sofrer. Toda a Igreja ajuda, 
coiii razXo, esse seu santissimo, porém ansiosissimo desejo tanto quanto po- 
- 2 " 
iIcl>aie sobre as penas das almas. Não invejarei quem puder exibir coisa me- 
Ilioi, contanto que o faça apoiado em melhores passagens da Escritura e não 
<iliiitihilado pelas fumosas opiniões de seres humanos. 
Tese 20 
I 'r~r~un~o, sob remissão plena de todas as penas o papa não entende sim- 
/~l<:sr~icn/c todas, mas somente aquelas que ele mesmo impôs. 
I Esta tese eu debato. mas ainda não a defendo com vertinácia. Minhas 
razões são: 
1. A primeira [provém] do que foi dito em relação á tese 5: só a pena ca- 
nônica é remitida pelo poder das chaves. Por isso, esta tese é um corolário da- 
quela; negada aquela, é negada também esta. 
2. A segunda razão [é derivada] do próprio estilo do pontífice, que diz: 
"Relaxamos misericordiosamente as penitências impostas." Logo, não rela- 
I . xa as não impostas por ele ou pelos cânones. Creio que aqui não devemos nos preocupar com a invencionice arbitrária de algumas pessoas que dizem: 
1 Quando o pontífice não acrescenta essa cláusula a respeito das penitêiicias impostas, então deve-se entender simplesmente a remissão de todas as penas. i Eii diria: se ela não é acrescentada, subentende-se, mesmo assim, que é acres- centada como cláusula necessária e pertencente à essência do estilo; ou eles 
I que provem com algum texto o que dizem. 
3. Chego a um argumento costumeiro, mas que é o mais forte de todos, e 
pergunto: por meio de que autores pretendem eles provar que também outras 
penas do que as canônicas são removidas pelas chaves? Apresentam-me 
Antoninol62, Pedro de Palude163, Agostinho de Anconalw, Capreolol6'. De- 
1 162 Dominicana e arcebispo de Florença, canonizado em 1523. Nascido em 1389, cedo 
destacou-se por sua erudição, suas pregações fervorosas, sua atividade coma confessor e 
seu rigoiismo ascético. Além disso, desenvolveu larga atividade no campo da politica ecle- 
siástica. Em 1446 foi saprado bisoo, muito a contrarasto. Nessa posiçâo continuou a levar 
. 
uma vida em estilo monacal. Dentre suas obras destacam-se a Surnrno hisroriolis, a mais 
ampla crônica medieval, a Surnrno rheologica, um comentario da teologia moral de Tomas 
de Aquino, e obras da poimênica confessional, unidas sob o nome de ConJessionale. 
163 Também conhecido como Paludana, foi dominicano e recebeu o titulo docror egregiur. 
Nascido por volta de 1280, estudou e ensinou em Paris. Incumbido de embaixadas politi- 
ças, não se deu bem nessa função, retomando ao ensino e i pregação. Em 1329, João XXII 
designou-o bispo de Jerusalém. Dificuldades com o sultão fizeram-no regressar em 1331. 
Seus relatas provocaram um último entusiasmo na corte francesa em prol de uma cruzada. 
Exegeta, publicou também um comentário às Sentenças de Pedro Lombardo, ao qual Lute- 
ro aqui se refere. 
1 f 4 1243-1328. Nascida em Ancona, veio a se tornar eremita agostiniano. Foi aluno de Tomás 
de Aquino em Paris. Professor em Paris, Padua e Nápoles, tem entre seus muitos escritos 
sermões, comentários, tratados filasóficos, dogmáticos e juridicos. Sua última obra foi o 
Milleloquiurn ex S. Augurlini operibus. A obra mencionada por Lutera é a Surnrna depo- 
resrore ecclesiostica (q. 29, art. 4), a qual Agostinho redigiu como sustentação à luta de 
João XXII contra a imperador Luis, a Bávaro. 
I65 Jogo Capreolo, dominicana, festejado como oprinceps fhornisforum. Foi professor em Pa- 
rir a nartir de 1409 e faleceu em 1444. Lutero refere-se a sua obra m a m a LibriIYdefensio- - 
,ir,», iIitr>lr.ct~. m, . J,,r.rc>rir Iho!nar i i c . Iq l< /no iin II ienii,nr div. 21,. orr I. onc i . I,. 
I I , : m J I c :\4u:ii, .oii!rd c%.',#la n<>ii,iiialirra. s p c - 
pois também o sumista Ângelo166refere-se a seu Francisco Maronis'67, que le- 
vou a compra de indulgências a tal ponto, que ousou chamá-la de meritória, 
c agrada a Cristo. Como se, de fato, essas pessoas fossem de tal espécie e 
grandeza, que qualquer coisa que pensaram devesse ser imediatamente inclui- 
(Ia entre os artigos de fé. Na verdade, devem ser mais repreendidos os que, 
para nossa ignomínia e para injúria daqueles, alegam como afirmaçôes as 
coisas que aqueles, por causa de sua piedosa intenção, [apenas] opinaram, 
iião dando absolutamente nenhumaatenção aquele fiel conselho do apósto- 
lo: "Provai todas as coisas, retende o que é bom." [ l Ts 5.21.1 [Eles são] 
tiiuito mais tolos do que os pitagóricos, já que estes afirmavam apenas o que 
l'itágoras168disse, enquanto que eles afirmam também as coisas de que aque- 
Ics duvidavam. Dirijamo-nos, porém, a origem e fonte desses riachos, isto é, 
210 B. Tomás e ao B. Boaventura. Pois aqueles em parte tomaram destes, em 
parte acrescentaram do que é seu. Estes são, pois, homens santos e importan- 
rcs por sua manifesta autoridade. Contudo, visto que também eles mais opi- 
liam do que afirmam -por fim, S. Boaventura confessa que se trata de uma 
coisa dubiosíssima e de todo incerta -, não está claro que a partir deles tam- 
bém nada se pode fundamentar? Vê tu mesmo se eles aduzem qualquer texto 
OLI passagem da Escritura. Não admira que nada afirmem. Pois como essa 
cliiestão seria um artigo de fé, se tivesse sido determinada, não cabe aos mes- 
ires definir, porque também deve ser suspenso até a decisão de um concilio 
tiniversal, e nem mesmo o sumo pontífice tem o direito de estabelecer inconsi- 
clcradamente alguma coisa em questões de fé; só os pregadores de indulgên- 
cias o podem. A estes épermitido tudo o que lhes agrada. No entanto, todos 
1i.m uma única razão para sua opinião, razão essa que também o 
I'aiiormitano~~refere no livro V, depe . et re. c. Quod autemlio, a saber: di- 
zer que as indulgências remitem tão-somente as penas canônicas é vilificar ex- 
cessivamente as indulgências. Por conseguinte, para que as indulgências não 
sejam sem valor, preferiu-se inventar o que não se sabe, ainda que não have- 
ria qualquer perigo para as almas mesmo que as indulgências fossem nulas, 
166 Trata-se do franciscano A. Carletus, natural de Clavassio/Gênova, falecido em 1495 como 
vigário-geral de sua ordem na Itália. Ficou conhecido entre os curas d'almas em virtude de 
um resumo das regras confessionais, as quais organizou em ordem alfabética, facilitando, 
assim, a atividade dos confessores. Entre 1476 e 1520 essa obra, S m m o cosuum eonsrien- 
rim, alcançou 30 edições e era conhecida como Summo ongelico. Luiero condenou essa 
rihra como Summuplirrguam diabolico, por considerá-la trivialiração da prática peniten- 
cial. 
167 Minorita, natural do Sul da França e discipulo de Duns Escoto, foi professor em Paris, vin- 
do a falecer em Piacenza, em 1327. Filósofo, famoso pela interpretação de Aristóteles e das 
Senienços de Pedro Lombardo, veio a ser celebrado como mogisler obsiracfionum. Seus 
Scrmones foram impressos em Basiléia, em 1489. 
168 lilhsofu r matemático do século VI a.C. A autoridade de que era detentor na liga secreta 
firrniada por seus amigos, os quais tinham que se submeter a severas regras e a uma vida as- 
cCfica. era tBo grande que bastava uma referência à palavra do mestre para que todos se 
siihineicssem. 
Ir>') A I . C C ~ ~ S ~ U Niccdau de ~ a l e r h o ( + 1453). Teólogo da Ordem üetiediiina, também conheci- 
do çoiiio Niçoliiii dc Tiiderco. 1.ecionoii Direito Canônico eiii Sicna. Parma e Iiolonlia. 
171) ('1. !ii>lli 60. p. 72. 
112 
muito menos se fossem de pouco valor, ao passo que seria misérrimo pregar 
invencionices e ilusões as almas, mesmo que as indulgências fossem utilissi- 
mas. A tal ponto se desconsidera a salvação das almas; mas, apenas para não 
parecer que não tenhamos ensinado o melhor, laboramos mais em prol da 
glória de nossa palavra, mesmo que não seja necessária, do que em prol da fé 
do povo simples a nós confiado, fé essa que é a única coisa necessária. Antes, 
porém, de responder ao B. Tomás e ao B. Boaventura, parece conveniente re- 
ferir opiniões sobre as indulgências, para que eu não pareça ser o primeiro ou 
o único que as coloca em dúvida. 
A glosa sobre o capítulo Quod autem, li. Vdepe . et re., dando uma ex- 
plicação sobre a eficácia e o poder das indulgências, começa assim: "O valor 
de tais remissões é uma velha querela e, até hoje, muito dúbia."i'l 
Alguns dizem que elas são úteis em relação a Deus, mas não em relação a 
Igreja. Pois se alguém morre sem pecado mortal, ainda não tendo feito peni- 
tência, sente menos as penas do purgatório, conforme a medida da remissão 
que lhe foi concedida. Não obstante, por causa disso a Igreja não relaxa a sa- 
tisfação a uma pessoa viva. Essa opinião é condenada pelo Panormitano no 
mesmo lugar, e eu estou de acordo com essa condenação. 
Outros dizem que elas são úteis em relação a penitência aqui imposta em 
superabundância e por precaução, isto é, unicamente em relação às penas que 
impôs não segundo a medidal72, mas, por precaução, em maior quantidade 
do que o pecado fazia por merecer. Esta opinião deve ser mais condenada do 
que a anterior. 
Outros dizem que elas são úteis em relação a Deus e a Igreja, mas que o 
remitente se onera com a satisfação em lugar daquele173. Também esta opi- 
nião é absurda. 
Outros dizem que elas são úteis para a remissão da penitência omitida 
por negligência. Condenando esta opinião, o Panormitano diz que ela remu- 
nera a negligência. Em meu juizo, porém, esta opinião não é inteiramente fal- 
sa, pois em verdade são remitidas quaisquer penas, também as omitidas por 
negligência, contanto que a negligência [nos] desagrade; sim, são remitidas 
também as que não foram omitidas por negligência e as que ainda devem ser 
cumpridas. 
Outros ainda dizerri que elas têiii valor para a relaxação da penitência 
imposta, desde que o sacerdote que a impôs permita que se possa trocar a pe- 
nitência pelas remissões. Esta opinião é reta e verdadeira nesta questão, só 
que restringe o poder de quem confere as indulgências. Pois é verdade que 
elas relaxam as penitências impostas; entretanto, não é necessária a anuência 
de quem as impôs. 
A sexta opinião, que o Panormitano aduz além das cinco apresentadas 
iia glosa mencionada, diz que elas são úteis, conforme rezam as palavras, 
~ -- .- 
171 Erra glosa é de üernardo de Botono (+ 1263), jurista de Parma, que lecionava em Bolo- 
i iha. expondo ar decretais. Bernardo colecionou as glosso ardinorio as decretais de Gregó- 
rio IX. 
172 S c . do pecado oii da culpa. 
171 Sr. ile qiieiri rccehe a remissão. 
113 
i;iiiio em relação a Deus quanto em relação a penitência aqui imposta. Ele diz 
:tilida que esta opinião é sustentada por Gofredol74, pelo 0stiense"J e por 
.I«ão Andreae"6. Também eu a sustento assim como está ai e as palavras re- 
/;irii. Porém não sigo a compreensão de todos, principalmente por cansa da 
expressão "em relação a Deus". Se com isso querem dizer que também as 
penas impostas por Deus são remitidas, seja aqui, seja no purgatório, para 
:il&in das penas impostas pela Igreja ou pelos cânones, não a considero verda- 
dcira, exceto sob a seguinte restrição: porque as penas do purgatório são re- 
iiiitidas, sem o poder das chaves, apenas por meio da contrição. Por isso, se 
alguém estiver perfeitamente contrito, creio que, em relação a Deus, está ab- 
solvido do purgatório; em relação às penas deste tempo, porém, digo que isso 
riári tem nenhuma abonação, como foi suficientemente exposto acima na tese 
5 . Pois não pode ser nomeada a pena a respeito da qual se deve crer que é re- 
iiiitida em relação a Deus. Por esta razão, eu diria que a expressão "em rela- 
$50 a Deus" deve ser entendida não com referência as penas impostas por 
Ileus, mas as impostas pela Igreja, de modo que o sentido é o seguinte: aque- 
la remissão das penitências impostas pela Igreja subsiste tanto junto a Deus 
qiiarito junto a Igreja, porque Deus confirma essa remissão de sua Igreja, se- 
i7,~iiido aquela palavra: "Tudo o que desligares na terra será desligado tam- 
hérn nos céus." [Mt 16.19.1 Ele não diz: "Tudo o que desligares na terra, ou- 
tra coisa será desligada nos céus", mas sim: "A mesma coisa que tu desliga- 
rcs também eu considerarei desligada." E que, por meiodisso, Deus quer que 
os seres humanos sejam sujeitos ao sacerdote, o que não aconteceria se não 
siiuhéssemos que Deus aprova o que o sacerdote faz. 
Vês, pois, que tudo ainda não passa de opiniões. Ademais, quanto ao 
qric Ângelo aduz de seu Francisco Maronis - que as indulgências serviriam 
i;iiiibém para aumentar a graça e a glória -, ele não adverte que as indulgên- 
cias iião são boas obras, mas sim remissões de boas obras por causa de uma 
oiitra obra menor. Pois mesmo que seja meritória a boa obra por causa da 
qii:iI são dadas indulgências, elas não são meritórias por esta razão, visto que 
;i obra, feita para si, não seria menos meritória, e talvez até mais. As indul- 
gCiicias, porém, tomadas em si, são, antes, demeritórias, porque são remis- 
sGcs de boas obras. Assim pois, como em toda matéria posta em dúvida é per- 
iiiiiido a qualquer um debater e opor-se, digo também eu que, nesta parte, di- 
virjo do B. Tomás e do B. Boaventura, até que provem melhor sua [posição] 
c rcfutem a nossa. Exceto opiniões, nada vejo que eles apresentem como pro- 
v;i, iicm mesmo um único cânone, ao passo que acima, na tese 5, eu apresen- 
I74 (iofiedo de Trani, canonista do seculo XIII. lecionou em Bolonha, vindo a ser, posterior- 
iiieiitc. auditor da Ciiria. Faleceu em 1245. Foi um dos primeiros a formular comentários As 
ilecreiai.;: Sunrmo ruper rubricis decreralium. 
175 lleiiriqiie dc Seguria. nascido ein Susa. lecioiiou em Bolonlia e Paris, atuou na Cúiia, v im 
<li> ;i ver designado arcebispo de Ernhrun e cardeal-bispo de Ouia. Faleceu ein 1271. Sii;! 
<>hc;i I.rcruro in decr~foirr Gre~orii IX foi impressa em Parir ç Ibtrashiirgn, crn 1512. 
I70 ( ' ; toc ) t t i \ i ; t de l:lo~cr,q;t (1273-1348). Iecic>r,w~ a r , l k ~ l ~ , ~ ~ l ~ a c l'Adu$!. l k r ~ l r c su:ts c ~ l ~ r a s 
iIrs1;ii;iiii~sc N~>v<,ll<,. i i i i i c,,iiiciiihiii~ As decici;iir gie~oi~;iiiar. e ;isg/o.~,w <irdb,urio ;i ;iiiih;i\ 
;i\ ~>; i i l cv di> ( i i rprdr iirric. 
tei tantas passagens da Escritura em favor de minha posição. E agora, para 
também não falar sem cânones, vê só: 
4. A quarta razão é a seguinte: no capitulo cum ex eo, li. V. de pe. et 
re.t7l, se diz: "Pelas indulgências a satisfação penitencial é enfraquecida." 
Embora o papa diga essa palavra mais por dor do que por graça, os canoriis- 
tas a entendem como reza. Logo, se a satisfação penitencial é enfraquecida, é 
evidente que unicamente a pena canônica é remitida, já que a satisfação peni- 
tencial não é outra coisa do que a terceira parte da Penitência eclesiástica e 
sacramental. Pois a satisfação evangélica em nada diz respeito a Igreja, como 
expusemos acima. 
Se alguém me objetar que o papa não nega que também ourras penas 
perdem sua força, mas que apenas afirma e que rião fala de maneira exclusiva 
quando diz: "A satisfação penitencial perde sua força", respondo: prova, 
então, que ele também relaxa outras e que não fala de maneira exclusiva. Co- 
mo não o fazes, eu provo que ele fala de maneira exclusiva através do capitu- 
lo Cum ex eo, supracitado, onde diz que aos questores de esmolas"8 não é 
permitido propor ao povo nada além do que está contido em suas cartas. 
Ora, nada está contido em qualquer carta apostólica além de remissões da sa- 
tisfação sacramental, como diz o próprio papa: A satisfação penitencial per- 
de sua força por meio de indulgências indiscriminadas e supérfluas. Mais ain- 
da: com essa palavra o papa restringe as indulgências mais rigidamente ain- 
da, pois se só as indulgências supérfluas erifraquecem a satisfação sacramen- 
tal, então as moderadas e legiiimas não enfraquecem nem mesmo a própria 
satisfação penitencial, muito menos quaisquer outras penas. Mas essas coisas 
não pertencem a minha jurisdição ou profissão. Os canonistas que se ocupem 
disso. 
Tese 21 
Erram, porlanto, os coniissários de indulgências que afirmam que apes- 
soa é absolvida de toda pena e salva pelas indulgências do papa. 
Esta tese eu afirmo inteiramente e demonstro. 
Pois resta pelo menos a terceira pena, isto é, a evangélica, sim, também a 
quinta, a saber, morte e doença, e em muitos aquela que é a maior de todas, a 
saber, o horror da morte, tremor da consciência, fraqueza de fé, pusilanimi- 
dade do espírito. Comparar estas penas com as remitidas por indulgências é 
como comparar uma coisa com sua sombra. Contudo, também não é inten- 
ção do papa que eles fabulem tão frívola e impunemente, como fica claro a 
partir do capitulo Cum ex eo. 
i77 I>~crerole.s d . Gre~oriipapoe IX, livro V, titulo XXXVIII, capitulo 14, i": Corpusiurisco- 
rionici. v . 2. cols. 88-9. 
17H l'l;it;i-\e dor ci>i~iis~!irios de indulgêiicias. 
Se dissessem: "Também nós não dizemos que essas penas são suprimi- 
das pelas indulgências", respondo: por que, então, não instruis o povo para 
tliic este saiba que penas tu remites, mas gritas que são remitidas absoluta- 
iiicnte todas as penas que uma pessoa deve pagar perante Deus e a Igreja por 
xiis pecados? Como é que o povo vai compreender por si mesmo se falas de 
iiiodo tão obscuro e liberal? 
Tese 22 
Com efeito, ele não dispensa as almas no purgatório de uma única pena 
</ire, segundo os cânones, elas deveriam ler pago nesta vida. 
Não defendo esta tese mais extensamente do que a oitava, da qual flui 
como corolário, pois os cânones penitenciais não se estendem a outra vida. 
l'orque toda pena temporal é transformada na pena da morte; mais ainda: 
por causa da pena da morte, ela é suprimida e deve ser suprimida. Sim, ima- 
gina (para argumentar mais extensamente) que a Igreja Romana fosse tal 
qiial ainda era na época do B. Gregório, quando não estava sobre outras 
Igrejas, pelo menos não sobre a da Grécia. [Neste caso,] claro está que as pe- 
ii:is canõnicas não obrigavam os gregos, assim como hoje nào obrigam os 
ci-islãos não sujeitos ao papa, como na Turquia, Tartária e Livônia. Portan- 
1 0 . eles não têm necessidade de nenhuma dessas indulgências, e sim somente 
05 que estão colocados no orbe da Igreja Romana. Logo, se elas não obrigam 
csics vivos, muito menos os mortos, que não estão sob Igreja alguma. 
Tese 23 
Se é que se pode dar algum perdão de todas as penas a alguém, ele certa- 
~ri<,tl/r só é dado aos mais perfeitos, isto é, pouquíssimos. 
Fntendo esta tese com referência a penas de todo gênero e assim a defen- 
i l ( ~ . I'ois, como foi suficientemente dito, não há dúvida de que a remissão da 
s;iiisl'ação penitencial pode ser dada a qualquer pessoa. Ou melhor: corrijo 
rsi:i tese e digo que a remissão de todas as penas não pode ser dada absoluta- 
iiiciiic a ninguém, seja aos mais perfeitos, seja aos imperfeitos. E provo: pois 
iiiesiiio que Deus não imponha aos mais perfeitos os flagelos ou a quarta es- 
[iicic de penas, pelo menos não a todos e sempre, permanece, não obstante, a 
iriccirn, a saber, a evangélica, sim, também a quarta, isto é, a morte e as pe- 
ii:is yiic estão relacionadas com a morte. Pois mesmo que Deus pudesse tor- 
i i ; i i i i~dos perfeitos na graça, talvez sem penas, ele não decidiu fazê-lo; deci- 
i l i i i . isto siiri. ioriiar todos conformes B imagem de seu Filho, isto é, á cruzl7q. 
I 
Mas que necessidade há de tantas palavras? Por mais magnificamente que se 
exalte a remissão das penas, o que, pergunto eu, se consegue junto àquela 
pessoa que tem ante os olhos a morte, bem como o temor da morte e do juí- 
zo? Se se prega a esta pessoa toda outra remissão, porém não se concede que 
estas sejam remitidas, não sei se se traz qualquer consolo. Portanto, atende 
ao horror da morte e do inferno e, querendo ou não, absolutamente não te 
preocuparás com remissões de penas. Assim, as indulgências serão vilificadas 
não por nosso esforço, mas por uma necessidade objetiva, já que não supri- 
mem o temor da morte. 
Tese 24 
Por isso, a maior parte do povo está sendo necessariamente ludibriada 
poressa magnífica e indistinta promessa de absolvição da pena. 
Também esta tese eu afirmo e sei que assim acontece. Pois eu mesmo ou- 
vi muitas pessoas dizerem que não entenderam de outra maneira senão que, 
através das indulgências, saem voandol80 sem qualquer pena. Não é de admi- 
rar, pois aqueles escrevem, lêem, proclamam que sairá voando imediatamen- 
te quem adquirir indulgências e morrer antes de cair de novo em pecado. Eles 
dizem tudo isso como se não existissem senão pecados atuais, e como se o 
fomes'z' remanescente não fosse nenhuma impureza, nenhum impedimento, 
nenhum meio que retardasse o ingresso no reino. Pois, a menos que ele seja 
curado, é impossível entrar no céu, mesmo que não haja pecado atual. E que 
nada inquinado entrarál82. Em conseqüência, o próprio horror da morte, por 
ser um vicio do fomes e um pecado, mesmo por si só impede a en!rada no rei- 
no. Porque quem não morre de bom grado não obedece ao chamado de Deus 
senão contra a vontade, e, nisto, não faz a vontade de Deus na exata medida 
em que morre contra a vontade, e peca na exata medida em que não obedece 
a vontade de Deus. Por isso é rarissimo quem, depois de todas as indulgên- 
cias, não peque ainda na morte, exceto os que desejam ser livrados e chamam 
a morte. Assim sendo, para não discordar deles inteiramente, digo que quem 
estiver perfeitamente contrito, isto é, odiar a si mesmo e sua vida e amar su- 
mamente a morte, sairá voando imediatamente, tendo sido remitidas suas pe- 
nas. Mas trata de ver quantos serão esses. 
IR0 Sc. para o céu. 
I81 I'ornc.$é sinonimo de concupiscentia. Também em português existe o termo antiquado "fo- 
r ~ i c ~ " , ci i rn o sentido de "concupiscência", entre outras. 
I82 ('i. A p 21.27. 
Tese 25 
O mesmo poder que opapa rem sobre o purgatório de rnodo geral, qual- 
qrrrr bispo e cura têm em sua diocese e paróquia em parlicular.. 
Esta é a blasfêmia que me tornou digno de mil mortes, a saber, confor- 
iiic o juizo dos questores, para não dizer usurários. Mas antes de demonstrar 
chta tese quero falar sobre meu propósito. Em primeiro lugar, digo mais uma 
v c ~ que aqui não debato no que diz respeito a opini2o que viso através desias 
i~nlavras (pois esta afirmo com constância, porque toda a Igreja a sustenta), 
iiins no que diz respeito as palavras. Depois, também peço aos meus adversá- 
fios que suportem minha dor, pela qual sou supliciado ao ouvir que na Igreja 
<Ic C:i.isto são pregadas coisas que nunca foram escritas e estatuidas. Pois le- 
iiii~s que outrora pareceu aos santos pais perigosíssimo que seja ensinada 
i~iitilquer coisa além da prescrição celeste, como diz HiláriolR). E o santo 
I'speridiãol84, bispo de Chipre, era um observador tão rígido dessa disciplina, 
iliie interrompeu a fala de alguém que tão-somente usara uma palavra grega 
cqiiivocadamente, dizendo "toma a tua cama e vai" ao invés de "toma o teu 
i,;iire ou leito e vai", repreendendo-o numa coisa que ein nada mudara o sen- 
i ido. Creio que eles me devem justissimamente vênia por essa minha dor, vis- 
i i ~ que somos obrigados, sem jamais termos sido solicitados ou advertidos, a 
iolcrar suas presunçoes, sendo que Ihes apraz pregar as coisas que nos cru- 
c.i;iiii quando as ouvimos. 
Não digo ou faço isso porque seja impudentemente arrogante ao ponto 
ilc crer que eu deva ser contado entre os doutos da santa Igreja, muito menos 
iiiiie aqueles a quem compete estatuir ou rejeitar essas coisas. Oxalá eu mere- 
ccssc algum dia tornar-me o último membro da Igreja! Antes, sustento o se- 
p,iiiiite: embora na Igreja haja homens doutissimos e igualmente santissimos, 
i:iI C ;i infelicidade de nossa época, que mesmo tão grandes homens não po- 
dciii socorrer a Igreja. Pois o que a erudição e o zelo piedoso conseguem hoje 
<.i11 dia foi suficientemente provado pelo infeliz fim dos doutissimos e santis- 
,.iiiii>s homens que, sob Júlio Ilin*, esforçaram-se por reformar a Igreja atra- 
~3i.s dc um concilio instituído para esta necessidade. Existem, aqui e ali, tam- 
I i t i i i oiitros ótimos e eruditos pontifices que conheço, porém o exemplo de 
piiiicos iiripõe o silêncio a muitos. Pois o tempo é péssimo (como diz o profe- 
I;! AiiiOslX"); por isso, o prudente guardará silêncio naquele tempo. Por fim, 
I H 1 I'i;ii;i*c d<i h i~pa Hilário de Aiies (401-448). 
I H , I 1 i i içici l ,>iri<iii o ercmplo da Hi.~rorin iriporlrro, I,10. 
I H I 1.11lcr0 L( pzircial ncssa passagem e ornite <i escandaloso pano de londo polltico-cçlcsih\tico 
\ i i I i ii i i i i ; i l *e <Içvenri,l<iii a comédiado 11 Cocicilii> dc Pisii, erii i51 1 , tido por ci>ncili,, i eh i - 
i i i i \ i ; i . Ni rmtliilade, cssc conciliei foi um lcvaiite de a l g u n ~ caidciiis francc.;es c espniilii>i\, 
; i l><t i ; i<l i>v ~prizl t;r:irii.a e por Maniriiiliaiio I . ci>rilra .lúlio 11 (1503-1511). O C,iiiriiio dc I'i\;i 
ilrii ;iii ~>:ip:i c ;i s i i i *iiccsi<ir Icãu X ;! <ipiiitiiiiid;i<le de eiiceiiai ~piic;i ;i cri\i;iii<l;iile r>ci<lrri 
i i i l , t i l i . 1517. i i iri ci>ricilici ciii Hoiii:i, <i V <'<iiirilii> dc 1-atrzii. I , \ \c ciiiicilici ci>ii+i>liili>ii ; i ; i i t ~ 
~ < > l i t l i ~ d ~ ~ p i q ) i t l 
I H i , ( ' I . Aiii 5.11. 
temos hoje um ótimo pontifice, Leão X, cuja integridade e erudição são uma 
delícia para todos os bons ouvidos'8'. Mas o que pode esse homem amabilíssi- 
mo fazer sozinho em meio a tanta confusão das coisas? Ele certamente mere- 
ceria ser pontífice em tempos melhores ou que houvesse tempos melhores em 
seu pontificado. Em nosso tempo não merecemos ter por pontifice senão gen- 
te como Júlio 11, Nexandre VI'se ou outros atrozes Mezêncios'89 inventados 
pelos poetas. Pois dos bons hoje em dia até a própria Roma se ri, sim, Roma 
mais do que todas. Pois em que parte do orbe cristão zombam mais livremen- 
te até dos sumos pontífices do que naquela verdadeira Babilônia que é Ro- 
ma? Mas chega disto. Visto que, além de inúmeras pessoas particulares, a 
Igreja tem pessoas doutissimas também em suas cátedras, se quisesse ser con- 
siderado prudente, a exemplo delas, também eii me calãria. Mas é preferível 
que a verdade seja dita mesmo por estultos, por crianqas, por ébrios, do que 
qiie ela seja totalmente silenciada, para que a confiança dos mais doutos e 
dos sábios fique mais animosa ao ouvirem a nós, povo rude, finalmente cla- 
mar por causa da excessiva indignidade da coisa, assim como diz Cristo: "Se 
eles se calarem, as pedras clamarão." [Lc 19.40.1 
Assim, tendo feito estas considerações preliminares, passo a tese, da 
qual [tratarei] primeiramente segundo o sentido, depois segundo as palavras 
ou a ooinião de outros. Portanto. nesta tese nada falo a resoeito do ooder da 
jurisdição, que nego logo abaixo, na tese seguinte, e que também neguei aci- 
ma, nas teses 22 e 8. Pois eles tomaram esse poder dessas palavras. A respeito 
dele digo o que disse: que a Igreja decida [primeiro] a outra parte dessa ques- 
tão, e seguirei com o maior prazer. Enquanto isto, que parem os temerários 
afirmadores de seus [próprios] sonhos. Eu duvido e debato que tenham um 
poder de jurisdição sobre o purgatório. E tanto quanto leio e vejo até agora, 
sustento a [opinião] negativa, estando pronto a sustentar a afirmativa depois 
que a Igreja assim tiver decidido. Nesse interim, falo aqui do poder das for- 
ças, não dos direitos, do poder de operar, não de imperar, de modo que o 
sentido é este: o papa não tem, é verdade, qualquer poder sobre o purgatório, 
assim como nenhum outro bispo; mas se ele tem algum poder, certamente 
tem um poder de tal natureza, que também os inferiores dele participam. 
Ora, este é o poder pelo qual o papa e qualquer cristão podem interceder, 
orar, jejuar, etc. pelas almas falecidas - o papa de modo geral, o bispo de 
IR7 Lutero ainda manteve par muito tempo esse juizo a respeito de LeBa X. Não via os males 
da Igreja napessoa do papa, mas nas pessoas que o cercavam. Caractcrlstica para essa vi- 
são de Lutero é a carta que escreveu a Leão em novembro de 1520. 
I X H Alexandre VI, alias, Rodrign Borja (1492-1503). foi elevado .3 dignidade cardinalicia e sa- 
grado bispo de Vaiência aos 26 anos. Aos 30 anos passou a viver maritalmente com Vanor- 
,a <:atanci, com quem teve quatro filhos. Durante os anos de seu pontificado procurou be- 
iieficiar sua familia, especialmente sei1 filho Cesare, um dos maiores criminosos da história. 
('cvarc foi feito cardeal em 1493, João, Jofré e Lucreda receberam por esposos pessoas da 
iii>lirc/;i ciiri7ptia. Teve seu pontificado perpassada por inúmeras guerras. que tiveram a fi- 
ii;ilid;iilc de anipliar a\ pi>sies de sua famllia. 
I H L l 1'1'. Viiyi l io (Irr<>id,t Vl1.64H; V11,7.483). Mczêiicio é o adversário do herói de Virgilio; é o 
,Icilllc/illllll ,i,,\ ill.,l*~\. 
iitodo particular, o cristão de modo individual. Por conseguinte, é evidente 
que a tese é verissima. Pois assim como o papa intercede pelas almas junto 
com toda a Igreja (o que acontece no dia de todas as almas), da mesma forma 
qualquer bispo pode fazê-lo com sua diocese (como acontece nos dias chama- 
dos comuns), o cura em sua paróquia (como acontece nas exéquias e aniver- 
sários) e qualquer cristão em sua devoção. Portanto, ou se nega que a oraqão 
pelos mortos é uma intercessão, ou se concede que qualquer prelado pode, 
com os que lhe estão sujeitos, orar pelas almas. Creio, pois, que isso não é 
tão dúbio quanto são audazes aquelas conversas acerca da jurisdição da Igre- 
ja sobre o purgatório. 
Tese 26 
Opapa faz muito bem ao dar remissão as almas não pelo poder das cha- 
ves (que ele não tem'%), mas por meio de intercessão. 
Não creio que seja necessário declarar mais uma vez o que debato ou o 
que afirmo. Todavia, como em nosso tempo os inquisidores da depravação 
herética são tão zelosos que procuram obrigar com violência os católicos 
mais cristãos a se tornarem hereges, será oportuno dar uma explicação sobre 
cada sílaba. Pois não me é fácil ver que outra coisa fizeram João Pico de 
Mirândolalgl, Laurêncio Vallalgz, Pedro de Ravenal93, João Vesálial94 e, ulti- 
tiiamente, por estes dias, João Reuchlin e Jacó de Etaples'95 - que, contra a 
1W Sc. para este fim. 
191 1463-1494, filósofa, procurou, a partir de estudos feitos em Platão. ajustar o sistema deste 
com o de Aristóteles, privilegiado pelos escolásticos. Com isso, pretendeu colocar a fiioso- 
fia antiga a serviso da fé crista. Aos 23 anos, em 1486, pretendeu realizar, em Roma, um 
grande debate, para o qual preparou 900 teses. Inocência VI11 declarou heréticas diversas 
de suar. sentenfas. Pico de Mirândola submeteu-se ao papa, escapando. assim, de canse- 
qllências piores. 
192 1407-1457. humanista e tradutor de claásicos da Antiguidade. atacou a filosofia escoiástica 
e o clero. N é m disso, voltou-se contra o monacato e contra a doutrina medieval de que a 
vida monástica merecia dignidade especial. Seu ataque mais famoso está contido no escrito 
contra a "doação de Constantino", no qual demonstra a falsidade dos documentos surgi- 
dos na Idade Média e exige o fim do Estado pontificio. 
IcJ3 1448-1518, jurista, lecionou em universidades italianas e, posteriormente, em 
Cireifswald/Pomerânia. Em 1503 leciona em Witlenberg. Desde 1506 está em Colônia, on- 
de se envolve com a inquisi~ão por criticar o costume alemâo de deixar os cadáveres dos en- 
forcados pendurados nos patibulos. Faleceu em Mogúncia. 
l'J4 João Vesália, aliás, João Ruchrath (+ 1481), natural de Obeiwesel (Vesália), estudou Teo- 
logia em Erfurt. Posteriormente foi pregador em Mogúncia e Worms. Numa Disputotio od- 
verslis. indulgentios atacou a doutrina das indulgências; em outro debate atacou a autorida- 
ile papal. Levado aos tribunais da inquisifão, abjurou. mas foi mantido na masmorra até a 
SIIU morte. 
5 Jncb de Etaples. aliás. Jacques Fabre, nascido por volta de 1450 em Etaples (Stapulensis), 
iehlogo e humanista. foi muito atacada pelos te6logos escalásticos de Paris e Lovaicia. 
Aprmiado por E T B S ~ O em virtiidc de seiis trabalhos exegélicos, morreu em Navarra, em 
1516, oiide sc refugiara. 
sua vontade e tendo uma boa opinião, foram obrigados a ter uma má opinião 
- senão que talvez tenham deixado de dar uma explicação sobre cada silada 
(como disse). Tamanha é, hoje em dia, a tirania de crianças e efeminados na 
Igreja. Assim pois, declaro mais uma vez que farei duas coisas nesta tese: pri- 
meiramente, debater a respeito do poder das chaves sobre o purgatório e pro- 
var a [opinião] negativa, até que alguém outro prove melhor a afirmativa; em 
segundo lugar, inquirir aquele modo da intercessão. 
Provo o primeiro ponto da seguinte maneira: 
1. Em primeiro lugar, através daquele difundido argumento do Ostiense, 
a saber: se as chaves se estendessem até o purgatório, poderiam esvaziá-lo, e 
o papa seria cruel por não fazê-lo. 
Eles refutam este argumento da seguinte forma: o papa pode, mas não 
deve esvaziá-lo, a menos que haja uma causa justa e razoável, para não agir 
inconsideradamente contra a justiça divina. Creio que eles dificilmente apre- 
sentariam esta solução fria e negligente a menos que não advertissem no que 
falam ou julgassem que falam entre bezerros marinhos profundamente ador- 
mecidos. Assim acontece que de um absurdo se seguem vários. E é como diz 
o ditado: para parecer verdade, uma mentira precisa de sete outras. 
Assim sendo, o argumento dificilmente poderia ser reforçado com mais 
vigor do que através de tal refutação. Pois perguntamos: qual será enfim o 
nome dessa causa razoável? Ora, consta que se dão indulgências por causa de 
uma guerra contra os descrentes, de uma construção sacra ou de alguma ou- 
tra necessidade comum desta vida. No entanto, nenhuma dessas razões é tão 
importante, que o amor não seja incomparavelmente mais importante, mais 
justo e mais razoável. Se, pois, a justiça divina não é ofendida caso - para 
proteger os corpos dos fiéis e seus bens, ou por causa de construções inanima- 
das, ou por causa de um brevissimo uso desta vida corruptível - se remitem 
tantos quantos quiser (mesmo que se incluam todos neste número, de modo 
que, assim, o purgatório também seja esvaziado), quanto mais ela não é 
ofendida se, por causa do santo amor, são redimidos todos. A menos que, 
por acaso, a justiça divina seja tão iníqua, ou talvez melancólica, que seja 
mais favorável ao amor demonstrado para com o corpo e o dinheiro dos vi- 
ventes do que ao amor demonstrado para com as almas tão carentes, princi- 
palmente tendo em vista que socorrer as almas é uma coisa tão importante, 
que os fiéis devem preferir servir aos turcos e ser mortos corporalmente a que 
as almas não sejam redimidas. Se, pois, [o papa] redime um número infinito [de 
almas] e, talvez, por isso mesmo, todas, por causa daquilo que é menor, por 
que não também por causa daquilo que é o máximo, isto é, por causa do 
amor? Aqui, porém, quero aconselhar a eles, já que se meteram num aperto, 
que digam que não pode haver nenhuma causa razoável, para assim escapa- 
rem com segurança dessa objeção. Assim, se o papa pudesse no que diz res- 
peito a ele]%, contudo não pode no que diz respeito a causa, pois não pode 
haver tal causa. 
1<J6 Ihto é. iio que diz respcilo a sua pcssaa 
2. O próprio estilo do papa, ao referir-se as penitências impostas, prova 
:i iiicsina coisa. E manifesto, entretanto, que ele dá tanto quanto expressa e 
i10 iriodo como expressa; assim como um bispo relaxa 40 dias das penitências 
iiiil>ostas, um cardeal 100 dias, da mesma forma o papa relaxa plenamente 
iodos os dias das mesmas penitências impostas. Todavia, nenhuma chave im- 
~iiis penas do purgatório. Aqui, contudo, um belo sonhador'q' fabula o se- 
giiinte: quando o papa diz: "Damos indulgências de todos os pecados no qiie 
<liL respeito a penitência imposta", isto deve ser entendido em relação a pena 
iiiiposta pelo sacerdote. Mas quando ele diz: "Damos indulgências de todos 
os pecados em relação aos quais houve contrição e confissão", então não são 
iciiiitidos os pecados esquecidos o11 ignorados. Quando, porém, diz: "Da- 
iiiils remissão de todos os pecados", então a alma sairia voando se a pessoa 
iiic~rresse. E assim está nas mãos do papa salvar quem ele quer. Que loucura! 
Vi? só com que segurança esse fanfarrão faz afirmações, como se anunciasse 
i i i i i oráculo. Se eu Lhe dissesse: eu te suplico, de onde provarei isso, se me 
iiioiidarem prestar contas dessa fé?, talvez ele invente outras, novas mentiras 
11;ir;i firmar as primeiras grandes mentiras com mentiras maiores ainda. Infe- 
li/.cs dos cristãos, que são obrigados a ouvir todas as nugacidades que esses 
chtiipidos houveram por bem emitir, como se não tivéssemos a própria Escri- 
iiira que Cristo nos ordenou ensinar ao povo, para lhe darmos uma medida 
iIc trigo e não uma mistura de bardanas e tribulos. Entre outros portentos in- 
vciitados por esse amabilissimo autor, está também o de ousar persuadir-nos 
(11. qiie esteja nas mãos do papa remitir ou não remitir os pecados ignorados 
< r 1 1 esquecidos, como se toda a Igreja não soubesse que, após todo perdão da- 
i10 11clo papa, resta a todos os fiéis dizer: "Quem discerne as [próprias] faltas? 
i'iirifica-me das que são ocultas, Senhor" [SI 19.121, e que, com 50198, deve- 
iiios temer também em relação a nossas boas obras, para que iião se revelem 
roino horrendos pecados junto a Deus. Ora, a chave da Igreja não sabe nem 
iiilga sc as boas obras são más perante Deus ou não, e muito menos as remite. 
I:iii segundo lugar, o sonho dele procede da laboriosa e inútil arte de se con- 
lis\;ir - sim, de levar as almas ao desespero e á perdição - pela qual até 
;ig<ii;i lomos ensinados a contar a areia, isto é, a examinar, juntar e ponderar 
0 s l~ccados um a um para chegar a contrição. Ao fazermos isso, acontece 
i~iic, através da lembrança de coisas passadas, reavivamos as concupiscências 
c t i i i~dios e que, enquanto fazemos contrição pelos pecados, pecamos de no- 
vi , . Oii, se ocorre uma ótima contrição, por cesto ela é apenas violenta, triste 
I. iiii.i:iiiiciitc facticia, simulada tão-somente por medo das penas. E que as- 
,.iiii sciiii«s ensinados a fazer contrição pelos pecados, isto é, a tentar o impos- 
; i v i l oii o pior. Pois a verdadeira contrição deve partir da benignidade e dos 
I~ciiclicii~s de Deus, sobretudo das feridas de Cristo, para que a pessoa chegue 
111 iiiiriraiiierite [ao reconhecimento de] sua ingratidão a partir da contempla- 
ção da bondade de Deus e, a partir dela, ao ódio de si mesma e ao amor da 
benignidade de Deus. Então correrão lágrimas, e ela odiará a si mesma de co- 
ração, porém sem desespero. Então odiará o pecado, não por causa da pena, 
inas por causa da conteniplação da bondade de Deus. Tendo-a considerado, 
ela será preservada para que não desespere e para que odeie a si mesma ar- 
dentemente, mas com alegria. Quando assim houver verdadeira contrição 
por causa de um único pecado, haverá, ao mesmo tempo, verdadeira contri- 
cão por todos. Assiin diz Rm 2.4: "Ignoras que é a benignidade de Deus que 
te leva ao arrependiinento?" Oh! quantos o ignoram, santo Paulo, até os 
mestres de outros! Assim lemos em Numeros l~que os filhos de Israel nXo fo- 
ram libertos de siias serpentes abrasadoras contemplando-as e tendo horror 
delas, mas, antes, desviando o olhar delas e voltando-o para a serpente de 
bronze, isto é, Cristo. Da mesma forina, eles se aterrorizaram ao verem os 
egípcios, porém foram salvos quando lhes deram as costas e passaram pelo 
inarZM. Dcssc inodo, nossos pecados devem ser tratados mais no Cristo ferido 
do que em nossa consciêricia. Pois lá eles estão mortos; aqui, vivem. De outra 
maneira, se a tortura deles deve ser mantida, aconteceria que, se alguém fosse 
siibitaniente arrebatado pela morte, não poderia ser salvo, porque não tem 
tempo para coligir os pecados. Mas eles têm o que dizer neste caso. 
Por isso se potlc dizcr acerca da invencionice daquele criador de ficções: 
em toda rcmissão do sumo pontifice, especialmente naquela que acontece pu- 
blicamente e perante a Igreja (como ocorre no caso das indulgências), deve 
ser subenteiidida essa cláusula a respeito das penitências impostas, sejam os 
pecados esquecidos, sejam ignorados. Pois estes não pertencem ao foro da 
Igreja. 
Parece-me, no entanto, que esse mar de conversas surgiu de uma certa 
incúria no exame da origem das indulgências. Pois na época em que vigiam os 
cânones penitenciais. era uma grande coisa relaxar quatro dias; depois, co- 
meçaram a dar 100 dias, depois 1.000, por fim muitos milhares de dias e 
anos, até centenas e milhares de anos. Assim, paulatinamente, a liberalidade 
das indulgências se tornou cada vez maior. Depois disso se começou a remitir 
a sétima parte de todos os pecados, depois a terça parte, ultimamente a meta- 
de, e assim se chegoii a remissão plenária de todos os pecados, como ainda se 
pode ver muito bem nas estações da cidade de Roma. Se a penitência imposta 
é entendida com referência aos primeiros graus, ela certamente deve ser en- 
tendida também com referência a remissão plenária. 
3 . [Prova-o] mais uma vez o estilo do papa, que diz: "Por meio de inter- 
cessão." Com efeito, é necessário que o meio da intercessão seja diferente do 
meio do poder. Se crermos no próprio papa (como, aliás, devemos) mais do 
que neles e em nós, fica claro que, em.relação ao purgatório, não é nenhum 
poder, mas a intercessão que é eficaz. E-me mais seguro concordar com o pa- 
1x1 <I« qiic com aqueles. O papa não se arroga o poder, mas reivindica a inter- 
ccssão para si. Admira-me muito com que ousadia eles se atrevem a pregar, 
coiitra a expressa proibição do capitulo Cum ex eo, mais do que está contido 
rios escritos do papa, já que ai só está contido o meio da intercessão. Se en- 
iciidem assim que ele não tem poder de jurisdição sobre o purgatório, inas 
icrn o poder das chaves para aplicar intercessões ao purgatório, neste caso di- 
go também eu que ninguém nega isso: o poder de aplicar seja intercessões, se- 
,j:i satisfações, seja louvores a Deus está absolutamente nas mãos do sumo 
d pontífice. No entanto, vou dizer na segunda parte desta tese se esse poder 
~pcrtence de tal modo ao papa que não pertença também aos outros pontifi- 
ccs, como é dito na tese anterior, ou o que eu ainda não compreendo nesse 
iiiodo de aplicar. Neste meio-tempo, prossigamos coni a primeira parte. 
4. Em quarto lugar, o mais forte de todos os argumentos é que Cristo 
diz, não com palavras ambiguas, mas com palavras claras, manifestas, rotun- 
das: "Tudo o que ligares na terra será ligado também nos céus; e o que desli- 
gares na terra será desligado também nos céus." [Mt 16.19.1 Não é em vão 
que ele acrescentou "na terra". Do contrário, se não tivesse querido restrin- 
gir o poder das chaves, teria sido suficiente dizer: "Tudo o que desligares será 
desligado." Portanto, ou Cristo, feito um tagarela, usa palavras supérfluas, 
oii o poder das chaves existe unicamente na terra. Mas aqui, ó bom Deus, 
qiião patente é a superstição de certas pessoas que, sem o conhecimento e a 
voritade do papa, querem, nestas palavras, dar-lhe um poder, enquanto que 
cle se apropria apenas da intercessão. E ao perceberem que essas palavras de 
(:risto lhes opõem forte resistência e refutam seu erro, elas não deixaram de 
defender o erro e não acomodaram sua compreensão as palavras incorruptas 
cle Cristo. Pelo contrário: acomodam as palavras dele a sua interpretação 
corrupta e as distorcem, dizendo: Aquela expressão "na terra" pode ser en- 
iciidida de duas maneiras: de uma maneira, dizendo respeito a quem desliga; 
clc outra maneira, dizendo respeito aquilo quedeve ser desligado. Na primei- 
r;i riiaueira deve-se entender Cristo, a saber: "Tudo o que Pedro tiver desliga- 
do enquanto estava na terra, terá sido desligado também nos céus." Talvez 
elas queiram [dizer] que se ele também desligasse o diabo (desde que esteja na 
icrra na qualidade de quem desliga), este seria desligado no céu. Pois quem 
diz: "Tudo o que"mi e nada acrescenta para restringir [isso], certamente indica 
iluc tiido pode ser desligado. Não sei com que palavras invectivar essa gros- 
scira c imbecil superstição, sim, temeridade. Esse autor mereceria a cólera e a 
cloqiiência de um Jerônimo, para que fosse punida tão audaz violência e cor- 
i i ip~ão das santas palavras de Cristo. Estou deixando de lado a gramática 
qiic, incsmo sozinha, poderia ensinar-lhes que essa sua compreensão não po- 
de sirbsistir com essas palavras [de Cristo] (mas eles seguem mais as novas dia- 
ICiices do que a verdadeira gramática). Parece que a sabedoria dessas pessoas 
clicya ao ponto de saber que Cristo teria como que temido que algum dia 
Iioiivcssc iiin Pedro ou papa que, mesmo morto, quereria ligar e desligar, e 
qiic, por csla razão, lhe foi necessário prevenir tão insigne ambição e tirania 
de pontifices mortos, proibindo-os de ligar ou desligar exceto enquanto esti- 
vessem vivos e na terra. E (para ridicularizar dignamente tão dignos intérpre- 
tes da Escritura) talvez não tenha sido sem razão que Cristo temeu que, al- 
gum dia, acontecesse que um pontifice morto ligasse alguma coisa e que seu 
sucessor vivo desligasse essa mesma coisa. Então haveria uma grande confu- 
são no céu, e Cristo, ansioso, não saberia qual desses dois ofícios confirmar, 
pois temerariamente teria confiado a ambos o mesmo ofício, sem acrescentar 
"na terra" para conter o pontifice morto. Se não é assim que eles compreen- 
dem, por que se agitam? Por que se esforçam por demonstrar que "na terra" 
diz respeito a quem desliga? Eis ai um opúsculo verdadeiramente áureo, de 
um áureo mestrem2, digno de áureas letras e, para que tudo seja áureo, a ser 
transmitido a áureos discipulos, a saber, aqueles a cujo respeito é dito: "Os 
ídolos das nações são ouro e prata; têm olhos e não vêem", etc. [Sl 135.15s.I 
Esses caminham em linha reta contra Cristo. Pois Cristo acrescentou "na ter- 
ra" para que o pontifice, que não pode estar senão na terra, não tenha a pre- 
sunção de ligar ou desligar o que não está na terra. É como se Cristo delibera- 
damente se antecipasse e se opusesse aos repugnantes aduladores de nosso 
tempo, que começam a entregar o reino dos mortos ao pontifice contra a 
vontade deste e a despeito de sua recusa. Por causa de seu fervor, S. Jerôni- 
mo chamaria essa gente de "teólogos", isto é, faladores de Deus203, mas da- 
quele deus que, em Virgilioz", inspira uma grande loucura a seus vates. Mes- 
mo assim, procedamos contra eles. 
1. Se por essa compreensão as chaves desligam os mortos, então elas 
também ligam, porque em ambos os casos é acrescentado "na terra", quan- 
do ele diz: "Tudo o que ligares na terra." Portanto, também aqui precisamos 
distinguir com a mesma diligência e agudeza, entendendo "na terra" de duas 
maneiras: de uma maneira que diz respeito a quem liga, de outra que diz res- 
peito ao que deve ser ligado. Assim, eles têm de nos concluir que o pontífice 
pode ligar debaixo da terra no purgatório, só que temos de cuidar (certamen- 
te com a ajuda de médicos) para que o faça em vida e enquanto estiver na ter- 
ra, pois, uma vez morto, não pode ligar. Se a primeira parte das palavras de 
Cristo não admite essa distorção e violenta zombaria, como eles mesmos, por 
mais sem juizo que sejam, afirmam, com que cara se atrevem a fazer essa vio- 
lência á segunda parte, visto que é em tudo construida segundo o mesmo es- 
quema? A menos, talvez, que, a sua maneira, Ihes fosse permitido falar tudo 
univocamente e equivocamente, cometer anfibologias e paralogismos, como e 
onde Ihes aprouvesse. Por conseguinte, eles podem dizer que, na primeira par- 
te, "na terra" diz respeito ao que deveser ligado, mas, nasegunda, aquemdes- 
liga, já que, segundo seu louvável costume, também arrastaram monstruosida- 
202 Trata-se de Henrique de Segusio, o Ostiense (v. p. 114, nola 175). 
203 Deum loquen~es, no original. 
204 As palavras mognum vofibur inspiro1 furorem (inspira uma grande loucura a seus vares) 
provavelmente são imitacão de Eneido (Vl,llss.), na qual é dito do herói que procura a si- 
hila de Curnae: 
»i<in'rtt,in rui i>zrnrrm ior~imtrrnque 
Il<,lirr,s i,i.spirur vol<:r uppril<lt'<- / U I I I ~ U . 
125 
des ainda maiores para dentro das Sagradas Escrituras. 
Por isso, como todos negam que as chaves podem ligar no purgatório, é 
necessário negar que elas podem desligar, pois esses dois poderes são iguais e 
dados por Cristo a sua Igreja deigual maneira. Dessa opinião são alguns juris- 
tas que não são dos piores; se são mais sensatos do queos demais, eles que o ve- 
jam. 
2. Essa opinião também é refutada a partir de soa própria antítese. Pois 
assim como "nos céus" em todo caso se refere ao que deve ser desligado nos 
céus, da mesma forma é necessário que "na terra" se refira ao que deve ser 
desligado na terra. E, inversamente, "nos céus" se refere ao queé ligado, ra- 
zão pela qual também "na terra" deve referir-se ao que é ligado. Dai é que 
Cristo, como que deliberadamente, não disse: "Eu desligarei nos céus", mas: 
"Será desligado nos céus", para que, se alguérri, através da prirrieira palavra 
- a saber, "tudo o que desligares na terra" -, buscasse a fraude de uma fal- 
sa compreensão, fosse retundido no que se segue e não lhe fosse permitido 
aplicá-la ao que deve ser desiigado2o', pois o que é desligado nos céus certa- 
mente precisa ser compreendido como desligado na terra, rião em referência a 
quem desliga, e o que é ligado nos céus precisa ser compreendido não com re- 
ferência a quem liga, mas ao que é ligado na terra, ou, pelo menos, em rela- 
ção a ambos. 
3. Se a chave se estende ao purgatório, por que se esforçam eles em vão? 
Por que não suprimem a palavra "intercessão"? Por que não persuadem o 
pontifice a dizer que desliga e liga por meio do poder e da autoridade e não 
por meio da intercessão? Com efeito, tudo o que ele desligar (ele apenas tem 
que tomar cuidado para não estar morto) será desligado. Por que nos impor- 
luna com a palavra "sufrágio"z", sob a qual ninguém entende um poder, 
mas todos entendem uma intercessão'? Sim, deveríamos fazer mais e pedir ao 
papa que faça o purgatório desaparecer completamente. Pois se as chaves da 
Igreja, ainda que apenas no que diz respeito ao desligar, se estendem até lá, 
todo o purgatório está em suas mãos. Provo isto da seguinte maneira: que ele 
dê remissão plenária a todos os que nelezo7 estão. Em segundo lugar, que dê, 
sciiielhantemente, a mesma remissão a todos os cristãos moribundos. Então 
será certo que ninguém permanecerá nele, que ninguém entrará nele, mas que 
iodos sairão voando e o purgatório deixará de existir. Mas ele deve fad-10, e 
Lpiira tal] existe uma causa justissima, a saber, o amor, que deve ser buscado 
1ji1i- tudo, sobre tudo e em tudo. Não se deve temer que a justiça divina seja 
ofeiidida pelo amor, para o qual, antes, ela mesma nos urge. Quando isso ti- 
ver sido feito, abandonaremos todo o oficio dos mortos, hoje em dia muito 
iiiolcsio c iicgligenciado, e o transformaremos em ofícios festivos. 
4. t1iii quarto e último lugar: se a pena do purgat6rio é castigadora e afli- 
iiva, coiiio dissemos acima na tese 5, então é certo que ela não pode ser desli- 
i .,I,/ a ~ i v i ~ r i r l i i , , ~ , rio <iiigiiial. I'arece-rios quc se trata de iiiri lapso. Pela ibgica da argiioicrita- 
v;h! de I irlei<,, devcri;i cuil$t;ji ; i q i > i o~l.wlv<.nl<~,ri, "a qiiein desliga" (nota do ~ r a < l a l i , r ) . 
2iUi ,S~,j/;.~tx;!!,r~, c>~!gin:hI, l'rn )pcbv~~tg<!C\, ' ' \ t t I' r i g i < ~ ' ' ta<nl>C~n tcrn <ignil'ica$ilc) de o ~ ; i c f i < > 
I,CI<,\ ,,L<,,,<,\. 
?I11 Sa.. r i t i ~ i i i i ~ ; i l i i i i < i . 
gada pelo poder das chaves. Ora, creio que a partir da divisão suficientezoa fi- 
ca muito claro que ela não é outra. 
Assim pois, está clara a primeira parte desta tese; com isso, está firmada 
com suficiente probabilidade toda a tese de que não é a jurisdição, mas a in- 
tercessão que entra rio purgatório. 
Quanto ao segundo ponto, a saber, quanto ao modo da intercessão: em- 
bora eu não tenha proposto fazer uma investigação e, para minhas posições, 
não seja necessário saber qual ou de que natureza é esse modo, vou me expli- 
car voluntariamente neste assunto (que eu poderia, com justiça, omitir), para 
não parecer que esteja me escondendo em algum canto. [Faço-o, contudo,] 
sempre sob a ressalva de minha declaração de que não cabe a mim determinar 
qual seja esse modo, mas ao pontífice, sim, talvez a um concílio eclesiástico. 
O que me compete é inquirir e debater e, através de argumentos aduzidos, in- 
dicar o que compreendo e o que ainda não compreendo. 
Portanto, a intercessão é aplicada as almas de duas maneiras: em primei- 
ro lugar, pelo próprio ato e através do oficio presente, como acontece quan- 
do o sacerdote ora coni o povo, jejua, sacrifica e faz outras obras nomeadas 
para almas nomeadas. Quanto a este sufrágio, não há qualquer dúvida de 
que ele muito aproveita e redime as almas segundo agradar a Deus e elas me- 
recerem, como diz o B. Agostinho. A respeito disto eu disse acima, na tese 
anterior, que o bispo tem em especial o poder que o papa tem em geral, a sa- 
ber, nao de jurisdição, mas de fazer intercessão em relação ao purgatório. 
Como é sabido, não é a respeito deste modo que se pergunta aqui. 
Em segundo lugar, ela é aplicada sem oficio ou obra, sendo pronunciada 
por simples jurisdição, por escrito ou oralmente, e também isto a partir de 
dois tesouros: 
O primeiro é o da Igreja triunfante, o qual é o mérito de Cristo e deseus 
santos, que juntaram muito mais mérito do que era de sua obrigação. Dizem 
eles que esse tesouro foi deixado na Igreja, para que aqui seja remunerado e 
compensado. 
O segundo é o da Igreja militante, [e contém coisas] como os méritos, as 
boas obras dos cristãos vivos, que o sumo pontífice teria em suas mãos, para 
aplicá-las seja para a satisfação dos penitentes, seja para a intercessão pelos 
mortos, seja para o louvor e a glória de Deus. Pois assim também eu ensinei c 
escrevi uma vez que o papa tem em seu poder os méritos da Igreja militante 
de uma triplice maneira: em primeiro lugar, para oferecê-los a Deus para a 
satisfação de outros; em segundo, para a intercessão pelas almas; em tercei- 
ro, para o louvor de Deus. E creio firmemente que os bispos em suas diocescs 
têm essa faculdade espiritual, se é verdadeira. Ou, se erro, que me corrija 
quem puder. Do contrário, como subsistirão sem erro aquelas fraternidades 
lias quais tanto os prelados maiores quanto os menores comunicam uns aos 
oiitros seus es for~os e suas obras? O mesirio vale para os monastérios e or- 
deris. Iiospitais c paróquias. Pois isso não pode ser entcndido como vcrdadci- 
~ ~. 
208 Sc. l ~ c ~ > : t \ , l'cila iicin~a C , ~ I I I C X I ~ ~ 4;) I c w S . 
127 
ro a menos que, desse modo, a obra de um satisfaça pelo outro, interceda e 
glorifique a Deus pelo outro. 
Assim sendo, digo o seguinte: 
Embora eu absolutamente não entenda como esses méritos da Igreja mi- 
liiante estão nas mãos do papa, neste meio-tempo vou crer nisso piamente, 
:itC que este nó seja desfeito por seu Górdio. Porém a razão pela qual não en- 
lendo é a seguinte: 
1. Se ele oferece as obras dos vivos pelos vivos, não vejo como possa ser 
iiina remissão gratuita, e não, antes, uma verdadeira e justa satisfação e qui- 
iiição até o último centavo. Pois mesmo que a pessoa a quem é concedida a 
remissão não obre, outras pessoas obram e satisfazemzw. Então acontecerá o 
qiie todos negam com firmeza, isto é, que quem concede210 se onera com a sa- 
iisfação. E entáo na verdade o papa não remitiria, mas faria satisfação, a sa- 
hcr, por meio dos que lhe são sujeitos. 
2. Assim as chaves da Igreja absolutamente nada fariam senão o que, 
i;irnbém sem as chaves, de fato já acontece na Igreja. Com efeito, conforme a 
Ici do amor, cada um deve orar pelo outro. E o apóstolo diz: "Carregai as 
cargas uns dos outros, e assim cumprireis a lei de Cristo." [Gl 6.2.1 
3 . O termo "indulgência" contradiz essa opinião, porque deve indulgen- 
cinr, isto é, remitir, de modo que não se faça o que se deve, mas não impor a 
outrem ou declarar como imposto; assim sendo, a indulgência extingue com- 
pletamente a divida, porém não a salda por meio de outrem. Por esta razão, 
parece, antes, que o poder das chaves por si mesmo, sem este tesouro, é sufi- 
ciciite para [conceder] indulgências, principalmente porque só é remitida a 
s:itisfação canônica, mas náo a evangélica. Ou então dever-se-ia dizer aqui, 
iiiais uma vez, o que foi dito acima acerca da remissão da culpa, isto é, que 
:issim ele também remite as penas por meio deste tesouro, ou seja, declara 
4iic acontece aquilo que acontece também sem ele - a saber, que a Igreja faz 
s:iiisfação por aquele a quem é concedida a remissão. Desta forma diz o B. 
Agostinho que ninguém é ressuscitado senão quem a unidade da Igreja res- 
hiiscita, como, diz ele, está figurado na viúva"'. Mas ainda subsistem a pri- 
iiicii-a e a segunda razão, [a saber,] que então se trata antes de uma satisfa- 
<:\o do que de uma remissão, seja ela declarada, seja concedida. 
4. Esse tesouro da Igreja militante opera mais a graça do Espírito do que 
:i rciiiissão das penas e parece ser tratado de forma muito barata se aplicado 
1l;ii.a a remissão das penas, já que esta é o dom de menor valor na Igreja, po- 
(lrii<lo ser dado até aos impios e, ao que parece, tão-somente pelo poder das 
1.I1:1ves. 
b:iii segundo lugar, digo o seguinte: 
N3o entendo como ou o que acontece quando o papa aplica esse tesouro 
ll: i i , i ;i iiiterccssão pelos mortos. A razão é a seguinte: 
111<> s<.. I'," 'I". 
110 Sc iliditlyêticki. 
!I I /~.'t,,,rr,~ti,, i,, ,,.Y~I/,~,, 145, i!,: M i ~ n c 1'1. 37,1897 
1. Mais uma vez, ele parece não fazer mais do que de fato já acontece. 
Com efeito, toda a Igreja de fato ora e intercede pelos mortos, a não ser que, 
novamente, se pense aqui que ele o faz de modo declarativo. Também não ve- 
jo como poderia obstar aquilo que se diz a respeito da missa, a saber, que ela 
aproveita mais se é aplicada pelo sacerdote a uma única pessoa do que se é ce- 
lebrada para todos sem aplicação2'2. Confesso que tenho isto como verdadei- 
I ro. O papa, porém, como sacerdote supremo e geral de todos, certamente 
não pode aplicar213 senão de um modo geral; mais ainda: deve fazê-lo, tam- 
bém sem cartas de indulgência. 
I 2. Visto que por meio de indulgências só são remitidas penas canônicas, 
I absolutamente não posso entender o que seria remitido as almas, já que os cânones não as obrigam. Por fim, na morte elas são absolvidas dessas penas, 
I pois todo sacerdote é papa na hora da morte. Do mesmo modo, nenhuma al- ma sofre no purgatório por causa de crimes e pecados mortais, mas unica- 
mente por causa de pecados veniais, conforme dis. XXVc. Qualis214. Ora, os 
cânones não são impostos por pecados veniais, sim, [nem mesmo] por peca- 
dos mortais ocultos, mas tão-somente por crimes conhecidos, como foi dito 
acima. Portanto, quem puder que me diga como as indulgências - isto é, as 
remissões das penas - as ajudam, a menos que sejam concedidas não apenas 
indulgências, sim, que elas Ihes sejam dadas como que por cautela supera- 
bundante (como também os mortos costumam ser absolvidos perante a Igre- 
ja), envolvendo, ao mesmo tempo, além das indulgências, a aplicação dos 
méritosda Igreja. Então as indulgências certamente não se tornam uma inter- 
cessão, mas são dadas ás almas, juntamente com a intercessão, como um se- 
gundo presente, isto é, declara-se que elas são dadas, ou são aplicadas. 
Em terceiro lugar, digo o seguinte: 
Sobre o tesouro dos méritos de Cristo e dos santos, aplicado para a re- 
missão das penas, falarei abaixo na tese 58. Vês, pois, quão obscuras e dúbias 
e, por isso, perigosas de ensinar são todas essas coisas. Digo e vejo apenas es- 
ta uma coisa: nas Clementinas, depe. et re. c. Abusionibm2IJ, O papa parece 
condenar essa opinião de que as almas seriam redimidas pelas indulgências, 
ao dizer: "Livram as almas do purgatório, como afirmam mentirosamente." 
Ali a glosa sobre o termo "mentirosamente" diz: "Porque estão reservadas 
para o juizo de Deus", alegando, para isto, a distinctio XXV, capitulo Qua- 
lis. Ela certamente me parece correta. Com efeito, se são redimidas através de 
intercessão, não se segue de qualquer maneira que elas saem voando imedia- 
tamente, porque interceder e redimir ou libertar não são a mesma coisa. Por- 
tanto, eu tenho tanto discernimento que vejo que as indulgências e a interces- 
212 Sc. a uma única alma. 
213 Sc. a tesouro. 
214 Parte I, dislinrlio XXV, capítulo 4 do Decretum Grotioni, a primeira parte do Corpur iuris 
rnnonio. 
215 Trata-se de uma consiitui~ãa de Clemente V, promulgada no Concílio de Vienne. A refe- 
riiicia completa é: Clemenrispopae V, constilutiones. livro V. titulo IX, capitulo 2, i": 
<hrpu.s iuris cononici. v . 2, cols. 1 I W - I . 
s2o através dos méritos da Igreja são duas coisas muitíssimo diferentes; uma 
pode ser dada com ou sem a outra. Para as indulgências é suficiente só o po- 
der das chaves, sem o acréscimo daquele tesouro, que, porém, pode ser acres- 
centado ou dado sozinho. Dado sozinho, ele torna participante dos bens216, 
L.omo foi suficientemente dito acima. Se isso fosse certo e verdadeiro, seguir- 
sc-ia que as indulgências, enquanto tais, absolutamente nada aproveitariam 
As almas, exceto que seriam absolvidas perante a Igreja, isto é, declarar-se-ia 
(alie estão absolvidas. Ou, se aproveitassem, isso não aconteceria por sua pró- 
liria virtude, mas por uma dádiva a elas ajuntada, a saber, a dos méritos da 
Igreja. Esta dádiva, por sua vez, deve ser distinguida da aplicação geral, atra- 
vcs da qual a Igreja, por eles"', de fato ajuda as almas sem a aplicação do pa- 
pa; e deve-se ver que valor ela tem. Mas o labor da inquirição deve ser deixa- 
do também a outros que ainda não cansaram do esforço dispendido em tão 
grandes questões dúbias. 
Agora se objeta o seguinte: 
1. E muito divulgado que certo mestre em Paris"8 sustentou em seu de- 
bate que o sumo pontifice tem poder sobre o purgatório; que o pontifice, ten- 
do tomado conhecimento disso e tendo morrido o mestre, lhe deu a remissão 
por ele defendida e, assim, como que a recomendou. 
Respondo: em nada me importa o que agrada ou desagrada ao sumo 
pontifice. Ele é um ser humano assim como os demais. Houve muitos sumos 
pontífices aos quais agradaram não só erros e vícios, mas também coisas 
iiionstruosas. Eu ouço ao papa como papa, isto é, como fala nos cânones e 
fala segundo os cânones ou determina com um concílio, porém não quando 
rlc fala segundo sua cabeça, para que eu não seja porventura obrigado a di- 
zer, com certas pessoas que conhecem mal a Cristo, que os horrendos massa- 
cres de Júlio 11219 contra o povo cristão foram benefícios prestados ás ovelhas 
tlc Cristo por um fiel pastor. 
2. No livro IV. distinctio XX. o B. Boaventura diz aue não se deve re- 
sistir de modo importuno se alguém afirmar que o papaiem poder sobre o 
piirgatório. 
Respondo: em primeiro lugar, a autoridade de S. Boaventura não é sufi- 
ciciitc neste assunto. Em segundo lugar: quando o papa tiver afirmado isso, 
ti30 sc deverá resistir. Em terceiro lugar, Boaventura diz corretamente, pois 
iicrcsccnta, explicando a si mesmo: "Contanto que isso esteja estabelecido 
por uma passagem manifesta da Escritura ou por um ditame racional". 
Acoiilece que até agora essa abonação manifesta ainda não existe. 
Nestc ponto, entretanto, se objeta o seguinte: 
> I 7 Sr. pcloh iiiériior. 
LIH r: ~><issivel iliie 1.iitero estcja se rcfcriiiilu ao franciscaiio Joã<i dc Kihrica, !ia Cpoca dircliir 
c l i i c\col:i iI;i Or<leiii I 'r~aiiciscaiia eni Paris. J<ião de I'ál>rica afirinou quc o palia i120 si1 ci>li- 
irili;i iiirliiluCtici;i t i o s iiiiiiios lpin inicio de siia i ~ i l e ~ c i ~ s ã r ~ . iiiiis 1;iirilié~ri t i icrrê di> ~>ii<lei dr 
1. Diz-se que Sixto IV teria determinado que aquele modo da intercessão 
em nada diminui a plenitude das indulgências. 
Respondo: 1. Se alguém quisesse ser pertinaz, diria: Provai o que dizeis, 
santo Pai; principalmente porque não compete ao papa sozinho estabelecer 
novos artigos de fé, e sim julgar e resolver questões de fé segundo os já esta- 
belecidos. Este, contudo, seria um artigo novo. Por esta razão, sua determi- 
nação caberia a um concilio universal, muito mais do que a concepção da B. 
Virgem, sobretudo porque, neste caso, não há qualquer perigo para as almas, 
ao passo que naquele caso há muito e grande perigo. De outro modo, como o 
papa é um [único] ser humano, que pode errar em questões de fé e de costu- 
mes, a fé de toda a Igreja estaria constantemente em perigo se fosse necessá- 
rio crer que é verdade qualquer coisa que aprouvesse ao papa. 
2. Mesmo que o papa, juntamente com grande parte da Igreja, fosse des- 
ta ou daquela opinião e não estivesse errado, ainda não seria pecado ou here- 
sia ser de opinião contrária, sobretudo numa coisa não necessária para a sal- 
vação, até que um concilio universal tivesse rejeitado uma delas e aprovado a 
outra. Isto, para não discutir muito, é provado por um único fato: a Igreja 
Romana, juntamente com o Concilio universal de Basiléia e com quase toda a 
Igreja, julga que a B. Virgem foi concebida sem pecado. Não obstante, como 
a outra parte não foi rejeitada, não são hereges os que pensam o contrário2:Q. 
3. Digo que ainda não vi aquela determinação de Sixto. No entanto, vi a 
determinação de que as indulgências são dadas aos mortos pelo modo da in- 
tercessão. Disto não se segue ainda que as almas ás quais é dado esse modo 
saiam voando. 
4. Não posso ser intérprete de uma palavra alheia, muito menos do sumo 
pontifice. Por isso, até que ele interprete a si mesmo, vamos opinar, defen- 
dendo, por causa da honra, tal dito incógnito. Este pode ser entendido de 
duas maneiras. A primeira é: o modo da intercessão não diminui a plenitude 
da indulgência, isto é, embora as indulgências sejam ai dadas não pelo modo 
da indulgência, mas pelo modo da intercessão, através de tal sufrágio e inter- 
cessão acontece, não obstante, que as almas para as quais ela tiver sido feita 
realmente saem voando. Assim, elas o fazem não através de desligamento, e 
sim de intercessão. Não sustento esta opinião, mas eles crêem que o dito tem 
este significado. A segunda é: o modo da intercessão não diminui a plenitude 
das indulgências, isto é: a aplicação das indulgências pelo modo da interces- 
são permite que elas sejam o que são, a saber, indulgências plenas, e não abo- 
le o que elas são por sua natureza, só que não agem como indulgências, e sim 
como intercessão. Esta opinião eu admito e acrescento: se essa aplicação in- 
tercessória em nada diminui as indulgências, muito menos as aumenta em 
qualquer coisa. Disso se segue que as almas não saem voando por esse modo. 
220 Sixto IV (1471-1484) procmou favorecer a doutrina da imaculada conceição de Maria, p. 
ex., através da introdução de um oficio especial em 8 de dezembro. Ele, que era francisca- 
no, foi assim de encontro à piedade de sua ordem. No entanto, não ousou tomar uma deci- 
s8o contrária a opinião da Ordem Dominicana, que nâo seguia o posicionamentofrancisca- 
no. I 'c i i isso. proibiu ambos as partidos de declararem heretica a opinião dos adversários. 
I ( i. isto o que também as palavras expressam, pois ele não diz: "Esse modo 
110 sufrágio redime plenamente as almas", mas: "não diminui a plenitude das 
iiidulgências". Isto quer dizer que as indulgências, ainda que plenas, fazem 
t;iiito quanto pode fazer a intercessão, não mais. 
Mais uma vez se objeta: 
A fórmula de absolvição apostólica reza: "Remitindo-te as penas do 
piirgatório, tanto quanto se estendem as chaves da santa mãe Igreja." E esta 
IGrmula é observada pelos penitenciários do papa, também em Roma. 
Respondo: 1. Este argumento é despropositado, porque esta é uma fór- 
iiiiila de absolvição dos vivos e dos moribundos, mas não uma fórmula de 
;iplicação de indulgências para os já mortos. 
2. Entretanto, por causa da busca daverdade, digo que, como essas pa- 
lavras são formuladas de maneira dúbia e obscura, não pode errar na fé 
quem for de opinião contrária ao que eles acreditam que elas significam. Pois 
por que a fórmula é tão tímida? Por que diz, como que duvidando: "Tanto 
quanto se estendem as chaves"? Esta cauda trêmula me é suspeita. Não sou 
obrigado a crer firmemente o que ele mesmo não ousa pronunciar com firme- 
/.a. Por que acrescenta "tanto quanto se estendem as chaves" somente aqui e 
ciii nenhuma outra parte? Acaso ainda não vemos quão vigilante é Cristo em 
siia Igreja, ao ponto de não permitir que errem nem mesmo os que querem er- 
i.;ir'! Oxalá nós mesmos não nos precipitássemos no erro por negligenciarmos 
sua advertência! 
3. Em terceiro lugar, digo o mesmo que antes: mesmo que o papa, junta- 
iiicnte com seus penitenciários, não errasse aqui, não é por causa disso que 
sX« hereges os que negam sua concepção ou nela não crêem, até que, por de- 
cisão de um concilio universal, uma das duas partes seja definida ou reprova- 
dii. Pois do mesmo modo. embora tenham adornado com induleências a fes- - 
I:, da concepção"l como uma questão de fé decidida, não condenam ou ligam 
tis pessoas que não procuram o desligamento proporcionado por tais indul- 
~Ciicias. Assim, por mais indulgências que sejam dadas, não é necessário ter 
aquela fórmula por verdadeira, até que a Igreja o estabeleça. E vês novamen- 
ic qiião grande é a necessidade de um concilio legitimo e universal. Temo, 
i:oiitudo, que nosso tempo não seja digno de que nos seja dado tal concilio, 
iii~is, antes, que sejamos enganados através de operações de errou', assim co- 
iiio fizemos por merecer. 
Tese 27 
l ' r ~ ~ a m doutrina humana os que dizem que, tão logo tilintar a moeda 
I(in(~u(Ju nu caixa, a alma sairá voandoz*3. 
2 x 1 Sc. iIc Mariu ( f l de derernbro). 
127. ( ' I ' . 2 'I's 2.1 I. 
211 <'I'. 11. 24. iiutn 13. 
Pregam doutrina humana, isto é, vaidade e mentiras, segundo aquele di- 
to: "Todo ser humano é mentiroso" [SI 116.111; e mais uma vez: "Todo ser 
humano vivo é vaidade." [SI 39.5.1 Em minha opinião, esta proposição não 
necessita de prova. Contudo, ela é provada pela tese seguinte, pois a interces- 
são da Igreja é eficaz conforme a vontade de Deus e o mérito da alma. Por is- 
so, mesmo que fosse verdadeira a opinião deles de que elas224são proveitosas 
pelo modo da intercessão, não se segue que saem225 voando imediatamente. 
1. Não é a intercessão que liberta, mas o atendimento e a acolhida da in- 
tercessão, pois elas são libertadas não pela oração da Igreja, mas pela obra de 
Deus. 
2. Por natureza Deus age de tal forma que ouve depressa, porém tarda 
em dar, como se evidencia nas orações e doutrinas de todos os santos, para 
pôr a prova sua perseverança. Por isso, há umagrande distância entre a inter- 
cessão e seu atendimento e cumprimento. 
3 . Isto mesmo é dito de um modo novo, sem qualquer abonação, contra 
a proibição do cânone de que não deve ser dito nada além do que está contido 
nas cartasz26. Por conseguinte, eles não falam o que é de Deus e da Igreja, isto 
é, a verdade, mas suas próprias [idéias], isto é, mentiras. 
4. Nâo há diferença entre quem fala algo falso cientemente e quem afir- 
ma ser certo o que não sabe ser certo. Pois assim também quem diz a verdade 
mente as vezei. Ora, eles sabem que as coisas agora ditas Ihes são incertas; 
ainda assim, asseguram que são certas, como se fossem evangelhos. Com 
efeito, não podem provar que são certas por nenhuma passagem da Escritura 
ou argumento racional. 
5. Então a intercessão seria melhor para o serviço de outrem - e ainda 
por acidente - do que para seu próprio serviço, porque não aproveita tanto 
a quem a faz quanto ao outro por quem é feita; sim, isto é peripatético, razão 
pela qual passo por cima disso, principalmente tendo em vista que eles ousa- 
ram admitir que a intercessão não aproveita a quem a faz, mas a alma [pela 
qual é feita], etc. Também eu poderia ridicularizar e zombar destas fábulas, 
assim como eles zombam da verdade por meio delas, mas desisto, para não 
parecer que proponho mais um dogma do que um problema. 
Tese 28 
Certo é que, ao tilintar a moeda na caixa, podem aumentar o lucro e a 
cobiça; a intercessão da Igreja") porém, depende apenas da vontade de 
Deus. 
224 Sc. ;as indiilpências. 
225 Sc. ar ~ I i t t a s . 
220 1i:i i; i-se d;is iiislritç6es dadas aos comissários de indulgéncias. 
227 I h i u C, < t u ;iccil;t$ac~. 
É estranho que eles não pregam o salubérrimo Evangelho de Cristo com 
tarito esforço e berreiro. O que torna o negócio suspeito é o fato de que pare- 
ccrn apreciar mais o lucro do que a piedade, a menos que porventura possam 
ser desculpados justissimamente pelo fato de ignorarem o Evangelho de Cris- 
to. Portanto, como as indulgências não têm piedade, nem mérito, nem man- 
damento, mas apenas uma certa licença, mesmo que a obra pela qual são 
compradas seja piedosa, em verdade parece que, por elas, se aumenta mais o 
Iiicro do que a piedade, sendo tratadas tão amplamente e sozinhas, que o 
livangelho, como algo mais vil, dificilmente é recitado. 
1. Provo [esta tese], em primeiro lugar, porque a intercessão da Igreja 
não é da jurisdição do papa e também não está nas mãos dele no que se refere 
3. sua aceitação por Deus, mas tão-somente no que se refere ao seu ofereci- 
iiiento, ainda que fique de pé a opinião deles quanto á redenção das almas 
por meio da intercessão. 
2. Estaria errada a propalada opinião do B. Agostinho>" de que as inter- 
cessões só aproveitam as pessoas que mereceram que elas Ihes aproveitassem, 
pois é pelo poder do papa, e não pelo mérito da alma, que aproveitariam a 
quem qper que aproveitassem. 
3. E contra a natureza e o sentido do vocábulo [dizer] que esteja no po- 
der do papa redimir por meio de intercessão: por mais excelente que seja uma 
obra, se transformada em intercessão, ela opera não como obra, mas como 
iritercessão. Antes, é o atendimento da intercessão que redime. Portanto, ou 
clcs falam da própria coisa com outros nomes - e neste caso logram de mo- 
do pior ainda -, ou, se falam de sua causa com o vocábulo próprio, sua opi- 
iiirlo não fica de pé, já que o termo "intercessão" é incompatível com o signi- 
ficado e a compreensão de "poder". 
4. Então não haveria absolutamente nenhuma diferença entre interces- 
são e poder exceto no termo; na realidade eles seriam a mesma coisa, uma vez 
cliie efetuam a mesma coisa sem qualquer outro requisito além da vontade do 
popa. Por que, então, não se deixa de falar em intercessão e de nos obrigar a 
ciitcnder sob "intercessão" outra coisa do que sob "poder"? 
Declaro aqui mais uma vez, prezado leitor, que falo acerca dessa inter- 
cessão como se ela verdadeiramente existisse. Pois já disse minha opinião aci- 
I I IR : duvido e não entendo se existe ou pode existir tal intercessão. Digo isso 
ptira que ninguém imagine que contradigo a mim mesmo, como que afirman- 
i10 aqui a intercessão que quase negueianteriormente. 
Tese 29 
1:'rluem é que sabe se todas as almas querem ser resgatadas do purgató- 
rio? L>iz-se que este não foi o caso com S. Severino e S. Pascoal2". 
Não li um escrito fidedigno a respeito dos dois, porém ouvi contar que 
eles poderiam ter sido libertos por seus méritos, se tivessem querido ser glori- 
ficados em grau menor. Por isso, preferiram suportar a diminuir a glória da 
visão'". Mas nessas coisas cada um creia o que quiser, para mim tanto faz. 
Pois não neguei que as almas no purgatório pagam também outras penas do 
que as acima mencionadas. Eu quis, isto sim, [dizer] que, mesmo que essas 
penas fossem remitidas, elas não sairiam voando se também não fossem per- 
feitamente curadas na graça. Entretanto, poderia acontecer que, por excessi- 
vo amor a Deus, algumas não quisessem ser redimidas. A partir disso se torna 
verossímil que Paulo e Moisés puderam querer ser anátema e separados de 
Deus para sempre"" Se estes estavam dispostos a fazer isso em vida, parece 
que não se deve negar que a mesma coisa possa ser feita por mortos. A respei- 
to disso se encontra, nos sermões de Tauler, o exemplo de uma virgem que as- 
sim procedeu. 
Tese 30 
Ninguém tem certeza da veracidade de sua contrição, muito menos de 
haver conseguido plena remissüo. 
Digo isto segundo a opinião daqueles que querem que a contrição seja 
necessária para a remissão das penas e não vêem quão muitíssimo incertas 
tornam todas as coisas. A tese é suficientemente evidente, pois todos defen- 
dem a primeira parte; ora, a segunda segue-se necessariamente. No entanto, 
em minha opinião pode haver uma certa remissão das penas - a saber, das 
canônicas -, mesmo que alguém não fosse digno nem estivesse contrito. Não 
é a contrição, muito menos a certeza da contrição, que é exigida para a remis- 
são das penas, porque a remissão subsiste mesmo que seja concedida a penas 
imaginadas, visto estar unicamente no poder do papa. Contudo, se eles - co- 
mo também foi dito acima - querem que sejam remitidas outras penas do 
que [as impostas por] crimes - a saber, [por] quaisquer pecados mortais -, 
então, magnificando excessivamente as indulgências, fazem com que elas se- 
jam nulas. Pois, se são incertas, as indulgências não são indulgências. Porém 
elas são incertas se se apóiam sobre a consciência da pessoa a ser absolvida, 
não sobre o poder das chaves, mas principalmente se se apóiam também so- 
bre a contrição por todos os pecados mortais, e não apenas pelos crimes ma- 
nifestos, já que ninguém está certo de estar sem pecado mortal. Mas a pessoa 
pode estar certa de estar sem crimes, isto é, sem um pecado pelo qual possa 
ser acusada perante a Igreja, como dissemos acima. Por isso, nego que essa 
tese seja verdadeira, se falo de acordo com minha maneira de pensar. Toda- 
via, eu a propus para que eles vejam a absurdidade de sua jactância, com a 
qual engrandecem as indulgências. 
228 I<r,,ii.hlrirli,in «d I.<iurenlium, capltulo 110. in: Migne 1'1. 40.283 
LZ'I ('i. 1,. 2s. i i o ~ i i 15. 
230 Sc. he;itil'ic;i. 
231 ('I'. Kii i 9 .3; f;x 32.32 
Tese 31 
Tüo raro como quem é penitente de verdade é quem adquire autentica- 
ttrerrte as indulgências, ou seja, é rarissimo. 
Falo novamente segundo o modo de pensar deles, para que vejam a t e - 
iiicridade, sim, a contradição de sua pregação licenciosa. Enquanto clamam 
qiic as indulgências aproveitam a tantas pessoas e, não obstante, confessam 
qiic são poucas as que trilham o caminho estreito, eles nem mesmo enrubes- 
ccin e não prestam atenção no que falam. Mas não admira. É que eles não as- 
hiiiiiiram o oficio de ensinar a contrição e o caminho estreito. Assim pois, di- 
co riiinha opinião: embora poucos sejam contritos, muitos, sim, todoi em to- 
cIn a Igreja poderiam estar livres das penas dos cânones através da abolição 
(10s cânones - como, aliás, agora em verdade estão. 
Tese 32 
Serão condenados em eternidade, juntamente com seus mestres, aqueles 
.se julgam seguros de sua salvaçáo através de carta de indulgência. 
Esta tese eu mantenho e demonstro: 
Assim diz Jr 17.5: "Maldito é quem deposita sua esperança no ser huma- 
tio e considera a carne como seu braço." Pois não temos qualquer confiança 
dc salvação senão unicamente Jesus Cristo, e "abaixo do céu não é dado ne- 
iiliuin outro nome pelo que1 importa que sejamos salvos", At 152s2. Fora, 
1x)r1aiito, com a confiança em cartas mortas, no nome "indulgências", no 
iioiiic "intercessão"! Em segundo lugar, como disse, as cartas e indulgências 
ii:ida conferem de salvação. Elas apenas removem as penas, e tão-somente as 
c;iiii>iiicas, e nem mesmo todas as canônicas. Oxalá aqui a terra e toda a sua 
~>lciii!tide gemessem comigo e chorassem por causa da sedução do povo cris- 
1:io qiie, em toda parte, não entende as indulgências de outra forma senão co- 
iiio sciido salutares e úteis para o fruto do Espírito! Também iião admira, já 
iiiic n verdade manifesta da coisa não lhe é exposta. Infelizes dos cristãos, 
~ ~ i i i ' , rio que diz respeito a salvação, não podem confiar nem em seus méritos 
iiriii crri sua boa consciência! Ensinam-lhes a confiar num papel escrito e en- 
cri:ido. Por que eu não haveria de falar nesses termos? O que mais e dado ali, 
1)cigiiiilo eu? Não é contrição, não é fé, não é graça, mas tão-somente [a re- 
iiiiss3o de] penas do ser humano externo, estabelecidas pelos cânoues. E para 
ili&:rcssionar iim pouco: eu mesmo ouvi muitas pessoas que, tendo dado di- 
iiliciro c comprado cartas, nelas colocaram toda a sua confiança. Pois ou elas 
:iuiiii oiivirarii (como diziam) ou (como creio por causa da honra) entendc- 
i ; i i i i qiic os pregadores de indulgências assim ensiiiam. Não estou censiirando 
[ninguém] aqui, assim como também não devo, já que não ouvi pregadores 
de indulgências. Por mim, eles que se desculpem até ficarem mais brancos do 
que a neve. O certo é que devem ser redargüidos os ouvidos do povo, que es- 
tão tão sujos, que ele ouve tão-somente coisas pestíferas quando eles dizem 
coisas salutares. Por exemplo: quando eles dizem: "Antes de mais nada, ir- 
mãos, crede e confiai em Cristo e fazei penitência, carregai sua cruz, segui a 
Cristo, mortificai vossos membros, aprendei a não temer as penas e a morte. 
Antes de mais nada, tende amor mútuo entre vós, servi uns aos outros tam- 
bém não fazendo caso das indulgências, auxiliai em primeiro lugar os pobres 
e doentes." Quando, digo, eles dizem essas coisas, bem como coisas seme- 
lhantes, tão piedosas, religiosas e santas, o povo insipiente, subvertido atra- 
vés de um novo milagre, ouve coisas bem diferentes2";a saber: "Ó seres hu- 
manos insensatos e grosseiros, quase semelhantes aos animais, que não com- 
preendeis tão grande efusão de graças! Eis que agora o céu está aberto de to- 
dos os lados! Se não entrares agora, quando é que alguma vez vais entrar? 
Vede, podeis redimir tantas almas! O gente dura, dura e negligente! Por 12 
denários podes fazer teu pai sair, e és tão ingrato que não socorres teu pai em 
tão grandes penas? No juizo final eu certamente serei excnsado, mas vós se- 
reis mais acusados por haverdes desdenhado tão grande salvação. Digo-te: se 
tivesses uma única túnica, acho que deverias tirá-la e vendê-la para obter tão 
grandes graças." Mas quando se chega aos que falam contra a graça234 (ao 
passo que aqueles até transbordam puras bênçãos), o povo fica apavorado, 
com medo de que o céu vai desabar e a terra se fender, e ouve que está amea- 
çado por penas muito piores do que as do inferno, de modo que talvez seja 
verdade que, quando aqueles maldizem, Deus bendiz através das maldições 
deles, e quando eles bendizem, Deus amaldiçoa. Pois de que outra forma po- 
deria acontecer que eles dizem coisas tão diferentes das que o povo ouve? 
Quem é que pode entender? De onde, pergunto eu, vêm essas palavras- 
fantasma? Mas não creio em tudo o que o povo dizter ouvido aqui e ali. Do 
contrário, eu consideraria heréticas, impias e blasfemas as coisas que eles pre- 
gam. Não creio que é verdade que um deles proibiu que acontecessem as exé- 
quias dos defuntos e o convite dos sacerdotes2", [ordenando] que quem que- 
ria que fossem realizadas exéquias, missas e cerimônias em memória dos 
mortos deveria, antes, depositar236 na caixa. O povo também inventa essas 
coisas. Não creio naquela fábula cheia de mentiras contada por alguém, di- 
zendo que em certo lugar não sei quantas mil (se bem me lembro, três ou cin- 
co mil) almas foram redimidas por meio dessas indulgências, dentre as quais 
só três foram condenadas porque detraíram as indulgências. Ninguém disse 
isso, mas, enquanto eles falavam sobre a paixão de Cristo, o povo ouviu tais 
coisas ou, depois, imaginou que as ouviu. Não creio que é verdade que, aqui 
-~ ~ 
233 Temos aqui o auge da polêmica de Lurero contra Tetrei, o qual é atacado com grandes do- 
ses de ironia. 
234 Sc. das indiilgências. 
235 Sc. ,>;ira a* crkquias. 
21íi Sc. iliiiliciro. 
c :!li, eles dão aos cocheiros, ou aos hospedeiros, ou a outras pessoas que os 
serviram, quatro, cinco almas ou quantas quiseram, em lugar do pagamento. 
Não creio que, nos púlpitos, depois de terem espumejado, com impetuosos 
gritos, suas exortações de que o povo deposite, tenham clamado: "Deposita! 
I)cposita! Deposita!" (pois o povo imagina que esta palavra seja a cabeça e a 
i:;uida, sim, também o ventre e quase todo o sermão); então, para que os pre- 
gadores apostólicos não ensinem a coisa apenas com palavras, mas com o 
cxeinplo, descem e, como os primeiros, vão até a caixa perante os olhos de to- 
dos, estimulando e provocando o povo simples e estulto, para sugar comple- 
tamente sua medula, depositam, assim, com gesto esplêndido e tinido sono- 
ro, e então se admiram se todos os outros não fazem chover todo o seu di- 
nheiro, sorriem para os que depositam e se indignam com os que não o fa- 
'em. Eu não digo que isso seja um mercado de almas e um monopólio. 
Iiidigno-me com o povo que, por causa de sua rudeza, não interpreta tão pie- 
closos esforços como aparência2'1, mas como avareza que chega ao ponto da 
I»ucura. Todavia, parece-me que talvez mereça ser desculpado o povo que 
;&prende desses novos espiritos ou uma nova concepção ou um erro, já que 
outrora estava acostumado a ouvir mais o que diz respeito ao amor e à humil- 
dade. Mas se eu quisesse confeccionar um catálogo de todas as monstruosida- 
des ouvidas, seria necessário um novo volume. Creio, porém, em minha opi- 
iiião, que ainda que as indulgências fossem ordenadas e salutares, não obs- 
tnnte, como agora se tornam um abuso e escândalo tão grande, só isto já se- 
ria uma razão suficientemente justa para aboli-las todas, para não acontecer 
1;ilver que, se se permitir que elas vigorem por mais tempo, por fim seus pre- 
goeiros fiquem loucos por causa do amor ao dinheiro. Eu realmente creio que 
iicrri tudo o que se conta por ai tenha sido dito por eles, mas ao menos deve- 
riam recriminar o povo quanto a essas coisas e se expressar com maior clare- 
<a, ou então, o que é melhor ainda, falar modestamente das indulgências, de 
:ic»rdo com os cânones. 
Tese 33 
Ileve-se ter muita cautela com aqueles que dizem serem as indu%ências 
(111 pirpa aquela inestimável dádiva de Deus através da qual a pessoa é recon- 
<.iliu(lu com Deus. 
liii deveria chamá-los de hereges pestilentos. Com efeito, o que é mais 
iiiipio e herético do que dizer que as indulgências do papa são a graça da re- 
~.i)iiciliacão com Deus? No entanto, para reprimir minha cólera, quero crer, 
:iiiics, qiic eles tenham dito ou proposto tais coisas não por malicia ou delibe- 
I :i~l;iiiieiite, e sim por mera ignorância e falta de erudição e inteligência. Mes- 
rcio :issiin, também existe temeridade no fato de, como gente tão indouta, eles 
não terem feito, antes, o trabalho de um boieiro, ao invés de assumirem a ta- 
refa de ensinar as almas de Cristo. Ouçam, pois, esse boieiro grunhir suas pa- 
lavras. Assim diz em seu livreco238, depois de dividir as indulgências em qua- 
tro graças principais e em muitas outras menos principais: "A primeira graça 
principal é a remissão plenária de todos os pecados. Não se pode mencionar 
nada que seja maior do que esta graça, porque, por ela, o ser humano peca- 
dor e priyado da graça divina alcança perfeita remissão e, de novo, a graça de 
Deus." E o que ele diz. Eu pergunto: que sentina de hereges alguma vez falou 
coisa tão herética? Já a partir desta passagem pode-se aprender por que acon- 
tece que o povo ouve coisas tão impias, embora eles digam que ensinam coi- 
sas santíssimas. Oxalá aqui estivessem o zelo e a eloqüência do divino Jerôni- 
mo! Causa-me vergonha uma temeridade tão grande, que esse tagarela não 
teve receio de publicar esse livreco em face de quatro ilustres universidades 
circunjacentes, como se os gênios lá existentes tivessem sido completamente 
transformados em fétidos cogumelos. Aflige-me o fato de que também nos- 
sos vizinhos hereges, os begardos, finalmente teriam uma oportunidade para 
acusar com razão a Igreja Romana, se ouvissem que tais coisas são nela ensi- 
nadas. Mas que esse imbecil autor talvez tenha dito isso não por malicia, e 
sim por ignorância, pode-se ver a partir do fato de dizer que "por ela (isto é, 
a primeira graça, a remissão plenária), o ser humano alcança perfeita remis- 
são". O que quer dizer isto: "Pela remissão plenária ele alcança remissão ple- 
nária, e pela graça de Deus alcança a graça de Deus"? Acaso ele não sonha 
por uma febre ou sofre de um delirio? Mas volta a atenção para o sentido he- 
rético. Ele quer [dizer], quanto a essa primeira graça, que não pode ser men- 
cionado nada maior do que ela e que o ser humano privado da graça a obtém. 
Está claro que isso não pode ser entendido senão a respeito da graça justifi- 
cante do Espírito e que ele mesmo não o entende de outra forma. Do contrá- 
rio ela não seria aquilo em relação ao qual nada maior pode ser mencionado. 
Aliás, mesmo que falasse outras coisas sobre a graça justificante, ele falaria 
de maneira suficientemente impia, pois só Deus é aquilo em relação ao qual 
não se pode mencionar coisa maior. Com efeito, o B. Agostinho não [fala] 
assim como ele, mas diz que entre as dádivas criadas nada é maior do que o 
amor"Y. Aqui, porém, ele mistura a graça de Deus e a graça do papa no caos 
de uma só palavra, como autor digno de tal opinião ou de tal erro. 
Segue-se no mesmo livro: "Por essa remissão dos pecados também lhe 
são plenamente remitidas as penas a serem pagas no purgatório por causa de 
ofensa a divina majestade, e as penas de dito purgatório são completamente 
apagadas." Ouvimos um oráculo de Delfos: quem tudo ignora, absoluta- 
mente de nada duvida. Ele se pronuncia tranqüilamente acerca do poder das 
chaves sobre o purgatório. Mas já dissemos o suficiente sobre isso acima. 
L17 Sc. <Ir i i v z i i o i i . 
2x8 Iiilcro refere-se i InsDudio summorio do arcebispo de Moguncia. 
22') ,S<,r»io 145,4. in: Migne PL 38,793. 
139 
Segue-se no mesmo lugar: "E embora, para merecer tão grande graça, 
ii;ida suficientemente digno possa ser dado em troca, porque o dom e a graça 
de Deus não têm preço", etc. Vês que ele mais uma vez chama de dom e graça 
iiicstimável de Deus aquilo que o papa remite. Esse sujeito é sobremaneira 
digno de ensinar as Igrejas, isto é, os prostibulos dos hereges. Depois de, com 
cssas palavras, ter adornado diligentemente aquela graça para o mercado e a 
Icira, veste imediatamente seu Mercúrio com a roupa de Júpiter, para que 
ninguém perceba que ele busca o lucro (a menos que não tenha mais inteli- 
gência do que ele mesmo). Ele permite que ela também seja dada aos pobres 
de graça, mas assim20 que, primeiramente, tenham tentado, em toda parte, 
iirrebanhar o dinheiro junto a bons fautores (comodiz), de modo que os fra- 
des mendicantes podem procurar dinheiro sem licença de seus superiores. 
Ocorre que, para esse Psêudolo~l, é muito melhor a remissão de uma pena, 
iiiesmo inventada, do que a obediência salutar. Mas como em lugar algum se 
abrisse um caminho para arrebanhar dinheiro para que compremi" essa gra- 
va (isto é, comprem de novoxl, não que aqueles a vendam, e sim porque a ex- 
ccssiva semelhança das coisas obriga a mal-usar a palavra), então ele diz fi- 
iialmente: "Pois o reino dos céus não deve estar mais aberto aos ricos do que 
:!os pobres", querendo, de novo, abrir o céu por meio de indulgências. Po- 
rem subtraio minha pena para que ela não se enfureça merecidamente com 
eles. Que seja suficiente ter mostrado aos crentes que a pestilência de seus dis- 
cursos está envolta em tão insigne ignorância e rudeza (como convinha), que 
:I tampa é digna da panela16. 
Tese 34 
Pois aquelas graças das indulgências se referem somente as penas de sa- 
t iyfa~ão sacramental, determinadas por seres humanos. 
Esta tese está abundantemente clara a partir das teses 5 e 20 acima. 
240 Aqui h$ um erro de Lutero, que junta duas orientacoes da Instrucrio. Segunda a instruçso, 
exigia-se, além da coniissão contrita e de freqilència piedosa às missas, um sacrificio finan- 
cciro dc acordo com as posses do penitente. Principes pagavam 25 florins renanos de ouro, 
o s prelados e a alta nobreza 10, pessoas com renda anual de até 500 florins pagariam 6 , pes- 
s m s com renda de até 200 ilarins pagariam 3. Os demais pagariam de meio a um florim. 
%,l>i.c i i s pobres. a ins t ru~ão afirma: "Os que não têm dinheiro devem substituir sua contri- 
h i i i ~ i i ~ por ora$& e jejum, pois o reina dos céus não deve estar mais aberto aos ricas do 
i(iictx<s pobres." Esposas e filhos cujos esposas ou pais Ihes proibiam a compra de iiidi~l- 
8i.liçi;ls devem. contra a vontadedesses, tomar d o que têm para comprar indulgências. Po- 
hirs sir, i>s qiie nieiidigam ou que ganham apenas o necessário para o sustento diirio. 
?.I1 I's?iid<>lu L' o iitiilo <Ir itnia das comCdias de Pluiito; aqui. C sin6nimo de mentiroso. 
?.I2 N?ilii>i<r,il. iio ori~iiial. 
I I)t.!8td,> t>»10tr1, 1 1 0 ~1rigirlill. 
!4,1 I i i t i i i \c <Ic tini ilil<i 1p<i1>uIar. 
I Tese 35 I Não pregam cristãmente os que ensinam não ser necessária a contrição àqueles que querem resgalar almas ou adquirir breves confessionais24'. 
245 Cf. p. 25. nota 16. 
246 Sc. da penitência. 
247 Cf. Mt 7.3. 
248 1.utero reiine nesta frase os conceitos usados para caracterizar doutrinas suspeitas em pro- 
cessos de heresia. 
i 24') Sc. o mundo. 
I Por que, pergunto, eles dão aos seres humanos essa dilação246, para peri- 
I 
go destes? E de que aproveita que Ihes sejam pregadas tais coisas, ainda que 
fossem verdadeiras, senão que se busca o dinheiro e não a salvação das al- 
nias?,Ora, como são impias e falsas, com muito mais razão devem ser rejeita- 
das. E certo que também eu permiti, mais acima, que possam ser remitidas as 
penas mesmo as pessoas que não estão contritas, o que eles negam. Aqui, in- 
versamente, creio que deve ser negado o que eles afirmam. E tenho sobre os 
breves de confissão a mesma opinião como sobre as penas: em ambos os ca- 
sos não se precisa de contrição, nem no que diz respeito a sua compra nem no 
que diz respeito ao seu uso, o que eles negam. O mesmo vale também no caso 
das penas a serem remitidas, uma vez que a remissão da pena é parte do breve 
de confissão. Mas no tocante a redenção das almas discordo totalmente e pe- 
ço que provem o que dizem. Eu pelo menos creio que na redenção das almas 
deve ser visto algo muitissimo diferente do que na remissão das penas, pois 
nas remissões da pena o ser humano recebe um bem, enquanto que na reden- 
cão das almas ele faz um bem. Ora, o impio pode receber um bem, porém de 
modo algum fazer um bem, e não pode agradar a Deus a obra daquela pessoa 
que, ela mesma, não agrada a Deus, como está escrito em Gn 4.4: "O Senhor 
se agradou de Abel e de suas ofertas." Depois, é contra a Escritura que al- 
guém se comisere de uma outra pessoa antes do que de sua [própria] alma e 
que tire o argueiro do olho do irmão antes de tirar a trave de seu próprio 
olh0247, e e completamente [contra a Escritura] que um servo do diabo redima 
uma filha de Deus, e isso junto ao próprio Deus. É ridículo que um inimigo 
interceda por um amigo do rei. Que loucura é essa? pergunto eu. Para magni- 
ficar a remissão de uma pena de pouquissimo valor e inútil para a salvação, 
eles rebaixam os pecados, ao passo que só a penitência destes é que deveria 
ser magnificada. Se isso não é herético, malsoante, escandaloso, ofensivo a 
ouvidos piedosos, o que, afinal, existe que se possa designar com esses nomes 
mons t ruosos~~? Acaso os inquisidores da depravação herética atormentam e 
vexam os católicos e as opiniões católicas com esses títulos para que unica- 
I mente a eles seja permitido inundar29 de heresias impunemente e a seu bel- prazer? Dizem eles, entretanto, que essa redenção não se estriba na obra de quem redime, mas sim no mérito daquele a ser redimido. Respondo: quem 
clibse isso? De onde é provado? Então por que aquele a ser redimido iião é li- 
0cri:rdo por seu próprio mérito, sem a obra de quem redime? Mas então não 
crcsccria o dinheiro cobiçado por causa da salvação das almas. Então por que 
ii:to cliamamos os turcos e os judeus, para que, junto conosco, também depo- 
sitciii seu dinheiro, não por causa de nossa cobiça, mas por causa da reden- 
c.'io das almas? O fato de não serem batizados parece não constituir um obs- 
iiculo, pois aqui não é necessário senão o dinheiro de quem dá, de forma al- 
[:liriia a alma de quem se perde. Pois essa doação só se estriba na alma a ser 
icdimida. Creio que mesmo que um asno depositasse ouro, também ele redi- 
iiiiria; pois se se exigisse alguma disposição, também a graça seria necessária, 
já quc um cristão pecador desagrada mais a Deus do que qualquer descrente, 
c i) zurrar não desfigura o asno tanto quanto a impiedade desfigura o cristão. 
Em segundo lugar, é certo que eu disse que se podem dar aos pecadores 
cartas de confissão, assim como remissões de penas, porém não o disse para 
que eles sejam encorajados, sim, nem mesmo para que lhes seja permitido 
coiiiprar tais coisas, como ensinam impia e cruelmente. E isto eu provo: 
1. Todo ensinamento de Cristo é uma exortação á penitência e visa fazer 
coiii que os seres humanos se afastem do diabo o quanto antes, como diz o 
11clesiástico: "Não tardes em te converter ao Senhor" [Eclo 5.81, e como diz 
11 Senhor mesmo: "Vigiai, porque não sabeis o dia nem a hora." [Mt 25.13.1 
l i Paulo: "Apressemo-nos para entrar naquele descanso." [Hb 4.11.l E Pe- 
clro: "Visto, pois, que todas essas coisas hão de ser destruidas, importa que 
\cjais como os que [vivem] em santo procedimento e piedade, apressando-vos 
crri direção ao advento do dia", etc. [2 Pe 3.1 1s.I Estes, contudo, ensinaram 
cssas coisas porque sua preocupação não consistia em como juntar dinheiro, 
iii;is em salvar almas. Aqueles, entretanto, como que seguramente, Ihes dão 
iiiiia misera dilação e, no que deles depende, deixam-nos em perigo de morte 
cicriia, de modo que não sei se, com tal dedicação, estão excusados do homi- 
cídio de almas. Com efeito, aqui não se busca a salvação de quem dá, mas a 
clirdiva de quem se perde. Pois, se fossem bons pastores de almas e verdadei- 
iiiriiente cristãos, envidariam todos os esforços no sentido de induzir o peca- 
cI11r ao temor de Deus, ao horror do pecado, e não cessariam de chorar, orar, 
iidriioestar, increpar, até que tivessem ganho a alma do irmão. Se ele contj- 
iiii;isse a dar dinheiro, perseverando no mal, jogariam o dinheiro na cara dele 
c diriam com o apóstolo: "Não procuro os teus bens, mas a ti mesmo" [2 Co 
12.141; e mais uma vez: "O teu dinheiroseja contigo para perdição" [At 
H.20]. c se afastariam com horror da presença dele. Assim é que agiriam cor- 
l'c'l~lille~lte, 
No entanto, isso está longe do nosso Mercúrio250: "Façamos, antes, o se- 
1:iiiiitc: sc os pecadores vierem, fiados em mediadores idôneos (isto é, no di- 
iilicirc~). rnesrno contra a vontade de Cristo e de todos os apóstolos, eles serão 
vi~ir ici t r i i i dc nós, podendo tudo o que nós podemos, até redimir almas, mes- 
!tio qiic cle\ pereçam de imediato e nós ainda nos riamos e nos regozijemos 
em segurança com sua dádiva. Isto é amor pelo povo de Cristo e por nossos 
irmãos. Assim é que cuidamos de suas almas, para que entendam que temos, 
por seus pecados, a Última compaixão, ou seja, nenhuma." 
Tese 36 
! Qualquer cristão verdadeiramente arrependido tem direito a remissüo 
plena depena e culpa, mesmo sem carta de indulgência. 
! 
I Do contrário estariam em perigo as pessoas que não tivessem tais cartas, 
! o que é errado, já que estas não são ordenadas nem recomendadas, e sim li- 
I vres. Também não pecam as pessoas que não fazem caso delas, nem estão, por isto, em perigo quanto á sua salvação. Isto se evidencia a partir do fato 
de que tais pessoas já estão no caminho dos mandamentos de Deus, e se por 
acaso alguma vez não Ihe[s] fosse dada tal remissão, mesmo assim ela lhe[s] 
i seria devida, como diz o papa. Aqui, porém, interpõe-se a inteligência agu- 
dissima de certas pessoas que dizem que isso seria verdade se os cânones fos- 
sem penas impostas tão-somente pelo papa, mas que em verdade elas são de- 
clarações de penas infligidas por Deus. Convém que assim falem as pessoas 
que, de uma vez por todas, se propuseram perseguir a verdade com ódio per- 
pétuo. 
Em primeiro lugar, proclamam, como que a partir de um oráculo, que 
Deus exige uma pena satisfatória pelos pecados, quer dizer, uma pena dife- 
rente da cruz evangélica (isto é, jejuns, trabalhos, vigílias), diferente da casti- 
gadora. É que eles não se referem a estas porque não podem negar que são re- 
mitidas tão-somente por Deus. 
Em segundo lugar, a essa monstruosidade acrescentam uma maior, a sa- 
ber, que os cânones declaram [a pena como] imposta [por Deus]. Logo, ao 
papa só cabe declarar, nunca, porém, impor e relaxar. Do contrário, contra a 
palavra de Cristo, nos ensinariam isto: "Tudo o que eu ligar tu desligarás." 
Tese 37 
Qualquer cristão verdadeiro, seja vivo, seja morto, tem participação em 
lodos os bens de Cristo e da Igreja, por dádiva de Deus, mesmo sem carta de 
indulgência. 
l? impossivel ser cristão sem ter Cristo. Se se tem Cristo, tem-se, ao mes- 
iiio icnipo, tudo o que é de Cristo. Pois diz o santo apóstolo em Rm 13.14: 
"Kcvcsti-vos do Senhor Jesus Cristo." E em Rm 8.32: "De que maneira não 
lios dará com ele todas as coisas?" E em 1 Co 3.21s.: "Tudo é vosso, seja Ce- 
p ,i\, . cj.1 :, Paiilo, seja a vida, seja a morte." E em 1 Co 1225': "Vós não sois de 
. 
i 251 1'1'. I ( ' o 12.27. 
v0s mesmos, mas membros do membro." E em outras passagens, onde escre- 
vc que, em Cristo, todos nós somos um só corpo, um só pão252, membros uns 
dos outros. E em Ct [2.16]: "O meu amado é meu, e eu sou dele." É que pela 
I% cm Cristo o cristão é feito um só espírito e unido com Cristo. Pois serão os 
dois uma só carne, o que é um grande mistério em Cristo e na Igreja253. Visto, 
pois, que o Espirito de Cristo está nos cristãos, pelo qual se tornam irmãos, 
co-herdeiros, um só corpo e cidadãos de Cristo, como poderia não haver ai 
participação em todos os bens de Cristo? Pois também Cristo tem tudo o que 
i. scu do mesmo Espírito. Assim sucede, pelas inestimáveis riquezas das mise- 
ricórdias de Deus Pai, que o cristão pode gloriar-se e, com confiança, tudo 
arrogar-se em Cristo, a saber, que a justiça, a força, a paciência, a humildade 
c todos os méritos de Cristo são também seus pela unidade do Espirito a par- 
tir da fé nele, e, inversamente, que todos os seus pecados já não são mais 
scus, mas, pela mesma unidade, de Cristo, no qual todas as coisas também 
scrão absolvidas. E é esta a confiança dos cristãos e a jovialidade de nossa 
coiisciência: pela fé, nossos pecados não são nossos, mas de Cristo, sobre o 
qual Deus colocou os pecados de todos nós254; ele levou sobre si os nossos 
pecados255; ele é o cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo2'6. Inversa- 
iiieiite, toda justiça de Cristo se torna nossa. Pois ele impõe sua mão sobre 
nós, e ficamos bem, e ele estende seu manto e nos cobre, bendito Salvador em 
clcrnidade, amém. 
Contudo, como essa suavissima participação e alegre permuta não acon- 
icceni senão pela fé, e como o ser humano não pode se dar nem se tirar a fé, 
crcio ser suficientemente claro que essa participação não é dada pela força 
(Ias chaves nem pelo benefício de cartas de indulgências, mas sim unicamente 
por Deus, antes e sem elas; assim como a remissão antes da remissão, a absol- 
vição antes da absolvição, da mesma forma a participação antes da participa- 
$ 5 0 . 
De que o papa faz participar através de sua participação? Respondo: eles 
cliriern, como é dito acima na tese 6 a respeito da remissão, que ele faz partici- 
!>:ir declarativamente. Pois confesso que não entendo como poderiam dizer 
(Ic outra forma. Exporei minha concepção na tese que se segue. 
Tese 38 
Mesmo assim, a remissüo e parlicipaçüo do papa de forma alguma de- 
i2<,ni ser desprezadas, porque (como disse25') constifuem declaração do per- 
(1170 (livino. 
Não que seja necessária a declaração feita nas cartas públicas de indul- 
yi.iiciiis (pois é suficiente a declaração feita na confissão privada). mas clii 
~- 
! 5 1 < ' I I ('o 10.17 
251 ( '1 ' . 1:.r 5.11,. 
!I4 ( 1 ' I, 5l.f l . 
não deve ser desprezada, já que, por meio dela, é tornada conhecida e confir- 
mada também á Igreja a declaração feita privadamente. Com efeito, é assim 
que, creio eu, isso deve ser entendido. Quem tiver coisa melhor que o diga. 
Pois náo vejo que outras coisas faria essa participação pública. Contudo, em- 
bora não negue que essa tese tenha sido aceita por todos (como creio), disse 
acima na tese 6 que não me agrada essa maneira de falar, [segundo a qual] o 
papa não faz outra coisa senão declarar ou confirmar a remissão divina ou 
participação. Pois, em primeiro lugar, isso desvaloriza por demais as chaves 
da Igreja, sim, tornade algum modo ineficaz a palavra de Cristo que diz: 
"Tudo o que", etc. E que "declaração" é módico demais. Em segundo lu- 
gar, porque todas as coisas serão incertas para a pessoa a quem é feita a de- 
claração, ainda que aos outros ou a Igreja, exterior e publicamente, sua re- 
I missão e reconciliação fiquem certas. Por esta razão, assim como opinei acima a respeito da remissão da cul- 
I pa, da mesma forma quero opinar a respeito da participação nos bens: assim como, depois do pecado, o pecador dificilmente confia na misericórdia de 
Deus, a tal ponto o impele ao desespero o pesadissimo Ônus do pecado, e co- 
gita muito mais facilmente a ira do que a misericórdia de Deus, da mesma 
forma, antes do pecado, cogita mais facilmente a misericórdia do que a ira. 
Pois o ser humano faz tudo às avessas, temendo onde não deve temer, mas 
esperar - a saber, depois do pecado -, sendo presunçoso onde não deve ser 
presunçoso, mas temer - a saber, antes do pecado. Um exemplo disso nos é 
abundantemente mostrado na ressurreição de Cristo, em que foram necessá- 
rias muitas provas para que ele ressuscitasse no coração dos discipulos. Por 
fim, o primeiro anúncio foi feito a mulheres e comparado, por eles, a um de- 
lírio. Assim, também ao pecador a primeira confiança parece mole, e ele jul- 
ga não dever crer nela (ou dificilmente). Assim, é muito mais difícil confiar 
que se é participante dos bens de Cristo, isto é, de bens inenarráveis, de modo 
que se é participante da natureza divina, como diz S. Pedro258. A magnitudedos bens também produz falta de confiança, a saber, não só que tão grandes 
males são remitidos, mas também que tão grandes bens são conferidos, que 
ele é filho de Deus, herdeiro do reino, irmão de Cristo, companheiro dos an- 
jos, senhor do mundo. Pergunto: como pode crer que essas coisas são verda- 
deiras quem, atormentado por seu pecado, sim, acabrunhado pelo peso des- 
te, é arrastado para o inferno? Aqui, pois, é necessário o juizo da chave, para 
que o ser humano não creia em si, mas, antes, na chave, isto é, no sacerdote. 
E não me importa que o portador da chave porventura seja indouto ou levia- 
no. É que [ele deve crer] não por causa do sacerdote e seu poder, mas por 
causa da palavra daquele que diz e não mente: "Tudo o que desligares", etc. 
[Mt 16.19.1 Com efeito, no caso das pessoas que crêem nesta palavra, a chave 
rião pode errar. Ela só erra, porém, no caso das pessoas que não crêem que 
csta absolvição é válida. Pois imagina (mesmo que fosse impossível ou acon- 
leccsse por acaso) que alguém não está ou não crê estar suficientemente con- 
(rito, mas, mesmo assim, com toda a confiança crê em quem o absolve [e crê] 
qtie está absolvido (assim opino segundo minha confiança); [neste caso] essa 
I'& o torna verdadeiramente absolvido, porque crê naquele que diz: "Tudo o 
qiie", etc. A fé em Cristo sempre justifica, da mesma maneira como [estás 
hatizado mesmo] que um sacerdote inepto, leviano e ignorante te batize. E 
iiiais: ainda que julgues não estar suficientemente contrito (pois não podes 
iiem deves confiar em ti mesmo), mas, não obstante, crês naquele que diz: 
"Quem crer e for batizado, será salvo" [Mc 16.161, digo-te que essa fé em 
siia palavra faz com que sejas verdadeiramente batizado, seja lá qual for o es- 
lado de tua contrição. Por isso, a fé é necessária em toda parte. Tens na exata 
iiiedida em que crês. É assim que entendo o que dizem nossos mestres: Os sa- 
cramentos são sinais eficazes da graça, não porque acontecem (como diz o B. 
Agostinho2Jg), mas porque se crê, como dissemos acima. Assim aqui: a absol- 
vição é eficaz não porque acontece, seja lá quem afinal a faz, quer erre, quer 
i130 erre, mas porque se crê. Esta fé também não pode ser impedida pela re- 
serva de casos, a não ser que seja manifesta e desprezada. Digo, por conse- 
giiinte: quando está em pecado, o ser humano é de tal modo atormentado e 
agitado por sua consciência, que, em sua maneira de ver, crê ter, antes, parti- 
cipação em todos os males. Tal ser humano certamente está próximo da justi- 
ficação e tem o início da graça. Por isso, deve refugiar-se no consolo das cha- 
ves, para ser aquietado pela sentença do sacerdote, obter paz e conseguir a 
coiifiança de participar de todos os bens de Cristo e da Igreja. Se alguém não 
crer ou duvidar que essa participação lhe tenha sido dada pelo oficio do sa- 
cerdote, é seduzido não por um erro da chave, e siin por sua descrença, causa 
grande dano á sua alma e faz a Deus e á sua palavra uma injustiça e suma ir- 
reverência. Por isso, se não crê que é absolvido, é muito melhor que não ve- 
ilha para a absolvição do que que se aproxime sem fé, pois se aproxima fingi- 
ilaiiiente e recebe juizo para si, da mesma forma como se recebesse o Batismo 
o u o Sacramento do Pão fingidamente. Por isso, a contrição não é tão neces- 
sária quanto a fé. Pois ali a fé na absolvição consegue incomparavelmente 
iiiais do que o fervor da contrição. 
Omitindo esta fé, muitos de nós só laboram no sentido de formar contri- 
<;li], de modo que ensinamos as pessoas a confiar que os pecados estão per- 
doados quando sentirem que estão perfeitamente contritas, isto é, a não con- 
fiar nunca, mas, antes, a enredar-se cada vez mais no desespero, ao passo 
quc, segundo o profeta, devemos depositar nossa esperança não em nossa 
coi11riçã0, mas em sua palavra. Pois ele não diz: "Lembra a teu servo minha 
coiitriçilo, na qual me fizeste esperar", e sim: "Lembra-te de tua palavra, na 
qii;il rite Fizesie esperar." [SI 119.49.1 E mais uma vez: "Em tua palavra (de 
iii;iricira alguma em nossa obra) eu esperei." [SI 119.81.] E mais uma vez: 
"Miiilia alma se sustentou em sua palavra", etc. [SI 130.5.1 E, como é SI 
01511.4 etii hebraico: "Pequei contra t i somente. por isto [me] justificarás 
1"". Lii ;~ palavra." Porlanto, o que te justifica não é o sacraiiiento nem o sa- 
cerdote, mas a fé na palavra de Cristo por meio do sacerdote e seu oficio. 
Que te importa que o Senhor fale por meio de um burro ou uma burra, con- 
tanto que ouças sua palavra, na qual podes esperar e crer? 
Assim eu entenderia aquilo que dizem nossos mestres escolásticos~: Os 
sacramentos da Igreja nos são dados para exercício, isto é, como dádivas 
inestimáveis, para que nelas tenhamos ocasião para crer e ser justificados. 
Pois antigamente, na época de Saul, a palavra do Senhor era cara261. Agora, 
contudo, ela se faz ouvir a ti mesmo por meio de seres humanos sobremodo 
levianos, ruins, ignoranles. Presta atenção na Palavra e deixa de lado a apa- 
rência da pessoa. Quer ela erre ali, quer não, tu não erras se creres. Se erro e 
perdi o juizo neste ponto, quem sabe que me corrija. 
Disso se seguirá que aquelas três verdades de João Gérson, já há muito 
transfundidas em todos os livros e ouvidos, devem ser entendidas com pru- 
dência, a saber: o ser humano não deve confiar que está no estado de salva- 
ção porque pode dizer que sofre por causa dos pecados; deve, muito antes, 
advertir se deseja o sacramento da absolvição de tal modo que crê que está 
absolvido quando o tiver obtido. Pois isto é que é receber o sacramento em 
desejo, ou seja, na fé na Palavra que realmente se ouve ou se deseja ouvir. 
Por conseguinte, toma cuidado para de modo algum confiares em tua contri- 
ção, mas unicamente na palavra de teu excelente e fidelíssimo Salvador Jesus 
Cristo. Teu coração pode te enganar, mas ele não te enganará, seja ele tido, 
seja desejado. Se as coisas assim são (que o Senhor Deus conceda que, com o 
profeta Miquéia~26~', eu seja um homem sem o Espírito e, antes, fale a menti- 
ra), é de se temer que muitas almas se perdem através desses ignorantissimos 
berradores de obras e contrição. Em primeiro lugar, porque não ensinam a fé 
na Palavra, mas tão-somente a contrição, e esta de maneira bastante fraca. 
Em segundo lugar, porque estão prontissimos a conceder absolvições e tais 
participações, como se em toda parte todos tivessem essa fé, e não procuram 
descobrir a quem e por que absolvem. 
Assim, pois, não é tão necessário dizer a pessoa a ser absolvida:,"Estás 
pesaroso"3?", quanto: "Crês que podes ser absolvido por mim?" E assim 
que Cristo disse aos cegos: "Credes que posso vos fazer isso?" [Mt 9.28.1 
"Tudo é possível para quem crê." [Mc 9.23.1 Pois essa fé certamente é prova- 
da ao máximo nas pessoas que, atormentadas pelo tremor da consciência, 
Fentem, antes, sua falta de fé. Porém não sei se as chaves são consoladoras 
para as pessoas que não sentem tal miséria, visto que não merecem ser conso- 
ladas senão as que choram, e não merece ser animado a crer na remissão se- 
iião quem treme de medo que e l e 9 lhe sejam retidos. 
E, para finalmente pôr um fim [a essa questão], creio que essa minha 
opinião não diminui o poder da chave, como me acusam , mas o reconduz de 
ZMI ' I ' i~ii ibr dc Aqiiino, Suinrno lheologiae 111, quoestio 61, orticulus 1 , 
261 < ' I ' . I Siri 3 . 1 . 
202 ('I' . Mil 2.11 
263 Sc. iiui. c;iii,n de leu\ peca<l<>.;. 
?bJ si.. <>r i>~~il<l,i\. 
iiiiia falsa honra e tirânica reverência para uma reverência que lhe é devida e é 
digna de amor. Pois não é de admirar que as chaves sejam desprezadas, se 
s3o oferecidas a acolhida com falsas honras, isto é, somente com terrores, ao 
passo que seria uma pedra ou um pedaço de pau quem, sabendo de sua salu- 
hbrima utilidade, não as cobrisse de beijos e as abraçasse com lágrimas. Por 
que, então,

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